Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | CRISTINA COELHO | ||
| Descritores: | ACÇÃO ESPECIAL DE APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTOS CAUSA DE PEDIR FUNDAMENTOS | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 12/15/2020 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | 1. São requisitos da ação especial de apresentação de documentos que o possuidor ou detentor do documento não o queira facultar; que não tenha motivos fundados para se opor à apresentação; e que o requerente tenha um interesse juridicamente atendível no seu exame, ou que este seja necessário para apurar a existência ou conteúdo do direito, pessoal ou real (ainda que condicional ou a prazo), que invoca. 2. Se o requerente fundamenta o pedido formulado, de apresentação de documento, no eventual exercício do direito de preferência numa cessão de quotas da sociedade de que é sócio-gerente, e se tal direito de preferência inexiste por não se mostrar previsto nos respetivos Estatutos, nem a lei o consagrar, improcede a ação. 3. O fundamento da ação de apresentação de documento é a defesa de direitos do requerente dependente da exibição do documento, servindo para o titular do direito se esclarecer acerca da existência ou do conteúdo do seu direito, ou se habilitar a exercê-lo ou a conservá-lo. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO Em 30.05.2019, Luís intentou contra Fernando ação especial de jurisdição voluntária para apresentação de documento, pedindo que o R., cessionário, seja condenado a apresentar o documento comprovativo, em que no dia 9 de Novembro de 2017, pagou, a quantia de 140.000,00€ pela aquisição da quota no valor de 25.000,00€, que o cedente era titular, na M Viagens, Ld.ª.; Mais requereu que ao R. fosse fixado dia e hora, para apresentar o referido documento, comprovativo de pagamento da quantia de 140.000,00€, em 09/11/2017, conforme afirmação constante, na escritura de cessão de quota. A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese: O A. é gerente da sociedade comercial por quotas, M Viagens, Ldª, que tem por objeto social, “Transportes públicos em veículos automóveis ligeiros de passageiros em turismo, outros transportes terrestres de passageiros, aluguer de automóveis e atividade de agência de viagens”, cujo capital social é de 50.000,00€, encontrando-se integralmente realizado, e é representado por três quotas, uma no valor nominal de 5.000,00€, pertencente ao A., outra no valor de 20.000,00€, pertencente a Catarino, também gerente, e a terceira no valor de 25.000,00€, pertence ao R., a qual foi adquirida por este em 9.11.2017, através de contrato de cessão de quota. Em Assembleia Extraordinária de 6.10.2017 foi prestado o consentimento para a venda a terceiros da quota do cedente José. Consta do referido contrato de cessão de quota, que o cessionário, o R., aceitou adquirir a quota ao cedente, José, no valor nominal de 25.000,00€, pelo valor de 140.000,00€, que liquidou na mesma data, não constando a modalidade de pagamento. O A. e Catarino, na qualidade de sócios gerentes, da sociedade M Viagens, Ldª, quando tomaram conhecimento da realização do negócio, com a entrega da minuta do Contrato de Cessão da quota, devido ao facto de não se encontrar mencionada a forma de pagamento dos 140.000,00€, interpelaram o R., cessionário, para apresentar e mostrar o comprovativo do pagamento do preço de aquisição da quota, tendo este informado que não havia necessidade de o fazer porque era uma questão pessoal e já o tinha feito conforme consta da certidão de compra e venda. O comprovativo do pagamento de 140.000,00€, pela aquisição da quota, é um direito que o Autor, tem, para saber se pode ou não, exercer o seu direito de preferência, na aquisição da quota, colocada à venda, e saber se houve conluio entre o cedente e o cessionário, no sentido de enganarem e evitarem, que o A., ou mesmo a sociedade, ou o outro sócio gerente, colocando um valor alto de venda, exercessem o direito de preferência, pela compra da quota colocada à venda. Entende, ainda, o A. que o documento que agora pede que seja apresentado pelo R. é essencial para se