Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8561/19.4T9LSB.L1-5
Relator: ANA CLÁUDIA NOGUEIRA
Descritores: VIOLAÇÃO DO DEVER DE SIGILO (ARTIGO 51º DA LEI Nº 58/2019)
PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS
ACESSO A FICHA CLÍNICA SEM CONSENTIMENTO DO VISADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– O crime «Violação do dever de sigilo» previsto pelo artigo 51º, n.º1 da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto (anteriormente, artigo 47º, n.º1 da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro) tutela a protecção de dados pessoais.

II– Trata-se de um tipo legal de crime que, num dos seus elementos objetivos, remete para uma outra lei não penal – a que prevê o segredo profissional –, resultando da conjugação de ambas uma simbiose de tutela dos bens jurídicos do direito à privacidade e do direito de cada um a não ser usado como fonte de informação para terceiros contra a sua vontade, bem como de controlar a informação que é fornecida, no exercício de um verdadeiro direito de autodeterminação informativa.

III– O acesso feito por médico a informação clínica de um seu familiar, arquivada nas instalações do estabelecimento de saúde onde presta trabalho, e a transmissão a terceiro do seu conteúdo, sem consentimento do visado ou justa causa, não deixando de ser violador do segredo profissional a que o agente, por ser médico, estava sujeito, atinge em cheio esses bens jurídicos.

IV– Não constitui elemento do tipo de crime a existência de uma relação médico/paciente entre o agente (médico) e o titular da informação clínica transmitida/divulgada, nem que tenha havido um acesso legítimo daquele médico a esses dados, não padecendo por isso de nulidade, por violação do disposto no artigo 283º, n.º3, alínea b), do Código de Processo Penal, a acusação que não contém factos dos quais resulte que o arguido prestou à assistente cuidados médicos ou observação clínica que legitimassem o acesso à informação clínica da mesma.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I– RELATÓRIO


1.–
Vem o presente recurso interposto pela assistente AA. de decisão instrutória proferida pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, na parte em que não pronunciou o arguido BB pela prática de um crime de violação de dever de sigilo previsto e punido pelo disposto no art. 47º da L. 67/98, de 26/10, atualmente pelo art. 51º/1 da L. 58/2019, de 08/08 (Lei da Proteção de Dados Pessoais).

2.–
A assistente/recorrente peticiona a revogação parcial da decisão recorrida, requerendo a sua substituição por outra que pronuncie o arguido também pelo crime de violação de dever de sigilo, previsto e punido, à data dos factos, pelo art. 47º/1 da L. 67/98, de 26 de outubro, com as legais consequências, formulando para tanto as seguintes conclusões [transcrição]:
A.– «Vem o presente Recurso interposto da Decisão Instrutória na parte em que, declarando nula a Acusação, não pronunciou o Arguido pela prática do crime de violação de dever de sigilo, por, segundo o Tribunal a quo, nela não estarem descritos factos dos quais resulte que o Arguido estava obrigado a sigilo profissional relativamente à Recorrente, mais concretamente por nunca lhe ter prestado quaisquer cuidados médicos ou observação clínica.
B.– A Acusação não só não é nula, como contém todos os elementos, de facto e de direito, necessários à pronúncia do Arguido pela prática do crime de violação de dever de sigilo, razão aliás pela qual o Tribunal a quo entendeu estarem verificados os pressupostos para a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo.
C.– Os factos descritos na Acusação indiciam o preenchimento de todos os elementos típicos do crime de violação de dever de sigilo, previsto e punido, à data dos factos, pelo artigo 47.0, n.0 1, da Lei n.67/98, de 26 de outubro, designadamente (i) a sujeição a obrigação de sigilo profissional, nos termos da lei, e (ii) a revelação ou divulgação de dados pessoais, sem justa causa e sem o devido consentimento.
D.– Desde logo, a questão da sujeição, ou não, do Arguido, enquanto profissional de saúde, ao dever de sigilo profissional configura uma questão de direito, e, por isso, de conhecimento oficioso, nos termos do disposto nos artigos 2.º do CPP, e 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP.
E.– A sujeição ao segredo médico não depende da verificação de uma relação médico paciente baseada num contacto direto, nem tem como pressuposto a prestação de cuidados médicos ou a observação clínica direta do paciente titular dos dados.
F.– Ao invés, estão sujeitos ao dever de sigilo profissional todos os médicos que obtenham conhecimento dos factos relacionados com a saúde de um paciente, em virtude do exercício das suas funções.
G.– De harmonia com o disposto nos artigos 30. 0 e seguintes do Regulamento de Deontologia Médica, e, bem assim, no artigo 139.0 do Estatuto da Ordem dos Médicos, o segredo médico abrange todos os factos de que o médico tome conhecimento no exercício da sua profissão ou por causa dela, independentemente da prestação de cuidados de saúde aos doentes a que respeitem.
H.– Em particular, o dever de sigilo profissional impõe-se, singular e coletivamente, e relativamente aos factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica do doente, quer o serviço solicitado tenha ou não sido prestado, bem como quanto aos factos comunicados por colegas, e/ou acedidos através de sistema informático.
I.– A lei prevê expressamente casos em que os médicos obtêm conhecimento de dados de saúde por via indireta, através de outros colegas e/ou meios, afastando, por isso, qualquer exigência de acompanhamento direto do paciente em causa.
J.– É irrelevante a existência de uma relação específica entre médico e paciente, sendoapenas necessária a demonstração da apreensão dos dados do titular no âmbito de um determinado contexto funcional ou institucional.
K.– Interpretação contrária equivaleria a admitir que os dados de um paciente, registados num sistema informático centralizado, seriam reservados/confidenciais apenas quanto aos seus médicos, podendo ser revelados pelos demais que ao mesmo tenham acesso.
L.– A norma resultante da interpretação, individual ou conjunta, dos artigos 51.0 da Lei da Proteção de Dados Pessoais, 30.0, 31.0 e 36.0 , do Regulamento de Deontologia Médica, e 9.0 do RGPD, segundo a qual o dever de sigilo profissional médico apenas se impõe ao profissional de saúde que acompanha, clinicamente, o titular dos dados, é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 1.0, 2.0, e 26.0, n.0 1, da CRP, inconstitucionalidade que se deixa invocada para todos os efeitos legais.M. -Aliás, o próprio Arguido nunca contestou a sua vinculação ao dever de sigilo profissional relativamente à Recorrente (antes admitindo-o nas suas declarações registadas a fls. 66 dos autos), limitando-se a negar, no que a este ilícito diz respeito, ter partilhado informações clínicas confidenciais com o seu filho, …..
M.–Conforme exaustivamente descrito na Acusação, nomeadamente nos respetivos pontos 1, 3 a 18, e 22 e 23, o Arguido tomou conhecimento dos dados de saúde da Recorrente no contexto e por causa do exercício da sua profissão, na medida em que, enquanto médico urologista no Hospital CUF Descobertas e apenas nessa qualidade, de profissional de saúde - tinha acesso ao sistema informático dos hospitais , no qual estavam registados os dados clínicos dos utilizadores dos serviços dessa rede hospitalar, CUF incluindo da Recorrente.
N.– Tendo tomado conhecimento, em razão das suas funções, e no seu contexto funcional, às informações clínicas da Recorrente, incluindo através de conversas mantidas com colegas de profissão (cfr. declarações registadas a fls. 66 dos autos), o Arguido encontrava-se necessariamente sujeito ao dever de sigilo profissional, não sendo, para o efeito, exigível a prestação de cuidados médicos à Recorrente.
O.– Por outro lado, não obstante a sua sujeição ao dever de sigilo profissional, o Arguido partilhou a informação clínica da Recorrente com o seu filho, ….. então marido da Recorrente, nomeadamente em abril de 2018, tal como o próprio expressamente admite (cfr. depoimento de CC a fls. 150 dos autos, e, bem assim, pedido de declaração de nulidade do casamento a fls. 17 a 20 dos autos) cfr. pontos 19 e 25 da Acusação.
P.– A Recorrente nunca autorizou nem consentiu na revelação, pelo Arguido, das suas informações clínicas, mais não havendo qualquer justa causa para tanto, até porque estes sempre mantiveram uma relação distante (cfr. declarações da Assistente ora Recorrente a fls. 53 e 54 dos autos, declarações do Arguido registadas afls. 66 dos autos, e, ainda, depoimento de CC a fls. 150 dos autos).
Q.– Do que resulta a verificação de todos os elementos do tipo objetivo do crime de violação de dever de sigilo, atualmente previsto e punido pelo artigo 51.0, n.0 1, da Lei da Proteção de Dados Pessoais.
R.– Já no que respeita aos elementos do tipo subjetivo, o Arguido atuou com dolo direto e intenso, conhecendo, nomeadamente, a obrigação de sigilo profissional a que se encontrava adstrito, a ausência do devido consentimento e justa causa para a divulgação das informações clínicas da Recorrente (elemento intelectual), mais querendo divulgá-las, pelo menos ao seu filho, …. (elemento volitivo).
S.– O Arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que estava a agir em desconformidade com a Lei (cfr. pontos 20 a 27 da Acusação).
T.–Termos em que, por referência aos factos descritos na Acusação, estão preenchidos todos os elementos, objetivos e subjetivos, do crime de violação de dever de sigilo, por cuja prática deve o Arguido ser, também, pronunciado, por estarem reunidos indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação, ao mesmo, de uma pena ou medida de segurança (cfr. artigo 308.0 , n.0 1, do CPP).».

