Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4395/03.6TDLSB.L1-5
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
CONSUMPÇÃO
BURLA AGRAVADA
FALSIFICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIAL
Sumário: I. Há pelo menos sete novos dados a impor a ultrapassagem da fixação da jurisprudência dos acórdãos do STJ quanto ao concurso de crimes de falsificação e burla.
II. Uma falsificação de escritos utilizados unicamente como meio de burlar alguém, está em concurso aparente (é consumida pelo) com o crime de burla (crime-fim), devendo a punição deste concurso ser encontrada na moldura penal mais grave, na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida da pena.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: V…, , foi condenado, por acórdão proferido no processo supra identificado, pela prática de: um crime de burla qualificada [art. 218/2a) do CP], na pena de 2 anos e 8 meses de prisão; e um crime de falsificação de documento [art. 256/1c) e e) e 3 do CP], na pena de 2 anos de prisão; em cúmulo jurídico, a pena conjunta foi fixada em 3 anos de prisão, suspensa pelo período de 3 anos.
Foi ainda condenado a pagar a Paulo J…, assistente e demandante nos autos, 79,81€ + 242€ + 79,81€ + 52,80€ + 7500€, tudo com juros de mora vencidos e vincendos e ainda a quantia que este vier a ter de pagar para extinguir a execução nº 1345/2001 que corre termos na 1ª Secção, do 1º Juízo do Tribunal Cível da comarca do Porto, a liquidar em execução de sentença.
O arguido tinha sido pronunciado junto com Maria A…, , por estes crime e ainda por um crime de uso de documento de identificação alheio [art. 261 do CP] entretanto declarado prescritos.
O arguido interpôs recurso deste acórdão, pedindo a sua revogação.
O MP, na 1ª instância, defendeu a improcedência do mesmo.
A Srª Procuradora-Geral-Adjunta neste Tribunal da Relação de Lisboa levantou a questão prévia da falta de indicação dos concretos pontos que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as demais referências impostas pelo nº. 4 do art. 412 do CPP.
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Não procede a questão prévia: os pontos de facto estão suficientemente precisados, como resulta das conclusões I e XI, e estão também indicadas as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida quanto àqueles pontos, sendo-o feito de modo suficientemente precisa e compreensível nas conclusões II a IX quanto aos indicados na I e nas conclusões XII a XIV quanto aos indicados na XI, aliás como se verá mais abaixo.
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Deixam-se consignados os factos que foram considerados como provados (com numeração colocada por este TRL para melhor referenciação) e não provados (por no caso interessarem – e também com numeração colocada por este TRL):
1. A arguida, e o assistente, trabalharam entre os anos de 1977 e 1998 na empresa seguradora multinacional “A…-A… Life”, sita na Avª da Liberdade, em Lisboa.
2. Enquanto colegas, e fruto das relações de confiança e amizade que foram estabelecendo, o assistente acedeu ao pedido daquela para ser seu fiador num empréstimo que pretendia contrair, para aquisição de um veículo automóvel.
3. Para tanto, facultou-lhe cópias do seu bilhete de identidade, do cartão de contribuinte, cópia de IRS, e outros, para que a arguida instruísse, junto da financeira, o processo para o empréstimo que pretendia contrair.
4. O arguido, com o apoio de outra pessoa que não se apurou, e que lhe facultou o acesso a cópias dos documentos supra referidos, pertencentes a Paulo D…, decidiram solicitar à “F…crédito, SA”, a concessão de um empréstimo, para financiar a aquisição de um veículo automóvel adquirido para este, no Stand denominado XXX - Comércio de Automóveis, Ldª, com sede em Avª……, em Cova da Piedade, Almada.
5. Foi então que, no dia 25/06/1999, o arguido preencheu e assinou o contrato de mútuo n.° ... no montante de 2.990.190$, com a F…crédito.
6. Nesse contrato, figurava como mutuário o arguido, e como avalista o assistente.
7. Pessoa não concretamente apurada, em execução do plano acordado com o arguido e com o conhecimento deste, apôs a assinatura de Paulo D…, como se tivesse sido aposta pelo próprio punho deste.
8. Ainda no âmbito desse contrato mútuo, pessoa não concretamente apurada, em execução do plano gizado com o arguido e com o conhecimento deste, fez constar o assistente, como subscritor da livrança, livrança essa no valor de 2.820.566$, emitida em 18/07/2000, e com vencimento em 18/08/2000, apondo ali a assinatura daquele, como se tivesse sido aposta pelo punho de Paulo D….
9. Em ambos os documentos, no contrato de mútuo e na livrança, a aposição da assinatura como sendo a de Paulo D…, visou convencerem o Banco da conformidade e veracidade da posição de outorgante/subscritor no contrato de financiamento e na livrança e da liquidez patrimonial deste para garantir a concessão do empréstimo.
10. Para o efeito, foram ainda usadas cópias dos documentos de identificação do Paulo D…, e outros de natureza fiscal e pessoal, designadamente, cópia do bilhete de identidade, do cartão de contribuinte, da declaração de IRS de 1997, depois juntas a esse contrato, sem o conhecimento e contra a vontade deste.
11. Pretendia, assim o arguido levar a “F…crédito” a conceder--lhe empréstimo para adquirir junto daquele Stand um veículo automóvel, o que conseguiu.
12. Para tanto, fizeram falsamente constar que o assistente era outorgante [corrige-se o lapso notório de se referir ‘mutuário’ quando se diz dizer outorgante no contrato… como avalista, como aliás resulta de 10 – alteração da responsabilidade deste ac. do TRL] e subscritor da livrança, podendo assim garantir as obrigações decorrentes do contrato e da livrança
13. Facto que levou a F…crédito”, em 28/06/1999, a depositar no BPSM, em Almada, a quantia de 1.895.350$, a favor do Stand XXX, Lda, que, por sua vez, entregou o veículo ao arguido.
14. Era propósito do arguido não cumprir as obrigações decorrentes do contrato e livrança, como não cumpriu, levando a que a F…crédito demandasse civilmente o assistente, como responsável solidário pelo pagamento das prestações inerentes ao empréstimo.
15. Com efeito, veio o assistente a ser executado na ação executiva para pagamento de quantia certa sob a forma ordinária, instaurada pela “F…crédito- SA”, a correr seus termos na 1ª secção do 1º juízo do Tribunal Cível da Comarca do Porto, sob o n.° 1345/ 2001.
16. Agiu o arguido livre deliberada e conscientemente.
17. Quis solicitar um pedido de financiamento, para tanto usando documentos que sabia conterem uma assinatura como sendo a de Paulo D..., o que bem sabia não corresponder à verdade.
18. Mais sabia o arguido que as cópias dos documentos pessoais e de identificação do assistente que serviram para instruir o pedido de financiamento à “F…crédito”, eram utilizadas sem o conhecimento e consentimento do seu titular, bem sabendo que com a sua conduta causaria um prejuízo ao assistente, correspondente ao valor do financiamento que aquele teria de suportar demandado que fosse pelo banco.
19. Bem sabendo que as assinaturas que constavam no mesmo como sendo as de Paulo D… haviam sido forjadas.
20. Em virtude da conduta do arguido, foi a “F…crédito” determinado a conceder o empréstimo, convencendo o empregado que organizou o processo de financiamento de que o suposto outorgante e subscritor da livrança tinha liquidez, assim obtendo um enriquecimento ilegítimo, como obtiveram, causando ao assistente um prejuízo patrimonial, pelo menos, no valor reclamado pela “F…crédito” na Execução.
21. Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente ciente da punibilidade da sua conduta.
22. O arguido vive com a companheira e uma filha menor.
23. O arguido não tem antecedentes criminais.
24. Em virtude da conduta do arguido, o assistente foi demandado em sede executiva para o pagamento da quantia de 2.946.019$, correspondente ao montante de capital originário (no valor de 2.820.566$, acrescido dos juros vencidos até à data da instauração da execução, em 30/08/2001, e do correspondente imposto de selo (no montante, respetivamente, de 120.627$ e de 4.825$).
25. Tal valor, reportado a 30/08/2001, monta hoje, com os juros entretanto vencidos (quantificados em 7.469,31€), em 22.164€, crescendo diariamente por força dos juros que diariamente se vencem à taxa legal em vigor, e que se vencerão até integral pagamento à “F…crédito, SA”, no âmbito da identificada lide cível executiva.