confirmar se a declaração negocial que continha o projeto de venda, apresentado pelo cedente da quota, José, que consistia em vender a quota pelo valor de 140.000,00€, e mediante o pagamento do referido valor de uma só vez, foi cumprido ou se houve alterações, no que diz respeito à forma de pagamento, sem ter sido dado conhecimento ao A. e restantes sócios. Bem como apresentar queixa crime por falsas declarações. E saber se deve continuar a dar informações sobre a vida e atuação da empresa que gere ao R. Citado, o R. contestou, por exceção, invocando a ilegitimidade do A., a falta de interesse em agir deste, a inexistência do direito de preferência alegado, e a não verificação dos pressupostos da ação especial em causa, e por impugnação, pugnando, a final, a) pela procedência da exceção dilatória de ilegitimidade ativa do A., com a consequente absolvição do R. da instância; assim não se entendendo, b) pela procedência da exceção dilatória consubstanciada na falta de interesse em agir do A., com a consequente absolvição do R. da instância; assim não se entendendo c) pela procedência da exceção perentória consubstanciada na não existência do direito de preferência alegado pelo A., o que determina a sua absolvição total do pedido; assim não se entendendo, d) pela improcedência da ação, e consequente absolvição do R. do pedido. O A. respondeu às exceções invocadas, pugnado pela sua improcedência. Em 17.2.2020, foi proferido saneador-sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu o R. do pedido. Não se conformando com a decisão, dela apelou o A., tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões que se reproduzem: 1º - O requerente, demonstrou, através dos factos alegados, na sua petição inicial, que tinha interesses juridicamente atendíveis, ao requerer a apresentação do documento comprovativo de pagamento do valor de 140.000,00€, de uma só vez, com a celebração e assinatura do contrato de cessão de quota; 2ª - A douta decisão ora recorrida, não teve em atenção, nem analisou, os vários interesses juridicamente atendíveis, do requerente, descritos e mencionados na petição inicial; 3ª – O requerente, no art. 12º, referiu, que a apresentação do documento era necessário para saber se pode ou não exercer o seu direito de preferência, na aquisição da quota colocada à venda; 4ª – O requerente, no art. 13º, referiu, novamente, que o requerente, tem direito de preferência, bem como a sociedade, e o outro sócio; 5ª – O requerente, no art. 14º, da petição inicial, onde alegou que a apresentação do comprovativo de pagamento, é essencial, para o autor, saber se houve conluio entre o cedente e o cessionário, no sentido de enganarem e evitarem que o requerente ou mesmo a sociedade, ou o outro sócio gerente, colocando um valor alto de venda da quota, para que não exercessem o direito de preferência, pela compra da quota; 6ª – O requerente, no art. 15º referiu que a apresentação do documento era essencial, para se confirmar se a declaração negocial vertida no projeto de venda, deliberado em Assembleia Extraordinária de sócios, foi alterado, sem ser dado o conhecimento, ao requerente e restantes sócios e mesmo à sociedade; 7ª – O requerente, no art. 18º da sua petição inicial, que com fundamento no princípio da boa fé, o qual se encontra regulado no art. 227º, nº 2, do C. Civil, tinha direito e dizemos nós agora, interesse, em saber, se o recorrido, adquiriu a quota, em conformidade ou não, com o projeto de venda apresentado, discutido, deliberado e votado em Assembleia Extraordinária de Sócios. 8ª – O requerente, nos arts. 20º e 21º, da petição inicial, que a apresentação do comprovativo do pagamento do preço de uma só vez, pela aquisição da quota, por parte do recorrido, tinham interesse para o mesmo intentar ou não uma ação crime, por falsa declarações, por parte do cedente, pois passou uma declaração, a qual foi junta aos autos pelo recorrido na sua contestação, onde confirmou o recebimento dos 140.000,00€ e que, a apresentação do documento, tinha e tem interesse, para à data, o requerente, poder negar ou não informação ao recorrido na qualidade de sócio, sobre a vida da sociedade; 9ª Os interesses alegados, pelo requerente, são interesses juridicamente atendíveis, pelo Direito; 10ª – O requerente, deu cumprimento integral, ao disposto no art. 1045º do C.P.C. e arts. 575º e 574º, do C. Civil; 11ª - Encontram-se preenchidos os pressupostos, que a lei exige, necessários, para a obrigação de apresentação de documentos, dado que o recorrido se negou a facultar o comprovativo de pagamento, não tem motivos para se recusar à oposição da apresentação e o requerente, tem interesse juridicamente atendível na apresentação ou exame do documento. 