3.–
O Ministério Público veio em resposta ao recurso pugnar pela manutenção da decisão recorrida porquanto [transcrição]:
«(…) relativamente ao crime de violação de dever de sigilo, a acusação não articulou a factualidade de modo encadeado, lógico e coerente, e de modo assertivo quanto à delimitação espácio-temporal e do agente, de modo a poder subsumi-la aos elementos objectivos e subjectivo do tipo criminal imputado, limitando-se a mencionar que o arguido partilhou com …. informações clínicas de AA.
Ao contrário do alegado pela recorrente, do despacho recorrido não é legítimo extrair que o Tribunal considera que a sujeição ao sigilo profissional depende da verificação de uma relação médico-paciente baseada num contacto directo, nem tem como pressuposto a prestação de cuidados médicos ou a observação clínica directa do paciente titular dos dados, mas antes, e porque o arguido não prestou cuidados médicos à assistente e esta não era sua paciente, desconhece-se que dados médicos foram supostamente partilhados, pois que também nesta parte a acusação é omissa.
Se é verdade que no crime de violação de dever de sigilo é protegido o sigilo profissional, então para que se preencha o elemento objectivo do tipo haverá que identificar que informações clínicas concretas, de que especialidade e constantes em que módulos (já que na acusação se faz referência a que o arguido acedeu indevidamente a informações clínicas de diferente espécie — imagiologia, patologia clínica, psiquiatria) o arguido partilhou com o seu filho ……., e em que circunstâncias de tempo, lugar e modo; o que se desconhece, pois a acusação as omite.
Tal omissão da narração dos elementos objectivos do tipo de crime de violação de dever de sigilo conduziu à conclusão por parte do Tribunal «a quo» de que a acusação deduzida nos autos não descreve todos os factos integradores de tal tipo de ilícito criminal e, como tal é nula, nesta parte, nos termos do disposto no art. 283 0 no 3 al. b) do C.P.Penal.
Tal vício insere-se na previsão do art. 2830 n03 do C.P.Penal que comina como nulidade a acusação que não respeite os requisitos aí consagrados. Tal nulidade da acusação, face à sua gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis e insanáveis, enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.
De facto, a falta dos elementos contidos nas alíneas do nº 3 do art. 283º do C.P.Penal, acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tomando inviável o exercício dos direitos consagrados no art. 320 da C.R.P..
Tal nulidade é insanável, nos termos do disposto no art 1190 do C.P.Penal, encontrando-se abrangida no corpo de tal preceito legal, no qual se estabelece : Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais».