26. Em virtude da execução que lhe foi instaurada despendeu o demandante as seguintes quantias:
a) Da taxa de justiça já paga, em Outubro 2002, no âmbito da referida execução cível, no valor de 79,81€, valor esse cujos juros já vencidos montam em € 31,92, perfazendo atualmente o valor de 111,73€, a que acrescerão os juros vincendos até efetivo e integral pagamento;
b) Do custo das certidões judiciais que teve de obter para se defender no âmbito da referida execução cível, no valor já pago, em Outubro 2002, de 242€, valor esse cujos juros já vencidos montam em 96,80€, perfazendo atualmente o valor de 338,80€, a que acrescerão os juros vincendos até efetivo e integral pagamento;
c) Da taxa de justiça já paga, em Abril de 2003, no âmbito dos presentes autos criminais, no valor de 79,81€, valor esse cujos juros já vencidos montam em 27,93€, perfazendo atualmente o valor de 107,74€, a que acrescerão os juros vincendos até efetivo e integral pagamento;
d) Do custo das certidões judiciais que teve de obter para se defender no âmbito dos presentes autos criminais, no valor já pago, em Abril de 2003, de 52,80€, valor esse cujos juros já vencidos montam em 18,48€, perfazendo atualmente o valor de 71,28€, a que acrescerão os juros vincendos até efetivo e integral pagamento;
e) Do valor dos custos com os patrocínios judiciais no âmbito da referida execução cível bem como do presente processo-crime, em montante não concretamente apurado;
27. Em virtude da conduta do arguido o demandante viu as suas contas bancárias penhorados.
28. O demandante viu ser ordenada a penhora do vencimento, tendo a sua entidade patronal sido oficiada nesse sentido pelos Tribunais.
29. O demandante, em face das várias citações judiciais e penhoras de que foi alvo, teve de contratar serviços de patrocínio jurídico forense, tendo que custear tais serviços;
30. O comportamento do arguido criou uma forte pressão psicológica sobre o demandante, que lhe afetou gravemente a vida pessoal e familiar, tendo passado incómodos, sofrimentos e trans-tornos na sua vida quotidiana.
31. O demandante ainda não procedeu ao pagamento da quantia exequenda na execução supra referida, tendo deduzido embargos.
Factos não provados:
i) A arguida teve acesso aos documentos de identificação pessoal e oficial do assistente (Bilhete de Identidade, contribuinte, cheques, documentos fiscais, etc.), aproveitando-se da coincidência do local de trabalho, das relações de colegas de trabalho e da acessibilidade.
ii) A arguida fotocopiou-os para utilização posterior.
iii) Em poder das cópias dos documentos referidos, decidiu a arguida utilizá-los e levar a termo operações para a concessão de financiamento e outras, em benefício próprio e de terceiros.
iv) A arguida, conciliada com outros, nomeadamente com o arguido, forjou situações, sem conhecimento nem consentimento do autor, nas quais este mesmo autor figurava ora como subscritor, ora como fiador, ora como avalista de contratos de financiamento ou de mútuo.
v) A arguida, em conluio com o arguido, decidiu solicitar à “F…crédito – SA”, a concessão de um empréstimo (contrato de mútuo), para financiar a aquisição de um veículo automóvel para o arguido.
vi) A arguida facultou ao arguido as cópias dos documentos pessoais do assistente.
vii) A arguida disponibilizou as cópias dos documentos a terceira pessoa, sabendo que estas seriam utilizadas em operações de crédito por terceiros, sem o conhecimento e sem o consentimento do assistente.
ix) Em virtude da conduta dos arguidos o demandante recebeu contactos de inúmeros colegas e superiores, estupefactos com o teor dos ofícios judiciais que ordenavam a apreensão dos seus rendimentos, o que muito o incomodou.
x) As descritas citações e penhoras contribuíram mesmo para gerar uma imagem de suspeição e desconfiança acerca da honorabilidade e honestidade do autor, junto da banca, dos seus colegas e entidade patronal.
xi) O demandante em honorários ao seu advogado na sequência da execução que lhe foi instaurada já despendeu o montante de 3.988€.
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As conclusões do arguido são apresentadas à medida que forem sendo decididas:
I. Os pontos 4, 7, 8, 12, 13, 16, 17 e 18 dos factos provados foram incorretamente julgados no acórdão recorrido.
II. Das declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento não resultou qualquer prova concreta contra o arguido.
III. O que foi reconhecido pelo tribunal a quo ao afirmar que não existe prova concreta, pelo que, foi necessário recorrer às regras da experiência comum, nos termos previstos no art. 127 do CPP.
IV. O arguido não prestou declarações em sede de julgamento.
IV. O único facto concreto que serviu de base a toda a fundamentação do acórdão recorrido foi ter sido o arguido quem adquiriu a viatura automóvel objeto de financiamento bancário pela “F…crédito”, conforme documentos juntos aos autos.
V. Desses documentos, não seria possível dar como provados os factos constantes dos pontos elencados na conclusão I, supra.
Estas 6 conclusões giram, pois, à volta do seguinte: os pontos de facto que o arguido enumera teriam sido considerados provados sem existir prova concreta, mas apenas invocação das regras da experiência comum, conjugadas com o facto de ter sido o arguido quem adquiriu a viatura automóvel objeto de financiamento, conforme documentos juntos aos autos.
Antes de serem decididas, deixa-se ainda consignado a fundamentação da convicção do tribunal quanto aos factos, ou seja, a indicação da prova e a análise crítica dela (que se alinha para melhor referenciação):
A) Serviram de base para formar a convicção do tribunal, a análise critica e conjugada dos elementos probatórios a seguir enunciados, apreciados segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do art. 127 do CPP, exceto quanto aos exames periciais cujo valor probatório é o previsto no art. 163 do último diploma legal citado, em que o juízo técnico e científico constante de tais exames se presumem subtraído à livre apreciação do julgador:
B) Vale em matéria de apreciação da prova em processo pe-nal, não se tratando da prova “tarifada”, como é o caso, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127 do CPP. A apreciação da prova segundo esse princípio, não se traduz em livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, correspondendo, antes, a apreciação da prova de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinam uma convicção racional, objetivável e motivável. A livre apreciação da prova, consubstanciar-se-á nas regras da experiência e na livre convicção do julgador. As normas da experi-ência, no dizer do Prof. Cavaleiro Ferreira, “são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicer-çam, mas para além das quais têm validade”. A livre convicção, segundo o mesmo mestre “é o meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade”, portanto, “uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores”. Como define o art. 349 do Código Civil “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”, o que se apresenta de grande importância prática em relação a factos de que não há prova direta, como é o caso em apreço.
C) Postos estes considerandos prévios, há que salientar que o arguido, no exercício legítimo do seu direito, remeteu-se ao silêncio.
D) Já a arguida negou que tivesse alguma intervenção nos fatos em apreço. Reconheceu que trabalhou com o assistente na A…, e que na sequência de relação profissional que estabeleceu com este, teve na sua posse documentos pessoais e cópias de documentos pessoas do assistente, as quais lhe foram facultadas pelo próprio assistente e na sequência do contrato de financiamento para aquisição de um veículo automóvel, no qual o assistente aceitou ser seu fiador. Nesta parte o seu depoimento mostrou-se sustentado pelos diversos depoimentos das testemunhas e em particular pelo depoimento do assistente, o qual confirmou que, na sequência do hábito na empresa de ajudar os funcionários mais novos, se dispôs a ser fiador da arguida, na aquisição de um veículo automóvel, tendo na sequência desse contrato, a arguida ficado na posse de documentos seus. Da conjugação destes dois depoimentos, e pese embora os depoimentos das testemunhas, D…, Maria A… e Manuel C…, todos funcionários da “A…” e que deram conta que os documentos do demandante estavam facilmente acessíveis à arguida, ficou o tribunal convicto que as cópias dos documentos ficaram na posse na sequência do contrato para aquisição do referido veículo, e não porque a arguida os tenha sub-repticiamente tirado da posse do assistente e os tenha fotocopiado.
E) Mais referiu o assistente que tais cópias foram utilizadas pela arguida para a celebração de diversos negócios, pelos quais acabou por ser demandado civilmente para cumprir obrigações que a mesma subscreveu em seu nome, à sua revelia e sem o seu conhecimento, e nomeadamente, com a colaboração e em conluio com outros, nomeadamente, com L…. A arguida também negou estes factos, e quando questionada como teriam chegado as cópias dos documentos pessoais do assistente à posse do arguido, referiu não saber, alegando que guardou tais documentos em casa de uma amiga, a referida, L…. Questionada da razão porque os documentos ali foram guardados, a explicação dada pela arguida, por receio que a mãe os queimasse, pois esta não queria documentos da “A…” em sua casa, é no mínimo surreal, pois que não se descortina um único motivo que possa justificar que uma mãe, possa queimar documentação de trabalho de um filho, sendo que inquirida a mãe, a mesma referiu que não queimaria papéis da filha, embora não quisesse papéis da empresa em sua casa (com uma explicação também ela nada compreensível). Inquirida L…, esta negou que tivesse tais documentos em sua casa. É bem verdade que a testemunha L…, foi acusada num processo que corre termos em Setúbal, sendo que nesses autos, a arguida também está acusada, estando ambas acusadas da prática de crime de burla e falsificação, praticados em coautoria e tendo por vítima o ora assistente, e como objeto de falsificação a assinatura do ora assistente. Só que tal decisão ainda não se mostra transitada em julgado.