12ª – A douta decisão recorrida, violou o disposto no arts. 1045º do C.P.C. e arts. 575º e 574º, do C. Civil e o disposto nos arts. 608º e nº 5 do artº 607º, do C.P.C. Termina pedindo que sentença recorrida seja revogada, e substituída por outra que declare e reconheça, que o requerente, aqui recorrente, tem interesses juridicamente atendíveis e consequentemente, determine a apresentação do documento, comprovativo de pagamento da quantia de 140.000,00€, de uma só vez, por parte do cessionário ao cedente, em 9 de novembro de 2017, mediante a indicação do dia, hora e local, para apresentar o documento, comprovativo de pagamento, pelo cessionário, aqui requerido. Não se mostram juntas contra-alegações. QUESTÕES A DECIDIR Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC) a questão a decidir é se se mostram verificados os pressupostos para a procedência da ação. Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos: 1. O Autor, é gerente da sociedade comercial por quotas, M Viagens, Lda., pessoa coletiva, com nº …, com sede na …, Lisboa, que tem por objeto social, “Transportes públicos em veículos automóveis ligeiros de passageiros em turismo, outros transportes terrestres de passageiros, aluguer de automóveis e atividade de agência de viagens” – conforme documento junto a fls. 10 a 18 e 92 cujo conteúdo se considera reproduzido. 2. O capital social da sociedade supra identificada, é de 50.000,00€, encontrando-se integralmente realizado, e é representado por três quotas, uma no valor nominal de 5.000,00€, pertencente a Luís, outra, no valor de 20.000,00€, pertencente a Catarino, também gerente, e a terceira quota, no valor de 25.000,00€, pertence ao Requerido, Fernando. 3. O Requerente, o sócio gerente Catarino e a sociedade, em Assembleia Extraordinária, agendada para o efeito, em 06/10/2017, em representação daquela e em nome próprio, prestaram consentimento, para a venda a terceiros, da quota de 25.000,00€, pertença de José - conforme documentos juntos a fls. 20/22 e 23 cujo conteúdo se considera reproduzido. 4. A quota, que o sócio gerente, José, detinha na sociedade M Viagens, Ldª, no valor de 25.000,00€, colocada à venda, foi adquirida, pelo Requerido Fernando, a 09 de Novembro de 2017, através de contrato de cessão de quota – conforme documentos juntos a fls. 25/26, 27/28 e 20/22. 5. Do contrato de cessão de quota consta que o cessionário, Fernando, aceitou adquirir a quota, ao cedente, José, no valor nominal de 25.000,00€, pelo valor de 140.000,00€, que liquidou na data da celebração (09 de Novembro de 2017) – conforme documento junto a fls. 20/22 cujo conteúdo se considera reproduzido. 6. Não foi aposto no contrato de cessão de quota, a modalidade de pagamento. 7. Confrontado, o Requerido Fernando, respondeu: “ … que não havia necessidade de o fazer porque era uma questão pessoal e já o tinha feito, conforme consta da certidão de compra e venda ….” – conforme documento junto a fls. 27/28 cujo conteúdo se considera reproduzido. 8. Por referência ao contrato de cessão de exploração identificado em 4, José declarou que o aqui Requerido “liquidou o valor integral do preço (140.000,00€) acordado no referido contrato dando-se expressa quitação de tal montante no presente documento” – conforme documento junto a fls. 93 cujo conteúdo se considera reproduzido. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO O tribunal recorrido entendeu que inexiste fundamento para o pedido formulado, porquanto não se verifica um interesse jurídico atendível no exame dos documentos, uma vez que o A. o reportou ao exercício / não exercício do direito de preferência na cessão de quotas, sendo certo que não lhe assiste tal direito. Insurge-se o apelante contra o decidido sustentando que demonstrou, através dos factos alegados, ter interesses juridicamente atendíveis para requerer a apresentação do documento, que não se resumem ao exercício do direito de preferência na aquisição da quota cedida, e que o tribunal recorrido não considerou. Assim, invocou, ainda, a necessidade de apresentação do documento para aquilatar se tinha havido conluio entre cedente e cessionário com vista a evitarem que o A. ou a sociedade exercessem direito de preferência pela compra da quota; se tinha havido alteração do projeto de venda deliberado na AE sem consentimento dos restantes sócios e da sociedade; e se tinham sido prestadas falsas declarações por parte do cedente para intentar eventual ação crime. Apreciemos. Dispõe o art. 1045º do CPC que “Aquele que, nos termos e para os efeitos dos artigos 574º e 575º do Código Civil, pretenda a apresentação de coisas ou documentos que o possuidor ou detentor lhe não queira facultar justifica a necessidade da diligência e requer a citação do recusante para os apresentar no dia, hora e local que o juiz designar”. Por seu turno, dispõe o nº 1 do art. 574º do CC que “Ao que invoca um direito, pessoal ou real, ainda que condicional ou a prazo, relativo a certa coisa, móvel ou imóvel, é lícito exigir do possuidor ou detentor a apresentação da coisa, desde que o exame seja necessário para apurar a existência ou o conteúdo do direito e o demandado não tenha motivos para fundadamente se opor à diligência”. O art. 575º estatui que “As disposições do artigo anterior são, com as necessárias adaptações, extensivas aos documentos, desde que o requerente tenha um interesse atendível no exame deles”. Da conjugação dos preceitos referidos resulta que são requisitos da presente ação: que o possuidor ou detentor do(s) documento(s) não o(s) queira facultar; que não tenha motivos fundados para se opor à apresentação; e que o requerente tenha um interesse juridicamente atendível no seu exame, ou que este seja necessário para apurar a existência ou conteúdo do direito, pessoal ou real (ainda que condicional ou a prazo), que invoca [1]. Almeida Costa, em Direito das Obrigações, 12ª ed. rev. e atual., pág. 806, escreve que “A justificação desta disciplina compreende-se facilmente. É que a lei não pode deixar de ter na devida conta os interesses em conflito. Por um lado, a favor do direito de exigir a apresentação de coisas ou documentos, postulam várias razões: o interesse da descoberta da verdade e da defesa dos direitos dependentes da exibição da coisa ou documento, e, eventualmente, o interesse da administração da justiça. Mas, por outro, não se pode esquecer o interesse do detentor da coisa ou documento em não ver ofendida a sua liberdade individual. Daí aqueles dois requisitos que a lei estabelece: em primeiro lugar, a necessidade da exibição para o apuramento da existência ou do conteúdo de um direito do requerente relativo a essa coisa; e, em segundo lugar, que o detentor não tenha motivos fundados para se opor à apresentação dela”. Segundo Vaz Serra, na RLJ nº 77, págs. 227 e ss., o interesse jurídico na exibição de documentos implicará que o seu requerente pretenda “tirar daí a prova de uma circunstância que diga respeito a uma relação jurídica que o afete” (pág. 235). O direito de exibição – actio ad exhibendum – que se traduz no exame de uma coisa que se encontra em poder de outrem, serve para que o titular de um direito se esclareça acerca da existência ou do conteúdo do seu direito, ou se habilite a exercê-lo ou a conservá-lo. No caso sub judice e tal como entendeu o tribunal recorrido, o apelante estruturou, essencialmente, o seu interesse jurídico na apresentação do documento em causa (documento comprovativo de que, em 9.11.2017, pagou a quantia de €140.000, pela aquisição da quota no valor de €25.000 de que o cedente era titular na M Viagens, Lda.) em alegado direito de preferência que lhe assistia (e à sociedade) na aquisição da quota cedida. Assim, alegou que: “12º O comprovativo do