Respondeu ainda ao recurso o arguido, apresentando as suas contra-alegações com as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…)
A)– A Recorrente diz entender estarem verificados tanto os elementos objetivos como os elementos subjetivos do crime de violação do Dever de Sigilo, p.p. à data dos factos, pelo art. 470., no 1, com a redação da Lei 67/98, de 26 de outubro, atualmente p.p. pelo art.51 0., no . 1, com a redação da Lei Geral da Proteção de Dados (Lei 58/2019), mas nenhuma razão lhe assiste, sendo a decisão instrutória na parte que declara a nulidade arguida a mais acertada.
B)– O sigilo profissional, neste caso dos médicos, somente respeita à relação entre médico e doente, conforme claramente decorre do artigo 1950. do Código Penal ao referir que é "..em razão de..”, existindo para proteção do próprio doente, nomeadamente no que concerne ao seu direito à privacidade, por isso se torna essencial que o médico esteja adstrito à não revelação de informações tidas por confidenciais, porquanto está dependente de um vínculo de confiança e verdade, conforme decorre do artigo 85.0 do Código deontológico dos Médicos.
C)– O Recorrido não poderia, por exemplo, escusar-se licitamente a depor em juízo quanto a factos sigilosos de que tivesse tido conhecimento sobre a saúde da Assistente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1350 do Código de Processo Penal, simplesmente por deter a profissão de médico, pois nunca foi seu médico, nunca aquela tendo nele depositado a confiança que pressupõe a relação médico-doente.
D)– O próprio julgamento de Hipócrates é claro ao dizer que respeita aos "segredos que me forem confiados".
E)– O que resulta da Acusação, e que se mantém após a instrução, é que o Recorrido tomou conhecimento de dados pessoais da Recorrente por ter acedido ilicitamente ao sistema informático da CUF Descobertas, precisamente porque a Recorrente nega reconhecer ter autorizado o mesmo a aceder aos registos, e não por ser médico no exercício da sua profissão.
F)– Não podemos, pois, reconhecer que seja admitida a prática do crime de violação de sigilo, sem que se reconheça que entre a Recorrente e o Recorrido se estabeleceu uma relação de médico-doente, ainda que não remunerada (conforme decorre da alínea d) do citado Regulamento no . 707/2016, de 21 de julho), relação que é expressamente repudiada pela recorrente.
G)–Se atentarmos nas expressões que são contidas no Regulamento da Ordem dos Médicos, somos forçados a chegar à mesma conclusão, pois fala-se em "paciente", no "tratamento do paciente" e a um direito do "doente", ou seja, é manifesto que estamos sempre no âmbito da relação de confiança estabelecido entre o médico e o paciente/doente, pelo que não se mostra verificado o primeiro dos elementos objetivos do crime em causa.
H)– Como também não se encontra verificado o elemento do tipo em causa no que respeita à concreta divulgação, no todo ou em parte, de dados pessoais, pois que não se apurou no inquérito que o Recomido tivesse alguma vez partilhado informações com o seu filho …, então, ainda marido da Recorrente ou com qualquer outra pessoa.
I)–Aliás, da Acusação consta que BB partilhou com …. informações clínicas de AA (ponto 19) sem que minimamente identifique que concretas informações clínicas o Arguido teria partilhado com o seu filho …, e respeitantes à então mulher daquele, AA.
J)–E esta falta de identificação dos concretos factos que sustentam esta afirmação, densificando-a, foi declarada nula em sede instrutória, em obediência ao disposto no artigo 283º n. 3 alínea b) do Código de Processo Penal que impõe a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena (...)incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
K)–Não poderia ser de outra forma, pois tomaria inviável qualquer defesa em processo penal, retirando ao arguido o direito de se defender, pelo que da acusação tem que constar a informação mínima que permitisse ao arguido saber que informações concretas foram partilhadas, sob pena da acusação ser nula por violação do dever consignado no art. 2830. n. 3 alínea b) do CPP, por omissão dos factos relevantes para o preenchimento do tipo legal de crime.
L)–Pelo que tal conclusão se fez constar no despacho de arquivamento da factualidade que em abstrato poderia integrar a previsão do crime de devassa da vida privada, o que foi feito nos seguintes termos (página 6 in fine), e o mesmo se concluiu, quanto ao arquivamento do crime de desvio de dados agravado, onde conclui a Digna procuradora titular (página 7 in fine).
M)–Concluiu-se, pois, no próprio despacho de arquivamento do inquérito, com o qual a Assistente se conformou, que nenhuma informação concreta se apurou que o Arguido pudesse ter transmitido, pois que eram todas resultantes da vivencia familiar!
N)–Não existe qualquer prova, ainda que indiciária que permitisse suprir a nulidade da Acusação, que repetimos, arquivamento e Acusação à qual a Assistente se conformou, tendo acompanhado esta última.
O)–A Recorrente continua sem conseguir indicar um único dado pessoal que tenha sido, no todo ou em parte, revelado ou divulgado pelo recomido ao seu filho, porque pura e simplesmente tal não ocorreu, pese embora as suspeitas infundadas que possa ter.
P)–No que respeita ao preenchimento do elemento subjetivo do tipo de crime, o que se verifica é que a conduta do recorrido não é adequada a preencher nenhuma das modalidades previstas no artigo 140 do Código Penal.
Q)–Toda a atuação do Recorrido foi norteada pelos cuidados que tinha com o seu neto, quer enquanto nascituro quer após o seu nascimento, nunca tendo representado, ou pretendido violar qualquer dever de sigilo, o que de resto não fez.
R)–Inexistem, pois, quaisquer fundamentos de facto ou de direito, que imponham alterar a decisão instrutória na parte em que declara a nulidade da Acusação no que tange ao crime de violação de sigilo.
S)–Não se mostrando minimamente narrados os factos que permitam ter como preenchidos os elementos objetivo se subjetivos do crime de violação do dever de sigilo, não pode o arguido dele ser acusado, devendo manter-se o despacho de não pronuncia quanto ao referido crime.».

4.–O recurso veio a ser admitido a subir nos próprios autos, de imediato e com efeito meramente devolutivo.
5.–Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, perfilhando integralmente a posição do Ministério Público na primeira instância, pugnou por que se negasse provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
6.– Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º/2 do Código de Processo Penal, tendo a assistente vindo responder, considerando terem sido acrescentados na resposta do Ministério Público novos argumentos não constantes da fundamentação da decisão recorrida e fora do âmbito do recurso interposto.
7.– O processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º/3, b) do Código de Processo Penal.

II–FUNDAMENTAÇÃO

1.–QUESTÕES A DECIDIR

Dispõe o art. 412º/1 do Código de Processo Penal que «A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.».
São as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando, assim, para o tribunal superior, as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido - neste sentido a jurisprudência pacífica e constante, de que são exemplo os acórdãos do STJ de 15/04/2010 e 19/05/2010 acessíveis em www.dgsi.pt .
Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal Superior será sempre sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal, conforme jurisprudência fixada no acórdão do STJ 7/95, de 28 de dezembro, DR, I Série-A, de 28/12/95.
No caso vertente, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, em associação com os fundamentos da decisão recorrida, há apenas uma questão a decidir: aferir se o arguido estava sujeito ao dever de segredo profissional em relação aos dados pessoais (de saúde) da assistente referidos na acusação, por forma a integrar o crime de violação do dever de sigilo previsto e punido pelo art. 47º da L. 67/98, de 26/10, atualmente previsto e punido pelo art. 51º da L. 58/2019, de 08/08.

2.– APRECIAÇÃO DO RECURSO

2.2-Decisão recorrida

É do seguinte teor a decisão instrutória sob recurso, na parte relevante para análise da questão a decidir [transcrição]:
«NULIDADE DA ACUSAÇÃO
O arguido invocou a nulidade da acusação, por violação do disposto no art. 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal.
Ora, quanto ao crime de acesso indevido agravado a acusação contém a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido da pena correspondente aos factos nela descritos, permitindo ao arguido identificar com clareza as situações a que se reporta.
Já quanto ao crime de violação de dever de sigilo, não estão descritos na acusação factos de que resulte que o arguido estava obrigado a sigilo profissional relativamente à ora assistente - segundo a própria acusação nunca lhe prestou quaisquer cuidados médicos ou observação clínica que legitimassem o acesso à informação clínica da mesma que se encontrasse alojada nos registos informáticos dos hospitais CUF” -, pelo que, por não descrever factos que preencham todos os elementos típicos desse crime, encontrando-se a acusação nessa parte em violação do disposto no art. 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, é nessa medida nula.
Pelo exposto, não se verifica a invocada nulidade no que se refere ao crime de acesso indevido agravado e declaro nula a acusação quanto ao crime de violação de dever de sigilo.
(…)
Pelo exposto, pronuncio para julgamento em Tribunal Singular: BB (identificado na acusação), pelos factos constantes da acusação, que aqui dou por integralmente reproduzidos.
Tais factos integram a prática pelo arguido, em autoria material, de um crime de acesso indevido agravado, p. e p., à data dos factos, pelo art. 44.º, n.ºs 1 e 2, al. b), da Lei n.º 67/98, de 26.10, actualmente p. e p. pelo art. 47.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 58/2019, de 08.08, por referência ao art. 9.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 679/2016, de 27.04.
(…)».

2.3-Do recurso

Entende a recorrente que inexiste qualquer nulidade da acusação porquanto contém a mesma todos os factos necessários à integração do crime de violação do dever de sigilo previsto e punido pelo art. 47º da L. 67/98, de 26/10, atualmente previsto e punido pelo art. 51º da L. 58/2019, de 08/08.

