Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
705/18.0T8CSC-A.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: CONCLUSÕES
PRODUÇÃO DE PROVA
COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
DIREITO DE PERSONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I) As conclusões da motivação do recurso visam habilitar o tribunal superior a conhecer das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito, traduzindo uma enunciação abreviada, congruente, clara e precisa dos fundamentos do recurso.
II) O ónus de concluir compete exclusivamente ao recorrente, conforme decorre do n.º 1 do artigo 639.º do CPC.
III) Tendo a recorrente formulado a conclusão do recurso, em termos inteligíveis, solicitando a revogação da decisão recorrida e expondo a razão sucinta da impugnação, o Tribunal de recurso está em condições de conhecer da impugnação, pelo que, a ausência da menção nas conclusões às normas jurídicas violadas - que consta, aliás, da motivação da alegação - não deve determinar o não conhecimento do recurso, sob pena de se cair numa leitura estritamente formal do consignado no artigo 639.º do CPC.
IV) A demonstração da realidade dos factos – artigo 341.º do CC – pretendida com a prova, não visa alcançar uma certeza absoluta de tal realidade, mas sim, um grau de convicção suficiente para as exigências da vida e o direito à prova não é ilimitado ou absoluto.
V) A licitude da prova constitui um limite intrínseco do direito à prova, que se deduz da tutela constitucional de diversos direitos fundamentais – embora, em si mesmo, não diretamente do artigo 32.º, n.º 8, da CRP, preceito previsto em sede de garantias do processo criminal – e se concretiza naqueles pressupostos ou condições que, por natureza, devem ser observados por qualquer prova.
VI) Assim, constituirá prova ilícita toda aquela que seja obtida ou produzida, mediante a violação de normas de direito material, que tutelam direitos fundamentais dos cidadãos, ou aquela cuja formação ou produção em si mesma consubstancie um ilícito.
VII) A lei processual civil – muito embora estabeleça diversas regras limitativas da produção de prova ou de certos meios de prova, por exemplo, nos arts. 433.º e 607.º n.º 2 do CPC ou nos arts. 364.º, n.º 1, 393.º e 394.º do CC - é omissa quanto à questão da inadmissibilidade da prova ilícita, contrariamente ao que sucede no processo penal (cfr. art. 125º do CPP).
VIII) Relativamente às provas relativamente ilícitas – em que está em questão a violação de direitos fundamentais, como o direito à intimidade da vida privada ou familiar, o direito à inviolabilidade do domicílio, ao segredo de correspondência ou das telecomunicações, o direito à imagem, à palavra, etc., e a que se referem as alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 417.º do CPC - o consentimento do titular do respetivo direito é relevante em termos de retirar ilicitude ao acto lesivo.
IX) Face à colisão de direitos fundamentais, impõe-se proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (cfr. artigo 335.º do CC), ponderando se o meio de prova ilicitamente obtido é, não obstante, relevante, imprescindível, justificado, adequado e proporcionado para prova dos factos em presença, que, em concreto, sobrelevam sobre outros direitos fundamentais em presença, justificando a sua compressão em detrimento de tal direito à prova, ou se, tal compressão, não se mostra justificada.
X) O direito à palavra – com tutela constitucional (artigo 26.º da CRP) - integra, com outros direitos, o núcleo do direito geral de personalidade, constituindo expressão directa do postulado básico da dignidade humana e o mesmo compreende: a) O direito à voz, como atributo de personalidade, sendo ilícito, sem consentimento da pessoa, registar e divulgar a sua voz, com ressalva do lugar em que ela foi utilizada; b) O direito às palavras ditas, que pretende garantir a autenticidade e o rigor da reprodução dos termos, expressões, metáforas escritas e ditas por uma pessoa; e c) O direito ao auditório, ou seja, a decidir o círculo de pessoas a quem é transmitida a palavra.
XI) No caso concreto, a gravação áudio de uma conversa entabulada entre as partes, no consultório médico do réu, onde a autora se dirigiu e onde gravou a conversa havida, sem consentimento deste último, constitui gravação obtida ilicitamente, porque obtida de forma não consentida ou autorizada.
XII) Visando a autora demonstrar o atendimento médico – a prestação de serviços – que é negado pelo réu, o direito à prova da autora não é, em concreto, preponderante, nem sobreleva, sobre o direito à palavra do réu, de modo a justificar a junção ao processo e a valoração da mencionada gravação áudio, não constituindo este meio de prova, ademais, meio indispensável para a demonstração de uma tal factualidade, pelo que tal documento (gravação) não deve ser admitido, nem valorado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
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Nos autos de processo comum instaurado por (…), identificada nos autos, contra (…) e onde é interveniente principal, (…), a autora juntou aos autos, em 09-03-2018, um documento, contendo uma gravação áudio, em formato de CD.
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No desenvolvimento dos autos, em 01-04-2019 foi proferido despacho que, pronunciando-se sobre o referido meio de prova, se pronunciou nos seguintes termos:
“Quanto à prova digital, a Autora, juntou aos autos gravação, a qual contém uma voz feminina e uma voz masculina, que foi agora ouvida pelo Tribunal, sem menção da autorização dos intervenientes da gravação.
Ora, o art. 417.º, n.º 3 CPC, que regula os fundamentos de recusa de cooperação, apesar de se dirigir directamente às partes, não deixa de se dirigir indirectamente ao juiz, como que impondo uma bitola de não valoração de provas que têm na sua génese, uma forma ilícita de obtenção da prova, aí se incluindo a intromissão abusiva na intimidade da vida privada e familiar, no domicílio pessoal e profissional, na correspondência ou nas telecomunicações.
Nesta medida, e em ponderação perante o direito constitucional à acção e à prova, é de interpretar-se o art. 417.º, n.º 3 do CPC, no sentido de que não deverão ser admitidos no processo para efeitos de valoração como prova, documentos ou suportes de gravação obtidos de forma ilícita, isto é, sem o consentimento expresso dos intervenientes, ou autorização prévia da respectiva autoridade judiciária para o efeito, sob pena de violação do art. 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa, aplicável analogicamente ao processo civil.
Pelo supra exposto, a gravação em questão, efectuada sem menção do consentimento das partes neles intervenientes, ou sem autorização de autoridade judiciária, denota uma intromissão abusiva no domicílio profissional dos Réus, com gravação da sua voz sem autorização, pelo que a mesma se afigura ter sido obtida de forma ilícita, estando nessa medida ferida de nulidade para efeitos civis, por violação do art. 32.º, n.º 8 da CRP, pelo que e cumpre, nessa medida declarar a inadmissibilidade da sua valoração.
Pelo supra exposto, declaro ilícita a gravação apresentada e nessa medida julgo verificada a sua nulidade, considerando inadmissível a sua valoração em sede de apreciação da matéria de facto.
Notifique.”.
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Não se conformando com o despacho de 01-04-2019, dele apela a autora, tendo alegado, nomeadamente, o seguinte:
“(…) I – SINTESE DA DEMANDA
1º - A Recorrente ingressou com uma Ação de Danos patrimoniais e não patrimoniais face aos Recorridos decorrente de um procedimento dentário malsucedido.
2º - Referido procedimento foi feito pelo médico (...), funcionário da Clínica (…), que tem como sócio o também médico (…).
3º - Com fortes dores e sangramento, retornou, por conta disso, diversas vezes na Clínica na esperança que tivesse uma solução para o seu sofrimento pois, até então, somente eram-lhe passados medicamentos paliativos que não surtiam efeito, sem realizarem exames aprofundados, o que somente o fez por iniciativa própria.
4º - Num dos exames particular realizados na Clinica (…) repita-se, por iniciativa própria e não por iniciativa dos Requeridos, ficou constatado que a Requerente apresentava uma lesão no nervo da boca, por conta da malsucedida intervenção do médico (...).
5º - Foi, então, que retornando à Clinica (…) e apresentando os exames, foi atendida pelo médico (…) e o mesmo alegou que “o exame não dizia nada, que não tinha nada”, sendo que fez vários toques nos seus dentes e constatou que sentia choques em 2 dentes, e os outros estavam dormentes e “que a dor era psicológica”, mas ministrou-lhe mais remédios para a dor.
6º - Com ameaças, grosserias e intimidações dirigidos à Requerente, conforme se comprova dos áudios gravados e juntados em apartado, o Dr. (…) “perguntou o nome da médica que tinha assinado o laudo, para processá-la, e que disse que tinha um advogado do outro lado da rua”.
7º - A conversa acima entabulada entre o médico (…) e a Requerente foi por ela gravada, sem o conhecimento do médico, sendo a gravação juntada aos autos em mídia digital.
II – DAS RAZÕES DA APELAÇÃO AUTÓNOMA
As razões que justificam a admissibilidade da apelação autónoma e imediata das decisões sobre os meios de prova prendem-se, para além da, desejável, celeridade processual, com a conveniência de atenuar os riscos de uma futura inutilização do processado
8º - O processo encontra-se em fase de Saneamento e, nesse aspecto, o MM. Juizo aquo, exarou, no R. Despacho de admissão dos meios de prova, pela inadmissibilidade da gravação juntada, por considerar a sua obtenção ilícita, por violação do artigo 32º, nº 8 da CRP, e, portanto, julgou pela nulidade da gravação e inadmissível a sua valoração em sede de apreciação da matéria de fato, com o qual a Recorrente não pode se conformar, visto que a mesma não foi examinada ponderadamente. Vejamos:
9º - A Recorrente reitera que não houve qualquer interceptação de conversas mas, tão somente, a gravação de conversa feita por um dos interlocutores, no caso, entre a própria Requerente ( que gravou a conversa e cujo diálogo também a pertence ) e o médico (…), com a intenção de comprovar um direito e a realidade dos factos, nos termos do artigo 341º do código civil.
9º.1 – No caso vertente, ante a alegação de Ilegitimidade passiva do Réu (…), conforme articulados de nºs 27 a 41º da Contestação ao qual considera uma exceção dilatória, merece destaque o articulado de nº 32º quando alega: “ O que a Autora alega não corresponde à verdade. O Réu (…) nunca prestou qualquer serviço médico à Autora. É verdade que o Réu (…) recebeu a Autora no seu gabinete médico sito na Clínica “Dr. (…)”, porque a Autora terá pedido na recepção da clínica para falar com o respectivo “Director” a fim de apresentar “reclamação” relativamente ao Réu (…)” ( grifo nosso ).
9º.2 – Dessa forma, a gravação tem por efeito provar, sim, o atendimento prestado pelo Réu (…), que o procurou para reclamar das dores que sentia, visto ser ele o médico responsável e sócio da Clínica, sendo de rigor, presumir, pelo próprio interesse envolvido, que deva assumir os riscos; entendimento em contrário beneficiará o Réu que, utilizando de mentira, se beneficiará da própria torpeza.
10º - Conforme reportado pelo MM. Juiz a quo, “a gravação foi ouvida pelo Tribunal, a qual contém uma voz feminina e uma voz masculina, sem menção da autorização dos intervenientes da gravação” e, por isso, arribando-se no artigo 417º, nº 3, do CPC, considerou a mesma obtida de forma ilícita, data vénia, sem a devida ponderação, ou seja, impõem a restrição de um direito para salvaguarda de outro, também constitucionalmente garantido, se analisado à luz da ponderação de interesses e de acordo com o princípio da proporcionalidade também assegurado constitucionalmente no art. 18º, nº 2 da CRP.
10º.1 – O fato a provar é mais importante que o que se deseja preservar, como eventual invasão da intimidade do indigitado médico, seja individual ou profissional, o que, repita-se, não ocorreu; por isso, é preciso relativizar os direitos e analisá-los segundo o fato concreto, examinando-o ponderadamente.
11º - Vejam, Excelências, o artigo 417º, nº 3º do CPC, se refere que “é legítima a recusa da colaboração devida na descoberta da verdade, se esta importar: a) violação da integridade física ou moral das pessoas; b) intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos ou do segredo de estado”, premissas essas que não ocorreram no caso concreto ( grifamos ).
11º.1 – Importante trazer à baila uma jurisprudência que segue a doutrina de Figueiredo Dias nomeadamente o acórdão 7/87 Relator Mário de Brito onde se julgou não inconstitucionais as normas constantes do n.º3 e n.º4 do artigo 174.º referindo que o então n.º8 do artigo 32.º da constituição só considera nula, as provas mediante abusiva intromissão na vida privada. Acórdão que começou por consagrar a teoria da ponderação de interesses através do princípio da proporcionalidade. Portanto admitindo a restrição dos Direitos Fundamentais constantes no agora artigo 32.º nº8 segunda parte, desde que, não Abusiva (…)”.
Pugna pela substituição do despacho recorrido por outro que valore o documento junto em sede de apreciação de facto, formulando a seguinte conclusão:
“12º - Como o MM. Juizo a quo decidiu relegar o conhecimento da exceção para sentença final, e que a gravação apresentada não será valorizada na apreciação da matéria de fato, pese ser esta prova a única existente a provar o atendimento médico feito também pelo Réu (…), Requer, dignem-se Vossas Excelências, julgar a apelação dos despachos supra referidos procedente e, em consequência, a revogação dos mesmos, (despacho proferido a 04.04.2019, referência CITIUS nº 118711039) determinando que a mesma seja valorada em sede de apreciação da matéria de fato, nomeadamente, pela legitimidade passiva do Réu (…) compor a lide e suportar os seus efeitos.”.
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Os réus (…) contra-alegaram invocando que o recurso não deve ser conhecido –  entendendo que a recorrente não cumpriu o ónus de alegar e formular conclusões e nas conclusões não indicou as normas jurídicas que considerou violadas, nem o sentido em que as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, nem o erro na determinação da norma aplicável e/ou a norma jurídica que, no entendimento da Recorrente, devia ter sido aplicada – e, para o caso de assim não se entender, deve ser mantida a decisão recorrida.
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Admitido liminarmente o requerimento recursório e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são as de saber:
A) Questão prévia – Não conhecimento do objecto do recurso por incumprimento, pela apelante, dos artigos 637.º e 639.º do CPC?
B) Se o despacho recorrido, que indeferiu o requerimento probatório da autora quanto ao documento junto, por considerar que o mesmo contém prova ilícita, deve ser revogado e substituído por outro que admita tal meio de prova nos autos?
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3. Fundamentação de facto:
São elementos processuais relevantes para a apreciação do recurso os elencados no relatório.
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4. Fundamentação de Direito:
De acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 2, do CPC, “versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Vejamos, pois, o recurso apresentado, apreciando as questões enunciadas.
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A) Questão prévia – Não conhecimento do objecto do recurso por incumprimento, pela apelante, dos artigos 637.º e 639.º do CPC?
No ponto II) da contra-alegação, os apelados invocam que o recurso interposto não deve ser conhecido, por ter ocorrido violação do disposto nos artigos 637.º e 639.º do CPC no que respeita ao recurso da apelante, tendo alegado o seguinte:
“O artº637º do Código do Processo Civil dispõe que o Recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso, deve indicar a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso que interpuser.
Ora, se bem se atentar no requerimento de interposição de recurso apresentado pela Recorrente, facilmente se vem a concluir que a Recorrente não indicou o efeito da subida do recurso que interpôs.
Além disso, a Recorrente refere juntar “…a decisão recorrida…”, mas também refere juntar “…o despacho objecto da reclamação…”.
Ou seja, a verdade é que fica a fundada dúvida se, afinal, a Recorrente pretende recorrer do despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa ou, se, por outro lado, pretende reclamar de algum despacho proferido nos autos.
Razão pela qual a Recorrente não cumpriu um ónus legal que sobre a mesma impendia.
Não tendo, igualmente, a Recorrente cumprido o ónus que lhe era imposto pelo artº639º do Código do Processo Civil.
A Recorrente não cumpriu, devidamente, o ónus de alegar e formular conclusões.
A Recorrente, não indica qualquer fundamento por que pediu a alteração da decisão recorrida.
A Recorrente, nas conclusões, não indicou as normas jurídicas que considerou violadas.
A Recorrente, nas conclusões, não indicou o sentido como que, no seu entender, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas.