pagamento de 140.000,00€, pela aquisição da quota, é um direito que o Autor, tem, para saber se pode ou não, exercer o seu direito de preferência, na aquisição da quota, colocada à venda; 13º Direito de preferência, que o autor, tem, bem como a sociedade e até mesmo o outro sócio gerente, se o pagamento da quota, adquirida, pelo réu, não foi paga, de uma só vez, aquando da celebração do contrato de cessão de quotas; 14º Assim como, o comprovativo de pagamento, é essencial, para o autor, saber se houve conluio entre o cedente e o cessionário, no sentido de enganarem e evitarem, que o autor, ou mesmo a sociedade, ou o outro sócio gerente, colocando um valor alto de venda, para que não exercessem o direito de preferência, pela compra da quota colocada à venda”. Ora, como bem esclareceu o tribunal recorrido, esse direito de preferência não existe. A lei (arts. 228º a 231º do CSC) não o consagra, e o mesmo não foi previsto nos Estatutos da sociedade. Raúl Ventura, em Sociedades Por Quotas, Vol. I, Comentários ao CSC, págs. 583/584, escreve que “A cessão duma quota traz à superfície um possível conflito de interesses. O sócio titular da quota tem interesse na realização imediata e fácil do valor pecuniário da quota, que consegue como meio de saída da sociedade. Os outros sócios podem ter interesse em que o seu sócio não seja substituído por terceiros – ou por certo terceiro ou por nenhum terceiro, isto é, podem querer evitar que na sociedade entre alguma pessoa indesejável sob qualquer aspeto ou podem ter interesse em que na sociedade se mantenha o sócio em questão. … Quanto à importância relativa dos interesses do sócio cedente e dos outros sócios, a lei atual alterou profundamente o regime da lei anterior. Esta partia da livre transmissão da quota (interesse do sócio cedente), à qual permitia que contratualmente fossem criadas restrições, no interesse dos outros sócios. O CSC inverte a ordem desses fatores, tornando regra geral a necessidade de consentimento da sociedade, salvo estipulações contratuais em contrário” [2]. De facto, nos termos do nº 2 do art. 228º do CSC, a cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta. O art. 229º, nº 2 do CSC prevê que o contrato de sociedade possa dispensar o referido consentimento, quer em geral, quer para determinadas situações. E no nº 5 do art. 229º do CSC estipula-se que o contrato de sociedade não pode subordinar os efeitos da cessão a requisito diferente do consentimento da sociedade, mas pode condicionar esse consentimento a requisitos específicos. Em anotação a este preceito legal, explica Raúl Ventura, na obra citada, págs. 606/607, que “Esta disposição tem por finalidade simplificar quanto possível o regime jurídico das restrições à cessão de quotas, ficando a existir apenas duas vias diretas, às quais se reconduzem todos os caminhos acessórios: a via da intransmissibilidade da quota, imediatamente estipulada no contrato de sociedade; a via do consentimento da sociedade, na qual desembocam todos os outros possíveis requisitos. Assim se evitam dúvidas quanto ao regime de cada um dos requisitos a que a cessão fique condicionada: – condicionado será sempre e só o consentimento e a consequência da recusa do consentimento será sempre uma só. (…) É lícito no contrato de sociedade condicionar o consentimento da sociedade a requisitos específicos não proibidos por lei.”. Um dos requisitos específicos poderá ser a consagração no contrato de sociedade de um direito de preferência a favor dos outros sócios ou da sociedade [3]. Como supra referido, no contrato da sociedade Moor Viagens, Lda., nada se estipulou quanto a eventual direito de preferência da sociedade ou dos restantes sócios na cessão de quotas de um deles. Não tem, pois, o apelante o direito em que sustentou a sua pretensão na presente ação, sufragando-se, pois, o entendimento do tribunal recorrido nesta matéria [4]. Alega o apelante: “O exercer ou não o direito de preferência na aquisição da quota, por si, ou mesmo pela sociedade, através de amortização da quota ou pelo outro sócio, está relacionado, com, em se impugnar a deliberação de consentimento, dada, nos termos