2.3.1- Do Direito

2.3.2- Do teor da acusação declarada parcialmente nula

É o seguinte o teor da acusação que, pela decisão recorrida, foi declarada parcialmente nula [transcrição]:

«O Ministério Público, em processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, acusa:

BB, filho de …. e de …, natural de …, nascido a …, casado, …, titular do n.0 de identificação civil …, residente na …..,

Porquanto,

1.– No período compreendido entre 29.08.2017 e 18.06.2018 BB exercia funções como …. no Hospital CUF Descobertas, pertencente a José Mello Saúde.

2.– AA casou com …, filho do arguido, em setembro de 2016, tendo deixado de coabitar em junho de 2018.

3.– Durante este mesmo período AA foi submetida a tratamentos clínicos e consultas médicas nos hospitais da Rede CUF, pertencentes a José de Mello Saúde, S.A.

4.–Em consequência da assistência médica que teve nestes hospitais foram registados no sistema informático dos hospitais CUF informações pessoais e clínicas de AA.

5.–Informações a que podiam aceder os funcionários administrativos e profissionais de saúde no exercício das funções que prestassem em cada um desses hospitais.

6.– As informações dos utentes estavam, à data armazenadas, em módulos distintos, o módulo administrativo, ao qual podiam aceder funcionários administrativos e um módulo de registos clínicos ao qual tinham acesso profissionais de saúde.

7.– Quer os funcionários administrativos, quer os profissionais de saúde podiam aceder a informações pessoais ou clínicas de utentes dos hospitais CUF no âmbito do exercício das suas funções e na medida do necessário ao exercício das mesmas.

8.– Os profissionais administrativos não tinham acesso ao módulo de registos clínicos.

9.– Durante este lapso temporal o arguido acedeu ao sistema informático, disponibilizado pela Rede Cuf aos médicos, profissionais de saúde e funcionários desta rede de hospitais, onde registam, designadamente, dados de identificação e dados clínicos dos utentes desta rede de hospitais.

10.– BB, em razão das funções que exercia, teve acesso ao sistema informático da rede de hospitais CUF bem como aos dados clínicos dos pacientes que aí eram seguidos.

11.– No período compreendido entre 29.08.2017 e 18.06.2018, o arguido acedeu à documentação clínica de AA, guardada em sistema informático daquele hospital, através do utilizador….

12.– Não tinha autorização para aceder a quaisquer dados de AA.

13.– Nunca lhe prestou quaisquer cuidados médicos ou observação clínica que legitimassem o acesso à informação clínica da mesma que se encontrasse alojada nos registos informáticos dos hospitais CUF.

14.– Tais acessos foram realizados através de diferentes "tipo de episódio", designadamente, ficha id, consultas, prescrições e exame.

15.– BB acedeu a tais informações nos seguintes dias:

  • 29.08.2017- Ficha-ID- Consulta- informação de Paciente
  • 05.10.2017- Ficha-ID- Consulta- informação de Paciente
  • 24.10.2017- Ficha-ID- Consulta- informação de Paciente
  • 08.11.2017- Ficha-ID- Consulta- informação de Paciente
  • 13.11.2017- Ficha-ID- Consulta- informação de Paciente
  • 16.11.17- consultas- consulta- histórico de episódios- grelha- psiquiatria
  • 16.11.17- consultas- consulta- histórico de episódios- detalhe- psiquiatria
  • 16.11.17- consultas- consulta- provider de resultados- psiquiatria
  • 16.11.17- consultas- consulta- processo do doente- psiquiatria
  • 16.11.17- consultas- consulta- histórico do paciente- psiquiatria
  • 16.11.17- consultas- consulta- informação de paciente- psiquiatria
  • 16.11.17- consultas- consulta- resumo clínico do paciente- psiquiatria
  • 16.11.17 - consultas- consulta- motivo/observação- psiquiatria
  • 16.11.17- ficha ID- consulta- informação de paciente
  • 15.01.2018- exame- Consulta- barra de botões- imagiologia
  • 15.01.2018- exame- Consulta- visão de grupo de episódios- imagiologia
  • 15.01.2018- exame- Consulta- provider de resultados- imagiologia
  • 15.01.2018- exame- Consulta- processo do doente- imagiologia
  • 15.01.2018- exame- Consulta- informação de paciente- imagiologia
  • 15.01.2018- ficha ID- Consulta- visão de grupo de episódios-
  • 15.01.2018- ficha ID- Consulta-informação de paciente
  • 15.01.2018- prescrições- Consulta-provider de resultados- patologia clínica
  • 15.01.2018- prescrições- Consulta-processo do doente- patologia clínica
  • 15.01.2018- prescrições- Consulta-informação de paciente- patologia clínica
  • 05.04.2018- ficha ID- consulta- informação de paciente
  • 11.04.2018- ficha ID- consulta- informação de paciente
  • 03.05.2018- ficha ID- consulta- informação de paciente
  • 09.05.2018- ficha ID- consulta- informação de paciente
  • 26.06.2018- ficha ID- consulta- informação de paciente
  • 16.08.2018- ficha ID- consulta- informação de paciente
  • 16.08.2018- ficha ID- consulta- aplicações externas.

16.–A consulta ao módulo "consultas" permite o acesso a informações relativas a ato clínico de consulta.

17.–O módulo fichas ID contém dados administrativos, gerais e demográficos, constantes da ficha do utente, listagem de histórico de atos médicos realizados e agendados.

18.– No módulo acessível aos médicos está ainda inscrito o resumo do motivo dos diferentes atos constantes da agenda.

19.– BB partilhou com …. informações clínicas de AA.

20.– O arguido sabia que não podia aceder aos registos clínicos de AA, que continham informações sobre estado da sua saúde, e mesmo assim não se absteve de adotar tal conduta.

21.– Sabia o arguido que não estava autorizado nem tinha causa justificativa para o acesso a tais informações e mesmo assim quis agir como agiu.

22.– BB sabia que por causa do exercício das suas funções de médico estava sujeito ao dever de sigilo profissional.

23.– Tinha igualmente conhecimento que através da sua profissão conseguia aceder aos registos clínicos de AA.

24.– Ciente de tais factos, aproveitando-se de tal estatuto enquanto médico….. no Hospital CUF Descobertas, acedeu aos registos médicos de AA, bem sabendo que não o fazia por causa das suas funções e que não estava autorizado, tendo mesmo assim, adotado tal conduta.

25.– BB sabia que não podia divulgar tais informações e mesmo assim quis comunica-las a …..

26.– O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente.

27.– Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.

BB, cometeu como autor material, e em concurso efetivo:

1.–UM CRIME DE ACESSO INDEVIDO AGRAVADO, previsto e punido, à data dos factos, pelo artigo 44.0, n.0 1 e n.0 2, alínea b), com a redação da Lei n.0 67/98, de 26 de Outubro, atualmente previsto e punido pelo artigo 47.0, n.0 1 e n.0 2 da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.0 58/2019), por referência ao artigo 9 0 n.0 1 do Regulamento Geral sobre a proteção de dados (Regulamento(UE) n.0 679/2016, de 27 de Abril), em concurso aparente com um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido, pelo artigo 6.0, n.0 1 da Lei do Cibercrime (lei n.0 109/2009).