A Recorrente, nas conclusões, não invocou o erro na determinação da norma aplicável e/ou a norma jurídica que, no entendimento da Recorrente, devia ter sido aplicada.
A verdade é que se entende que, in casu, a Recorrente, pura e simplesmente não formulou conclusões.
Por isso, a realidade é que a inexistência de conclusões não é equivalente a conclusões formuladas mas deficientes, obscuras ou complexas.
E, não sendo equivalente, não deverá haver lugar ao convite a que se alude no nº3 do artº639º do Código do Processo Civil”.
Conforme refere Luís Filipe Castelo Branco (Recursos Civis: O Sistema Recursório Português. Fundamentos, Regime e Actividade Judiciária. Lisboa: CEDIS, 2020, pp. 33-34, consultado em: https://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2020/09/Recursos-Civis-min.pdf): “O sucesso do recurso cível baseia-se, essencialmente, numa peça processual inicial que, apresentada juntamente com o requerimento de interposição de recurso, contém as alegações de recurso.
Trata-se da exposição alargada dos motivos que justificam, segundo a óptica do recorrente, que o tribunal de recurso opte por posição diversa da adoptada na instância inferior, concluindo pela errada valoração de facto ou pela violação das normas legais aplicáveis à situação sub judice, e que altere, modificando, o sentido da decisão recorrida.
Estas alegações de recurso terminam obrigatoriamente com a formulação das conclusões das alegações (ou melhor dito, das conclusões do corpo das alegações), as quais delimitam o objecto do respectivo conhecimento por parte do tribunal superior.
Trata-se basicamente da concretização do ónus de síntese conclusiva que é colocado sobre os ombros do recorrente e que o mesmo deverá satisfazer com o máximo zelo, clareza e escrúpulo.
Por um lado, esta obrigação processual introduz clareza e transparência na discussão da temática do objecto do recurso: a instância superior fica a saber, de forma ordenada, quais as questões essenciais que lhe compete apreciar, não as podendo descurar, e estabelecendo-se desse modo, com nitidez e utilidade, o foco de incidência do juízo do tribunal ad quem; por outro, o recorrido poderá exercer cabalmente o contraditório que lhe assiste, na medida em que sabe qual a parte da motivação do recurso verdadeiramente relevante e decisiva, a que terá de responder, não se distraindo com as considerações retóricas, marginais e acessórias, que germinam livremente nas orlas da divagação jurídica, por vezes entusiástica e inflamada”.
Vejamos:
O n.º 1 do artigo 637.º do CPC estatui que os recursos de interpõem por meio de requerimento, dirigido ao Tribunal que proferiu a decisão recorrida e nele é indicada a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto.
O n.º 2 do artigo 637.º do CPC estabelece que o “requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento”.
Importa referir, a respeito do n.º 2 do artigo 637.º do CPC que, fora dos casos em que deve ter lugar, sob pena de rejeição do recurso, a indicação do fundamento específico de recorribilidade – o que sucede nos casos do recurso de revista excecional (artigo 672.º, n.º 2) e do recurso para uniformização de jurisprudência (artigo 692.º, n.º 1), em que a condição de recorribilidade da decisão advém de uma norma particular a consentir no recurso – nas demais situações e, concretamente, em sede de recurso de apelação, não é imperioso o apelante indicar algum específico fundamento de recorribilidade.
Por sua vez, decorre dos n.ºs. 1 e 2 do artigo 639.º do CPC que:
“1-O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 – Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas não se tenha procedido às especificidades a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada (…)”.
Conforme deriva dos normativos transcritos, o requerimento de interposição de recurso deve satisfazer determinadas condições formais, apresentando a respetiva fundamentação e o pedido.
Como refere, em geral, Rui Pinto (O Recurso Civil. Uma Teoria Geral; AAFDL, Lisboa, 2017, p. 236), “no requerimento o recorrente deve cumprir os ónus básicos de alegação e formulação das respetivas conclusões – i.e., os fundamentos específicos do pedido – conforme os artigos 637º nº 2 e 639º, e terminar no pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial”.
E, noutro local (Manual do Recurso Civil; Vol. I, AAFDL, Lisboa, 2020 p. 293), concretiza o mesmo Autor que: “Dentro das alegações, há uma função lógica que apenas cabe às conclusões: individualizar o objeto do recurso, ao indicar o(s) fundamento(s) específico(s) da recorribilidade (cf. artigo 673.º nº 2) e, sendo o caso, o segmento decisório concretamente impugnado (cf. o artigo 635º nº 4). Daí ser pacífico o entendimento da jurisprudência de que é pelas conclusões que o recorrente delimita, efetivamente, o objeto do recurso. Simetricamente, a presença das conclusões permite a “viabilização do exercício do contraditório, de modo a não criar dificuldades acrescidas à posição da outra parte, privando-a de elementos importantes para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações” (STJ 26-5-2015/Proc. 1426/08.7TCSNT.L1.S1 (HÉLDER ROQUE)”.
As conclusões da motivação de recurso têm de habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito e sempre com a formulação das conclusões que resumem as razões do pedido.
Assim, o ónus de concluir obtém-se pela indicação resumida dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da sentença ou despacho. Mais simplesmente, as conclusões traduzem uma enunciação abreviada dos fundamentos do recurso, que devem ser congruentes, claros e precisos.
É que, “no contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusão, no final da minuta” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra, 1984, p. 359).
As conclusões são, pois, a enunciação resumida dos fundamentos do recurso.
“Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, p. 359).
A lei impõe a indicação especificada dos fundamentos do recurso nas conclusões, para que o tribunal conheça, com precisão, as razões da discordância em relação à decisão recorrida.
Conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2013 (Pº 483/08.0TBLNH.L1.S1, rel. GARCIA CALEJO): “O recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida). Essas conclusões devem ser idóneas para delimitar de forma clara, inteligível e concludente o objecto do recurso, permitindo apreender as questões de facto ou de direito que o recorrente pretende suscitar na impugnação que deduz e que o tribunal superior cumpre solucionar. Não devem valer como conclusões arrazoadas longas e confusas em que se não discriminam com facilidade as questões invocadas”.
Na mesma linha, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-03-2017 (Pº 1297/12.9T2AMD-A.L1-2, rel. PEDRO MARTINS) que: “Se as conclusões de um recurso não são a síntese daquilo que foi dito no corpo das alegações (art. 639/1 do CPC), mas matéria nova não discutida neste corpo, não há conclusões que devam ser tidas em consideração. E também não existem conclusões relevantes se em nenhuma delas consta a indicação dos fundamentos por que se pede a alteração da decisão (art. 639/1 do CPC)”.
Esse ónus de concluir compete exclusivamente ao recorrente – conforme decorre do n.º 1 do artigo 639.º do CPC - e tem a finalidade útil e garantística de permitir que não existam dúvidas de interpretação acerca dos motivos que o levam a impugnar a decisão recorrida.
As conclusões nada têm de inútil ou de meramente formal, constituindo, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente como motivadoras do recurso e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate, quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.
As conclusões exercem a importante função de delimitação do objeto do recurso, daí que deva ser clara a identificação do que se pretende obter junto do tribunal de recurso, por contraposição, com a decisão recorrida.
Sintetizando os aspetos mais relevantes, refere João Aveiro Pereira (“O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil”, 2018, pp. 32-33, consultado em: http://www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf) que:
“1. As conclusões das alegações são ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida. Porque são o resultado e não o desenvolvimento do raciocínio alegatório, as conclusões têm necessária e legalmente de ser curtas, claras e objectivas, para que não deixem dúvidas quanto às questões que o tribunal ad quem deve e pode conhecer.
2. O ónus de concluir cumpre-se também com a indicação das disposições violadas, do sentido com que deveriam ter sido aplicadas ou, em caso de erro sobre a norma, aquela que o recorrente entende que devia ter sido aplicada (…)”.
“Todavia, é com inusitada frequência que se verificam situações irregulares: alegações deficientes, obscuras, complexas ou sem as especificações exigidas pelo n.º . São triviais as situações em que as conclusões não passam da mera reprodução (total ou parcial) dos argumentos anteriormente apresentados, sem qualquer preocupação de síntese, como se o volume ou a quantidade das conclusões fosse sinónimo de qualidade ou como se houvesse necessidade de assegurar, por essa via, a delimitação do objeto do processo e a apreciação pelo tribunal ad quem de todas as questões suscitadas” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 768, nota 5).
A jurisprudência dos tribunais superiores tem apreciado diversas situações onde se questiona a validade e admissibilidade das conclusões apresentadas, de que são exemplos, as seguintes decisões:
- Acórdão do STJ de 16-12-2020 (Pº 2817/18.0T8PNF.P1.S1, rel. TOMÉ GOMES): “O ónus de formulação de conclusões recursórias tem em vista uma clara delimitação do objeto do recurso mediante enunciação concisa das questões suscitadas e dos seus fundamentos, expurgadas da respetiva argumentação discursiva que deve constar do corpo das alegações, em ordem a melhor pautar o exercício do contraditório, por banda da parte recorrida, e a permitir ao tribunal de recurso uma adequada e enxuta enunciação das questões a resolver. “A falta de conclusões” a que se refere a alínea b), parte final, do n.º 2 do artigo 641.º do CPC, como fundamento de rejeição do recurso, deve ser interpretada num sentido essencialmente formal e objetivo, independentemente do conteúdo das conclusões formuladas, sob pena de se abrir caminho a interpretações de pendor subjetivo. Assim, a reprodução do corpo das alegações nas conclusões não se traduz na falta destas, impondo-se, quando muito, o convite ao aperfeiçoamento das mesmas, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 639.º do CPC. De todo o modo, a orientação no sentido de fazer equivaler a reprodução integral do corpo das alegações nas conclusões - que aqui não se acolhe - não deverá prescindir de uma aferição casuística em ordem a ponderar, à luz do principio da proporcionalidade, a repercussão que essa reprodução, mais ou menos integral, possa acarretar, em termos de inteligibilidade das questões suscitadas, em sede do exercício do contraditório e da delimitação do objeto do recurso por parte do tribunal”;
- Acórdão do STJ de 02-05-2019 (proc. nº 7907/16.1T8VNG.P1.S1, rel. BERNARDO DOMINGOS):  “A reprodução nas “conclusões” do recurso da respectiva motivação não equivale a uma situação de alegações com “falta de conclusões”, de modo que em lugar da imediata rejeição do recurso, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b), do NCPC, é ajustada a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, nos termos do art. 639º, nº 3, do NCPC.”;
- Acórdão do STJ de 07-03-2019 (Pº 1821/18.3T8PRD-B.P1.S1, rel. ROSA TCHING): “A reprodução nas “conclusões” do recurso da respetiva motivação não equivale a uma situação de alegações com “falta de conclusões”, inexistindo, por isso, fundamento para a imediata rejeição do recurso, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b) do Código de Processo Civil. Uma tal irregularidade processual mais se assemelha a uma situação de apresentação de alegações com o segmento conclusivo complexo ou prolixo, pelo que, de harmonia com o disposto no artigo 639º, nº 3 do Código Processo Civil, impõe-se a prolação de despacho a convidar a recorrente a sintetizar as conclusões apresentadas.”;
- Acórdão do STJ de 19-12-2018 (proc. nº 10776/15.5T8PRT.P1.S1, rel. HENRIQUE ARAÚJO): “I - A reprodução da motivação nas conclusões do recurso não equivale à falta de conclusões, fundamento de indeferimento do recurso – art. 641.º, n.º 2, al. b), do CPC. II - Neste caso, impõe-se prévio convite ao recorrente para aperfeiçoar as conclusões, no sentido de lhes conferir maior concisão – art. 639.º, n.º 3, do CPC.”;
- Acórdão do STJ de 27-11-2018 (Pº 28107/15.2T8LSB.L1.S1, rel. JÚLIO GOMES): “I. Quando as conclusões de um recurso são a mera reprodução, ainda que parcial, do corpo das alegações, não se pode, em rigor, afirmar que o Recorrente não deu cumprimento ao ónus previsto no artigo 641.º, n.º 2, alínea b) do CPC. II. Em tal circunstância não há que rejeitar imediatamente o recurso, podendo convidar-se ao seu aperfeiçoamento, por força do disposto no n.º 1 do artigo 659.º do CPC.”;
- Acórdão do STJ de 02-05-2018 (Pº 687/14.7TTMTS.P1.S1, rel. RIBEIRO CARDOSO): “Impõe o art. 639º, nºs 1 e 3 do CPC um ónus ao recorrente - a formulação de conclusões sintéticas, e um dever ao tribunal - o convite ao aperfeiçoamento das conclusões, designadamente sintetizando-as, quando sejam prolixas e, nessa medida, complexas. Não definindo o legislador a forma que deve revestir a síntese das alegações, limitando-se a referir que consistem na indicação sintética dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, o não conhecimento do recurso fundamentado na falta de síntese das conclusões, apenas deve ter lugar em casos muito limitados e flagrantemente violadores do dever de síntese”;
- Acórdão do STJ de 06-07-2017 (Pº 297/13.6TTTMR.E1.S1, rel. GONÇALVES ROCHA): “I - A reprodução nas conclusões do recurso da respectiva alegação não equivale a uma situação de falta de conclusões, estando-se antes perante um caso de conclusões complexas por o recorrente não ter cumprido as exigências de sintetização impostas pelo nº 1 do artigo 639º do CPC. II - Assim, não deve dar lugar à imediata rejeição do recurso, nos termos do artigo 641º, nº 2, alínea b) do CPC, mas à prolação de despacho de convite ao seu aperfeiçoamento com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, conforme resulta do nº 3 do artigo 639º do mesmo compêndio legal.”;
- Acórdão do STJ de 25-05-2017 (Pº 2647/15.1T8CSC.L1.S1, rel. ANA PAULA BOULAROT): “I - A reprodução nas conclusões do recurso da respectiva motivação não equivale a uma situação de alegações com falta de conclusões. II - Nestas circunstâncias, não há lugar à prolação de um despacho a rejeitar liminarmente o recurso, impondo-se antes um convite ao seu aperfeiçoamento, nos termos do nº3 do artigo 639º do CPCivil, atenta a sua complexidade e/ou prolixidade.”;
- Acórdão do STJ de 13-10-2016 (Pº 5048/14.5TENT-A.E1.S1, rel. OLIVEIRA VASCONCELOS): “I - Do facto de as conclusões serem uma repetição das alegações do recurso não se pode retirar que aquelas conclusões não existam, mas apenas que não assumem a forma sintética legalmente imposta pelo art. 639.º, n.º 1, do CPC. II - Perante tal irregularidade, deve o tribunal convidar o recorrente a aperfeiçoar as conclusões no sentido de proceder à sua sintetização, com respeito pelo objeto do recurso que ficou definido nas alegações originais, nos termos do n.º 3 do citado normativo.”;
- Acórdão do STJ de 18-02-2016 (Pº 558/12.1TTCBR.C1.S1, rel. ANTÓNIO LEONES DANTAS): “Nas conclusões da alegação do recurso de apelação em que impugne matéria de facto deve o recorrente respeitar, relativamente a essa matéria, o disposto no n.º 1 do artigo 639.º do Código de Processo Civil, afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados”;
- Acórdão do STJ de 09-07-2015 (Pº 818/07.3TBAMD.L1.S1, rel. ABRANTES GERALDES): “A reprodução nas “conclusões” do recurso da respectiva motivação não equivale a uma situação de alegações com “falta de conclusões”, de modo que em lugar da imediata rejeição do recurso, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b), do NCPC, é ajustada a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, nos termos do art. 639º, nº 3, do NCPC.”