F) Mas mesmo que já se mostrasse transitada em julgada, as dúvidas, quanto aos factos em apreço nos autos, as dúvidas quanto à intervenção da arguida foram insanáveis. Com efeito e como já se referiu a arguida negou-os, o assistente nada presenciou, o arguido calou-se e L…, claro que também negou, negando conhecer o arguido. Nenhuma prova foi produzida que permitisse concluir que os arguidos se conheciam, que tinham amigos comuns, ou que em algum momento, contactaram entre si ou por interposta pessoa. Havendo a fundada suspeita que outras pessoas, com a conivência da arguida, tiveram acesso às cópias dos documentos do assistente, nada garante que tal pessoa ou tais pessoas, à revelia da arguida e sem o conhecimento desta, tenham entregue tais documentos ao arguido ou permitido o acesso deste a tais documentos e a sua utilização.
G) Assim e pese embora a inverosimilhança das explicações dadas pela arguida, o facto é que, em face das dúvidas suscitadas e ausência de prova segura que permitisse sanar tais dúvidas, o Tribunal em nome do princípio do in dubio pro reo, firmou por não provados dos factos inerentes à alegada intervenção da arguida.
Que dizer relativamente ao arguido:
H) Pese embora o arguido se tenha remetido ao silêncio, temos como inegável ter sido ele quem adquiriu o veículo e com recurso ao crédito da “F…crédito”. Tal resulta da documentação junta aos autos, não resultando prova de que as assinaturas que ali constam como tendo sido apostas pelo arguido não correspondam à verdade. Acresce que o veículo foi adquirido pelo arguido e por este utilizado em benefício próprio, o que foi confirmado ante o depoimento de L…, companheira do arguido e a testemunha Maria D…, avó do arguido, que confirmam que este adquiriu o veículo.
I) Ser-se fiador ou avalista de alguém, dizem-nos as regras da experiencia comum, pressupõe, ter-se uma relação com a pessoa afiançada ou avalizada. Logo, mesmo com a intervenção de um terceiro, ainda que amigo, custa a compreender, como poderia o arguido ter pensado, que uma pessoa que ele não conhecia, nem de nome, que nunca viu, com quem nunca falou, nem sequer por telefone, aceitasse ser seu avalista e sem que ambos tivessem trocado uma só palavra. Que garantia teria essa pessoa que o arguido cumpriria os seus compromissos para assumir tão importante obrigação e ante o valor em causa no negócio? Que garantias recebeu o arguido de que aquela pessoa efetivamente lhe tinha dado o aval, que estava de acordo. Receberia essa pessoa alguma contrapartida pelo risco assumido? Não sabemos e essa explicação não foi apresentada pelo arguido. Não é explicável minimamente, nem verosímil que o arguido, aceitasse que um desconhecido lhe prestava aval daquele modo. E se é bem verdade que não está o arguido obrigado a falar, nem está deste modo o tribunal a valorar em prejuízo do arguido, o silêncio. Estamos apenas a valorar, segundo as regras da experiencia comum, os factos que se apuraram, pois que outros factos não foram traduzidos ao conhecimento do tribunal que permitissem infirmar o que se conclui fazendo apelo as regras da experiencia comum.
J) Por todo o exposto, ficou o tribunal convicto que não podia o arguido deixar de saber que a pessoa que na proposta e na livrança figurava como avalista, não tinha prestado o seu aval. Mas mais, toda a conduta posterior do arguido reforça esta conclusão. Estando o arguido de boa-fé, perante o incumprimento das suas obrigações, pois apenas pagou quatro prestações, como decorre do documento de fls. 1006, por que razão o arguido não contactou logo o assistente, para pelo menos minimizar o valor em divida, porque não vendeu logo o veículo e pagou em grande parte o que devia? Toda a apurada conduta do arguido, não só firmou a convicção do Tribunal de que o mesmo estava ciente de usar documentos onde constava uma assinatura com uma declaração de prestação de aval, que não correspondia à verdade, como agiu, sabendo que eventualmente não podia cumprir as suas obrigações e que seria subsequentemente seria demandado o avalista, já que o arguido não podia deixar de saber as consequências da prestação de um aval.
L) Quanto aos factos inerentes ao pedido de indemnização civil que se firmaram provados atendeu o tribunal à prova documental junta aos autos, nomeadamente quanto ao pagamento e custo das taxas de justiça e certidões pagas e testemunhal, dando as testemunhas notícia do estado de ânimo do assistente em virtude quanto se viu confrontado com a pendência das ações executivas, já não se tendo provado que os superiores do assistente tenham sido demandados e que a sua imagem perante colegas ficou efetivamente abalada. De igual não foi feita prova testemunhal ou documental dos montantes que o demandante despendeu com o seu mandatário, na sequência exclusiva da demanda executiva instaurada em consequência da conduta do arguido.
Assim, mais precisamente, o tribunal utilizou, para prova daqueles pontos de factos colocados em causa pelo arguido: documentos, testemunhas e presunções judiciais (naturais, simples ou de experiência – ou seja, aquelas “que assentam no simples raciocínio de quem julga […]” inspiradas “nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana” Antunes Varela e Pires de Lima, anotação ao artigo 349 do CC, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982).
Como diz o acórdão do STJ de 31/01/2008, publicado sob o nº. 06P4805 da base de dados do ITIJ (= CJ.STJ.2008, tomo 1, págs. 209 e segs, mas aqui com várias omissões)
“são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125 do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto conhecido”: art. 349 do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir “prova direta” não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a “prova” (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127 do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extração – por presunção judicial – de ilações capazes de “firmar um facto desconhecido”.
No caso, o tribunal sabia que tinha sido o arguido quem tinha comprado o veículo e que o tinha feito com recurso ao crédito. E sabia-o com base em documentos, como se diz na 1ª parte de H), mas também como base no depoimento de duas testemunhas, como se diz na 2ª metade de H), testemunhas estas que ainda permitiram saber ao tribunal que o arguido tinha utilizado o veículo.
E, já que o arguido se calou em julgamento, o tribunal ainda sentiu a necessidade de esclarecer – ainda na 1ª parte de H) - que aqueles documentos estavam assinados pelo arguido pois que não há prova de que as assinaturas postas pelo arguido não correspondiam à verdade. Ou seja, dito de outro modo, entendeu que quem compra um veículo e o usa e que para o efeito recorre a crédito, é quem assina os documentos necessários para o efeito (aqueles que estão assinados com o seu nome). O que resulta evidente das regras da lógica e da experiência comum das coisas.
Sabendo isto tudo e sabendo também [como se diz em I)] que o assistente não tinha qualquer relação com o arguido - que ele não conhecia, nem de nome, que nunca viu, com quem nunca falou, nem sequer por telefone – como decorre dos outros factos, provados com base noutra prova – o tribunal baseou-se numa série de regras da experiência [consignadas, sob variada forma, em I) e em J)] para dizer que o arguido não podia deixar de ter conhecimento que a assinatura do suposto “avalista” estava falsificada: - ser-se avalista de alguém, pressupõe [quando não se trata de um aval prestado sem conhecimento do devedor… - o que não é o caso dos autos, já que o aval consta do próprio contrato] ter-se uma relação com a pessoa avalizada; - uma pessoa média não aceita que um perfeito desconhecido lhe preste aval; - uma pessoa de boa-fé não deixa de cumprir logo o contrato ao fim de quatro prestações sem circunstâncias fora do normal; - esse mesma pessoa de boa-fé, perante o incumprimento das suas obrigações avalizadas, tenta minimizar logo o valor em dívida; - um avalizado sabe, normalmente, as consequências da prestação de um aval.
Tudo isto é assim, realmente, e pode ser dito de outro maneira, seguindo-se o raciocínio do acórdão recorrido: quem se apresenta a celebrar um contrato, garante ter condições económicas para o cumprir; aquilo que aparece com origem numa das partes num contrato é presumivelmente do conhecimento desse contraente; quem dá, ao celebrar um contrato, alguém como eventual responsável pelo pagamento das suas dívidas, está a dizer que conhece esse garante e que este tem condições para assumir aquela responsabilidade. Seria, pois, um contrassenso admitir que alguém dá um garante do seu cumprimento sem que o conheça e sem que conheça as circunstâncias da assunção dessa eventual responsabilidade.
A apontar neste sentido, existe ainda o seguinte: o comportamento de alguém que, pouco depois da celebração do contrato avalizado, deixa de cumprir o mesmo e nada faz para resolver a situação, revela uma completa indiferença em relação à pessoa e sorte do avalista que, neste conjunto de circunstâncias, só é explicada pelo conhecimento da falsificação da assinatura deste.