2.–UM CRIME DE VIOLAÇÃO DE DEVER DE SIGILO, previsto e punido, à data dos factos, pelo artigo 47.0, n.0 1, com a redação da Lei n.0 67/98, de 26 de outubro, atualmente previsto e punido pelo artigo 51.0, n.0 1, com a redação da Lei Geral de Proteção de dados (Lei n.0 58/2019), em concurso aparente com um crime de violação de segredo, previsto e punido pelo artigo 195.0 do Código Penal. (…)».

2.3.3- Do Direito


Entendeu-se na decisão recorrida que a acusação enfermava de nulidade por não ter descrito factos dos quais resulte estar o arguido obrigado a sigilo profissional relativamente à assistente, sendo que, segundo a própria acusação, nunca lhe prestou quaisquer cuidados médicos ou observação clínica que legitimassem o acesso à informação clínica da mesma que se encontrasse alojada nos registos informáticos dos hospitais CUF.

2.3.3.1- Processualmente

Nos termos do disposto no art. 283º/3, b) do Código de Processo Penal, fundamento da declarada nulidade, «a acusação contém, sob pena de nulidade (…) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.».

Constituem factos essenciais da acusação aqueles que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, entendendo-se como tais:
-os factos atinentes e subsumíveis aos elementos objetivos e subjetivos típicos do crime imputado, os factos respeitantes às formas do crime (consumação e tentativa), à (com)participação (autoria e cumplicidade) e os factos integrantes da culpa;
-os factos integrantes das condições objetivas de punibilidade;
-os factos atinentes aos pressupostos de aplicação de penas acessórias.

Além desse núcleo fulcral, quando possível, deve a acusação conter factos de contextualização, nomeadamente os referentes à localização espácio-temporal, à motivação da prática criminosa, ao grau de participação do agente e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, como sejam a reincidência e delinquência por tendência e circunstâncias agravantes e atenuantes qualificativas; e ainda os factos complementares estritamente necessários à compreensão dos demais.
Tal exigência encontra-se em articulação com a estrutura acusatória do processo penal e as garantias de defesa que ao arguido são conferidas nos termos do disposto no art. 32º/5 e 10 da Constituição da República Portuguesa.
Os poderes de cognição do tribunal encontram-se, assim, rigorosamente limitados ao objeto do processo tal como resultar definido pelo conteúdo da acusação, de um passo, thema probandum e thema decidendum sobre o qual recairá a atividade probatória e decisória.
Assim é que «A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados» - cfr. acórdão do Tribunal Constitucional 358/04, de 19/05, processo 807/03, DR II Série, de 28/06/04.
Ou seja, os factos aduzidos na acusação, que definem o objeto do processo, hão-de ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido, sendo subsequentemente sujeitos à produção de prova idónea.
Por outro lado, terão que ser suficientes para permitirem a subsunção jurídico-penal a ilícito penal típico, configurando, portanto, um crime.
Quando a descrição factual seja deficiente, importa saber se, ainda assim, é bastante para se terem prefigurados todos os elementos típicos de um crime, permitindo a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança, em observância do citado art. 283º/3, b) do Código de Processo Penal.
Neste caso, poderá vir a complementar-se a descrição factual da acusação com base nos elementos de prova existentes nos autos ou que venham a ser reunidos na instrução da causa, seja na fase de instrução, seja na fase do julgamento, desde que daí não resulte alteração substancial dos factos da acusação com o sentido previsto no art. 1º/f) do Código de Processo Penal – aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Tratando-se, pois, de mera alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou alteração da sua qualificação jurídica, bastará assegurar o exercício do contraditório à defesa para que os novos factos possam ser considerados e apreciados, suprindo-se a deficiência de alegação – arts. 303º/1 e 5 do Código de Processo Penal, para a instrução, e 358º do Código de Processo Penal, para o julgamento.
Já será vedada qualquer alteração que represente suprimento da omissão de alegação factual dos factos necessários à integração dos elementos típicos de um crime, de tal modo que, onde antes inexistiria a possibilidade de aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança por força dessa omissão, passem a constar todos os factos que, uma vez provados, permitem a aplicação dessa pena ou medida de segurança.
Nesse caso, estar-se-á perante acusação nula por omissão de narração dos factos que fundamentem a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança, em violação do disposto no art. 283º/3,b) do Código de Processo Penal; na fase de julgamento, tal vício dá lugar, logo na fase de saneamento, à rejeição da acusação por manifestamente infundada nos termos previstos no art. 311º/2, a) e 3, d) do Código de Processo Penal.
Questão diversa será a de os factos inovadores terem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, caso em que não poderá o processo prosseguir quanto a eles, se se estiver na fase de instrução – art. 303º/3 do Código de Processo Penal -, o mesmo sucedendo na fase de julgamento, exceto se o Ministério Público, o arguido e o assistente acordarem no prosseguimento pelos factos novos – art. 359º/1 e 3 do Código de Processo Penal.

*

2.3.3.2- Substantivamente

Embora estejam imputados ao arguido dois crimes, é objeto do presente recurso apenas o crime de violação do dever de sigilo, previsto e punido, à data dos factos, pelo art. 47º/1 da L. 67/98, de 26/10, atualmente previsto e punido pelo art. 51º/1 da Lei Geral de Proteção de Dados, aprovada pela L. 58/2019, de 08/08.

Nos termos do disposto no art. 47º/1 da L. 67/98, de 26/10, sob a epígrafe «Violação do dever de sigilo»:
«1- Quem, obrigado a sigilo profissional, nos termos da lei, sem justa causa e sem o devido consentimento, revelar ou divulgar no todo ou em parte dados pessoais é punido com prisão até dois anos ou multa até 240 dias.».

Atualmente dispõe, correspondentemente, o art. 51º/1 da L. 58/2019, de 08/08, sob a mesma epígrafe:
«1- Quem, obrigado a sigilo profissional nos termos da lei, sem justa causa e sem o devido consentimento, revelar ou divulgar no todo ou em parte dados pessoais é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.».

Do cotejo dos dois preceitos, o primeiro em vigor quando da prática dos factos entre 29/08/2017 e 16/08/2018, e o segundo em vigor a partir de 09/08/2019, nos termos do art. 68º da L. 58/2019, de 08/08, resultam coincidentes os elementos objetivos típicos do crime de violação de sigilo profissional, quais sejam:
(i)-a sujeição do agente a obrigação de sigilo profissional nos termos da lei;
(ii)-a conduta de revelação ou divulgação de dados pessoais;
(iii)-A não verificação de justa causa para essa revelação ou divulgação;
(iv)-A inexistência do devido consentimento para a revelação ou divulgação.

No que respeita aos elementos subjetivos típicos deste crime, temos que à data dos factos se configurava como doloso, podendo ocorrer em qualquer da modalidades de dolo, eventual, necessário ou direto, conforme o disposto no art. 14º do Código Penal; atualmente é punido também por negligência nos termos do nº 3 do art. 51º da L. 58/2019, de 08/08.

O crime de violação de sigilo profissional aqui em causa tem como pano de fundo e matriz o tipo legal de crime de violação de segredo previsto em geral no art. 195º do Código Penal, nos termos do qual:
«Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.».

A proteção dos dados pessoais funda-se, a nível supralegal, desde logo no art. 8º/1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, nos termos do qual «Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.».