- Acórdão da Relação de Guimarães de 24-09-2020 (Pº 2781/18.6T8VCT-A.G1, rel. JOSÉ ALBERTO MARTINS MOREIRA DIAS): “Verificando-se que nas alegações de recurso o apelante, após a explanação da motivação do recurso, conclui essa motivação com a expressão: “ Termos em que…”, passando após a fazer uma súmula das razões pelas quais recorre e a expor o sentido da pretensão que solicita lhe seja reconhecida pelo tribunal ad quem e indicando os dispositivos legais que suportam essa sua pretensão, a falta de conclusões é meramente aparente”;
- Acórdão da Relação do Porto de 27-01-2020 (Pº 2817/18.0T8PNF.P1, rel. JORGE SEABRA): “A reprodução integral e ipsis verbis do anteriormente vertido no corpo das alegações, ainda que intitulada de “conclusões”, não pode ser considerada para efeitos do cumprimento do dever de apresentação de conclusões do recurso nos termos estatuídos no artigo 639.º, n.º 1 do CPC. Equivalendo essa reprodução à falta total de conclusões deve o recurso ser rejeitado nos termos estatuídos no artigo 641.º, nº 2, al. b), do CPC., não sendo de admitir despacho de aperfeiçoamento”;
- Acórdão da Relação do Porto de 13-01-2020 (Pº 3381/18.6T8PNF-A.P1, rel. MIGUEL BALDAIA DE MORAIS): “I - Em consonância com o regime plasmado na lei adjetiva, as conclusões das alegações correspondem às ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida. II - Porque são o resultado e não o desenvolvimento do raciocínio alegatório, as conclusões têm, pois, necessária e legalmente de ser curtas, claras e objetivas. III - Daí que a reprodução praticamente integral e ipsis verbis do anteriormente alegado no corpo das alegações, ainda que apelidada de “conclusões” pela apelante, não pode ser considerada para efeito de válido cumprimento do dever de apresentação das conclusões recursivas. IV - Tal comportamento processual, equivalendo à ausência de conclusões, dará lugar ao não conhecimento do recurso de acordo com o que se dispõe no artigo 641º, nº 1 al. b) do Código de Processo Civil, não cabendo convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desse ónus”;
- Acórdão da Relação de Guimarães de 24-01-2019 (Pº 3113/17.6T8VCT.G1, rel. EUGÉNIA MARIA MOURA MARINHO DA CUNHA): “1. Verificando-se a falta, em peça processual da alegação de recurso de apelação, das “conclusões”, a que alude o nº1, do art. 639º, do CPC (indicação sintética das questões colocadas pelo recorrente, que define e delimita o objeto do recurso), os apelantes têm de suportar a consequência do incumprimento do ónus de as formular - a rejeição do recurso, em obediência ao consagrado na al. b), do nº2, do art. 641º, de tal diploma; 2. A deficiência, obscuridade ou complexidade das conclusões das alegações de recurso - passíveis de despacho de aperfeiçoamento - são vícios de conclusões, que pressupõem a existência de esboço de síntese dos fundamentos do recurso; 3. Ocorre efetiva, real e absoluta falta de objeto do recurso-as “conclusões”, definidas na lei adjetiva como indicação sintética dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – e não mero vício, na situação de a apelante, embora usando tal título ao finalizar a alegação de recurso de apelação, reproduzir ipsis verbis e integralmente o antecedente corpo das suas alegações, pois que tal inútil eco do já dito nenhuma síntese dos invocados fundamentos revela. E o esboço de síntese não se verifica em nominadas “conclusões” que apenas repetem, com insignificantes alterações de pormenor na redação e agrupamento, o teor integral do corpo das alegações; 4. Aquela consequência (rejeição do recurso) justifica-se nesta situação de falta de rigor, sem que tal se mostre desproporcional nem excessivo, pois que, tendo a parte o ónus de formular as definidas conclusões, sem o que se decorrem, automaticamente, os efeitos gravosos da rejeição do recurso (em materialização do princípio da auto-responsabilização das partes), a mesma nem sequer um esboço de esforço nesse sentido desenvolveu”;
- Acórdão da Relação de Coimbra de 08-06-2018 (Pº 1840/16.4T8FIG-A.C1, rel. RAMALHO PINTO): “I – O artº 639º, nº 1 do nCPC impõe ao recorrente dois ónus: o ónus de alegar e o ónus de formular conclusões. II – O recorrente cumpre o ónus de alegar apresentando a sua alegação onde expõe os motivos da sua impugnação, explicitando as razões por que entende que a decisão está errada ou é injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e aplicação do direito, para além de especificar o objectivo que visa alcançar com o recurso. III – Deve, todavia, terminar a sua minuta com a indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/oude direito, por que pede a alteração ou a anulação da decisão recorrida. IV – As conclusões do recurso que versem matéria não tratada nas alegações são totalmente irrelevantes. V – A não apresentação de conclusões recursivas tem como efeito imediato o puro e simples indeferimento do requerimento de recurso”; e
- Acórdão da Relação de Lisboa de 07-12-2016 (Pº 141/14.7T8SXL.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “A reprodução integral, mediante aquilo que se pode designar por “copy-past” do anteriormente alegado no corpo das alegações, ainda que apelidada pelo recorrente de “Conclusões”, não pode ser considerada para efeito do cumprimento do dever de apresentação das conclusões do recurso (proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação), nem podem ser consideradas deficientes (motivação insuficiente, contraditória, incongruente ou mesmo excessiva), obscuras ou complexas, equivalendo, ao invés, à ausência de conclusões, pois é igual a nada dizer, repetir o que antes se disse na motivação, o que sempre dará lugar à rejeição do recurso, nos termos do artigo 641º, nº 1, alínea b) do CPC”.
A propósito do que caracteriza de “peripécias relacionadas com as conclusões das alegações de recurso e dos custos que elas implicam para o sistema judiciário”, remata Miguel Teixeira de Sousa (Blog do IPPC, registo de 03-04-2020, consultado em https://blogippc.blogspot.com/2020/04/jurisprudencia-2019-210.html) que: “ninguém pode "atirar a primeira pedra":
-- A jurisprudência, porque, com decisões, de carácter puramente formal, que se recusaram a apreciar algumas questões suscitadas nos recursos com argumento de que não constavam das conclusões, os tribunais deram azo a que os advogados, segundo a conhecida "jurisprudência das cautelas", alargassem as conclusões muito para além do razoável;
-- A advocacia, porque os advogados continuam a não cumprir o que a lei impõe, que é -- lembre-se -- a indicação, de forma sintética, dos fundamentos por que se pede a alteração ou a anulação da decisão impugnada (art. 639.º, n.º 1, CPC)”.
A falta de alegações ou de conclusões não admite aperfeiçoamento e determina a liminar rejeição do recurso – cfr. artigo 641.º, n.º 2, al. b) do CPC – ou o seu não conhecimento pelo Tribunal de recurso – cfr. artigo 652.º, n.º 1, al. b) do CPC.
Revertendo estas considerações para o caso em apreço, verifica-se que a recorrente apresentou requerimento de interposição de recurso, que acompanhou de alegações e de onde consta um ponto 12, antecedido da expressão “Conclusão” e onde verteu o seguinte:
“12º - Como o MM. Juizo a quo decidiu relegar o conhecimento da exceção para sentença final, e que a gravação apresentada não será valorizada na apreciação da matéria de fato, pese ser esta prova a única existente a provar o atendimento médico feito também pelo Réu (...), Requer, dignem-se Vossas Excelências, julgar a apelação dos despachos supra referidos procedente e, em consequência, a revogação dos mesmos, (despacho proferido a 04.04.2019, referência CITIUS nº 118711039) determinando que a mesma seja valorada em sede de apreciação da matéria de fato, nomeadamente, pela legitimidade passiva do Réu (...) compor a lide e suportar os seus efeitos.”.
Encontra-se expresso o requerimento de revogação da decisão recorrida pelo Tribunal de recurso e também a razão sucinta da impugnação: O facto de o Tribunal recorrido ter assinalado que não iria valorar o documento (CD) apresentado pela recorrente.
Assim, não se pode concluir que a recorrente não tenha observado, singelamente é certo, o ónus de alegar e de concluir. Todavia, nada mais lhe era exigível.
De facto, lida e relida a conclusão da recorrente, dela não decorre, nem a ausência de síntese, nem uma indeterminação do sentido do concluído.
Insurgem-se os recorridos dizendo que, nas conclusões a recorrente não indicou as normas jurídicas que considerou violadas, nem o sentido em que as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, nem o erro na determinação da norma aplicável e/ou a norma jurídica que, no entendimento da recorrente, devia ter sido aplicada.
Apreciando:
Conforme se referiu, a alínea a) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC, prescreve que, versado o recurso matéria de direito, as conclusões devem, entre outras indicações, conter as normas jurídicas violadas.
No caso, verifica-se que na alegação consta nomeadamente referido pela recorrente que com a junção do documento apresentado, não ocorreu violação do artigo 32.º, n.º 8, da CRP, tendo a intenção de “comprovar um direito e a realidade dos factos, nos termos do artigo 341º do código civil” (preceito que também refere no requerimento de interposição do recurso, a par do artigo 18.º, n.º 2, da CRP e a que volta a aludir no ponto 10.º da alegação).
Tal enunciação é claramente apreensível, muito embora não conste, de facto, em termos formais, das conclusões referência expressa aos aludidos normativos.
Importa referir, a respeito de questão de outra natureza (processual penal), mas com inegável abrangência a uma qualquer impugnação recursória, o Tribunal Constitucional teve já ocasião de declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (cfr. Acórdão n.º 320/2002, Processo n.º 754/01, publicado no D.R., n.º 231/2002, Série I-A, de 07-10-2002, pp. 6715-6719).
De facto, nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 412.º do CPP, prescrevia-se, em termos semelhantes àqueles que ocorre em processo civil, que, versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; c) Em caso de erro na determinação da norma jurídica aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Ora, também relativamente ao artigo 639.º do CPC é de ponderar semelhante interpretação legal.
De facto, o propósito do legislador ao enunciar os princípios constantes deste artigo foi o de vincular os recorrentes a fornecer, nos recursos que interponham, a indicação, em moldes percetíveis, não só do que pretendem, como das disposições legais que afirmam terem sido violadas pela decisão impugnada.
Ora, constando expressa referência, quer no requerimento de recurso, quer na alegação sobre as normas consideradas em crise pela decisão recorrida, evidenciando-se da alegação o sentido com que a recorrente entende que tais normas deveriam ter sido consideradas – conducente à admissibilidade e valoração do meio de prova apresentado - , afigura-se-nos que a rejeição do recurso com o fundamento de que tal especificação não consta reproduzida nas conclusões, seria desconforme com a Constituição, porque assentaria numa leitura estritamente formal do consignado nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 639.º do CPC.
Assim, se a parte nas alegações focou com objectividade a sua discordância sobre o despacho e tomou uma posição conclusiva de discordância em pontos essenciais que referenciou, o Tribunal de recurso está em condições, ainda que a parte não tenha formalizado a conclusão ou conclusões sobre essas discordâncias alegadas, de conhecer do objecto do recurso (no sentido exposto, ainda que, no precedente regime recursório, mas entendimento plenamente aplicável ao preceito em vigor, vd. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-1999, Pº 66/99, de 06-05-2003, Pº 03A720, rel. BARROS CALDEIRA e de 22-04-2009, Pº 08S3083, rel. VASQUES DINIS).
Conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-05-1991 (Pº 041924, rel. SÁ NOGUEIRA): “As falhas dos aspectos puramente formais de ossatura das mesmas motivações - encerramento da motivação pelas conclusões, subordinação destas a artigos, e inclusão nelas da indicação das normas violadas - não tem relevo suficiente para conduzir a rejeição do recurso quando sejam facilmente cognoscíveis, pela própria motivação, quais as conclusões e quais as normas que se reputam violadas pela decisão de que se recorre”.
“Os casos de rejeição do requerimento de interposição de recurso estão taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 641.º e neles não se encontra incluída a falta de observância destes requisitos. Fora das (únicas) situações previstas como sendo fundamento de rejeição imediata do recurso, qualquer falha no cumprimento dos requisitos assinalados ao requerimento constituirá apenas uma irregularidade processual que ou se entende poder condicionar a apreciação do recurso, caso em que deverá ser mandada sanar, ou é mesmo irrelevante para o conhecimento do recurso e não carece sequer de ser suprida, podendo o processo avançar mesma com essa falha” (assim, o citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-04-2014, Processo 4949/10.4TBVFR.P1, relator ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA).
Não se afigura que, em face do exposto, o recurso deva ser rejeitado, não ocorrendo a situação a que se reporta o artigo 641.º, n.º 2, al. b) do CPC, uma vez que as conclusões encontram-se presentes na alegação recursória, só devendo ser rejeitado o recurso por falta de conclusões se estas forem totalmente inexistentes, o que não sucede se as mesmas se encontram presentes.
Do mesmo modo, apreciada a peça processual que contém a alegação recursória, não se afigura existir motivo que justifique a prévia prolação do despacho de convite a que se reporta o n.º 3 do artigo 639.º do CPC, pois, atento o referido não ocorre situação de deficiência ou obscuridade recursória que o justifique.
Conclui-se, pois, inexistir motivo para o não conhecimento do recurso.
*
B) Se o despacho recorrido, que indeferiu o requerimento probatório da autora quanto ao documento junto, por considerar que o mesmo contém prova ilícita, deve ser revogado e substituído por outro que admita tal meio de prova nos autos?
Vejamos, pois, se o despacho proferido em 01-04-2019 deverá, ou não, ser revogado e se o mesmo viola, ou não o disposto nos preceitos legais invocados pela recorrente.
Em suma, entende a recorrente que o procedimento dentário “mal sucedido” (segundo alega), relativamente ao qual pretende a condenação dos réus na respetiva indemnização, foi executado pelo médico “(...), funcionário da Clínica Sucesso ao Quadrado Lda., que tem como sócio o também médico Mário ”. Mais alegou que, num dos exames realizados ulteriormente, verificou que tinha uma lesão no nervo da boca, “por conta da malsucedida intervenção do médico (...)” e, “retornando à Clinica Sorriso ao Quadrado e apresentando os exames, foi atendida pelo médico (...)  e o mesmo alegou que “o exame não dizia nada, que não tinha nada”, sendo que fez vários toques nos seus dentes e constatou que sentia choques em 2 dentes, e os outros estavam dormentes e “que a dor era psicológica”, mas ministrou-lhe mais remédios para a dor”.
Alega a autora, ora recorrente, que executou a gravação da conversa que então entabulou com o médico (…), o que fez sem o conhecimento deste e juntou tal elemento aos autos, mas entende que não houve qualquer “interceptação de conversas mas, tão somente, a gravação de conversa feita…, com a intenção de comprovar um direito e a realidade dos factos, nos termos do artigo 341º do código civil”, concretizando que, tendo o réu (…) invocado a sua ilegitimidade (cfr. artigos 27.º a 41.º da contestação), negando a prestação de serviço médico à autora, entende a recorrente que “a gravação tem por efeito provar, sim, o atendimento prestado pelo Réu (...), que o procurou para reclamar das dores que sentia, visto ser ele o médico responsável e sócio da Clínica, sendo de rigor, presumir, pelo próprio interesse envolvido, que deva assumir os riscos; entendimento em contrário beneficiará o Réu que, utilizando de mentira, se beneficiará da própria torpeza”.
Conclui que o despacho recorrido não ponderou, à luz do artigo 18.º, n.º 2, da CRP que o facto “a provar é mais importante que o que se deseja preservar, como eventual invasão da intimidade do indigitado médico, seja individual ou profissional, o que, repita-se, não ocorreu; por isso, é preciso relativizar os direitos e analisá-los segundo o fato concreto, examinando-o ponderadamente”.
Os recorridos contrapõem que a prova pretendida usar pela recorrente constitui prova ilícita.
Alegaram, nomeadamente, o seguinte:
“No domínio do processo civil, a prova ilícita é aquela que se encontra afectada por ilicitude em relação ao modo de obtenção, e portanto, contrária à ordem jurídica.
Parece ser pacífico que o ordenamento jurídico Português não admite, de modo algum, a utilização de prova ilícita, tendo como premissas fundamentais a unidade do sistema jurídico e a inadmissibilidade das provas ilícitas como princípio constitucional.
Assim, quanto à unidade do sistema jurídico, a ilicitude de uma prova contamina todo o direito, daí que se uma prova é materialmente ilícita, porque, como in casu, constitui uma gravação não consentida de conversa (sendo crime p. e p. pelo artº199º do Código Penal), não pode ser utilizada em nenhum outro ramo do direito.