em que foi apresentado o projeto para venda, a terceiros e/ou em não se dar o consentimento, caso o pagamento, não tenha sido feito de uma só vez e quiçá, no valor proposto”; “É que, caso o pagamento não tenha sido efetuado de uma só vez, pelo requerido, cessionário, estamos perante uma alteração ao projeto de venda apresentado e consequente alteração às declarações negociais”, “Alterações, que levam a que a Assembleia Extraordinária, realizada para o efeito, possa ser impugnada, não ser dado o consentimento de venda da quota a terceiros; poder ser a quota amortizada pela sociedade ou mesmo adquirida pelos restantes sócios, mediante a preferência entre eles”. Salvo o devido respeito por opinião contrária, não sufragamos tal entendimento. Sendo o consentimento da sociedade apenas condição de eficácia da cessão de quotas perante a sociedade, a declaração de nulidade ou anulação da deliberação social [5] não afeta a validade da cessão [6]. Sempre se acrescentando que o apelante reconduz, em última instância e novamente, a questão ao exercício do direito de preferência, inexistente como já referido. Sustenta, ainda, o apelante o seu interesse legítimo no eventual acionamento de processo crime contra o cedente por falsas declarações, “pois passou uma declaração, a qual foi junta aos autos pelo recorrido na sua contestação, onde confirmou o recebimento dos 140.000,00€”. Eventual crime de falsas declarações (art. 256º do CP) tem natureza pública, cabendo a investigação criminal ao MP, e não ao apelante. O fundamento da ação em causa (de apresentação de documento) é a defesa de direitos do requerente dependente da exibição do documento, nas palavras supra reproduzidas de Almeida Costa. Ou, na esteira de Vaz Serra, tirar da exibição do documento a prova de uma circunstância que diga respeito a uma relação jurídica que o afete, servindo para o titular do direito se esclarecer acerca da existência ou do conteúdo do seu direito, ou se habilitar a exercê-lo ou a conservá-lo. O processo em causa destina-se a permitir ao requerente o exercício de direitos de natureza civil, e não de natureza criminal, não se aplicando a alegada pretensão de perseguição criminal do cedente. Por último sustenta o apelante que “a apresentação do documento tinha e tem interesse para, à data, o requerente poder negar ou não informação ao apelado na qualidade de sócio, sobre a vida da sociedade”. Mal se compreende a alegação do apelante, quando da ata da AGE de 27.11.2017 da sociedade M Viagens, Lda. junta a fls. 27/28 dos autos consta que, após apresentação do novo sócio (o apelado) e do mesmo, questionado sobre a apresentação de um comprovativo sobre o pagamento efetivo do valor de €140.000,00” ter respondido nos termos dados como provados no ponto 7 da fundamentação de facto, “ficou acordado que o novo sócio Sr. Fernando irá auxiliar o gerente Luís nas áreas administrativas e financeira, designadamente registo de contas de 2016 na CRC e no acompanhamento do encerramento das contas de 2017. Todo o apoio e informação necessários sobre os assuntos lhe seriam prestados. … Foi prestado pelo sócio gerente Luís alguma informação ao novo sócio sobre os dados financeiros da empresa de 2016 e 2017, assim como, informação sobre a gestão da frota e dos recursos humanos da empresa, situação laboral etc…”. Por outro lado e como supra referido, a cessão de quotas produziu efeitos em relação à sociedade, tendo o sócio direito a obter informações nos termos do disposto no art. 21º, nº 1, al. d) do CSC. Em conclusão, improcede a apelação na sua totalidade, devendo manter-se a sentença recorrida. As custas, na modalidade de custas de parte, são a cargo do apelante, por ter ficado vencido – art. 527º, nºs 1 e 2 do CPC. DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida, que se mantém. Custas pelo recorrente. * Lisboa, 2020.12.15 Cristina Coelho Luís Filipe Pires de Sousa Carla Câmara _______________________________________________________ [1] Em anotação ao art. 574º do CC, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, no CC Anotado, Vol. I, 2ª ed. rev. e atual., pág. 514, que “Para o exercício do direito de