Considera-se, pois, que o tribunal tinha prova bastante – concreta, sendo que o tribunal nunca disse, ao contrário do que o arguido alega, não ter prova concreta; o que o tribunal disse foi não haver prova direta - para ter formado a sua convicção como a formou relativamente aos pontos de facto que o arguido põe em causa nestas conclusões.
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VI. Nomeadamente, o "aparecimento" de uma terceira pessoa que terá coadjuvado o arguido na prática dos ilícitos criminais pelos quais foi condenado, factos esses não constantes do despacho de pronúncia.
VII. As regras da experiência comum não podem justificar a introdução em sede de sentença de factos novos.
VIII. Mais, se o arguido se remeteu ao silêncio e se ninguém mencionou a existência de quaisquer outras pessoas envolvidas nos factos, além dos arguidos, de que forma se poderá dar como provado que "...pessoa não concretamente apurada, em execução de plano gizado com o arguido e com o conhecimento deste ...
O recorrente esquece-se que a acusação/pronúncia se referia a dois arguidos, dizendo que ambos estavam em conluio um com o outro. Quando o acórdão recorrido fala em pessoa não concretamente apurada, está a sub-rogar, por falta de prova, à arguida, pessoa não identificada. O tribunal convenceu-se do conluio, mas não tem prova suficiente que um dos conluiados fosse a arguida. Por isso, disse que se tratou de um conluio entre o arguido e pessoa não identificada. Em processo civil (ou no processo de querela do CPP de 1929: arts. 468, 469 e 493 a 514 e, por exemplo, ac. do TRE de 07/05/1975, sumariado no BMJ 247/221, citado em Maia Gonçalves, CPP29, 6ª edição, Almedina, 1984), falar-se-ia numa resposta restritiva ao quesito: perguntava-se se tinha sido a arguida e o arguido. Responde-se que foi uma pessoa não concretamente apurada e o arguido. Há uma restrição nos factos, não a introdução de novos factos. Daí os factos dados como não provados (e daí que os mesmos tenham sido consignados neste acórdão). Quanto à fundamentação da prova do conluio, ou seja, da atuação de outra pessoa que não apenas o arguido, resulta clara da fundamentação aduzida pelo tribunal para dizer que não sabe se foi a arguida que fez aquilo de que era acusada. Pois que, do que aí se escreve, decorre que os factos não podiam ter sido praticados pelo arguido. Tinha que haver outra pessoa. A tal que não foi possível identificar em concreto.
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IX. Pelo que, existiu erro de julgamento da matéria de facto dada como provada nos pontos 4, 7, 8, 12, 13, 16, 17 e 18, devendo ser considerados tais factos como não provados e consequentemente ser o arguido absolvido dos crimes de burla qualificada e falsificação agravada.
Esta conclusão faz a síntese dos dois conjuntos anteriores de conclusões, pelo que as questões que colocaria já estão resolvidas.
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X. Caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese se concebe, face à insuficiência de provas que legitimem a condenação do arguido, sempre seria de aplicar o princípio do in dubio pro reo, pois que, na dúvida deve-se sempre decidir a favor do arguido e não contra, como aconteceu nos presentes autos.
Esta conclusão fica prejudicada pela resolução das anteriores, visto que desta já resulta que o tribunal não ficou em dúvida sobre os factos, pelo que não tinha que aplicar o princípio invocado pelo recorrente.
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XI. Igualmente, os pontos 26 e 27, da matéria de facto dada como provada foram erradamente julgados.
XII. A este propósito é esclarecedor o depoimento do assistente/demandante, o qual prestou declarações na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 25/11/2009, as quais se encontram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal desde 00:00 a 19:55, conforme consta da respetiva ata da audiência, supra referida.
XIXI. A instâncias do mandatário do assistente:
Advg: já alguma vez nestes processos lhe foi penhorada alguma quantia?
Assist: já, já me foi penhorada.
Advg: conta bancária?
Assist: neste processo específico não...
XIV. Refere o assistente a instâncias do defensor oficioso da coarguida:
Advg: neste processo, em particular, ou neste contrato em particular, já pagou alguma coisa?
Assist: neste processo?
Advog: neste processo executivo, esse lá no Porto?
Assist: deste carro? Não, pagar, pagar, não paguei nada.
XV. Concluindo-se que, também, nestes dois pontos existiu erro de julgamento da matéria de facto, devendo, consequentemente, ser considerados como não provados.
Em L) da sua fundamentação, o acórdão recorrido invoca documentos para prova do, entre outros, ponto 26. E esses documentos não deixam dúvidas sobre o pagamento desses valores. A resposta negativa do assistente explica-se porque se estava a referir ao pagamento do carro. Do carro ele não pagou nada. O que não quer dizer que não tenha tido que fazer aquelas despesas que constam do ponto 26.
Já quanto ao ponto 27, pode-se entender que houve confusão na redação do mesmo: eventualmente, até pode ter sido ordenada a penhora de contas bancárias (aliás, veja-se que os pontos de facto 28 e 29 não são postos em causa pelo arguido), questão diferente é se as contas chegaram a ser penhoradas. Ora, não constando dos autos qualquer prova documental da ordem daquelas penhoras, nem da efetivação das mesmas, e tendo o arguido transcrito, sem tal ter sido posto em causa, o que o assistente disse sobre o assunto, que não comprova a existência de contas bancárias penhoradas, entende-se que o ponto 27 deve ser suprimido, por falta de prova, sem que, e isso é desde já evidente, tal tenha qualquer reflexo na decisão crime (até porque diz respeito ao pedido cível conexo).
Em suma, o ponto 27 será suprimido, em consequência da procedência parcial desta conclusão.
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XVI. Por outro lado, o acórdão recorrido não se encontra assinado por todos os elementos do Tribunal.
XVII. O que era exigível, nos termos do disposto no art. 374/3e) do CPP, o que constitui irregularidade.
O acórdão recorrido mostra-se assinado por todos os três juízes do coletivo e o recorrente não junta qualquer prova documental do contrário. Assim, a admitir-se, de qualquer modo, que o acórdão possa ter sido fotocopiado, para entrega ao recorrente [normalmente tal acontece por cortesia], sem a assinatura dos três juízes, a questão já está ultrapassada [é certo que, a ter sido aposta mais tarde a assinatura em causa, quem a apôs devia ter feito menção de que a estava a assinar depois do momento devido (art. 668/2 do CPC, aplicável por força do art. 4 do CPP); mas pode ter decorrido tão pouco tempo até que tal acontecesse, que nem sequer se terá sentido a necessidade de se fazer constar a menção do atraso, o que é perfeitamente compreensível].
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XVIII. O acórdão recorrido condenou o arguido por factos diversos dos constantes do despacho de pronúncia.
XIX. Como supra se explanou os pontos 4, 7, 8, 12, 13, 16, 17 e 18 dos factos provados, contém factos novos não constantes do despacho de pronúncia.
XX. A ter-se considerado que existiam factos novos, não foi cumprido o disposto no art. 358 do CPP.
A questão já foi resolvida acima. Houve uma restrição dos factos, não uma introdução de factos.
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XXI. Mais, na escolha e determinação das medidas concretas das penas (ponto IV do acórdão), refere-se que, o arguido teria cometido o crime de falsificação utilizando cheques falsificados.
XXII - Pelo que, o acórdão recorrido é nulo, em virtude de ter condenado o arguido por factos diversos dos constantes do despacho de pronúncia, nos termos previstos no art. 379/1b) do CPP.
Trata-se de um erro material irrelevante [outros poderiam ter sido alegados, tal como a referência a peculato… É sempre fácil encontrar erros materiais. O que importa é demonstrar a sua relevância].
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XXIII - Na data da prática dos factos o arguido tinha 19 anos de idade, pelo que, dever-lhe-ia ter sido aplicado o regime especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, aprovado pelo Dec. Lei 401/82, de 23/09.
XXIV. Tal aplicação é de conhecimento oficioso, não constituindo uma mera faculdade do juiz, mas antes um poder-dever, sendo certo que, o acórdão recorrido é completamente omisso relativamente à aplicação deste regime.
XXV. A não consideração da aplicabilidade do regime especial para jovens constitui nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379/1c) do CPP.
XXVI - Igualmente, estamos perante uma situação de falta de fundamentação do acórdão recorrido, exigível pelo art. 374/2 do CPP, que é cominada de nulidade pelo n.º 1 do art. 379 do CPP.
A leitura das normas dos artigos 4, 5 e 6 do Dec. Lei 401/82, de 23/09, não é linear.
Toda a jurisprudência, salvo algum acórdão que se desconhece, tem entendido, implicitamente ou mesmo explicitamente (é o caso dos acórdãos do STJ, ambos do mesmo relator, um de 09/05/2002, publicado sob o nº. 02P628, e outro de 12/02/2004, publicado sob o nº. 04P218) que a pena aplicável a que se refere aquele art. 4 é a pena abstrata e não a pena concreta.