O principal argumento enformador deste entendimento radica no facto do nº8 do artº32º da Constituição da República Portuguesa se aplicar ao direito civil e processual civil, por dois motivos:
Por um lado, não sendo esta uma norma especial, pode ser aplicada analogicamente (artº11º do Código Civil) e por outro, nos termos do nº2 do artº10º do Código Civil, no caso omisso procedem as razões justificativas do caso previsto na Lei.
Entende-se que o nº8 do artº32º da CRP visa conferir maior eficácia aos direitos fundamentais violados. Razão pela qual não existem motivos para restringir o preceito ao âmbito do processo penal, já que a lesão desses direitos não é menor pelo facto de as provas se destinarem ao processo civil.
Além disso, o nº1 do artº18º da CRP estabelece que os preceitos constitucionais respeitantes a direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis de uma forma universal e não apenas a entidades públicas.
Este entendimento sistemático tem vindo a ser acolhido na jurisprudência de uma forma quase unânime.
Como é disso exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 11/05/2017, em sede do processo 8346/16.0T8STB-B.E1, relatado por Mário Coelho, onde se lê, no sumário: “Por constituir meio de prova obtido de forma ilícita, não pode ser admitida a junção, em processo civil, de gravações não consentidas de comunicações orais, por telefone ou de viva voz, não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem fez a gravação, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as ditas gravações”.
Neste aresto, de forma magistral, diga-se, fundamenta-se assim:
“No âmbito da protecção da esfera da vida pessoal dos cidadãos, a Constituição reconhece, entre outros, o direito à reserva da intimidade da vida provada (artº 26º, nº1), a inviolabilidade do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada (artº34º, nº1), proíbe toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em processo criminal (artº34º, nº4) e fulmina, no âmbito do processo penal, com a nulidade todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (artº32º, nº8).
Como vimos, a inviolabilidade das telecomunicações e demais meios de comunicação (onde se contam as conversas orais) não ´s absoluta, admitindo que tal possa ocorrer apenas em sede de processo criminal normalmente na investigação de crimes cuja gravidade e relevante interesse da paz social permitem essa ingerência.
Por outro lado, apesar do artº32º, nº8 estar inserido entre as garantias de processo criminal, é preciso notar que, tal como num processo em que o resguardo da dignidade do arguido, com proscrição de meios de prova obtidos com violação de direitos fundamentais, há-de sempre condicionar a averiguação da verdade material – e isto mesmo estando em causa a ofensa de bens essenciais à vida em sociedade – também num outro, em que se dirime um litigio de interesses privados, não se justifica sanção menos grave para a prova alcançada com idêntica violação. A infracção à proibição constitucional de ingerências nas telecomunicações há-de, pois, ter, nos processos cíveis e em matéria de prova, a mesma sanção radical: a nulidade.
Atente-se ainda que o art.199º, nº1 do Código Penal tipifica como crime a gravação, sem consentimento, de palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que dirigidas ao agente, ou a utilização ou permissão de utilização de gravações mesmo que licitamente produzidas. Deste modo, “no caso das comunicações orais, por telefone ou de viva voz, é proibido, na ausência de consentimento do emitente, gravar as palavras proferidas por outrem e não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem ilicitamente faz a gravação, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as mesmas gravações. Pretende-se, pois, impedir que uma expressão fugaz e transitória da vida se converta num produto registado e susceptivel de ser utilizado a todo o tempo.”
Entendimento também sufragado pelo Tribunal da Relação do Porto, proferido em 15/04/2010, em sede do processo 10795/08.8TBVNG-A.P1, relatado por Teixeira Ribeiro, onde se lê, no sumário: “Constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, inadmissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil.”
E, nem se venha dizer, como diz a Recorrente que, de acordo com o princípio da proporcionalidade, deve ceder o direito violado perante “o que se deseja preservar”.
É verdade que não está em causa um direito absoluto.
Mas, como supra dito, a Constituição permite a intromissão na reserva da intimidade da vida privada, mas, apenas, no âmbito do processo criminal e na investigação de crimes de relevante gravidade.
Assim, o direito de acesso aos tribunais e de produção de prova em processo civil, não significa a admissibilidade de qualquer meio de prova, em especial quando este for obtido com violação de relevantes direitos, como os supra descritos.
Até porque nem sequer se percebe muito bem o que pretende provar a Recorrente com aquela famigerada e criminosa gravação.
Se, com a Petição Inicial a Recorrente refere juntar a gravação com vista a provar que o Recorrido (...) “fez ameaças à Requerente” e “perguntou o nome da médica que tinha assinado o laudo, para processá-la, e que disse que tinha um advogado do outro lado da rua” (cfr. artº8º da Petição Inicial),
Agora,
Em sede recursiva, a Recorrente vem alegar, de forma ininteligível, diga-se, que “…Dessa forma, a gravação tem por efeito provar, sim, o atendimento prestado pelo Réu (…), que o procurou para reclamar das dores que sentia, visto ser ele o médico responsável e sócio da Clínica, sendo de rigor, presumir, pelo próprio interesse envolvido, que deva assumir os riscos; entendimento em contrário beneficiará o Réu que, utilizando de mentira, se beneficiará da própria torpeza.”.
Ou seja, se bem se entendeu o alegado pela Recorrente, agora, em sede recursiva, pretende que o Tribunal conheça da tal gravação para contraditar a excepção dilatória de ilegitimidade alegada na Contestação pelo Recorrido (…).
Ou seja, pretende a Recorrente, agora, em sede recursiva, provar, com recurso à gravação ilícita, não as ameaças alegadamente proferidas pelo Recorrido (…), mas, que o Recorrido (…) prestou um serviço médico à Recorrente e, por isso, é parte legítima nos presentes autos.
O que configura uma verdadeira gincana processual que só faz sentido à Recorrente e a quem se encontre total e completamente alheado das regras do processo civil vigentes em Portugal.
De qualquer maneira, mesmo que por absurdo se entendesse que, numa adequada ponderação de bens jurídicos, e, havendo a necessidade de efectuar algumas restrições gradualistas a tais bens, à luz da proporcionalidade, da necessidade e da adequação, sempre se teria que ter em conta que a presente intromissão na vida privada e nas telecomunicações, sempre continuaria a ser abusiva, porquanto, com ela, visou a Recorrente, a sua utilização como meio probatório nos presentes autos”.
Vejamos:
Estabelece o artigo 341.º do CC que “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”.
O conceito de prova pode ser entendido como actividade, como meio ou como resultado. No primeiro caso, reporta-se à actividade que as partes desenvolvem com vista a convencer o julgador da realidade dos factos. No segundo caso, integra os elementos concretos apresentados tendo em vista a demonstração da realidade dos factos. E, no último sentido, como resultado, a prova traduz a criação, no espírito do julgador, da convicção de que o facto ocorreu.
A demonstração da realidade dos factos que se pretende com a prova não visa alcançar uma certeza absoluta de tal realidade, mas sim, um grau de convicção suficiente para as exigências da vida.
“Tendo em conta a teleologia da prova, é fácil compreender que, no processo, apenas certos factos constituam objecto da prova. Por um lado, apenas os factos que possam ser relevantes para a decisão da causa. Por outro lado, dentro desse factos, apenas aqueles que se devam considerar controvertidos (artigo 410.º, do CPC), quer se trate de factos principais ou factos instrumentais que permitam a prova indirecta dos primeiros. Por este motivo, o despacho que contenha os temas da prova, elemento que serve de base à produção de prova em audiência, apenas deverá conter aquelas questões referentes a fatos que devam ser objecto de prova (artigo 596.º, n.º 1, do CPC)” (assim, Rita Lynce de Faria; anotação ao artigo 341.º do CC, no Comentário ao Código Civil – Parte Geral; UCP, Lisboa, 2014, p. 810).
Ora, o direito à prova não é ilimitado ou absoluto.
E tanto é assim, quer se configure o direito à prova por referência à lei constitucional ou ordinária.
Em termos singelos os limites do direito à prova podem ser de duas ordens: Intrínsecos (inerentes à atividade probatória) ou extrínsecos (referentes a requisitos legais de proposição probatória).
Conforme se escreveu noutro local, “os limites intrínsecos do direito à prova deduzem-se da tutela constitucional de diversos direitos fundamentais e concretizam-se naqueles pressupostos ou condições que, por natureza, devem ser observados por qualquer prova, podendo reconduzir-se à pertinência e à licitude da prova.
Os limites extrínsecos derivam do carácter processual do direito à prova e concretizam-se na observância das formalidades processuais imprescindíveis para o seu exercício” (assim, Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, p. 83).
O postulado de um processo equitativo determina que apenas devam ser admitidas provas obtidas ou constituídas por meios legais e leais.
“Em sede de prova, o direito ao processo equitativo implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, quer o sejam por violarem direitos fundamentais, quer porque se formaram ou obtiveram por processos ilícitos” (assim, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, pp. 107-108).
Mas, na prática é extremamente difícil, em certos casos, apurar quando se está perante prova que deva considerar-se ilícita.
“De todo o modo, parece-nos possível recortar uma ideia fundamental: A prova ilícita traduz um desvalor na formação da prova, a qual, sem afectar a sua natureza extrínseca ou a finalidade probatória da mesma, foi produzida (extraprocessualmente) ou ingressou no processo, por meios ilegais ou ilegítimos, colidindo com valores e direitos protegidos, via de regra, pela própria Constituição, ou seja, violando ou postergando princípios fundamentais ou normas de direito material” (assim, Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, p. 87).
Importa sublinhar que, “a lei processual civil não estabelece nenhum momento próprio para a dedução da questão atinente à ilicitude probatória, nem para a decisão da mesma, mas parece-nos líquido que tal questão deverá ser invocada em sede de exercício do contraditório, após o requerimento de proposição do meio de prova, sendo que, contudo, relativamente a determinados meios de prova deverá ser suscitada aquando da sua produção probatória.
A questão incidental assim suscitada deverá - após o exercício do direito de resposta da contraparte, como manifestação do respeito pelo princípio fundamental do contraditório - ser objecto de decisão, interlocutória ou final” (assim, Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, pp. 288-289).
São diversas as situações em que se pode convocar a temática da prova ilícita, podendo-se elencar do seguinte modo:
a) Por violação do direito à integridade física ou mental das pessoas (prova obtida mediante a provocação de stress ou tortura, por coacção, por ameaça de um mal, por administração de substâncias desinibidoras ou narcóticos, pelo uso de hipnose, pela utilização de polígrafo e de outras provas neurofísicas;
b) Por violação da reserva na intimidade da vida privada (a fotografia de uma cena da vida íntima; a gravação de uma conversa telefónica; a intromissão em casa alheia para testemunhar ofensas dos membros desse agregado familiar, com o consentimento de um deles e o desconhecimento do outro; o furto de documento alheio; a obtenção – mediante pagamento – de dados bancários referentes a cidadãos que “fugiram” ao fisco);
c) Por violação do domicílio (intromissão em casa alheia para obtenção de prova);
d) Por violação do direito à imagem (fotos apresentadas em juízo e cuja obtenção não foi consentida pelo retratado);
e) Por violação do direito à inviolabilidade da correspondência (a abertura de carta dirigida a outrem);
f) Por violação do direito à palavra (a gravação não consentida de conversa entre terceiros).
A doutrina nacional tem avançado algumas hipóteses de definição de prova ilícita.
Assim, José João Abrantes caracteriza a prova ilícita como aquela que “se encontra afectada por ilicitude no que respeita ao modo da sua obtenção” (“Prova Ilícita” in Revista Jurídica, n.º 7, Jul.-Set. 1986, A.A.F.D.L, p. 12).
Teixeira de Sousa (As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, Lex, 1995, p. 230), por seu turno, distingue entre provas processualmente proibidas (obtidas ou produzidas em violação de norma processual) e provas ilícitas que serão “aquelas cujo método de obtenção ou forma de produção é um acto materialmente ilícito”. Considera que serão exemplo de provas ilícitas: todas as obtidas pelos métodos previstos no art. 32.º, n.º 8, da C.R.P., aplicável analogicamente ao processo civil (v.g. gravação não consentida de conversa telefónica, depoimento como testemunha de detective privado, cuja actividade desrespeitou a privacidade da pessoa observada; todas as situações em que a prova viole a intimidade ou a dignidade da pessoa humana); as provas obtidas mediante a prática de um acto ilícito (v.g. furto de documento, revelação de segredo profissional); e as provas cuja produção em juízo constitui, ela própria, uma ilicitude (v.g. junção de diário íntimo, mesmo que tenha sido obtido licitamente).
Remédio Marques (Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 545), por seu turno considera no âmbito das provas ilícitas, as provas cujo método de obtenção ou forma de produção são ilícitos, dando como exemplos da primeira situação, as provas que sejam obtidas através dos métodos previstos no art. 32.º, n.º 8, da Constituição e como exemplo da segunda situação, o depoimento de testemunha que implique a violação do segredo profissional (art. 417.º, n.º 3, al. c), do CPC).
Isabel Alexandre (Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, p. 21) considera que no conceito de prova ilícita apenas se deverá incluir “a prova cujo modo de obtenção o direito reprova, quer essa ilicitude se verifique dentro ou fora da órbita processual”. Entende esta Autora que uma coisa é o desvio em relação às normas processuais que regulam o procedimento probatório (cuja sanção será, em regra, a da nulidade do acto assim praticado) e outra a ofensa de direitos subjectivos durante a actividade instrutória.
Noutra perspectiva, Salazar Casanova (“Provas ilícitas em processo civil. Sobre a admissibilidade e valoração de meios de prova obtidos pelos particulares”, in Revista Direito e Justiça, vol. XVIII, Tomo I, 2004, p. 101) considera que “de uma forma geral reserva-se a expressão “prova ilícita” para aquela que é obtida ou produzida com ofensa de direitos fundamentais; distingue-se da “prova ilegal” porque esta ocorre quando se desrespeitam normas de outra natureza”.
Paula Magalhães dos Santos (Da Problemática da Prova Ilícita no Processo Civil; FDUC, Coimbra, 2011, p. 33) considera, por sua vez, que a prova ilícita é a que viola o ordenamento jurídico, na medida em que são ilícitas as provas que decorrem de um acto ilícito.
Garcês Cardoso (Sobre a Admissibilidade da Prova Ilícita No Processo Civil Português, FDUC, Coimbra, 2012, pp. 46-47) menciona que a ilicitude de uma prova tanto pode ser externa ao processo – a prova está tingida de ilicitude antes de ser levada ao processo (v.g. prova documental obtida ilicitamente ou testemunhas que obtiveram os conhecimentos que pretendem produzir em tribunal mediante intromissão ilegal em determinadas circunstâncias) – como pode resultar do próprio decurso do processo, quando é o processo que, na busca do material probatório, viola a lei (v.g. se o juiz decretar arbitrariamente a produção de determinados documentos, se permitir o uso de coacção sobre testemunhas, se decretar, sem fundamento legal, o levantamento do dever de sigilo ou de segredo) e pode ainda ser ilícita pelo simples facto de ser utilizada no processo (v.g. quando quem apresentou a prova a tem em seu poder legitimamente, mas a sua partilha envolve a violação de direitos de personalidade de outra, como acontece nos casos de fotos ou diários íntimos que lhe tenham sido dados). Para este Autor, a prova ilícita «será aquela em que a obtenção ou produção do meio de prova implica a violação das regras de direito material», parecendo englobar a violação de qualquer tipo de disposição material, seja de índole constitucional ou meramente legal.
Por seu turno, Sara Ferreira de Oliveira (Admissibilidade da prova ilícita em processo civil, FDUL, Lisboa, 2014, p. 19) considera, por seu turno, que a prova ilícita é “a prova cujo modo de obtenção o direito material reprova ou cuja produção em juízo consubstancia violação de direito material”, distinguindo entre a ilicitude na obtenção da prova e na produção da prova: A prova será obtida de forma ilícita sempre que a conduta através da qual a prova é adquirida por um sujeito, reprova ao direito. Por seu turno, poderá ter lugar ilicitude no momento da produção da prova, ou seja, no «momento em que a prova é aditada ao processo ou em que o seu conteúdo é efectivamente revelado». De todo o modo, conclui que sempre que a produção da prova implique a violação do direito material, a prova será igualmente ilícita, independentemente da licitude ou ilicitude da sua obtenção.