Estatui ainda o art. 10º/1 da Convenção Sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, sob a epígrafe «Vida privada e direito à informação»: «Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada no que toca a informações relacionadas com a sua saúde.».

A Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Pessoas Singulares no que diz respeito ao Tratamento Automatizado de Dados Pessoais, de 1981, (conhecida como Convenção 108) hoje, com uma versão moderna, a denominada Convenção 108+, é considerada a matriz de todas as leis sobre proteção de dados pessoais, tendo sido o primeiro instrumento internacional juridicamente vinculativo, especificamente dedicado à sua proteção.

É composta por um conjunto de princípios considerados “universais”, que se encontram vertidos nas leis sobre proteção de dados pessoais dos diversos países que integram o Conselho da Europa, entre os quais Portugal, subscritor da Convenção logo em 14/05/1981, vindo a sua vigência a iniciar-se no nosso país em 01/01/1994.

Na União Europeia, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), de 2016, inspirado em muitos dos princípios da Convenção 108 – Regulamento UE 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Abril de 2016, em vigor desde 24/05/2016, obrigatório e diretamente aplicável em todos os Estados Membros desde 25/05/2018 (art. 99º) -, estabelece as regras relativas à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, defendendo os direitos e as liberdades fundamentais dessas pessoas, nomeadamente o seu direito à proteção dos dados pessoais – art. 1º/1 e 2.

No seu âmbito material, este Regulamento aplica-se ao tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos em ficheiros ou a eles destinados – art. 2º/1.

Internamente, a Constituição da República Portuguesa foi a primeira Constituição do mundo a consagrar os direitos à privacidade e o direito à proteção de dados pessoais como direitos fundamentais, nos arts. 16º e 35º – informação recolhida no sítio da internet do STJ, Dia da Proteção de Dados 2022”, acedido em www.stj.pt.
Desse modo, se erigiu como direito fundamental, o direito à autodeterminação informativa, com expressa consagração constitucional sob o art. 35º da Constituição da República Portuguesa.

A proteção do direito à autodeterminação informativa «abrange todos os poderes e faculdades que permitem garantir que a pessoa não é usada como fonte de informação para terceiros contra a sua vontade, podendo além disso controlar a informação que é fornecida e os termos e abrangência em que ela é tratada.» - Constituição da República Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2010, pág. 786.

Trata-se, assim, de «evitar que o indivíduo se transforme em simples objeto de informação, garantindo-lhe o domínio dos seus próprios dados ao permitir-lhe determinar o que podem (e até onde podem) os outros conhecer a seu respeito» - Catarina Sarmento e Castro, “Privacidade e Proteção dos Dados Pessoais em Rede”, na revista Direito da Sociedade da Informação, VII, 2008, pág. 95.

A proteção de dados obteve consagração na nossa lei ordinária com a L. 10/91, de 29/04, que criaria a Comissão Nacional de Proteção de Dados, ao mesmo tempo que criminalizava já muitas das condutas atentatórias da proteção de dados pessoais que são hoje punidas pela vigente L. 58/2019, de 08/08; esta lei revogou, por sua vez, a L. 67/98, de 26/10, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24/10/95, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dados pessoais e à livre circulação desses dados, que vigoraria entre 27/10/1998 e 08/08/2019 – art. 51º da L. 67/98 e arts. 66º/1 e 68º, da L. 58/2019.
É neste quadro, em que se desenham autonomamente os bens jurídicos do direito à autodeterminação e à proteção dos dados pessoais, numa projeção do direito fundamental à reserva da vida privada, que se insere a previsão criminal da violação do dever de segredo profissional.

Importa reter no que releva para o caso em mãos, que nessa previsão incriminadora cabe a quebra do sigilo profissional médico imposto por via dos diplomas que regulam a atividade médica e a sua deontologia.

Nessa dimensão, releva a Lei de Bases da Saúde aprovada pela L. 95/2019, de 04/09, que consagra o direito das pessoas «à proteção da saúde com respeito pelos princípios da igualdade, não discriminação, confidencialidade e privacidade»; - Base 2, 1-, a); estatuindo-se depois que a informação de saúde é propriedade da pessoa, afirma que «a circulação da informação de saúde deve ser assegurada com respeito pela segurança e proteção dos dados pessoais e da informação de saúde, pela interoperabilidade e interconexão dos sistemas dentro do SNS e pelo princípio da intervenção mínima.» - Base 15.

Estabelece, por fim, que «os profissionais de saúde, pela relevante função social que desempenham ao serviço das pessoas e da comunidade, estão sujeitos a deveres éticos e deontológicos acrescidos, nomeadamente a guardar sigilo profissional sobre a informação de que tomem conhecimento no exercício da sua atividade.» - Base 28, 2-.

Esse segredo profissional visa proteger a reserva da intimidade da vida privada - art. 139º/1 do Estatuto da Ordem dos Médicos aprovado pela L. 117/2015, de 31/08 (doravante EOM).

O segredo médico, como direito fundamental e inalienável de quem recorre aos serviços profissionais médicos, impõe-se, assim, em qualquer circunstância, abrangendo todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício da sua profissão ou por causa dela – art. 139º do EOM e arts. 29º e 30º/1 do Regulamento de Deontologia Médica, aprovado pelo Regulamento 707/2016, de 21/07 (doravante RDM).

Estão especialmente compreendidos no âmbito material do segredo profissional médico, nos termos dos arts. 139º/2 do EOM e 30º/2 do citado RDM:
«(…)
a)-Os factos revelados diretamente pela pessoa, por outrem a seu pedido ou por terceiro com quem tenha contactado durante a prestação de cuidados ou por causa dela;
b)-Os factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica do doente ou de terceiros;
c)-Os factos resultantes do conhecimento dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica referentes ao doente;
d)-Os factos comunicados por outro médico ou profissional de saúde, obrigado, quanto aos mesmos, a segredo.
(…)».

Por último, com relevo nesta matéria, importa ainda atentar no preceituado pelo art. 39º do RDM, nos termos do qual:
«1-A informação médica é a informação de saúde destinada a ser utilizada em prestações de cuidados ou tratamentos de saúde.
2-Entende-se por «processo clínico» qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação de saúde sobre doentes ou seus familiares.
3-Cada processo clínico deve conter toda a informação médica disponível que diga respeito ao doente.
4-A informação médica é inscrita no processo clínico pelo médico que tenha assistido o doente ou, sob a supervisão daquele, por outro profissional igualmente sujeito ao dever de segredo.
5-O processo clínico só pode ser consultado por médico incumbido da realização de prestações de saúde a favor do doente a que respeita ou, sob a supervisão daquele, por outro profissional de saúde obrigado a segredo e na medida do estritamente necessário à realização das mesmas, sem prejuízo da investigação epidemiológica, clínica ou genética que possa ser feita sobre os mesmos.».

2.3.4- Da verificação em concreto da nulidade da acusação quanto ao crime de violação de sigilo profissional

É, pois, a esta luz e enquadramento legal sistemático que deve interpretar-se o preceito incriminador aqui em causa e decidir se ocorre nulidade da acusação por falta de alegação dos factos integradores da obrigação de sigilo profissional enquanto elemento típico do crime de violação de sigilo profissional imputado ao arguido na acusação pública.
E é apenas esta a questão sobre a qual nos é dado debruçar, como começamos por definir.

Isto porque, como já referido, segundo a decisão recorrida:
«(…) não estão descritos na acusação factos de que resulte que o arguido estava obrigado a sigilo profissional relativamente à ora assistente - segundo a própria acusação nunca lhe prestou quaisquer cuidados médicos ou observação clínica que legitimassem o acesso à informação clínica da mesma que se encontrasse alojada nos registos informáticos dos hospitais CUF” -, pelo que, por não descrever factos que preencham todos os elementos típicos desse crime, encontrando-se a acusação nessa parte em violação do disposto no art. 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, é nessa medida nula.».
Nada mais do que isto fundamenta a decisão de declaração de nulidade parcial da acusação pública, ao contrário do que resulta do teor das respostas ao recurso apresentadas pelo Ministério Público e pelo arguido, que, literalmente, acrescentam a este fundamento, um outro fundamento de nulidade.
O Ministério Público fá-lo ostensivamente quando afirma não ser «(..) legítimo extrair que o Tribunal considera que a sujeição ao sigilo profissional depende da verificação de uma relação médico-paciente baseada num contacto directo, nem tem como pressuposto a prestação de cuidados médicos ou a observação clínica directa do paciente titular dos dados, mas antes, e porque o arguido não prestou cuidados médicos à assistente e esta não era sua paciente, desconhece-se que dados médicos foram supostamente partilhados, pois que também nesta parte a acusação é omissa.».
E continua, quando em seguida explicita:
«Se é verdade que no crime de violação de dever de sigilo é protegido o sigilo profissional, então para que se preencha o elemento objectivo do tipo haverá que identificar que informações clínicas concretas, de que especialidade e constantes em que módulos (já que na acusação se faz referência a que o arguido acedeu indevidamente a informações clínicas de diferente espécie — imagiologia, patologia clínica, psiquiatria) o arguido partilhou com o seu filho …, e em que circunstâncias de tempo, lugar e modo; o que se desconhece, pois a acusação as omite.
Tal omissão da narração dos elementos objectivos do tipo de crime de violação de dever de sigilo conduziu à conclusão por parte do Tribunal «a quo» de que a acusação deduzida nos autos não descreve todos os factos integradores de tal tipo de ilícito criminal e, como tal é nula, nesta parte, nos termos do disposto no art. 2830 no 3 al. b) do C.P.Penal.».

E é secundado pelo arguido que, na sua resposta, em linha com o Ministério Público, aduz:
« (…)
Como também não se encontra verificado o elemento do tipo em causa no que respeita à concreta divulgação, no todo ou em parte, de dados pessoais, pois que não se apurou no inquérito que o Recorrido tivesse alguma vez partilhado informações com o seu filho ……, então, ainda marido da Recorrente ou com qualquer outra pessoa.
Aliás, da Acusação consta que BB partilhou com ……. informações clínicas de AA (ponto 19) sem que minimamente identifique que concretas informações clínicas o Arguido teria partilhado com o seu filho …., e respeitantes à então mulher daquele, a AA.
E esta falta de identificação dos concretos factos que sustentam esta afirmação, densificando-a, foi declarada nula em sede instrutória, em obediência ao disposto no artigo 283 0 n. 3 alínea b) do Código de Processo Penal que impõe a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena (. . .)incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

(…)».

Pois bem.

Como resulta linear da leitura do trecho decisório objeto do recurso, em lado algum é mencionada como fundamento da declarada nulidade da acusação, a omissão de alegação dos factos densificadores da conduta típica de divulgação ou revelação de dados pessoais, nomeadamente por não serem identificadas as concretas informações reveladas pelo arguido ao seu filho, …..

Extravasando, assim, tal questão do objeto do presente recurso conforme acima o começamos por definir e delimitar, não sendo, manifestamente, a mesma de conhecimento oficioso, por não se enquadrar em qualquer das previsões do art. 410º/1 e 2 do Código de Processo Penal, não nos cabe dela conhecer.

Diga-se apenas brevemente que não colhe a tentativa do Ministério Público de despoletar esse conhecimento oficioso defendendo tratar-se de nulidade insanável.

Desde logo, em face do princípio da tipicidade das nulidades, em geral, consagrado no art. 118º do Código de Processo Penal, sendo no art. 119º para as nulidades insanáveis em particular, de conhecimento oficioso.

A nulidade da acusação nos termos do art. 283º/3 do Código de Processo Penal encontra-se prevista como uma nulidade comum, não como nulidade insanável.

É, assim, manifesto que a nulidade da acusação prevista no art. 283º/3 do Código de Processo Penal não configura nulidade insanável, de conhecimento oficioso na fase de instrução, sem prejuízo da rejeição liminar dessa acusação nos termos do art. 311º/2,a) e 3, d), na fase de julgamento, conforme acima explicitado – neste sentido o acórdão da Relação do Porto de 19/10/2022, relatado por Maria dos Prazeres Silva no processo 192/20.2T9MCN.P1, acessível em www.dgsi.pt.

De todo o modo, refira-se que essa alegação supostamente omissa, consta da conjugação do alegado em 15., 19. e 25. da acusação, sem qualquer contradição com os fundamentos do despacho de arquivamento, no qual se consigna expressamente: «Terá falado com …. sobre informações clínicas da assistente, ainda assim, não foi possível apurar informações obtidas por ….. através do pai que não lhe tivessem sido facultadas no período em que ….. e a assistente viveram como marido e mulher», pressupondo ter havido revelação dessas informações pelo arguido.
Mas mais: ao contrário do alegado pelo Ministério Público, parece-nos perfeitamente legítimo extrair desse trecho, como fez a assistente, «(…) que o Tribunal considera que a sujeição ao sigilo profissional depende da verificação de uma relação médico-paciente baseada num contacto directo (…) [tendo] como pressuposto a prestação de cuidados médicos ou a observação clínica directa do paciente titular dos dados.».

Foi também essa a interpretação do arguido em face da argumentação que expendeu na primeira parte da sua resposta ao recurso.

Não se divisando que outra leitura se possa fazer do conteúdo da decisão recorrida acima extratado: a acusação não contém a alegação dos factos dos quais resulte que o arguido estava obrigado a sigilo profissional relativamente à assistente porque o arguido nunca lhe prestou quaisquer cuidados médicos ou fez observação clínica da mesma que se encontrasse alojada nos registos informáticos dos hospitais CUF.

Ou seja, segundo o tribunal “a quo”, não basta para o preenchimento do elemento típico indicado supra em i) – estar o agente sujeito à obrigação de segredo profissional nos termos da lei –, a mera alegação desse facto propriamente dito.

Facto que, diga-se, se mostra descrito sob o ponto 22. da acusação e resultaria da simples invocação da qualidade de médico do arguido e da Lei que impõe aos médicos o dever de sigilo profissional.

De acordo com a decisão recorrida, seria ainda necessário que as informações acedidas e reveladas/divulgadas tivessem sido obtidas por quem lhes acedeu e as divulgou estando obrigado ao dever de segredo, através da prestação que houvesse feito de quaisquer cuidados médicos ou de observação clínica do titular da informação médica em causa.

Assim, só poderia cometer este crime algum dos médicos assistentes da assistente/recorrente e apenas em relação às concretas informações de saúde que na relação médico/doente aquela lhes tivesse respetivamente prestado.

Ora, uma tal interpretação restritiva deste segmento do tipo legal de crime não merece acolhimento, desde logo por não ter na letra da lei qualquer respaldo.

Na verdade, se, por um lado, estando em causa um chamado “crime de mão própria” em que o agente tem que estar investido de certas qualidades, no caso, estar obrigado por lei a segredo profissional, por outro lado, não se exige mais do que isso para que responda criminalmente uma vez praticada a conduta típica do crime de violação de segredo e verificados os factos atinentes à culpa.

Não é postulada, pois, qualquer ligação do agente obrigado ao segredo à recolha da informação sujeita a esse segredo, nomeadamente, que essa informação lhe haja sido confiada no seu exercício profissional.

É certo que existe uma remissão para a lei que prevê o dever de segredo profissional; porém, essa lei é expressa em afirmar que esse segredo se impõe «em todas as circunstâncias dado que resulta de um direito inalienável de todos os doentes», e ainda que abrange «todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício da sua profissão ou por causa dela»; de tal modo que estão aqui abrangidos também, os «factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica do doente ou de terceiro» e bem assim os «factos comunicados por outro médico ou profissional de saúde, obrigado, quanto aos mesmos, a segredo – art. 30º/1 e 2 do RDM.

Mais: a extensão subjetiva do dever de segredo resulta clara do disposto no art. 31º/1 do RDM nos termos do qual «Os médicos que trabalhem em unidades de saúde estão obrigados, singular e coletivamente, a guardar segredo médico quanto às informações que constem do processo individual do doente.», aqui declaradamente se pretendendo abranger todos os médicos a prestar serviço em determinada unidade independentemente da relação que tenham com o titular dos dados.

Estão, assim, sujeitos ao dever de sigilo profissional todos os médicos que obtenham conhecimento da informação clínica/médica de uma pessoa no contexto do exercício dessa sua profissão, independentemente de terem, ou não, uma qualquer relação profissional médico/paciente com o titular dessa informação.

Ora, em 23. da acusação consigna-se expressamente que o arguido se aproveitou do seu estatuto enquanto médico …. no Hospital CUF Descobertas para aceder à informação clínica da assistente existente nos arquivos daquela unidade hospitalar e dela tomar conhecimento.

Dito de outro modo: foi por ser médico que o arguido conseguiu aceder a informação respeitante à situação de saúde da assistente sujeita a sigilo profissional médico, pois que se não tivesse essa qualidade não teria acesso às bases de dados clínicas da unidade de saúde onde exercia a sua atividade profissional; por ter essa qualidade profissional e estar sujeito ao dever de sigilo, apesar de não estar legitimado a aceder-lhe, estava impedido de divulgar ou revelar essa informação.

Não pode, de resto, atribuir-se ao facto descrito em 24. da acusação – «bem sabendo que não o fazia por causa das suas funções» - o sentido subjacente ao raciocínio ensaiado na decisão recorrida, de estar desse modo o Ministério Público a excluir o dever de segredo sobre a informação assim acedida.

Na verdade, como resulta da frase em que está inserida tal asserção, pretende-se tão somente afirmar que não tinha o arguido legitimidade enquanto médico para aceder àquela informação por não haver razão profissional que o justificasse; o que não significa que, acedendo ilegitimamente à mesma, divulgando-a ou revelando-a em seguida, não incorra em violação do dever de segredo profissional e na prática do crime concernente previsto no art. 51º/1 da L. 58/2019, de 08/08, como entendeu o Ministério Público incorrer o arguido.

Em suma: o teor literal do tipo legal de crime de violação do dever de segredo imputado na acusação pública ao arguido não consente a interpretação restritiva feita na decisão recorrida, exigindo para verificação dos elementos típicos que a informação tenha sido acedida pelo médico de forma legítima por respeitar a cuidados médicos pelo mesmo prestados ou observação clínica em relação ao titular da informação.

E se é assim de um ponto de vista do elemento interpretativo literal, a conclusão não é diversa se atentarmos na ratio legis da norma, ou seja, na perspetiva do bem jurídico protegido pela mesma.

Trata-se de tipo legal de crime que, num dos seus elementos objetivos, remete para uma outra lei não penal – a que prevê o segredo profissional –, resultando da conjugação de ambas uma simbiose de tutela dos bens jurídicos do direito à privacidade e do direito de cada um a não ser usado como fonte de informação para terceiros contra a sua vontade, bem como de controlar a informação que é fornecida, no exercício de um verdadeiro direito de autodeterminação informativa.

Assim, contrariamente ao propugnado na resposta ao recurso apresentada pelo arguido, não é a tutela da relação de confiança doente/médico que é visada pelo tipo legal de crime de violação do dever de sigilo previsto pelo art. 51º/1 da L. 58/2019, de 08/08; esse é o foco da imposição do dever de segredo profissional a todos os médicos.

O foco da tutela visada é a proteção dos dados pessoais, como decorre da inserção sistemática do preceito incriminador na lei de proteção de dados pessoais, que tem por objeto a «proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados» - art. 1º da L. 58/2019, de 08/08.

Ora, a conduta descrita na acusação pública e que vem imputada ao arguido, não deixando de ser violadora do segredo profissional médico a que estava sujeito apenas por ter essa qualidade, atinge em cheio os bens jurídicos protegidos pelo crime de violação de dever de sigilo como previsto no art. 51º/1 da L. 58/2019, de 08/08, concretamente o direito à reserva da vida privada e o direito à autodeterminação informativa.

Em conclusão: ter um médico, obrigado em geral ao segredo profissional sobre a informação a que tem acesso pela sua qualidade de profissional da saúde, a revelar informação clínica de determinada pessoa, à qual teve acesso precisamente por ter aquela qualidade, é assim quanto basta para que, pressupostos todos os demais elementos típicos do crime de violação de segredo aqui em causa, atinja em cheio aqueles bens jurídicos.

Constando da acusação a afirmação desses concretos factos, mormente considerando o aí descrito em 1., 10., 11., 19. a 27., não enferma a mesma da nulidade diagnosticada na decisão recorrida, devendo a mesma nessa parte ser revogada, proferindo-se decisão de pronúncia também em relação ao crime de violação do dever de sigilo, previsto e punido pelo disposto no art. 51º/1 da L. 58/2019, de 08/08, sendo à data dos factos pelo art. 47º/1 da L. 67/98, de 26/10.

Assiste, por isso, razão à recorrente, devendo o recurso ser provido.


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III–DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e, em consequência:
- revogar a decisão instrutória recorrida na parte em que declarou a nulidade parcial da acusação;
- pronunciar ainda para julgamento em processo comum, por tribunal singular, BB, melhor identificado nos autos, pela prática de um crime de violação do dever de sigilo previsto e punido à data da prática dos factos pelo art. 47º/1 da L. 67/98, de 26/10, atualmente pelo art. 51º/1 da L. 58/2019, de 08/08.
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Sem custas.
Notifique.


Lisboa,3 de outubro de 2023



(Ana Cláudia Nogueira)
(Ester Pacheco dos Santos)
(Manuel José Ramos da Fonseca)