Quanto aos arts. 5 e 6 daquele Dec. Lei, eles raramente são aplicados, mas têm sido vistos como normas que preveem penas de substituição de penas concretas (assim, por exemplo, António Carlos Duarte-Fonseca, Interatividade entre penas e medidas tutelares - contributo para a (re)definição da política criminal relativamente a jovens adultos, na RPCC 2001, págs. 251 e segs, especialmente págs. 268 a 270 e 280 a 284).
No entanto, Taipa de Carvalho, no seu Direito Penal, Parte Geral, vol. II, Porto, 2004, PUC, págs. 314 a 316, entende que quer o art. 4 quer os artigos 5 e 6 daquele Dec.-Lei dizem respeito à pena concreta e não à pena legal, e a sistematização, as expressões e as citações utilizadas por Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do CP, Dez2008, pág. 107, anotações 7 e 8, indiciam que é da mesma opinião.
No entanto, como não tem sido este o entendimento seguido por toda a jurisprudência e a norma do art. 4 é mais facilmente adaptável ao sistema no seu todo se for lida como dizendo respeito à pena abstrata, para já vai--se continuar a seguir aquele entendimento generalizado.
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Assim, quanto à atenuação especial aplicável aos jovens adultos o acórdão recorrida de facto nada diz mas, como o arguido tinha à data menos de 20 anos, tinha que ter dito, mesmo que fosse para a afastar.
Não o tendo feito, omitiu, realmente, decisão sobre uma questão que devia conhecer, levando a um erro de julgamento que tem sido qualificado como nulidade do art. 379/1c), 1ª alternativa, do CPP, que é de conhecimento oficioso (neste sentido, por exemplo, vejam-se os acs. do STJ de 21/6/2007 sob o nº. 07P2059; e do STJ de 14/05/2009, publicado sob o nº 09P0096 da base de dados do ITIJ).
Note-se, no entanto, que, no fundo, quando o juiz aplica uma pena a um jovem adulto de menos de 21 sem fazer referência a tal regime, o que se verifica é um erro de direito [nesse sentido, em dois casos paralelos, Figueiredo Dias (As Consequências…, págs. 345 e 364) fala de erro de direito, e o ac. do STJ de 14/05/2009 refere acórdãos que sobre a questão seguem a posição de Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Maio/Julho 1996, Lex, pág. 181 que também fala num erro de julgamento e não de procedimento; no entanto, este autor adere à posição contrária, na 2ª edição dos seus estudos, 1997, pág. 220] que, por isso, pode ser corrigido pelo tribunal de recurso quando na sentença houver elementos suficientes para o efeito, como é o caso (neste sentido, veja-se o ac. do TRL de 26/06/2006, no processo 3759/06, sumariado na base de dados da PGDL: […] tem razão o recorrente quando se refere à omissão de pronúncia da sentença sobre a aplicação do regime instituído pelo Dec. Lei 401/82, de 23/09 - o que configura a nulidade prevista no art. 379/1c) do CPP, conforme posição há muito consolidada no STJ. Tal nulidade foi arguida tempestivamente, por via de recurso e não se mostra sanada. No entanto aquela nulidade pode ser sanada pelo tribunal superior (de recurso) por se tratar de matéria de direito e a decisão conter todos os elementos fácticos indispensáveis à sua ponderação e aplicação).
Ora, no caso estamos perante um indivíduo que ainda não tinha 20 anos e que hoje (mais de 10 anos decorridos) ainda não tem antecedentes criminais e vive com uma companheira e uma filha menor.
Pode-se assim concluir que se trata de uma pessoa razoavelmente inserida na sociedade, em relação à qual, uma pena de prisão da gravidade da que foi aplicada, mesmo que suspensa, poderá vir a pôr em causa a sua inserção social (quer a nível de CRC para efeitos de emprego, quer a nível de antecedentes criminais em caso de novo crime).
Pelo que lhe deve ser aplicada a atenuação especial em causa (indo mais longe, veja-se Taipa de Carvalho, obra citada, pág. 314, que diz que “o tribunal deve optar, como regra, pela atenuação especial, e que a recusa da atenuação especial deverá ser devidamente fundamentada”; ora, se assim fosse, o tribunal, no caso, nada poderia invocar contra o arguido).
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XXVII. Acresce que, também existe omissão de pronúncia relativamente às condições pessoais e económicas do arguido que não foram objeto de qualquer consideração por parte do tribunal a quo, o que também constitui nulidade nos termos do disposto no art. 379/1c).
Não tem razão o arguido. O tribunal deu como provados alguns factos sobre as condições pessoais do arguido e se quanto às económicas nada disse a questão também não se lhe punha, visto que não aplicou uma pena de multa. De resto, o arguido nada alegava na contestação quanto a tais condições económicas, nem disse que algo ficou provado a esse propósito, pelo que não há nada a censurar ao acórdão recorrido quanto a isso.
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XXVIII. O erro ou engano, elemento objetivo do crime de burla, tem que se verificar na esfera da vítima.
XXIX. No caso presente, a vítima é o assistente.
XXX. Ora, o acórdão recorrido entendeu que o engano se verificou relativamente ao banco financiador da aquisição do veículo e não relativamente à vítima.
Não tem razão, evidentemente, o arguido. O erro, necessariamente, tem de se verificar no enganado. A vítima é o prejudicado patrimonialmente (no mesmo sentido, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CP, nota 3, pág. 599, Dez 2008, UCP) e a lei (art. 217/1 do CP) admite que esse prejuízo ocorra em esfera jurídica diferente do enganado. Pode haver assim um só enganado e um, dois ou mais prejudicados (vítimas…). E no caso dos autos há, pelo menos, alguém que foi simultaneamente enganado e prejudicado, que é a entidade financeira que emprestou o dinheiro. Sendo que não interessa aprofundar qualquer questão de eventual falta de legitimidade para a queixa, visto que os crimes pelos quais o arguido foi condenado são públicos…
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XXXI. Mais, entende o recorrente que não se verificou qualquer prejuízo patrimonial, nem para a vítima/assistente, nem para terceiros.
XXXII. Uma vez que, o assistente nada pagou na ação executiva que corre os seus termos na 1ª Secção do 1.3 Juízo do Tribunal Cível da Comarca do Porto, sob o n.º 1345/2001.
XXXIII. Só depois de findo tal processo, se poderá averiguar se existiu prejuízo patrimonial para o assistente ou para o banco financiador.
XXXIV. Até lá, os embargos deduzidos pelo assistente po-dem ser considerados procedentes e o arguido poderá proceder ao pagamento da dívida exequenda ao banco financiador.
O prejuízo patrimonial, direto, verificou-se na esfera da sociedade financeira que emprestou o dinheiro. O crime consumou-se com a saída da disponibilidade de tal sociedade do dinheiro mutuado. Se existiu também prejuízo na esfera do assistente é questão que não interessa quanto ao preenchimento do ilícito-típico, no caso, nem quanto ao apenso cível, por não ter sido interposto recurso da parte cível.
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XXXV. Pelo que, não se encontram preenchidos os elementos objetivos do tipo legal da burla, nomeadamente, o erro ou engano sobre a vítima e o prejuízo patrimonial.
Resume os anteriores dois conjuntos de conclusões, pelo que não tem conteúdo útil.
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A procedência das conclusões quanto à atenuação especial da pena, por força do art. 4 do Dec. Lei 401/82, implica necessariamente o refazer da medida da pena aplicada.
Mas, para além disso, coloca-se ainda a questão do concurso de crimes (segue-se aqui a posição assumida no voto de vencido publicado no ac. deste TRL de 15/12/2009, publicado sob o nº. 7865/08-5 na base de dados do ITIJ, embora se acrescentem referências).
Face aos factos dados como provados, o crime de falsificação cometido pelo arguido foi o meio com que cometeu o crime de burla. E apenas com o fim de cometer o crime de burla é que falsificou (e usou) os documentos que não serviram para mais nenhum efeito.
Ora, este crime-meio, nestas circunstâncias, não deve ser punido em concurso efetivo com o crime-fim. O crime-meio deve servir apenas de fator de agravação da pena dentro da moldura com que deva ser punido o crime de burla, com o qual está em concurso aparente.
A punição autónoma do crime de falsificação, representaria uma dupla valoração dos factos respetivos, ora como factos integradores do crime de burla, ora como factos integradores do crime de falsificação, o que é constitucionalmente inadmissível.