Pedro Trigo Morgado (Admissibilidade da prova ilícita em processo civil; Petrony, 2016, p. 85 e 120) enuncia um conceito amplo de prova ilícita assentando este conceito em «toda a prova que, devido ao modo como foi adquirida, aos factos que faz prova, ao modo como é trazida a juízo ou que por qualquer outra razão, extrínseca ou intrínseca ao processo, viola disposições de direito, processual ou material» e alinha como fontes de ilicitude da prova no processo civil, os seguintes factores: A violação do sistema jurídico tem de ser relevante para o processo civil (a disposição violada não pode ter uma racionalidade e um âmbito de aplicação circunscrito, tendo de ser directamente dirigida aos interesses em causa no processo civil ou de validade global no sistema); A violação de normas de direito processual penal não são relevantes para a discussão da admissibilidade da prova em processo civil, uma vez que são disposições que têm um campo de aplicação estanque; Não são provas ilícitas as que violem disposições regulamentares (v.g. a utilização como prova de uma folha de ponto de um trabalhador que não cumpra com o modelo interno de uma entidade empregadora), não tendo essas disposições valor vinculativo para o tribunal; A fonte geral de situações das provas ilícitas é a Constituição (v.g. arts. 25.º, 26.º e 34.º). Outras fontes serão o CPC (v.g. arts. 459.º e 497.º) e o CC (art. 394.º) e o próprio direito penal substantivo.
Pode-se concluir, perante esta curta indagação, que, quando se fala de prova ilícita pretende-se significar com tal conceito toda a prova que seja obtida ou produzida, mediante a violação de normas de direito material, que tutelam direitos fundamentais dos cidadãos, ou aquela prova cuja formação ou produção em si mesma consubstancia um ilícito.
“Procurando uma síntese e sem preocupações dogmáticas, pode considerar-se que as provas ilícitas são aquelas cuja obtenção ou produção constitui um ilícito que determina a violação de um direito substantivo, quer a mesma violação resulte de uma ilicitude material ou formal (…).
a) A ilicitude substantiva ou material ocorrerá se forem violados direitos fundamentais pela obtenção ou produção da prova: «Violam os direitos fundamentais (à imagem, à palavra ou à reserva da intimidade da vida privada e familiar – art.º 26.º, n.º 1, da CRP), por ex., a exibição ou utilização duma fotografia, de uma gravação, de um filme, de uma carta ou de um diário íntimo. Tais meios de prova são em si materialmente proibidos»; e
b) A ilicitude processual ou formal – excluindo-se, todavia, aqui os casos em que tenha lugar a mera violação de restrições legais de prova por determinação de regras de direito substantivo ou adjectivo (cuja inobservância determina tão só o accionamento de previsões contidas em normas processuais) – assentará na produção ou obtenção de um método proibido de prova: «São, por seu turno, processualmente ilícitas, v.g., o depoimento produzido sob coacção ou violência ou mediante desvio de princípios básicos do procedimento probatório, como os do contraditório, da oralidade ou da imediação. O que, neste âmbito, se proíbe é o método de prova, ou seja, o processo de formação ou obtenção da prova. É, assim, e por ex., ilicitamente obtido, embora regularmente formado, o documento subtraído (sem autorização ou por actuação fraudulenta) à posse e disponibilidade da parte contrária” (assim, Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, p. 107).
Nos termos do art. 413.º n.º 1 do CPC, “o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las”. Consagra-se aqui o princípio da aquisição processual, que deve ser compreendido à luz do citado direito à prova (cfr. art. 20º da CRP).
“Do dever de o tribunal tomar em consideração todas as provas produzidas e do direito das partes à prova decorre que a recusa de um meio de prova deverá ser sempre fundamentada numa norma ou num princípio jurídico, não podendo o tribunal exercer neste campo um poder discricionário” (assim, Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, p. 233).
Pergunta-se, assim, se poderá o fundamento da exclusão de uma prova baseada na sua ilicitude, no âmbito do processo civil, assentar no art. 32.º, n.º 8, da Constituição?
Este preceito refere-se exclusivamente às «garantias do processo criminal», pelo que, a sua aplicação ao processo civil teria que se efectuar por analogia, importando saber se tal norma não é norma excecional (por estas não comportarem aplicação analógica).
Isabel Alexandre (Provas Ilícitas em Processo Civil, p. 235, secundada por MARIA JOÃO MIMOSO, SANDRA C. SOUSA e VITOR HUGO MEIRELES; Evidence in Civil Law, Portugal, Lex Localis, 2015, pp. 62 e ss.) responde afirmativamente, considerando que o referido normativo se aplica também às provas obtidas por particulares, porquanto a norma pretende limitar os interesses do processo criminal pela dignidade da pessoa humana e pelos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático, funcionando, assim, como garantia dos direitos, liberdades e garantias em geral, aos quais estão vinculadas as entidades públicas, mas também as entidades privadas (cfr. art. 18.º da CRP). E, traduzindo-se a vinculação dos tribunais aos preceitos constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias, na necessidade de os interpretarem, integrarem e aplicarem «de modo a conferir-lhes a máxima eficácia possível, dentro do sistema jurídico, há que interpretar o art. 32º n.º 8 CRP em conformidade. E essa interpretação conforme à máxima eficácia dos direitos fundamentais leva a considerar nulas, não só as provas obtidas pelas entidades públicas, mediante violação dos mesmos, mas também as obtidas pelas entidades privadas».
Considera a referida Autora (cfr. Provas Ilícitas em Processo Civil, p. 240 e ss.) que a referida norma não é nem formal, nem materialmente, excecional, pelo que deverá o art. 32.º, n.º 8, da CRP ser aplicado, analogicamente, ao processo civil, por, nos termos do art. 10.º, n.º 2, do Código Civil, no caso omisso, procederem as razões justificativas da regulamentação do caso omisso na lei, sendo que «o art. 32º n.º 8, ao prever a nulidade de certas provas, visa conferir maior eficácia aos direitos fundamentais violados aquando da sua obtenção, não existem motivos para restringir o preceito ao âmbito do processo penal, já que a lesão desses direitos não é menor pela circunstância de as provas se destinarem ao processo civil”.
Em semelhante sentido, Paula Costa e Silva e Nuno Trigo dos Reis (Efeitos Lícitos da Prova Ilícita em Processo Estadual e Arbitral; AAFDL, 2019, p. 57) também consideram que o artigo 32.º, n.º 8, da CRP não é uma regra exclusivamente vocacionada para o processo criminal, “pois, que nada há de excepcional na sua ratio”.
Salazar Casanova (“Provas ilícitas em processo civil. Sobre a admissibilidade e valoração de meios de prova obtidos pelos particulares”, in Revista Direito e Justiça, vol. XVIII, Tomo I, 2004, p. 118), ao invés, entende que o art. 32.º, n.º 8, da CRP não é passível de aplicação analógica ao processo civil, pelos seguintes motivos:
1- Não se deve interpretar a lei como se existisse um princípio geral de proibição da obtenção de prova em desrespeito de direitos fundamentais, concluindo que, nos vários anos de vigência da Constituição, nunca se procedeu, no plano civil, à introdução de outras limitações que não fossem as resultantes do vigente art. 413.º do CPC, sendo que, no âmbito do processo penal, há uma regulamentação completa das situações de ilicitude na obtenção de determinados meios probatórios (v.g. quando a lei admite, no processo penal, «a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas (…) ou quando com menor amplitude admite exames, revistas, buscas e apreensões (…)»);
2- A lei estabelece soluções diferentes, no plano processual civil (onde está em causa a protecção de interesses privados) e penal (onde está em causa a repressão da criminalidade e os poderes coercivos do Estado), para os mesmos problemas, o que não se compreenderia se se entendesse o art. 32º n.º 8 como uma norma de aplicação imediata a todos os ramos processuais;
3 – Não basta para a aplicação analógica a existência de um caso não regulado (podem certas situações não estar reguladas porque assim não foi desejado ou porque foi considerado desnecessário), sendo que, no caso da prova ilícita em processo civil, a mesma não tem recebido resposta idêntica nas várias legislações;
4 – A lei processual civil não considerou que a utilização de métodos proibidos de prova com influência no resultado do pleito assumisse uma gravidade tal que a parte pudesse, uma vez transitada em julgado a decisão, requerer a sua revisão com fundamento na utilização de elemento probatório obtido por método proibido, pelo que, se a lei pretendesse obstar sempre à admissibilidade de meio de prova que desrespeitasse direitos fundamentais, seria lógico que tivesse previsto esse fundamento para a revisão da decisão, o que não sucedeu.
Ora, não se consegue, de facto, encontrar no artigo 32.º, n.º 8, da CRP fundamento bastante para vedar a admissibilidade de provas no âmbito de um processo civil, consequência probatória que ali é prevista apenas para o processo penal.
Conforme refere Salazar Casanova (“Provas ilícitas em processo civil. Sobre a admissibilidade e valoração de meios de prova obtidos pelos particulares”, in Revista Direito e Justiça, vol. XVIII, Tomo I, 2004, p. 121), “em Portugal houve o cuidado de não interferir no que respeita à obtenção de provas no processo civil realizada na fase extrajudicial por particulares separando as águas entre o sancionamento ilícito dos actos de obtenção praticados e a admissibilidade em juízo do meio de prova obtido”.
Ao contrário do processo penal – onde o regime jurídico comporta já a expressão de juízos de ponderação assumidos e sancionados pelo legislador sobre os bens jurídico-penalmente tutelados - , no processo civil, pelas razões já supra expostas, a norma do art. 32.º, n.º 8, da CRP não parece ter directa aplicação.
Assim, “a ilicitude na obtenção de um determinado meio de prova não conduz necessariamente à proibição da sua admissibilidade mas também não implica, uma vez admitida, a garantia do seu aproveitamento” (“Provas ilícitas em processo civil. Sobre a admissibilidade e valoração de meios de prova obtidos pelos particulares”, in Revista Direito e Justiça, vol. XVIII, Tomo I, 2004, p. 127).
Ou seja: A lei – pragmaticamente – distinguiu entre as sanções dos actos ilícitos de obtenção e a admissibilidade em juízo do meio de prova obtido. Outra solução implicaria um controlo demorado sobre a licitude da obtenção de prova que provocaria o estrangulamento do processo, inviabilizando a solução atempada do litígio e a sua finalidade, a sua justa composição.
A lei processual civil – muito embora estabeleça diversas regras limitativas da produção de prova ou de certos meios de prova, por exemplo, nos arts. 433.º e 607.º n.º 2 do CPC ou nos arts. 364.º, n.º 1, 393.º e 394.º do CC - é omissa quanto à questão da inadmissibilidade da prova ilícita, contrariamente ao que sucede no processo penal (dispondo o art. 125º do Código de Processo Penal que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei).
Apenas há uma singela referência no art. 417.º do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, preceito onde se prevê um dever genérico de cooperação probatória, sanções para a recusa de cooperação e três causas de legítima recusa de cooperação.
E é duvidoso que esta norma – em particular o n.º 3 do referido preceito legal - tenha alguma influência sobre a temática da prova ilícita (para mais desenvolvimentos, vd. Sara Ferreira de Oliveira; Admissibilidade da prova ilícita em processo civil, FDUL, Lisboa, 2014, pp. 28-29; Sara Raquel Rodrigues Campos; (In)admissibilidade de provas ilícitas – Dissemelhança na produção de prova no Direito Processual?, p. 26).
Para apreciação da temática impor-se-á distinguir-se entre provas ilícitas absolutas e relativas.
“As provas absolutamente ilícitas serão as que sejam obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
As provas obtidas em violação destes direitos são absolutamente vedadas ou proibidas – afigurando-se-nos que a proibição de violação destes direitos absolutos, não decorre especificamente do disposto no art. 32.º da CRP (preceito que, como se viu, se mostra apenas dedicado ao processo “criminal”), mas de outras normas constitucionais (como as dos arts. 1º, 2º, 16º, 18º e, principalmente, da dicotomia estabelecida na Constituição entre os arts. 24º e 25º, por um lado, com o art. 26º e 34.º da Constituição, por outro lado) - , devendo ser consideradas inexistentes, sendo o vício passível de ser oficiosamente conhecido a todo o tempo.
O eventual consentimento do titular ou a eventual autorização judicial para a obtenção da prova em violação desses direitos fundamentais, não retira a antijuridicidade ao acto.
A este tipo de provas dedica-se a alínea a) do n.º 3 do art. 417.º do CPC, sendo manifesto que no âmbito deste preceito – ou ainda por directa deriva dos comandos constitucionais supra aludidos (os mencionados arts. 1º, 2º, 16º, 18º, 24º, 25º, 26º e 34.º) – se tutela também a legitimidade da recusa de actividade probatória conseguida com o recurso a tortura e coacção.
Noutro campo estarão as provas relativamente ilícitas.
Estão em questão, quanto a provas relativamente inadmissíveis, as violações de outros direitos fundamentais – como o direito à intimidade da vida privada ou familiar, o direito à inviolabilidade do domicílio, ao segredo de correspondência ou das telecomunicações, o direito à imagem, à palavra, etc.
A este tipo de provas dedicam-se as alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 417.º do CPC.
Relativamente a estes direitos, o consentimento do titular já é relevante em termos de retirar ilicitude ao acto lesivo.
Neste campo, já se imporá, face à colisão de direitos fundamentais, proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (não se encontra predeterminada a ilicitude absoluta da prova, a qual, em função das circunstâncias concretas, será ou não valorada pelo Tribunal).
Assim, “se for compreensível, à luz da ponderação de interesses, a intromissão da parte no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações para, deste modo, obter prova necessária à sua pretensão e se tal intromissão for efectuada de um modo proporcionado, a prova assim obtida deve ser admitida”.
As considerações delineadas podem esquematizar-se do seguinte modo:
1º Provas ilícitas absolutas: As obtidas com violação do direito à vida e da integridade física ou moral das pessoas;
2º Provas ilícitas relativas: As que envolvem intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; e as que determinam violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos ou do segredo do Estado, caso tais segredos não sejam “quebrados” nos termos da lei” (cfr., Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, pp. 228-232).
No que respeita às provas ilícitas relativas, “parece-nos haver que distinguir, dado que a lei também o distingue, entre aquelas a que se reporta a alínea b) do n.º 3 do art. 417.º do CPC, das enunciadas na alínea c) do mesmo n.º 3:
1) Relativamente às referenciadas na alínea b) do n.º 3 do art. 417.º do CPC, o consentimento – livre e esclarecido – prestado pelo titular dos bens jurídicos comprimidos com o meio de prova ilícito torna-se relevante, pelo que, a prova que seja produzida com ofensa do domicílio do visado, da sua correspondência, com intromissão nas telecomunicações, ou com intromissão na sua vida privada ou familiar, se consentida, não será ilícita; contudo, no caso de invocação de recusa de colaboração do visado, haverá que apreciar, em concreto, se o meio de prova é ou não ofensivo dos correspondentes bens jurídicos;
2) Relativamente às referenciadas na alínea c) do n.º 3 do art. 417.º do CPC, o consentimento também é relevante, não sendo ilícita a divulgação probatória que determine a violação de sigilo profissional, de funcionários públicos ou do segredo de Estado; contudo, no caso de invocação de recusa de colaboração do visado, para além da apreciação da verificação dos pressupostos de aplicação do segredo, importará cumprir a tramitação específica inerente à sua eventual «quebra», seguindo-se, então, o regime a que alude o n.º 4 do mesmo artigo.
No direito contemporâneo é, de facto, no âmbito das supra denominadas provas ilícitas relativas, aquele onde, na prática, os problemas ocorrerão e onde o intérprete e aplicador do Direito se defrontará com as maiores dificuldades.
Relativamente a tais provas, actuará a denominada «teoria da ponderação dos interesses».
Com efeito, estar-se-á então, verificada a ofensa dos bens jurídicos pretendidos tutelar com a previsão normativa, perante um problema de conflito de interesses ou de colisão de direitos (cfr. art. 335.º do CC).