apresentação de coisa móvel ou imóvel deve o requerente ter um interesse legítimo baseado num direito real ou pessoal relativo a essa coisa, isto é, … a informação deve ser precisa para se apurar a existência do conteúdo do direito invocado”. E em anotação ao art. 575º, na pág. 515, acrescentam que o artigo “Manda aplicar-se à exibição de documentos o disposto no artigo anterior, desde que o requerente tenha um interesse jurídico atendível no exame destes”. [2] Como se sumariou no Ac. do STJ de 7.2.2017, P. 153/04.9TYLSB.L1.S1 (Alexandre Reis), em www.dsgi.pt, “…II - Com a exigência do consentimento da sociedade (art. 228º, nº 2), ainda que não imperativa (art. 229º, nº 2), a lei visa facultar aos sócios a oposição à entrada para a sociedade de pessoas diferentes daquelas com quem acordaram associar-se, desiderato que, antes do CSC, era, frequentemente, prosseguido pelos próprios interessados, estipulando no pacto social vários tipos de barreiras a essa entrada, como sucedia, para além desse consentimento, com a convenção de um direito de preferência no caso de cessão de quotas a estranhos (não sócios). …”. [3] Raúl Ventura, na ob. cit., págs. 614/615, refere que podem coexistir “sem violação do art. 229º, nº 5, cláusulas de preferência a favor da sociedade ou de sócios, e regime legal de consentimento. … A regra do art. 229º, nº 5 não é violada se a prévia oferta da quota à sociedade ou aos sócios aparecer no contrato de sociedade como condição para o consentimento ser dado, pois isso é permitido pela segunda parte daquele nº 5; … Esta estipulação deve, porém, ser expressa; não podem ser reconduzidas a esta hipótese todas as cláusulas de preferência que apareçam em contratos de sociedade. Nada impede que a cláusula de preferência substitua o regime legal de consentimento. O contrato de sociedade dispensará o consentimento e ao mesmo tempo estipulará o direito de preferência da sociedade e dos sócios, ou de uma ou de outros. … Coexistindo o regime do consentimento e a cláusula contratual de preferência, o primeiro tem de prevalecer sobre a segunda, dadas as respetivas naturezas; …”. Também Alexandre Soveral Martins, em Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coord. Jorge M. Coutinho de Abreu, Vol. II, 2ª ed., págs. 479/480, escreve que “As cláusulas de preferência a favor de sócios ou da sociedade não violarão o art. 229º, nº 5 do CSC se, por interpretação do contrato de sociedade, se concluir que a eficácia da cessão não fica subordinada a essas cláusulas. O preferente poderá impedir que a cessão de quota ocorra nos termos pretendidos pelo alienante exercendo o direito de preferência. Mas, se a cláusula de preferência estabelece que a violação da mesma torna a cessão da quota ineficaz em relação à sociedade ou contém formulação semelhante, subordina os efeitos da cessão de quotas à observância do direito de preferência. E, por isso, viola claramente o art. 229º, nº 5 do CSC”. [4] E ainda quando escreve que “… para ser possível ao sócio recorrer à ação de preferência prevista no artigo 1410.º do CC o direito de preferência tem de constar no contrato e ter eficácia real (arts. 414º e 415º do CC). O art. 413º do CC permite que o direito de preferência, constituído por mero pacto, tenha eficácia real, sendo no entanto necessário o preenchimento de três requisitos: - que a eficácia real tenha sido convencionada pelos pactuantes; que o direito de preferência respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo; que esse direito de preferência tenha sido registado, nos termos da respetiva legislação. Ou seja, do disposto nos artigos 421º e 413º surge cristalino que não basta convencionar o direito de preferência, é ainda necessário convencionar que tal direito tem eficácia real. E não tendo o direito de preferência eficácia real não é possível ao Requerente/sócio recorrer à ação de preferência prevista no art. 1410º do CC”. Com interesse sobre esta matéria, ver Alexandre Soveral Martins, na ob. cit., págs. 482/485. [5] Perguntamo-nos com que fundamento, face ao disposto nos arts. 56º e 58º do CSC. [6] Neste sentido, Alexandre Soveral Martins, na ob. cit., pág. 491. |