É esta a posição atual de Figueiredo Dias (tornada pública desde Agosto de 2007 – o estudo que lhe deu origem só em Set2009 foi publicado: Unidade e pluralidade de crimes: «Ou sont les neiges d' antan?" contido nos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves - Vol. III Direito Público, Direito Penal e História do Direito, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, 92, Dez2008), que se entende seguir, contra a doutrina firmada nos dois acórdãos de uniformização de jurisprudência do STJ: o publicado no DR I de 9/4/1992 e o de 4/5/2000, publicado no DR I de 23/5/2000 que reafirmou, no âmbito da vigência da redação de 1995 do CP, a jurisprudência que já tinha sido fixada no ac. anterior.
Desde que o último destes acórdãos foi publicado, surgiram pelo menos sete novos dados que servem de fundamentação suficiente da divergência relativamente àqueles acórdãos de fixação de jurisprudência (art. 445/3 do CPP).
Um é a anotação de Helena Moniz publicada na RDCC 2000/3/457 àquele ac. de 2000, em que a autora mantém a posição contrária que já tinha assumido na sua tese de mestrado.
Outro é uma pequena nota de Figueiredo Dias, no Comentário Co-nimbricense do CP, Coimbra Editora, Tomo II, 1999, págs. 109/110 (que terá de ser interpretada com as devidas adaptações, pois que o autor está a falar do concurso entre o abuso de confiança e a falsificação): “Quanto à possibilidade de concurso efetivo com o crime de falsificação, a nossa jurisprudência tem tendido decisivamente (louvando-se as mais das vezes numa interpretação rígida do pensamento básico de Eduardo Correia em matéria de concurso de crimes e, consequentemente, do art. 30/1) para o afirmar. O problema não é específico do crime de abuso de confiança (podendo porventura em termos substancialmente idênticos pôr-se para outros crimes patrimoniais, maxime o de burla), mas do crime de falsificação. Sempre se adiantará no entanto que a solução do concurso aparente (porventura ligado à figura da consunção e, em especial, do facto prévio não punível) não nos parece afastada naqueles casos em que a falsificação tenha esgotado o seu sentido – e o seu dano material – na sua estrita utilização como meio de alcançar a inversão do título e a consequente apropriação”.
Um terceiro é a posição tomada por Figueiredo Dias e Costa Andrade quanto ao concurso aparente entre o crime de fraude fiscal (crime de falsidade) e a burla (O crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Penal Tributário Português: Considerações sobre a Factualidade Típica e o Concurso de Infrações, na RPCC, 1996, págs. 71 e segs) que haveria a tentação de considerar transferível para o domínio do direito penal comum, como o entendeu Luís Duarte D’Almeida, no seu O “Concurso de Normas” em Direito Penal, Almedina, Março de 2004, págs. 71/73, e Helena Moniz, no já referido comentário. Note-se entretanto que Costa Andrade esclareceu que não o entende assim (nota 47, da pág. 347, do seu estudo sobre A Fraude Fiscal – Dez anos depois, ainda um “crime de resultado cortado”, publicado na RLJ 135/3939). Ou seja, que o facto de defender a tese do concurso aparente no âmbito do direito penal tributário não quer dizer que a mesma tese seja defensável no direito penal comum.
O quarto dado é a posição do referido Luís Duarte D’Almeida que, depois de negar a existência de concurso aparente de normas, já que tudo é uma questão de aplicabilidade externa da lei (como resultado de uma operação de individuação normativa: pág. 19), defende que a punição pelo regime do concurso efetivo de crimes (de falsificação e de burla) é excessiva, propondo que seja punido, tal concurso, de forma mais benévola, como continuação criminosa, desde que haja entre os dois crimes uma certa conexão objetiva e subjetiva (págs. 106/127).
O quinto é a referida posição de Figueiredo Dias, na nova edição das suas lições Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª edição, Agosto de 2007, em que este Professor expõe, a págs. 1018/1019, §§21 e 22, de forma nova e fundamentada, a sua adesão expressa à tese do concurso aparente entre burla e falsificação com a intenção de burlar exclusivamente uma determinada pessoa, porque há no comportamento global um sentido de ilicitude absolutamente dominante ou mesmo único que permite a sua recondução jurídico-penal à unidade do facto, de acordo com uma construção doutrinal completa do concurso de crimes em que, finalmente, se rebate a ideia, que está na base daqueles acórdãos, de que, havendo mais do que um bem jurídico violado, há necessariamente sempre um concurso efetivo de crimes (págs. 1011 a 1027).
Ou seja, nesta nova edição, com vários capítulos novos, três deles sob um título dedicado ao concurso, obra que começa a ser “recebida” agora, Figueiredo Dias esclarece, primeiro, o seguinte (págs. 990/991):
[…] haverá que começar por determinar se uma pluralidade de normas ou de leis incriminadoras convocadas em abstrato por um certo conteúdo de ilícito são concretamente aplicáveis umas ao lado das outras [=> concurso de crimes: cap. 43] ou se, diferentemente, há uma(s) norma(s) que prevalece(m) sobre a(s) outra(s) e exclui(em) por conseguinte a sua aplicação [=> unidade de lei =>cap. 42: é aqui que se põem as questões da especialidade e subsidiariedade].
Se [num segundo momento…] face às normas concreta e efetivamente aplicáveis, vários tipos legais se encontrarem preenchidos pelo comportamento global haverá concurso, mas não necessariamente concurso efetivo, pois pode ser aparente. Se apenas um tipo legal foi preenchido, será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível, presunção que pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente [=> cap. 43].
Ou seja, Figueiredo Dias deixa hoje claro que o concurso aparente nada tem a ver com um concurso de normas ou de leis, que não existe; e que não se deve falar de concurso de normas, pois o que há é unidade de lei: as operações de natureza lógico-conceitual da subsidiariedade e da especialidade vão apurar que apenas uma das normas é aplicável. Quando se fala de concurso aparente, de crimes, já se passou aquela primeira operação (veja-se pág. 992).
E, neste sentido, há hoje coincidência com o que é defendido por Luís Duarte D’Almeida, na obra já referida, por exemplo (págs. 129 e 131):
Não há qualquer “concurso de normas” se coube apenas selecionar, para verificação subsuntiva de aplicabilidade interna, um tipo legal de crime. […] “Concurso de normas”, por isto tudo, é coisa que não existe.
Num segundo momento, isto é, depois de se concluir que há um concurso de crimes, que há duas normas penais que têm de ser aplicadas, é que se coloca a questão do concurso ser efetivo ou aparente e aí (de novo Figueiredo Dias, obra citada, pág. 989):
é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta aceção, de crimes. Ou seja, há concurso de crimes em todos os casos em que o comportamento global do agente preenche mais que um tipo legal – ou o mesmo tipo legal várias vezes – concretamente aplicáveis.
Desta circunstância não resulta por necessidade que o tratamento unitário de toda a categoria deva ser unitário e submetido, em termos de punição, à pena conjunta do art. 77. Uma tal solução não é compatível com aqueles casos, embora tecnicamente de concurso, em que os conteúdos de ilícito – segundo o seu sentido no contexto do comportamento global – se intercetam parcialmente em maior ou menor medida.
Há pois dois grupos de casos (pág. 990):
- o caso normal em que os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis – hipótese a que chamaremos de concurso efetiva (art. 30/1), próprio ou puro;
- e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efetivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de licitude, que a ele corresponde uma preponderante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados – hipóteses que chamamos de concurso aparente, impróprio ou impuro.
Com a consequência de que só para o primeiro grupo de hipóteses deverá ter lugar uma punição nos termos do art. 77, enquanto para o segundo deverá intervir uma punição encontrada na moldura penal cabida ao tipo legal que incorpora o sentido dominante do ilícito e na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida da pena.
Dito de outro modo (pág. 1011):
A pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global [ou seja, ultrapassada a questão da unidade da lei, isto é, as questões da especialidade e da subsidiariedade] constitui sintoma legítimo ou presunção prima facie de uma pluralidade de sentidos de ilícito autónomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso de crimes efetivo, puro ou próprio. Casos existem, no entanto, em que uma tal presunção pode ser elidida porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas -, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o art. 77.
E dá o seguinte exemplo (pág. 1012, §12):
[…] Devem ser igualmente tratados – em termos de forma de punição, é claro – A, que em múltiplos dias, pela noite, mata, fere gravemente ou viola sexualmente diversas vítimas; e B, que falsifica um documento com a intenção de burlar (como vem de facto a suceder) exclusivamente uma determinada pessoa? […] Não será aventuroso avançar que a avaliação teleológica-normativa dos casos em termos de unidade ou pluralidade do facto global é diferente, pese embora a circunstância que deve reconhecer-se, de em qualquer deles se verificar uma pluralidade de violações de tipos legais de crime concretamente aplicáveis. E é diferente, insistimos, porque os sentidos de ilicitude revelados pela conduta global de A […] são em definitivo plúrimos (concurso efetivo), enquanto relativamente a B […] há no comportamento global um sentido de ilicitude absolutamente dominante ou mesmo único que permite a sua recondução jurídico-penal à unidade do facto (concurso aparente).