Assim, caso a caso, segundo uma concreta ponderação, deve-se analisar o tipo de direito fundamental atingido e as circunstâncias que envolveram a actuação lesiva.
Importará, pois, em concreto, apreciar se «os interesses em jogo no litígio, as garantias de sigilo proporcionadas, a conduta assumida pela parte lesada, a relevância desse particular meio de prova» justificam que a prova obtida ou produzida seja considerada como ilícita, por violação de direitos fundamentais que, em concreto, se mostram de maior valia ou exigem maior protecção, do que o mencionado direito à prova.
O mesmo é dizer que será necessário, em concreto, o recurso às regras que dirimem conflitos de direitos ou de valores – e, nomeadamente, ao critério fornecido pela intervenção do princípio da proporcionalidade.
É sabido que, o princípio da proporcionalidade se desdobra em três subprincípios:
«Em primeiro lugar, a exigência de adequação, cujo propósito central é aferir a existência de uma relação de causa efeito entre duas variáveis: o meio, instrumento, medida ou solução empregue pela entidade sujeita ao escrutínio, de um lado; e o objectivo, ou finalidade que se procura atingir. O princípio da adequação de meios impõe então uma avaliação tendente a determinar se o acto juridicamente relevante é ou não apropriado à prossecução do fim ou fins em causa (…).
Depois, a exigência de necessidade, (sub) princípio que consagra o direito do indivíduo à menor ingerência possível na sua esfera jurídica por parte do Estado ou da entidade cuja actuação está sujeita ao escrutínio da proporcionalidade, e que impõe, por isso, não apenas a identificação de todas as medidas admissíveis e idóneas para a prossecução do fim em causa, mas também que a opção tomada seja, de entre as possíveis, a menos lesiva (…).
E, por fim, a exigência de justa medida, (sub) princípio comummente designado por proporcionalidade em sentido estrito…[e que consiste em].determinar se, mediante um juízo de ponderação, a medida (idónea e necessária) é também ela proporcional em relação ao fim prosseguido e, assim, se a lesão que tal acto pode acarretar é ou não desmedida em relação aos benefícios que dele se podem tirar».
Por estes critérios – e tendo, como se viu, intervenção concreta, o princípio da proporcionalidade - deve pautar-se a resolução do conflito.
Assim, há que apurar se, no caso concreto, a prova ilícita colide com os direitos fundamentais que possam fundamentar a sua inadmissibilidade. Se a resposta for positiva e houver colisão da prova, por exemplo, com o direito à vida – cfr. art. 24.º da Constituição – ou com o direito à integridade pessoal, moral e física de alguém – cfr. art. 25.º do texto constitucional – a prova deverá ser considerada como nula, de harmonia com o estabelecido no n.º 8 do art. 32.º da Constituição, por paridade de razão ou analogia, com o disposto em tal norma constitucional, sendo, nesse caso, inadmissível.
Se em colisão se encontrarem o direito à prova e outros direitos fundamentais – v.g. os consagrados nos arts. 26.º e 34.º da Constituição – antes da decisão sobre a admissibilidade probatória haverá que ter lugar a ponderação do julgador, com base no princípio da proporcionalidade.
A prova ilícita será adequada quando seja relevante e necessária, ou seja, quando seja indispensável à justa composição do litígio e quando, em concreto, os interesses da causa justifiquem a proteção de outros direitos.
Apenas mais uma nota fundamental suplementar sobre esta matéria.
É a de que, na resolução do conflito, dever-se-á, ponderar, em particular, se ocorrem as seguintes situações especiais (que podem determinar um “desvio” à aplicação das referidas regras gerais):
1 – Se a utilização da prova ilícita constitui o único meio possível e razoável para efectuar a prova dos factos (ou se o agente do acto ilícito «visa exclusivamente a aquisição do meio de prova sobre factos que dificilmente poderiam ser provados por outra forma e utiliza o material obtido apenas com essa finalidade probatória»), a ilicitude da prova deve considerar-se justificada, embora sem se prescindir, em concreto, da ponderação dos interesses em questão e da sua concreta configuração;
2 – Se houver consentimento do ofendido ou a sua colaboração ou cooperação para a fixação dos factos que a outra parte se propõe provar ou se a recolha e a fixação em suportes físicos ou digitais das realidades ou dos acontecimentos foi acidental (no que respeita apenas a intromissões na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações) a ilicitude da prova assim obtida será de excluir, sendo que, a própria ordem processual penal considera excluída nesses casos, a ilicitude de tais provas, não se mostrando abusiva a intromissão assim verificada em tais valores (cfr. art. 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal)” (assim, Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, pp. 291-299).
Sintetizando: Face à colisão de direitos fundamentais, impõe-se proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (cfr. artigo 335.º do CC), ponderando se o meio de prova ilicitamente obtido é, não obstante, relevante, imprescindível, justificado, adequado e proporcionado para prova dos factos em presença, que, em concreto, sobrelevam sobre outros direitos fundamentais em presença, justificando a sua compressão em detrimento de tal direito à prova, ou se, tal compressão, não se mostra justificada.
Em particular, relativamente a gravações áudio de conversas mantidas entre pessoas, sem o consentimento de um dos interlocutores, passando em revista a jurisprudência que sobre a questão se debruçou no âmbito do processo civil, as conclusões a que se chegou foram, nomeadamente, as seguintes:
- Ac. da Relação de Évora de 11-05-2017 (P.º 8346/16.0T8STB.E1, rel. MÁRIO COELHO): “1. Apesar do art. 32.º, n.º 8, da Constituição estar inserido entre as garantias de processo criminal, é também aplicável em sede de processo civil a proibição de meios de prova obtidos com violação de direitos fundamentais. 2. Por constituir meio de prova obtido de forma ilícita, não pode ser admitida a junção, em processo civil, de gravações não consentidas de comunicações orais, por telefone ou de viva voz, não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem fez a gravação, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as ditas gravações. 3. O direito de acesso aos tribunais não impõe a admissibilidade de qualquer meio de prova, em especial quando este for obtido com violação de direitos fundamentais”;
- Ac. da Relação de Lisboa de 24-10-2013 (P.º 102197/12.1YIPRT-A.L1-2, rel. TIBÉRIO SILVA): “Sendo admissível, em abstracto, a indicação de registos fonográficos como meio de prova, importará saber se eles consubstanciam abusiva intromissão na vida privada que torne ilícita a recolha desses registos. Ainda que tal não ocorra, estando em causa uma comunicação telefónica destinada à adesão a um contrato de seguro, haverá que apurar se não estará configurada a ofensa do direito à palavra, constitucionalmente consagrado, através da gravação não autorizada das respostas/declarações do contactado”;
- Ac. da Relação de Lisboa de 26-09-2013 (P.º 1130/10.6YXLSB.L1-2, rel. TERESA ALBUQUERQUE): “Quando está em causa prova absolutamente inadmissível, mesmo mostrando-se transitado o despacho que a tenha admitido - desde que no mesmo se não tenham analisado as questões que implicam essa inadmissibilidade - o juiz não poderá vir a valorá-la. São provas absolutamente inadmissíveis as que forem obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral das pessoas (casos referidos no art 126º/2 CPP e na 1ª parte do art 32º/8 da CRP); são provas relativamente inadmissíveis as que se mostrem susceptíveis de colocar em causa os direitos a que se refere o art 519º/3 al b) do CPC, referidos na 2ª parte do art 32º/8 da CRP - intromissão na vida privada ou familiar, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações. No caso das provas relativamente inadmissíveis, não decorre da lei processual civil a proibição absoluta de admissibilidade da prova, podendo a mesma ser ou não valorizada pelo tribunal em função das circunstâncias como foi obtida. Na situação dos autos estava em causa prova relativamente inadmissível, pelo que tendo a apelante deixado transitar o despacho que admitiu a junção aos autos dessa prova (concretamente, um registo fonográfico), apenas poderia fazer valer de novo considerações sobre a respectiva ilicitude ou ilegalidade em sede de valoração da mesma, mas aí teria que ter permitido ao tribunal que ponderasse tais razões em função dos demais meios de prova constantes dos autos, para o que teria que ter procedido à impugnação da decisão da matéria de facto, o que não fez”;
- Ac. da Relação de Guimarães de 16-02-2012 (P.º 435234/09.8YIPRT-A.G1, rel. JOSÉ RAINHO): “Por ser ilícita e nula, não pode ser atendida como prova em processo judicial cível uma gravação de conversação telefónica estabelecida entre as partes”;
- Ac. da Relação de Lisboa de 09-06-2011 (P.º 840/06.7TCSNT.L1-2, rel. EZAGÜY MARTINS): “É ilícita a prova testemunhal baseada na audição por terceiro – com o consentimento do A. – da voz dos RR., transportada por meio de telecomunicação, e através do sistema de “alta-voz”, sem que se mostre terem aqueles prestado o seu consentimento a tal interferência”;
- Ac. da Relação do Porto de 15-04-2010 (P.º 10795/08.8TBVNG-A.P1, rel. TEIXEIRA RIBEIRO): “I – Não sendo o CPC tão claro como o C. Proc. Pen. (art. 126º) quanto à nulidade das provas e à sua inadmissibilidade no processo civil, hão-de, todavia, as suas normas conformar-se – tal como as demais de todo o nosso ordenamento jurídico – às normas e princípios constitucionais em vigor (art. 204º da CRP), particularmente, e no que agora releva, às dos arts. 26º, nº1 e 32º, nº8, da CRP. II – Por isso, a disciplina normativa deste art. 32º, nº8, apesar de epigraficamente referenciada para o processo penal, tem aplicação analógica ao processo cível, sendo a interpretação por analogia possível devido a não ser excepcional a regra deste art., nem as suas razões justificativas (dimanadas dos direitos individualmente reconhecidos no art. 26º, nº1 da mesma Constituição) serem válidas apenas para o processo penal (art. 126º, nº3 do Cod. Proc. Pen.). III – Constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, inadmissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil”;
- Acórdão da Relação de Guimarães de 30-04-2009 (Pº 595/07.8TMBRG, rel. MANSO RAINHO): “A CRP garante o direito à reserva da intimidade da vida privada. Tal direito é directamente aplicável e exequível por si mesmo, sem necessitar da intervenção da lei ordinária, e vincula entidades públicas (a começar pelos tribunais) e privadas. Nos termos da CRP é nula – logo necessariamente ilícita e proibida – a prova obtida mediante abusiva intromissão na vida privada. Esta regra, conquanto formalmente prevista para o processo penal, deve ser tida como aplicável em todo e qualquer processo, e reporta-se tanto à prova obtida tanto pelas entidades públicas como pelas entidades particulares. As proibições de prova produzem, na sua atendibilidade e valoração, aquilo a que se costuma chamar “efeito à distância”, no sentido (que porém não esgota o conteúdo da figura) de que da mesma maneira que não é admissível a prova proibida directa, também não é tolerável a prova mediata, fundada naquela outra. O cônjuge não está legitimado a interceptar e gravar, para efeitos de acção de divórcio, conversa telefónica ou outros sons provenientes do outro cônjuge em interacção com terceiro a partir do espaço do automóvel que tal cônjuge utiliza. O casamento, pese embora as variáveis mais ou menos morais, filosóficas e societárias que lhe estão associadas, não pode ser visto como implicando a demissão de uma certa privacidade, aí onde os cônjuges a queiram preservar. Verificado que uma testemunha adquiriu o seu conhecimento a partir de prova obtida mediante violação do direito à reserva da vida privada da ré – gravação audio - deverá o seu depoimento ser recusado ou, se prestado, ser tido como nulo”; e
- Acórdão da Relação de Lisboa de 03-06-2004 (Pº 1107/2004-6, rel. FÁTIMA GALANTE): “A ilicitude na obtenção de determinados meios de prova não conduz necessariamente à sua inadmissibilidade, mas também não implica a garantia do seu aproveitamento. Numa acção em que se pretende a indemnização decorrente de ofensas ao bom nome imputadas ao ex-cônjuge é pertinente a junção de uma gravação audio referente a uma conversa mantida entre a R. e outra pessoa mediante a qual o autor pretende demonstrar a inveracidade de alegadas cenas de violência domésticas que a R. lhe imputou. Ao invés, por falta de pertinência relativamente ao objecto da acção de indemnização, deve ser indeferida a junção de uma gravação video reportando factos integrantes de uma situação de adultério em que foi interveniente a R., ainda que a gravação tenha sido feita através de um sistema instalado na casa de morada do ex-casal com o conhecimento de ambos. A tal junção obstaria ainda o facto de a gravação abarcar não apenas a pessoa do ex-cônjuge, mas ainda uma terceira pessoa”.
Revertendo estas considerações e tendo presente os contornos do caso concreto, verifica-se que, está em questão uma acção para efetivação de responsabilidade civil, instaurada pela autora contra os réus.
Nesta acção, a autora fez juntar aos autos uma gravação.
Nessa gravação, realizada pela autora – cfr. artigo 7.º da alegação de recurso – terão sido gravadas as vozes da autora e do réu (...) .
Na petição inicial, a autora alegou o seguinte: “Fazendo ameaças à Requerente, conforme se comprova dos áudios gravados e juntados em apartado, o 3º Requerido “perguntou o nome da médica que tinha assinado o laudo, para processá-la, e que disse que tinha um advogado do outro lado da rua” ( CD com áudio anexo )” (cfr. artigo 8.º desse articulado).
E, no contraditório que exerceu, a autora invocou, designadamente, que:
“3º.1 – As provas testemunhais poderão corroborar que efetivamente o Réu (...)  prestou atendimento em seu consultório, bem como o CD com áudio anexado aos autos faz prova do atendimento efetuado pessoalmente pelo Réu (...) .
3º.2 – É de ressaltar que o Réu limitou-se a impugnar em seu articulado de nº 62, “ tudo o quanto a autora alega em 8º do seu arrazoado e quanto ao “ tal CD com áudio anexo” configura a prática de crime, nos termos do artigo 199º do Código Penal.
3º.3 – O conteúdo do CD com áudio gravado o atendimento feito pelo Réu (...)  sequer foi impugnado, sendo que o mesmo demonstra o justificado interesse como meio de obtenção de prova, sem criar ou alterar a verdade de fato juridicamente relevante notadamente as ameaças feitas à Autora e o descaso com que o mesmo a tratou”.
Visa, pois, a autora demonstrar, com a aludida gravação, a alegação que produziu sobre o “atendimento” que terá sido feito pelo réu.
É o direito à prova que aqui está em causa, que, como se referiu, tem também assento constitucional.
Opõem-se os recorridos à admissibilidade probatória da gravação, alegando estar em questão a tutela constitucional prevista, designadamente, sobre o direito à reserva da intimidade da vida privada (artº 26º, nº1, da CRP) e à inviolabilidade do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada (artº34º, nº1, da CRP).
O Tribunal recorrido declarou ilícita a gravação apresentada, concluindo pela nulidade na sua apresentação, “considerando inadmissível a sua valoração em sede de apreciação da matéria de facto”.
Para tanto, foram esgrimidos no despacho recorrido, os seguintes argumentos:
- O art. 417.º, n.º 3 CPC, que regula os fundamentos de recusa de cooperação, apesar de se dirigir directamente às partes, não deixa de se dirigir indirectamente ao juiz, impondo uma bitola de não valoração de provas que têm na sua génese, uma forma ilícita de obtenção da prova, aí se incluindo a intromissão abusiva na intimidade da vida privada e familiar, no domicílio pessoal e profissional, na correspondência ou nas telecomunicações;
- Em ponderação perante o direito constitucional à acção e à prova, é de interpretar-se o art. 417.º, n.º 3 do CPC, no sentido de que não deverão ser admitidos no processo para efeitos de valoração como prova, documentos ou suportes de gravação obtidos de forma ilícita, isto é, sem o consentimento expresso dos intervenientes, ou autorização prévia da respectiva autoridade judiciária para o efeito, sob pena de violação do art. 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa, aplicável analogicamente ao processo civil; e
- A gravação em questão, efectuada sem menção do consentimento das partes neles intervenientes ou sem autorização de autoridade judiciária, constitui uma intromissão abusiva no domicílio profissional dos Réus, com gravação da sua voz sem autorização, pelo que a mesma se afigura ter sido obtida de forma ilícita, estando nessa medida ferida de nulidade para efeitos civis.
Ora, adiante-se, desde já, concorda-se com o juízo do Tribunal recorrido no sentido de que a gravação áudio em questão é, de facto, ilícita.
A mesma gravação foi efetuada, como admite a recorrente, por si, registando a sua voz e a do réu, no domicílio profissional deste, sem que aquele tenha dado consentimento para a mesma, não estando também demonstrado que tenha sido autorizada previamente a sua utilização.
O artigo 199.º do Código Penal estatui que:
“1 - Quem sem consentimento:
a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;
é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem, contra vontade:
a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 197.º e 198.º”.
No crime de gravações ilícitas, em apreço, o bem jurídico protegido é o direito à palavra pessoal, pelo que o “titular do direito de queixa é apenas a pessoa cuja palavra foi arbitrariamente registada ou utilizada” (assim, Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código penal, tomo I, Coimbra, 1999, p. 844, §69; e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-11-2007, Pº 1800/07-2, rel. CRUZ BUCHO).
Não obstante, em algumas decisões jurisprudenciais, relativas a processos de natureza criminal, considerou-se poder ser justificada, em determinadas circunstâncias, a divulgação de conversa (por via telefónica) entre duas pessoas, que assim não constituiria prova proibida.
Assim, entre outros:
- No acórdão da Relação de Coimbra de 10-07-2013 (Pº 907/10.7TAGRD.C1, rel. JORGE DIAS) considerou-se que: “Quando a vítima seja interlocutora e destinatária da comunicação telefónica ou outra comunicação técnica equiparada, considera-se justificada a divulgação do teor da conversa telefónica pelo sistema de alta voz (a que é semelhante a mensagem sonora) quando essa precisa comunicação telefónica é o meio utilizado para cometer um crime de ameaças, ou injurias e a vítima consinta, de modo expresso ou implícito, na sua divulgação a terceiros como forma de se proteger de tais ameaças e, com o tal não constitui prova proibida; O arguido ao enviar a mensagem sonora para o telemóvel da ofendida sabia e queria que esta a ouvisse, sabendo que era gravada, com essa mesma finalidade de ser ouvida pelo destinatário. Não se trata de qualquer intromissão ilícita nas telecomunicações que necessite de salvaguarda, porque não há sequer intromissão, não há violação à reserva constitucional da privacidade; Mesmo não utilizando a gravação (mensagem de voz gravada), ou seja, em telefonema direto, o teor da conversa pode ser escutado por terceiros, ou porque estão perto do auscultador do telefone ou, o aparelho é colocado em alta voz”;
- No acórdão da Relação de Coimbra de 06-03-2013 (Pº 119/11.2GDAND.C1, rel. ALICE SANTOS): “Não constitui prova proibida a divulgação de uma conversa telefónica pelo sistema de alta voz quando essa precisa comunicação telefónica é o meio utilizado para cometer um crime de ameaça ou injúria e a vítima consinta, de modo expresso ou implícito, na sua divulgação a terceiros como forma de se proteger de tais ameaças ou injúrias, sendo por essa razão permitido o depoimento de quem a ouviu”;
- No acórdão da Relação de Évora de 25-11-2014 (Pº 187/10.4ZRLSB.E1, rel. GILBERTO CUNHA): “O sistema de alta voz, mais não é do que um altifalante por onde é emitido o som para o exterior, que se processa por ondas sonoras, ocorrendo a exteriorização do som, pelo que nada mais se trata do que o amplificar; através dessa função nenhum elemento técnico é adicionado ao telefone, ilicitamente, permitindo a captação, audição ou gravação da chamada telefónica. A prova por depoimento de testemunha que escutou conversação telefónica por intermédio de sistema alta-voz não é, em princípio, prova livre, podendo cair nas proibições de prova, mas uma conclusão definitiva exige o conhecimento e apreciação dos contornos totais do acontecido. Assim, pese embora, em princípio, o conhecimento de uma comunicação telefónica pelo sistema de alta voz não seja admissível, pode a mesma ser justificada desde que esse meio de prova se mostre imprescindível, atentas as circunstâncias concretas que estão subjacentes a cada caso, designadamente, ocorrer causa de justificação, consistente numa legítima defesa - obter testemunho do crime praticado pelo arguido para o enfrentar e obstar a que prossiga na agressão - ou num direito de necessidade (probatório) - agir para obter prova para o perseguir criminalmente. Tem de considerar-se válida a prova testemunhal cujo conhecimento dos factos em que se estriba a conduta apurada da arguida, pela qual foi condenada pela prática do crime de injuria, adveio da circunstância da ofendida ter accionado o sistema de alta voz do telefone, permitindo e consentindo de modo expresso ou implícito que as testemunhas ouvissem a conversa que mantinha com a arguida, apesar da falta de consentimento desta. Neste caso, mostra-se justificada a divulgação dessa conversa a terceiros pelo sistema de alta voz, pois foi a comunicação telefónica o meio utilizado para cometer o crime de injúria e o recurso a esse sistema visou, assim, a obtenção de prova contra a arguida, actuando a ofendida com causa legítima, proporcional e adequada à divulgação da conversa entre ambas mantida”;
- No Acórdão da Relação de Lisboa de 21-03-2019 (Pº 1784/17.2T9AMD.L1-9, rel. MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA): Se “a gravação foi o único meio que teve de se defender do assédio sexual de que estava a ser vítima por parte do denunciado desde 2015, pois não tinha outra forma de provar a importunação de que estava a ser vítima, e que entregou uma cópia à Administração da empresa porque o assédio era realizado no local de trabalho”, pode ser considerada válida a gravação de palavras efectuada por particulares sem o consentimento do visado bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio”.
Ora, não releva para o presente recurso saber se a prova em questão – registando de forma não autorizada a voz de uma pessoa - é válida ou proibida, à luz da lei processual penal - pelo que, é ocioso indagar se ocorreu “apenas” uma “gravação de uma conversa” ou já uma “intercepção” não judicialmente autorizada.
Cumpre apenas evidenciar que a utilização de um registo áudio de uma conversa como meio de prova será, via de regra, excecional, devendo ser observadas as prescrições legais com vista à obtenção do correspondente meio de prova, sob pena de utilização de um método proibido de prova, à luz do previsto no n.º 3 do artigo 126.º do Código de Processo Penal.
Importa recordar, por exemplo, que nos termos do artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro (que estabeleceu medidas de combate à criminalidade organizada) “é admissível, quando necessário para a investigação de crimes” previstos nessa lei - tráfico de estupefacientes, terrorismo, organizações terroristas, terrorismo internacional e financiamento do terrorismo, tráfico de armas, tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, corrupção ativa e passiva, incluindo a praticada nos setores público e privado e no comércio internacional, bem como na atividade desportiva, peculato, participação económica em negócio, branqueamento de capitais, associação criminosa, pornografia infantil e lenocínio de menores, dano relativo a programas ou outros dados informáticos e a sabotagem informática, nos termos dos artigos 4.º e 5.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e ainda o acesso ilegítimo a sistema informático, se tiver produzido um dos resultados previstos no n.º 4 do artigo 6.º daquela lei, for realizado com recurso a um dos instrumentos referidos ou integrar uma das condutas tipificadas no n.º 2 do mesmo artigo, tráfico de pessoas, contrafação de moeda e de títulos equiparados a moeda, lenocínio, contrabando e tráfico e viciação de veículos furtados - o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado, desde que, ocorra prévia autorização ou determinação judicial com vista à utilização de tal meio de gravação, sendo aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.
De todo o modo, sempre se diga que, mesmo no âmbito processual penal, tem sido considerado que “a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização concedida pela forma prevista na lei processual, não consubstancia intercepção telefónica, mas sim documento, in casu fonográfico, com as respectivas transcrições, as quais representam, obviamente, um documento escrito” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-06-2015, Pº 7406/14.6TDLSB-A.L1-9, rel. GUILHERME CASTANHEIRA).
Relevante para a apreciação do presente recurso é sim saber se, no âmbito das regras do processo civil, o aludido meio de prova, ilicitamente obtido, deve ser, apesar de tudo, admitido e, consequentemente, valorado, ou se, ao invés, o mesmo se encontra vedado na sua admissão/valoração probatórias.
A apreciação da questão determina, como se viu, ponderar se o invocado direito à prova da autora sobrelevar sobre os direitos da pessoa cuja voz foi objeto de registo áudio de forma não autorizada ou consentida.
Haverá que saber, ponderando comparativamente os interesses em presença, se deverá prevalecer o direito fundamental atingido ou aquele que justificou a actuação lesiva. Ou seja, como já acima se referiu: Cumprirá apurar se, no caso concreto, a prova ilícita colide com os direitos fundamentais que possam fundamentar a sua inadmissibilidade. Se estiverem em confronto o direito à prova e outros direitos fundamentais – por exemplo, os consagrados nos arts. 26.º e 34.º da Constituição – antes da decisão sobre a admissibilidade probatória haverá que ter lugar a ponderação do julgador, com base no princípio da proporcionalidade.
A prova ilícita será adequada quando seja relevante e necessária, ou seja, quando seja indispensável à justa composição do litígio e quando, em concreto, os interesses da causa justifiquem a proteção de outros direitos (o que pode, nomeadamente, acontecer, levando à admissibilidade da prova ilicitamente obtida, se a utilização da prova ilícita constitui o único meio possível e razoável para efectuar a prova dos factos ou se houver consentimento do ofendido ou a sua colaboração ou cooperação para a fixação dos factos que a outra parte se propõe provar ou se a recolha e a fixação em suportes físicos ou digitais das realidades ou dos acontecimentos foi acidental).
Ora, no caso concreto, entre os direitos fundamentais da pessoa cuja voz foi colhida sem consentimento que merecem tutela são passíveis de ser convocados os consagrados nos arts. 26.º e 34.º da Constituição.
De facto, desde logo, o artigo 26.º da Constituição tutela o reconhecimento a todas as pessoas dos direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, mas também à palavra e à reserva da intimidade da vida privada.
Conforme salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada; Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Ed., 2010, p. 618): “Os direitos à palavra e à imagem são expressões típicas da autonomia pessoal constitucionalmente garantida por força do princípio da dignidade humana. Os direitos à palavra e à imagem incluem o direito a que não sejam registadas ou divulgadas palavras ou imagens da pessoa sem o seu consentimento, conferindo assim um direito à “reserva” e à “transitoriedade” da palavra falada e da imagem pessoal (…).
O direito à palavra implica salvaguarda da “integridade de uma esfera privada” de comunicação verbal, através da garantia de “confidencialidade das palavras não publicamente divulgadas” (MAUNZ/DÜRIG et al., Gundgesetz Kommentar, 2009, Abs. 1, Art 2, Rd 196), ainda que essas palavras não se refiram à intimidade da vida pessoal ou familiar. O direito à palavra pode, até certo ponto, considerar-se parte de um direito mais amplo à autodeterminação informacional, que inclui o direito a que não sejam registados, divulgados ou, por qualquer forma, utilizados dados pessoais sem o consentimento da pessoa a quem tais dados se refere. É este direito à palavra, com a amplitude que lhe reconhecermos, o bem protegido na proibição das gravações ilícitas”.
O direito à palavra, tal como o direito à imagem, à reserva da intimidade da vida privada, à identidade pessoal, integram o núcleo do direito geral de personalidade e, nessa medida constituem expressão directa do postulado básico da dignidade humana.
“Só a palavra é capaz de nos afirmar e confirmar. Somos a voz que temos (…). E, sem poder dizer, nada podemos (…) quem não sabe falar, não sabe convencer, nem seduzir (…) sem palavras não há comunhão de corpos e de almas. Há tropecções do instinto.” (assim, Miguel Torga; Diário, XVI apud Manuel da Costa Andrade; Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal –uma perspectiva jurídico-criminal, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 125).
Todavia, o direito à palavra não é um direito típico na legislação ordinária, muito embora, partindo da concepção de que o artigo 70.º do Código Civil contempla uma regra geral de proteção à personalidade humana, e que o rol de direitos previstos na lei civil não é taxativo, a voz também deve ser considerada perante o ordenamento jurídico português como um direito de personalidade, já que corresponde a um bem existente e determinado.
O direito à palavra inclui o direito a que não sejam registadas ou divulgadas palavras da pessoa sem o seu consentimento, conferindo um direito à reserva e à transitoriedade da palavra falada. Garante-se, assim, a autonomia na disponibilidade da palavra independentemente de estar ou não, de forma directa, em causa o bom nome e a reputação das pessoas.
Todavia, para além destes pontos, como salienta Nuno Lumbrales (“O direito à palavra, o direito à imagem e a prova audiovisual em processo penal”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67.º, tomo II, 2007, pp. 683 a 729): “Existe ainda um outro aspecto a tutelar: o contexto em que as declarações foram proferidas, e a confiança na “volatilidade” ou “transitoriedade” da palavra (…)”.
Como sintetizam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ªed. revista, Coimbra, 2007, pág. 467), o direito à palavra desdobra-se em três direitos: (a) direito à voz, como atributo de personalidade, sendo ilícito, sem consentimento da pessoa, registar e divulgar a sua voz, com ressalva, é claro, do lugar em que ela foi utilizada; (b) direito às palavras ditas, que pretende garantir a autenticidade e o rigor da reprodução dos termos, expressões, metáforas escritas e ditas por uma pessoa; (c) o direito ao auditório, ou seja, a decidir o círculo de pessoas a quem é transmitida a palavra.
Também o direito à reserva da intimidade da vida privada tem assento no mencionado artigo 26.º da Constituição. Este direito é, na lei ordinária, expressamente protegido, de acordo com o consignado no art. 80.º do CC.
Numa primeira noção, o Tribunal Constitucional (cfr. Ac. n.º 128/92, publicado no D.R., II Série, de 24 de Julho de 1992) afirmou que a reserva da intimidade da vida privada se traduzia no “direito de cada um a ver protegido o espaço interior ou familiar da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias. É a privacy do direito anglo-saxónico. (…) Este direito à intimidade ou à vida privada, este direito a uma esfera própria e inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular compreende: a) a autonomia, ou seja, o direito a ser o próprio a regular, livre de ingerências estatais e sociais, essa esfera de intimidade; b) o direito a não ver difundido o que é próprio dessa esfera de intimidade, a não ser mediante autorização do interessado”.
Posteriormente, o TC veio a centrar a protecção da vida privada por referência ao conceito de informação sobre a vida privada: «Poderá, assim, talvez dizer-se que a jurisprudência do TC parece evoluir no sentido de uma restrição do direito à protecção da vida privada a um direito relativo à informação sobre a vida privada. De acordo com este entendimento, excluir-se-ia do âmbito desse direito a liberdade da vida privada, por forma a evitar a conhecida “miséria da privacy” que resulta de um desmesurado alargamento, como o que encontramos no contexto anglo-saxónico (onde acaba por incluir quase todos os aspectos de uma protecção geral da personalidade)” (assim, Paulo Mota Pinto, “A protecção da vida privada e a Constituição”, in BFDUC, Vol. LXXVI, Coimbra, 2000, p. 159).
A Constituição emprega a expressão “vida privada” a qual se dicotomiza com a “vida pública”.
“Todavia, o critério de distinção não é um critério puramente espacial, dependente do local onde os factos ocorreram. Este é um elemento importante a ter em consideração. Mas parece que certos acontecimentos que ocorreram em público (por exemplo, uma conversa na rua ou num restaurante) podem igualmente ser protegidos pela reserva da vida privada” (cfr., Paulo Mota Pinto, “A protecção da vida privada e a Constituição”, in BFDUC, Vol. LXXVI, Coimbra, 2000, p. 165).
Em termos gerais, a «vida pública» é a vida social da pessoa, a sua relação com o mundo e com a sociedade em que se acha inserido, enquanto que a «vida privada» corresponderá à vida que o titular não quer partilhar com os outros e, que, apenas a ele respeita.