E mais à frente (pág. 1018/1019):
§21. O critério acabado de apresentar parece possuir virtualidades bastantes para abranger todos aqueles casos de relacionamento entre um ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente. Por outras palavras, aqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos. Parece aqui particularmente claro – […] – que uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração; enquanto, do outro lado, a sua consideração como conformadora de um concurso impuro não viola o mandamento (também ele jurídico-constitucional) de esgotante apreciação porquanto ele deverá influenciar a medida da pena do concurso (infra, §56). Impõe-se, por isso, a conclusão de princípio favorável a um concurso aparente. Sem que importe, uma vez mais, a existência ou não de uma conexão objetiva (parentesco dos bens jurídicos violados) ou subjetiva (unidade ou pluralidade de resoluções) entre os tipos legais violados pelo comportamento global.
§22. A questão mais vivamente discutida neste enquadramento tem sido a da relação entre uma falsificação de escrito utilizada unicamente como meio de burlar alguém; questão que, desde há muito, divide irremediavelmente a doutrina e a jurisprudência portuguesas. Não temos qualquer dúvida em convir, por via de princípio e só por ela – tudo dependendo, em última palavra, da configuração no caso concretos dos ilícitos singulares concorrentes face ao sentido social do ilícito global – na solução do concurso aparente. Nesse sentido falam duas considerações fundamentais: a de o ato de falsificação ser levado a cabo unicamente no contexto situacional da realização do crime-fim e de nele esgotar a sua danosidade social; e a de a falsificação constituir já uma parte do ilícito da burla, pelo que a autonomização do conteúdo de ilícito daquele significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto (33). Problema discutível pode ser o de saber se isto é assim suposta a unidade de resolução, ou se ainda poderá abranger hipóteses de dupla resolução, eventualmente espaçadas no tempo (34). Cremos exata, para certas constelações, esta segunda alternativa: se alguém toma a decisão de fabricar documento falso para se, proporcionando-se a situação, burlar com ele alguém; e se esta eventualidade se verifica mais tarde relativamente a uma certa vítima, implicando assim uma segunda resolução ou uma renovação da resolução anterior, ainda aí parece deverem ser os princípios do concurso impuro que devem reger a situação. Ponto é sempre, naturalmente, que se não verifique uma alargamento da atividade criminosa ou não venha a verificar-se uma multiplicação das vítimas.
Pedro Caeiro, já aplica esta “revisão” da teoria do concurso no seu estudo sobre A Consunção do Branqueamento pelo Facto Precedente, nos Estudos em Homenagem ao Prof. Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Junho de 2010, Boletime da Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica, 100, Coimbra Editora, págs. 187 e segs (vejam-se especialmente as págs. 192 a 196). O mesmo se passa noutro estudo publicado nesta obra, que é o de Jorge Godinho, Sobre a Punibilidade do Autor de um Crime pelo Branqueamento das Vantagens dele Resultantes, págs. 363 e segs (especialmente págs. 374 e segs e 380 a 384 para a fundamentação da “recusa do critério do bem jurídico como a pretensa ‘prova dos nove’ da arte de bem contar crimes”).
O sexto dado novo é a alteração ocorrida com a Lei 59/2007, de 04/09.
A redação anterior dizia:
1: Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:.
Agora diz-se: 1: Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:.
Para este elemento chama a atenção Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, nota 23 ao art. 256, pág. 674, que a propósito escreve (sendo este o sétimo dado novo):
Há concurso aparente (consunção) entre o crime de falsificação de documento e o crime de burla ou qualquer outro crime que tenha sido preparado, facilitado, executado ou encoberto por intermédio de documento falso, tendo o legislador propositadamente afastado a jurisprudência dos acórdãos de fixação de jurisprudência do STJ de 19/02/1992 e 8/2000, cuja constitucionalidade foi testada pelo ac. do TC 303/2005 (a favor da jurisprudência fixada, Miguel Machado, 1998 a: 254, mas contra ela, Helena Moniz, 1993, 84 e 86, e 2000: 466). Com efeito, o legislador deixou claro, na revisão do CP de 2007, que a ação típica de falsificação pode ser querida exclusivamente com a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir um crime, sendo este elemento subjetivo típico parte constitutiva do próprio ilícito subjetivo e não um facto de agravação (como sucede no crime de homicídio). Sendo assim, a punição nestes casos em concurso efetivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto. A conclusão é inelutável, em face da opção política criminal do legislador: o concurso é meramente aparente, sendo a punição do crime-instrumento de falsificação subsidiária da punição do crime-fim (com conclusão idêntica em face da nova lei, mas com argumentação distinta, Sá Pereira e Alexandre Lafayette, 2008: 664).
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Note-se que também em Espanha o crime-meio não é por norma punido em concurso efetivo com o crime-fim (art. 77/1, parte final, do CP95), mas nos termos do concurso ideal, ou seja, aplicando-se a metade superior da pena prevista para a infração mais grave (art. 77/2 do CP95). É aquilo que em Espanha se chama do concurso medial: “se produce cuando um delito se considera medio para cometer outro”. “[…] una subespecie de concurso real de delitos que en el derecho español se castiga com la misma regla que el llamado concurso ideal” (Gonzalo Quintero Olivares, catedrático de direito penal, Parte General del Derecho Penal, com la colaboración de Fermín Morales Prats, 3ª edición, Aranzadi, julio 2009, pág. 764).
Artículo 77 (Ley Orgánica 10/1995, de 23 de noviembre).
1. Lo dispuesto en los dos artículos anteriores, no es aplicable en el caso de que un solo hecho constituya dos o más infracciones, o cuando una de ellas sea medio necesario para cometer la otra.
2. En estos casos se aplicará en su mitad superior la pena prevista para la infracción más grave, sin que pueda exceder de la que represente la suma de las que correspondería aplicar si se penaran separadamente las infracciones.
3. Cuando la pena así computada exceda de este límite, se sancionarán las infracciones por separado.
No sentido de que a falsidade documental em documentos públicos, oficiais ou mercantis, entra frequentemente em concurso com a burla [agravada], de que normalmente a falsidade é um meio, pelo que serão aplicáveis as regras do concurso medial do art. 77 do CP, veja-se Francisco Muñoz Conde, catedrático de direito penal de universidade Pablo de Olavide de Sevilha, no seu Derecho Penal, Parte Especial, 16ª edición, págs. 431 e 733, Tirant lo Blanch, 2007, citando uma “sentença” do STS de 1979 e um “acuerdo no jurisdicional” [e, ao que se crê, por isso só publicado em sumário] do TS de 08/03/2002. Reconhecendo que é esta a solução seguida actualmente, veja-se Joan J. Queralt Jiménez, catedrático de direito penal da universidade de Barcelona, no seu Derecho penal español, Parte especial, 5ª edición, Atelier, 2008, págs. 462 e 652 (no entanto, vejam-se as observações críticas ainda nas págs. 474, anotação d., e 3ad e 476 d. no sentido da absorção). Contra, com ampla dose de argumentos, no sentido da consumção, vejam-se os Comentarios de Gonzalo Quintero Olivares a la parte especial del Derecho Penal, (8 edición, Aranzadi, 2009, especialmente págs. 662/666 e 672).
Outros casos, porém, têm sido considerados sobre a perspectiva de unidade de lei, isto é, de consumpção, caso em que se aplicará o art. 8/3 do CP95 (artículo 8. Los hechos susceptibles de ser calificados con arreglo a dos o más preceptos de este Código, y no comprendidos en los artículos 73 a 77, se castigarán observando las siguientes reglas: […] 3. El precepto penal más amplio o complejo absorberá a los que castiguen las infracciones consumidas en aquél).
É a posição de Gonzalo Quintero Olivares para o caso de delito fiscal cometido através de falsidade documental (parte geral citada, pág. 772):
“otro ejemplo és la falta a la verdad expresada por escrito em la declaración com la que se comete delito fiscal, que no compone por sí misma una falsedad documentall aisladamente perseguible”.
No mesmo sentido, para a burla simples cometida através de documento privado, vejam-se os Comentarios deste Prof. a la parte especial del Derecho Penal, (pág. 664):
En primer lugar, y aun cuando no afecte a la agravante que estamos examinando, la nueva regulación hará que en los supuestos de concurrencia de falsedad em documento privado con ele delito de estafa [burla], deba aplicárse este. Em primer lugar porque la positivación expresa de las reglas de solución del concurso de normas (art. 8 CP) así lo exige, en la medida en que el criterio de la “consuncíon” se constituye como preferente al de mayor gravidad. Y en segundo lugar, porque, además, los nuevos marcos penalas han previsto una pena mayor para la estafa que para la falsedad em documento privado […].
A mesma solução é defendida por Joan J. Queralt Jiménez, pág. 462 (as três primeiras linhas), no caso do documento privado (para além de na pág. 653, 4 primeiras linhas dar outros exemplo de absórção). E por Muñoz Conde, obra citada, págs. 430/431 e 735/736, dizendo aliás que essa é a posição para que se inclina o Tribunal Supremo, exceto para o caso em que a falsifidade é punida mais fortemente, caso em que o TS castiga apenas pela falsidade.
Ou seja, a doutrina e a jurisprudência espanhola seguem a posição ou da consunção de um crime por outro, ou, quando consideram que há concurso efetivo vão para a punição pelas regras do concurso ideal, por via do concurso medial: metade superior da pena mais grave.
Em França, Fréderic Desportes e Francis Le Gunehec dão notícia de que quando as duas qualificações em concurso ideal são de igual gravidade, a jurisprudência tem a tendência a fazer prevalecer a infração fim sobre a infração meio. Assim, num caso de uma burla [escroquerie] realizada com a ajuda de um cheque sem provisão, a Cour de Cassation [= STJ] reteve apenas a qualificação de burla (Crim, 3 mars 1966, B, nº. 79) – Droit Pénal Général, 16ª édition, Economica, Set2009, pág. 253.
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Pelo que antecede, conclui-se que o arguido deve ser punido pelo concurso aparente dos crimes de burla qualificada e de falsificação (a burla consome a falsificação), dentro da moldura penal correspondente, no caso dos autos, ao crime com a moldura penal mais grave (Figueiredo Dias, obra citada, págs. 1036/1038) tomando o outro crime como fator agravante da medida da pena (no mesmo sentido, quanto à punição, na generalidade das hipóteses de consunção impura, veja-se o referido estudo de Pedro Caeiro, págs. 203 a 208, embora com ressalva em dadas circunstâncias, conforme págs. 212 a 219).
Note-se que a posição de Figueiredo Dias aceita que se está perante um concurso de crimes, com a única particularidade de que é punido diferentemente do efetivo. Na sentença até se deve dizer (como ensina Figueiredo Dias, nota 73 pág. 1037) que o arguido é punido pelos dois crimes, em concurso aparente, na pena de x. Ou seja, ele é punido pelos dois crimes, só que a punição é encontrada de forma diferente do caso do concurso efetivo ou puro.
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A moldura do crime de burla qualificada [art. 218/2a) do CP] é de 2 anos a 8 anos de prisão.
Mas o crime cometido pelo arguido não é o da burla qualificada do art. 218/2a), mas do art. 218/1 do CP. É que o prejuízo não é igual ao valor do empréstimo, mais o valor dos encargos, mas sim apenas ao valor do empréstimo, tal como é concretizado no ponto 13 dos factos provados: 1.895.350$. Aliás como resulta do facto de se considerar que o crime se consumou com a saída do dinheiro da disponibilidade da sociedade financeira. Aquilo que ela perdeu foi aquele valor. O resto é o que ela não foi ganhando com o cumprimento do contrato.
Pelo que o crime de burla é o do nº.1 do art. 218 do CP – porque o valor do prejuízo patrimonial é elevado, ou seja, superior a 50 UC que à data dos factos era de 69,83€ (mas é inferior ao valor consideravelmente elevado) -, que é punido apenas com pena de prisão de 1 mês até 5 anos ou multa de 10 até 600 dias (arts. 41/1 e 47/1 do CP).
A moldura do crime de falsificação [art. 256/3 do CP] é punível com pena de prisão de 6 meses até 5 anos ou multa de 60 até 600 dias.
É pois moldura deste crime, por ser a mais grave, que deve ser aplicada (caso de consunção impura) e depois atenuada por força do art. 4 do Dec. Lei 401/82, de 23/09.
Assim, a moldura penal, especialmente atenuada, passa a ser de 1 mês até 3 anos e 4 meses de prisão ou multa de 10 até 400 dias [art. 73/1a), b) e c), do CP].
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Quanto à escolha da pena de multa ou de prisão
Tendo o tribunal de escolher entre a pena de prisão e a pena de multa postas à disposição na previsão legal, o critério a utilizar é o de dar preferência à pena de multa sempre que, verificados os respetivos pressupostos de aplicação, a pena de multa se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição (Figueiredo Dias, As Consequências…, pág. 331, e depois, art. 70 do CP).
“Afastada a relevância da culpa no problema da escolha da pena”, a prevenção especial de socialização tem prevalência sobre as considerações de prevenção geral. Pelo que, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena de multa quando a “execução” [=> aplicação] da prisão se revelar, do ponto de vista daquela, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que a multa. Mas, mesmo que imposta ou aconselhada à luz das exigências de socialização, não se aplicará a pena de multa se a “execução” [=> aplicação] da pena da prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafática das expectativas comunitárias (seguiu-se, quase expressis verbis, a lição de Figueiredo Dias, obra citada, págs. 332/333).
Ora, perante o que já se disse acima, quanto à atenuação especial da pena, não se vêem razões para julgar necessária a aplicação da pena de prisão, a alguém que então tinha 20 anos e à data do acórdão recorrido 30 anos e não tem antecedentes criminais e vive com uma companheira e uma filha menor.
Pelo que a pena escolhida será a de multa.
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Dando por reproduzidas as considerações, sobre os fins das penas e o modo como estas devem ser fixadas, que constam do acórdão recorrido, diga-se agora, em concreto, que:
A pluralidade de condutas que estavam em causa no crime de falsificação - falsificação de duas assinaturas e uso de documentos falsos – e a pluralidade de condutas que devem ser valoradas na moldura da falsificação (falsificação e burla), o dolo direto com que atuou e o facto de com a sua conduta ter prejudicado, de forma direta e indireta, mais do que uma pessoa (a sociedade financiadora e o assistente), apontam para uma ilicitude e culpas mais elevadas do que a média de casos também enquadráveis no mesmo concurso de crimes, sendo que, agora (em que não está em causa a burla hiperqualificada), o valor do prejuízo vai bem para além (é mais do dobro) do que aquele que seria o bastante para levar à qualificação do crime de burla (pelo nº. 1).
Assim, as exigências de prevenção geral são mais graves do que o normal, o que impede que a pena seja fixada em menos do que 100 dias, mas a culpa não tem gravidade particular, pelo que a pena não deve ir para além do que aquelas exigências gerais também não permitiriam ultrapassar, isto é, 300 dias.
As exigências de prevenção especial são médias: o arguido não tem antecedentes criminais (apesar de na data do acórdão recorrido já ter 30 anos) e a sua integração familiar é razoável. Pelo que a pena, tendo em conta estas exigências, deve ficar pelos 200 dias de multa.
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A pena de multa é fixável entre 1 e 498,80€ (por ser a lei em vigor à data dos factos mais favorável de que a nova redação do art. 47/2 introduzida pela Lei 59/2007 de 4/9), em função da situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais na medida do que ficaram demonstrados acima.
Como não constam dos factos provados quaisquer elementos quanto às condições económicas do arguido, o que não o pode prejudicar, a fixação do montante pecuniário diário da pena de multa tem de ficar por um valor mínimo.
Valor mínimo que não é, no entanto, aquele de 1€.
É que o montante mínimo diário da pena de multa de 200$/1€ vinha de 1982 e até àquela alteração de 2007 a taxa de inflação tinha multiplicado por várias vezes esse valor, fenómeno que era reco­nhecido no Dec.Lei 244/95, de 14/9, que já tinha alte­rado o limite mínimo das coimas “tendo em conta a evolução do ín­dice de pre­ços ao con­sumidor desde a atualização de 1989”, passando-o para 750$, quando em 1982 também era de 200$ (art.17/1 desse re­gime na redação dada por esse Dec.Lei - vejam-se as razões expendidas no parecer e proposta de alteração legislativa, de revisão legal do regime respetivo, de Fernanda Palma e Paulo Otero, publicado de págs. 557 a 591 da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Lex, Vol. XXXVII, 2, 1996).
Assim, o valor mínimo aceitável é antes o de 5€.
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, suprimindo-se o ponto de facto sob 27 e altera-se a decisão recorrida, condenando-se agora o arguido, pelo crime de burla qualificada agravada pela consunção da falsificação [arts. 256º, nºs. 1, als. c) e e) e 3 e 218º/1, ambos do CP, e art. 4º do Dec. Lei 401/82, de 23/09] na pena de 200 dias de multa a 5€ diários, no total de 1000€, com 133 dias de prisão subsidiária, mantendo-se, no mais, o acórdão recorrido.
Custas pelo arguido, com 3 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 29 de Junho de 2010.

Pedro Martins
Nuno Gomes da Silva (aderindo à posição que no acórdão se manifesta à jurisprudência fixada e, nessa medida, modificando a posição que anteriormente subscrevi conforme com aquela)