“Na definição da extensão da reserva sobre a intimidade da vida privada, o legislador recorreu a conceitos indeterminados ou maleáveis, que carecem de “preenchimento valorativo” por parte do julgador. Mesmo neste domínio, porém, deverá o juiz considerar certos momentos racionais, como, por exemplo, o sentido objectivo dos conceitos no ambiente social considerado, os interesses presentes na hipótese concreta e as concretizações que desses conceitos já tenham sido feitas pela jurisprudência. Neste domínio, existe uma mais acentuada dose de valoração e apreciação por parte do julgador do que a que tem lugar na aplicação de uma norma integrada por conceitos fixos, mas a sua actuação é vinculada à lei e não de mera discricionariedade” (assim, Teodoro Bastos de Almeida; “O direito à privacidade e a protecção de dados genéticos: Uma perspectiva de direito comparado”, pp. 397-398).
Procurando precisar o conteúdo da noção de vida privada, pode concluir-se que nesta se engloba a vida pessoal, a vida familiar, a relação com outras esferas de privacidade (como a amizade), o lugar próprio da vida pessoal e familiar (o lar, a casa de morada de família ou o domicílio pessoal) e os meios de comunicação e de expressão privados (a correspondência, o telefone, a expressão oral, etc.).
Também fazem parte da «vida privada», os elementos respeitantes à vida familiar, vida conjugal, amorosa e afectiva de uma pessoa, ou determinados locais privados ou reservados em que uma pessoa se encontre, como um carro, ou mesmo públicos, como uma cabine telefónica ou uma casa-de-banho pública. Dela também farão parte as informações relativas a estados pessoais, como a definição dos «momentos penosos ou de extremo abatimento» (assim, Teodoro Bastos de Almeida,“O direito à privacidade e a protecção de dados genéticos: Uma perspectiva de direito comparado”, p. 403) de uma pessoa.
O art. 80.º do Código Civil – com a epígrafe “Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada” – estatui que: «1. Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem. 2. A extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas». Este normativo manda atender, na concretização prática da extensão da reserva da intimidade da vida privada de outrem, a dois critérios: «a natureza do caso» e a «condição das pessoas».
O interesse público é muitas vezes invocado como justificação para a divulgação de factos que digam respeito à vida privada de certas pessoas com notoriedade, mas, a “compressão” eventual do direito à privacidade destas, não pode justificar a devassa da esfera íntima das mesmas.
Na decorrência do estabelecido em diversos instrumentos jurídicos de índole internacional, a CRP tutela ainda a inviolabilidade do domicílio, no art. 34.º.
“A inviolabilidade do domicílio é um direito fundamental individual e, embora limitado, a sua restrição apenas será permitida nas situações que a lei determinar” (assim, Rosa Maria Fernandes, A Inviolabilidade do Domicílio, p. 15.).
A inviolabilidade do domicílio está relacionada com o direito à intimidade pessoal (esfera privada especial), previsto no art. 26º da CRP, considerando-se o domicílio como projecção espacial da pessoa. Trata-se de um direito referente à liberdade da pessoa, e assim é que a Constituição considera a “vontade”, o “consentimento” da pessoa (art. 34º/2 e 3) como condição sine qua non da possibilidade de entrada no domicílio dos cidadãos fora dos casos de mandato judicial.
Referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada; Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Ed., 2010, p. 761) que: “Dentro do conceito de domicílio devem ainda ser integrados os espaços mistos que, além de servirem de domicílio, servem ainda para o exercício de uma determina profissão (consultórios médicos, escritórios, oficinas de artesanato, etc...). No entanto, é lícito perguntar se tais espaços integrados no domicílio devem gozar da totalidade da tutela constitucional oferecida ao domicílio. A resposta a esta pergunta está no nível de abertura ao exterior desses locais: quanto maior for essa abertura, mais esse local se afastará da possibilidade de equiparação total ao domicílio, diminuindo, consequentemente, a protecção constitucional que lhes é conferida. Assim, a proteção constitucional fica condicionada à vontade do titular desses espaços, na medida em que este admita, ou não, a entrada de terceiros. O facto de ser permitida a entrada nesses locais (um quase consentimento genérico), seja de clientes ou de outras pessoas relacionadas com a actividade profissional, retira o caráter privado ao local de trabalho, enfraquecendo a tutela constitucional. Tais espaços assim configurados e na estrita medida em que servem de base ao exercício de uma profissão, deixam de gozar do regime aplicável ao domicílio. Estes locais com abertura pública não comungam da totalidade das razões justificativas da protecção oferecida ao domicílio, não podendo ser a este equiparados”.
O sigilo da correspondência previsto no artigo 34.º da Constituição “pretende proteger o tráfego da informação privada que circula, em suporte corpóreo, entre pessoas determinadas” (assim, Jorge Miranda e Rui Medeiros; Constituição Portuguesa Anotada; Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Ed., 2010, p. 771), que é estendido a outros meios de comunicação.
Feitas estas considerações, parece-nos que, no caso em apreço, a tutela do visado na gravação não se alcança por referência ao artigo 34.º da CRP, dado que, não está em causa um meio de comunicação corporizado, mas antes, o próprio direito à palavra do réu, que terá sido precipitado, em termos definitivos para o registo áudio, que consubstancia o documento junto aos autos.
Ora, tal como sucede com o bem jurídico protegido com a incriminação do artigo 199.º do Código Penal, o que se tutela, em último termo, na previsão constitucional da tutela do direito à palavra é impedir que qualquer expressão oral produzida num contexto transitório e fugaz da vida se converta num produto registado e susceptível de ser utilizado a todo o tempo (cfr., neste sentido, Costa Andrade, in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, p. 245).
Por outro lado, considerando o local onde terá ocorrido o registo em questão – o consultório médico dos réus – o mesmo não pode qualificar-se nem como um domicílio pessoal ou residencial, nem constitui um espaço misto, não merecendo a tutela decorrente da previsão do artigo 34.º da CRP.
Também não é líquido que o conceito de reserva da intimidade da vida privada, com a amplitude que lhe foi assinalada, obtenha alguma compressão no modo como a prova foi obtida, nada se apurando de concreto a este respeito.
Todavia, já nos parece inequívoco de que, com a gravação registada pela autora, está em causa a recolha para suporte – em moldes não autorizados – do direito do réu à sua palavra ou voz e ao não registo, sem autorização, da mesma, direito conferido pelo aludido artigo 26.º da Constituição.
Este direito é em concreto prevalecente sobre o direito à prova da autora, sendo que, aliás, não se vislumbra na invocação que a mesma efetuou para almejar a utilização do meio de prova em questão, uma fundada razão justificativa no sentido da licitude do meio de prova.
Conforme referem Paula Costa e Silva e Nuno Trigo dos Reis (Efeitos Lícitos da Prova Ilícita em Processo Estadual e Arbitral; AAFDL, 2019, p. 76) “à parte não titular do direito violado só seria lícita a utilização da informação reservada ante o preenchimento de alguma causa justificadora dessa ofensa. Tal justificação só pode residir no imperativo de protecção de outros direitos fundamentais, de dignidade idêntica e no respeito pelo princípio da proporcionalidade.
Neste ponto, assiste razão à doutrina dominante quando sublinha que a cedência do princípio de proibição de produção e de valoração da prova ilícita não pode bastar-se com a existência de uma situação de necessidade de prova, antes requer que essa necessidade incida sobre factos jurídicos que sejam constitutivos de uma situação jurídica subjectiva ou postulativos de princípios objectivos de dignidade e merecimento de tutela superiores aos bens jurídicos sacrificados pela cedência. No entanto, o exercício de um mero direito à indemnização não atende a nenhum valor superior àquele que está em causa…”.
Repare-se, de facto, que a utilização da gravação áudio do “atendimento” não é sequer o meio exclusivo de demonstração da factualidade pretendida provar pela autora.
De facto, poderá a recorrente, quer para prova dos factos constitutivos do direito invocado (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC), quer para contrariar a invocada não prestação de qualquer acto médico pelo réu, utilizar outros meios ao seu dispor (onde se encontram, em particular, a prova testemunhal, a prova por declarações suas e, ainda, a prova por depoimento da contraparte).
A demonstração da prestação de um serviço pelo réu poderá cabalmente ser procurada por outros meios de prova, não se resumindo, numa lógica de tudo ou nada, ao apuramento de tal factualidade, apenas pelo meio da gravação efetuada.
Assim, não se pode concluir que, com a supressão da gravação dos presentes autos, na linha do despacho recorrido, o direito à prova da autora fique afetado, podendo a prova dos factos ser levada a efeito, por banda da autora, por outros meios de prova, não se justificando, também, por este motivo, como imprescindível, a utilização em juízo da gravação ilicitamente, porque sem consentimento, obtida.
Para além do exposto, não justifica a admissibilidade probatória da gravação efetuada a invocação de que foram produzidas “ameaças” pelo réu na ocasião, não só porque, a autora não concretizou essa conclusão, mas também, porque dela não extraiu qualquer consequência para a pretensão indemnizatória formulada, em termos de ela poder basear ou ser suporte de sustentação para o pedido que vem formulado e, fundamentalmente, porque o que a autora visa demonstrar não é algum comportamento do réu naquele sentido, mas sim, o “atendimento” médico pelo réu, que é negado por este.
Finalmente, como resulta evidente do já expendido, que o consentimento do ofendido ou a sua colaboração para a fixação dos factos que a autora se propõe provar também não ocorreu, não tendo, ademais, o modo de registo da gravação sido acidental, mas efetuado voluntariamente pela autora, que admitiu o seu concurso para a respetiva conclusão.
Conclui-se, pois, que a gravação em questão não é indispensável para a justa composição do litígio, sendo certo que, a proteção dos direitos da titularidade do visado na gravação – direitos de natureza pessoal, como a palavra e a disponibilidade sobre a mesma - sobrelevam, em concreto, relativamente ao direito à prova da autora – cuja finalidade, para demonstração dos factos invocados na presente acção, assenta num mero objetivo patrimonial, não se mostrando, em face de tudo o referido, postergados ou violados pela decisão recorrida os mencionados artigos 341.º do CC e 18.º, n.º 2, da CRP, sendo certo que, na mesma, foram ponderados e harmonizados, de harmonia com a Constituição, os contrapostos interesses em presença.
Recorde-se a decisão recorrida: “em ponderação perante o direito constitucional à acção e à prova, é de interpretar-se o art. 417.º, n.º 3 do CPC, no sentido de que não deverão ser admitidos no processo para efeitos de valoração como prova, documentos ou suportes de gravação obtidos de forma ilícita, isto é, sem o consentimento expresso dos intervenientes, ou autorização prévia da respectiva autoridade judiciária para o efeito, sob pena de violação do art. 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa, aplicável analogicamente ao processo civil.
Pelo supra exposto, a gravação em questão, efectuada sem menção do consentimento das partes neles intervenientes, ou sem autorização de autoridade judiciária, denota uma intromissão abusiva no domicílio profissional dos Réus, com gravação da sua voz sem autorização, pelo que a mesma se afigura ter sido obtida de forma ilícita, estando nessa medida ferida de nulidade para efeitos civis, por violação do art. 32.º, n.º 8 da CRP, pelo que e cumpre, nessa medida declarar a inadmissibilidade da sua valoração.”.
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A apelação deverá, em conformidade com o exposto, ser julgada totalmente improcedente, sendo mantida, na íntegra, a decisão recorrida.
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No artigo 527.º, n.º 1, do CPC estipula-se que: “A decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito”.
As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cfr. artigo 529.º, n.º 1, do CPC).
As custas assumem, grosso modo, a natureza de taxa paga pelo utilizador do aparelho judiciário, reduzindo os custos do seu funcionamento no âmbito do Orçamento Geral do Estado (assim, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2°, 3.ª ed., p. 418).
A taxa de justiça corresponde ao montante pecuniário devido pelo impulso processual de cada interveniente – cfr. artigo 529.º, n.º 2, do CPC – representando a contrapartida do serviço judicial desenvolvido, sendo fixada, de acordo com o disposto no mencionado artigo 529.º, em função do valor e complexidade da causa, nos termos constantes do Regulamento das Custas Processuais, e paga, em regra, integralmente e de uma só vez, no início do processo, por cada parte ou sujeito processual.
As custas em sentido amplo abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte - cf. art. 529.º, n.º 1 do CPC -, sendo que a primeira corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente e é fixado em função do valor e complexidade da causa (cf. n.° 2 do art. 529°), ou seja, nos termos do Regulamento das Custas Processuais (RCP), conforme o disposto nos seus artigos 5.º a 7.º, 11.º, 13.º a 15.º e das tabelas I e II anexas.
Daqui se retira que o impulso processual do interessado constitui o elemento que implica o pagamento da taxa de justiça e corresponde à prática do acto de processo que dá origem a núcleos relevantes de dinâmicas processuais como a acção, a execução, o incidente, o procedimento cautelar e o recurso (cfr. Salvador da Costa, As Custas Processuais - Análise e Comentário, 7.ª edição, p. 15).
Nos termos do artigo 529.º, n.º 3, do CPC, os encargos são as despesas resultantes da condução do processo correspondentes às diligências requeridas pelas partes ou ordenadas pelo juiz, cujo regime consta essencialmente dos artigos 16.º a 20.º, 23.º e 24.º do aludido Regulamento.
E, de acordo com o disposto no art.º 530.º, n.º 4 do CPC, as custas de parte compreendem o que cada parte haja despendido com o processo e tenha direito a ser compensada em virtude da condenação da parte contrária nos termos do Regulamento, cujo regime consta essencialmente dos seus artigos 25.º, 26.º e 30.º a 33.º e da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril.
A conjugação do disposto no art.º 527.º, n.ºs. 1 e 2 com o n.º 6 do art.º 607.º e no n.º 2 do artigo 663.º do CPC permite aferir que a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito, mas tal não sucede quanto à taxa de justiça, cuja responsabilidade pelo seu pagamento decorre automaticamente do respectivo impulso processual.
De acordo com o estatuído no n.º 2 do art. 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. A condenação em custas rege-se pelos aludidos princípios da causalidade e da sucumbência, temperados pelo princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição de excesso e da justa medida (cfr. Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, p. 359).
“Dá causa à acção, incidente ou recurso quem perde. Quanto à acção, perde-a o réu quando é condenado no pedido; perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância. Quanto aos incidentes, paralelamente, é parte vencida aquela contra a qual a decisão é proferida: se o incidente for julgado procedente, paga as custas o requerido; se for rejeitado ou julgado improcedente, paga-as o requerente. No caso dos recursos, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento (…)” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre; Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª ed., p. 419).
Assim, deve pagar as custas a parte que não tem razão, litiga sem fundamento ou exerce no processo uma actividade injustificada, pelo que interessa apurar o teor do dispositivo da decisão em confronto com a posição assumida por cada um dos litigantes.
O princípio da causalidade continua a funcionar em sede de recurso, devendo a parte neste vencida ser condenada no pagamento das custas, ainda que não tenha contra-alegado, tendo presente, contudo, a especificidade acima apontada quanto à constituição da obrigação de pagamento da taxa de justiça, pelo que tal condenação envolve apenas as custas de parte e, em alguns casos, os encargos (cfr. Salvador da Costa, ob. cit., pp. 8-9).
Como tal, sempre que haja um vencido, com perda de causa, é sobre ele que deve recair, na precisa medida desse decaimento, a responsabilidade pela dívida de custas. Fica vencido quem na causa não viu os seus interesses satisfeitos; se tais interesses ficam totalmente postergados, o vencimento é total; se os interesses são parcialmente satisfeitos, o vencimento é parcial.
“"Vencidos" são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou pacial dos seus interesses, ficando, pois, a seu cargo, a responsabilidade total ou parcial pelas custas” (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-1997, P.º 97S079, rel. MATOS CANAS).
Tendo em conta o referido e o vencimento havido, com total improcedência da apelação, a responsabilidade tributária inerente ao presente recurso deverá incidir sobre a recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que, a mesma, presentemente, beneficia.
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5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível em julgar improcedente a apelação, com manutenção, na integra, da decisão recorrida.
Custas do presente recurso pela autora/recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que, a mesma, presentemente, beneficia.
Notifique e registe.
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Lisboa, 15 de abril de 2021.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes