Decisão Texto Integral: | I – RELATÓRIO
1 – Domingos J…, instaurou no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa a presente acção com processo comum e forma sumária contra Civiconstra, Ldª, na qual foi proferida sentença pela qual se decidiu:
“... julgo a acção e a reconvenção improcedentes por não provadas e, consequentemente, absolvo as partes dos respectivos pedidos.
...”
2 - Inconformado com esta decisão, dela interpôs o A. o presente recurso de apelação, tendo, nas suas alegações oportunamente apresentadas, em desrespeito da síntese imposta no nº1 do art 690º do CPC, formulado 32 conclusões.
Dessas conclusões decorre serem, essencialmente, quatro as questões colocadas no presente recurso:
1ª - deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto?
2ª - deve ser ampliada a decisão sobre a matéria de facto?
3ª - houve erro de julgamento?
4ª -é de revogar a decisão recorrida, decretando-se a procedência da acção?
Esclarece-se que não se referiu a questão colocada nas conclusões 1ª a 5ª, inclusivé, pois essas conclusões se referem à questão da atribuição de efeito devolutivo ao recurso, a qual foi decidida por despacho da relatora, no qual foi entendido manter o efeito devolutivo fixado em 1ª instância.
3 – A recorrida não apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, e tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS DE FACTO
O apelante pôs em causa alguns dos factos dados como provados, o que impõe a enunciação dos factos indicados como provados na decisão recorrida e que servem de fundamento à mesma.
Realça-se, neste contexto, que, por despacho de fls. 88, foi dispensada a selecção da matéria de facto, bem como o saneamento, atenta a simplicidade da causa.
Os factos provados são os que a seguir se indicam, destacando-se os factos impugnados pela apelante:
“ - O autor é um comerciante em nome individual, que se dedica à actividade de electricista e pintura de construção civil.
- No exercício dessa actividade, o autor foi contactado pela ré para a realização de serviços na Rua General Pimenta de Castro, nº 4-A, em Lisboa.
- Assim, a 20 de Março de 1997, o autor apresentou à ré um orçamento estimativo do custo da obra a realizar na morada descrita no valor de 500.000$00 (quinhentos mil escudos) mais I.V.A., conforme documento de fls. 6.
- Como trabalhos consta do mesmo: «Pintar todas as paredes da moradia do lado interior.
«Betumar as portas interiores e respectivas aduelas, passando-as à lixa e em seguida lacar a tinta.
«Envernizar os degraus da escada».
- O referido orçamento apresentava como condições de pagamento:
- 50% com a adjudicação da obra;
- 50% com a conclusão da mesma.
- A ré aceitou o orçamento proposto, pelo que o autor deu início à obra conforme o acordado.
- Passados alguns dias sobre o início da referida obra pelo autor, veio a ré solicitar que fossem feitas alterações ao plano convencionado.
- O autor apresentou então à ré o documento de fls. 7, datado de 10 de Abril de 1997, do qual consta:
«Reparar de massas, passar à lixa e pintar a tinta plástica todas as paredes da moradia no interior ao preço de 700$00/m2.
«Betumar a poliuretano todos os rodapés, cinco portas interiores e respectivas aduelas, passando-as á lixa e em seguida lacar a tinta de esmalte meio brilho ao preço de 8.000$00/m2.
«Envernizar os degraus da escada com verniz poliuretano, de dois componentes ao preço de 1.800$00/m2.
«Envernizar os tectos de madeira da cave e do último piso ao preço de 1.800$00/m2».
- Tais modificações no plano inicial por iniciativa da ré acarretaram um aumento no preço estipulado no orçamento inicial apresentado pelo autor.
- O autor iniciou os trabalhos até meados do mês de Julho de 1997.
- Em 20 de Novembro de 1997, o autor enviou à ré a factura de fls. 9, no montante de 1.009.400$00, mais I.V.A., no valor total de 1.180.998$00.
- A ré pagou ao autor a quantia de 500.000$00 (quinhentos mil escudos).
- Em meados de Julho de 1997, o autor entregou a obra, relativa às pinturas de paredes, tectos, portas e envernizamento dos tectos de madeira da cave e do último piso.
- Nessa altura, havia zonas das paredes interiores e dos tectos do prédio que não tinham sido lixadas convenientemente, pelo que a pintura não estava homogénea.
- Pelo que a ré não aceitou o trabalho do autor.
- A ré contactou o autor por diversas vezes, dizendo que a obra apresentava imperfeições que necessitavam de ser eliminadas e solicitando que o autor procedesse às rectificações adequadas, o que este aceitou realizar, no prazo de uma semana.
- O autor não apareceu mais na obra nem mandou pessoal para proceder às rectificações solicitadas e por si aceites.
- O autor não chegou a executar o trabalho referente ao envernizamento dos degraus da escada do prédio, por a mesma ter sido colocada posteriormente à sua saída da obra”.
E o Mmo Juiz a quo fundamentou a factualidade dada como provada nos seguintes termos:
“ Fundamenta-se a decisão na convicção resultante do depoimento das testemunhas Luís Fernando Carvalho Félix Pereira e Paulo Jorge Subtil Ferreira da Silva, pessoas que trabalharam na obra para o autor, João Paulo Rocha Correia, que trabalhou igualmente para o autor e foi contratado posteriormente para concluir os trabalhos, José de Carvalho, encarregado da obra, por parte da Ré, e Luís Filipe dos Santos Marçano, trabalhador da Ré que igualmente executou trabalhos na mesma obra, assim todos revelando conhecimento directo dos factos e isenção, bem como nos documentos juntos aos autos na sua análise global e pormenorizada”.
III – APRECIAÇÃO
Antes de iniciar a apreciação das questões supra referidas, deve acentuar-se que, qualquer que seja a decisão do presente recurso, fica intocada, seja qual for a fundamentação, a parte da sentença que não foi recorrida, isto é, a absolvição do Autor do pedido reconvencional - art 684º nº4 do CPC).
1 - Deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto?
1.1 - Porque a audiência de discussão e julgamento foi integralmente gravada e a recorrente fez uso da faculdade que lhe é reconhecida pelo art 690º-A do CPC (ainda que não em termos formais correctos, tendo feito a transcrição da prova em vez de fazer alusão aos suportes magnéticos onde se contêm os depoimentos das testemunhas que, reapreciados, alteram, no seu entender, o sentido da matéria de facto), este Tribunal da Relação tem a possibilidade de reapreciar integralmente a prova produzida em 1ª instância (alínea a) do nº1 do art 712º do CPC).
O apelante faz a comparação do depoimento das testemunhas por si indicadas com os depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas pela apelada.
E, com base nessa comparação, põe em causa a matéria dada como provada na 1ª instância, chamando à colação o depoimento das suas testemunhas Luís Pereira e Paulo Silva e alegando que, pelos seus depoimentos, se terá de concluir pela alteração da matéria de facto considerada provada.
Mas, aqui chegados, importa chamar a atenção para dois aspectos deveras importantes, que têm toda a aplicação ao presente recurso.
Em primeiro lugar:
O Dec Lei nº 39/95, de 15-2, veio consagrar, na área do processo civil, uma solução legislativa traduzida na admissibilidade do registo das provas produzidas ao longo da audiência de discussão e julgamento, em ordem a assegurar “a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação da provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito” (cfr preâmbulo).
Mas, esta garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso” (idem).
Na verdade, apesar de não poder deixar de saudar-se o novo sistema de registo de prova, terá de se notar que o conhecimento da matéria de facto por este Tribunal é necessariamente limitado, pois que estão ausentes da nossa apreciação dois dos princípios basilares da boa e justa apreciação da prova: o da oralidade e o da imediação.
É que, tal como se salienta a propósito no Ac. da Relação de Coimbra de 3-10-2000 (CJ Ano XXV, Tomo IV, pag 28), “...é preciso não esquecer que a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas inserto no art 655º, nº1 do CPCivil – o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova – seja audio, seja mesmo vídeo -, por mais fiel que ela seja das incidências concretas da audiência.
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis (...)”
Na realidade, a convicção do Tribunal é formada, para além dos dados objectivos transmitidos pelos documentos e outras provas constituídas, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, das hesitações, das inflexões de voz, dos olhares, da serenidade, da coerência de raciocínio e de atitude, da seriedade e sentido de responsabilidade manifestados.
É sabido que a comunicação não se estabelece apenas por palavras. Aliás, segundo pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação, apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra, sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder (Lair Ribeiro, “Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14).
Toda aquela informação não verbal a que fizemos referência é imprescindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, sendo, no entanto, indocumentável.
O entusiasmo, as hesitações, o nervosismo, as reticências, as insinuações, a excessiva segurança ou a aparente imprecisão são factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao Tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, conferir crédito a uma certa informação ou retirar-lhe qualquer relevo. E esses aspectos do comportamento dos participantes processuais, essas reacções, apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados, em suma, valorados por quem os presencia e jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro Tribunal, que vá reapreciar o modo como, no primeiro, se formou a convicção do julgador (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, pags 271 e ss).
Só a oralidade e a imediação com que decorreu o julgamento na 1ª instância permitem estabelecer uma relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão. Só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com as testemunhas, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade e a avaliação da credibilidade das suas declarações.
E a verdade é que o sistema de gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos ou a sua transcrição se revelam insuficientes para fixar todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do Juiz ou dos Juízes perante quem são prestados. De resto, a audição pode dar ao tribunal algumas pistas em ordem à boa avaliação de um qualquer depoimento, mas dificilmente conseguirá suprir aquela avaliação que só a presença da pessoa da testemunha pode proporcionar.
Os depoimentos das testemunhas podem ser ouvidos. O Tribunal recorrido, para além de os ter ouvido, viu a forma como as testemunhas os prestaram. O Tribunal recorrido viu e ouviu...
Ora, carecendo o Tribunal da Relação destes elementos coadjuvantes e necessários para que a justiça se faça, correm-se sérios riscos de, por essas razões, a injustiça material advir da segunda decisão sobre a matéria de facto (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pags 257 e 258).
Aquela relação viva, imediata e comunicante, de que falámos, estabeleceu-se com o Tribunal de 1ª instância, pelo que, não podendo deixar de se conceder a devida relevância à percepção que a oralidade e a mediação conferem ao julgador, a alteração da matéria de facto ali fixada só deverá ocorrer se se verificar a existência de qualquer elemento que, dada a sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo funcionamento daquele princípio da imediação.
Ou seja, a análise das provas gravadas só pode abalar a convicção criada pelo Juiz de 1ª instância e determinar a alteração da matéria de factos, em casos pontuais e excepcionais, quando, não se tratando de confissão ou de qualquer facto só susceptível de prova através de documento, se verifique que a matéria de facto não tem qualquer fundamento face aos elementos de prova trazidos ao processo ou que está profundamente desapoiadas face às provas recolhidas.
Em segundo lugar:
É sabido que, como há muito escreveu o Prof. Lopes Cardoso (BMJ 80, pag 204, citado por Abrantes Geraldes, op. cit., pag 225), a verdade absoluta é humanamente inatingível.
E também o Prof. Antunes Varela ensina (cfr RLJ 116, pag 339) que provar um facto no Tribunal perante o Juiz não é o mesmo que demonstrar um teorema na aula para o aluno, nem será o mesmo que realizar no laboratório uma análise clínica para o cliente.
Por isso, dificilmente o Juiz, como julgador dos factos, lidará com a prova cem por cento segura ou certa, tendo de conviver com a ausência de certeza absoluta e com a dúvida, tendo de, com recurso à experiência comum e à lógica das coisas, tentar encontrar uma certeza relativa sobre os factos, traduzida, não numa certeza dominada por incertezas, mas numa convicção honesta e responsável da realidade ou da irrealidade do facto.
As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art 341º do CC),, mas esta demonstração visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto, na certeza subjectiva (cfr Prof. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pag 434).
Condição necessária, mas também suficiente, é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa (a tal convicção honesta e responsável de que se falou atrás), dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam de determinada forma.
1.2 – Isto posto, vejamos então se, nos concretos pontos indicados pelo apelante, como sendo aqueles em que se impunha decisão diversa, se encontram aqueles pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros do julgador, que são o fundamento da impugnação da matéria de facto.
E, para tanto, compete apurar da razoabilidade da convicção probatória do Tribunal recorrido face aos elementos que agora são apresentados nos autos.
Ou seja, esta Relação não vai procurar uma nova convicção (face, precisamente, à falta daqueles elementos intraduzíveis na transcrição ou na gravação da prova), mas sim procurar saber se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte razoável naquilo que a transcrição ou a gravação da prova (com os mais elementos constantes dos autos) pode exibir.
Ora, tanto quanto a matéria de facto extractada na transcrição (com as limitações supra expostas), conjugada com a prova documental constante dos autos, nos permite (re)apreciar a prova que esteve presente ao Tribunal a quo, é nosso convencimento que nada, absolutamente nada, leva à ideia de que aquele fez uma incorrecta aplicação do princípio consignado no art 655º do CPC, isto é, que apreciou mal a prova.
Com efeito, a convicção expressa pelo Tribunal recorrido não deixa de ter suporte razoável naquilo que de probatório contêm os autos.
No que concerne à factualidade cuja alteração é pretendida, estamos perante duas versões divergentes de como os factos se passaram e não dispomos de outros elementos probatórios, sejam documentais sejam testemunhais que, com razoável consistência, comprovem, corroborem, enfatizem ou infirmem qualquer dessas versões. À partida, portanto, qualquer uma destas versões poderia ser aceite.
Simplesmente, o Tribunal a quo, apreciando livremente a prova, entendeu dar crédito à versão da apelada. E fê-lo de forma fundamentada.
Os depoimentos das testemunhas indicadas pelo apelante valem o que valem e não podem desvirtuar o quadro geral, e integrado, de produção e apreciação do conjunto das provas em que se inserem como um dos elementos componentes e valorativos. Não se podem considerar isolados aqueles depoimentos do contexto geral em que foram produzidos.
E vale aqui o que supra ficou dito: a reapreciação da matéria de facto pela Relação é necessariamente limitada, justamente porque esta instância não está em condições de sindicar livremente o acerto da convicção narrada pelo Tribunal a quo. A produção, a apreciação, a valoração de toda a matéria, incluindo a percepção da valia dos testemunhos, a percepção do “rosto” dos testemunhos, tudo foi feito pelo Juiz de 1ª instância, o qual imediou toda a prova e julgou-a livremente, conforme explicou e motivou a fls . E porque houve imediação, oralidade e concentração, aquele, depois da prova produzida, tirou as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência que eram aplicáveis - princípio da livre apreciação da prova (cfr. Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, pags 155 e ss).
As impressões colhidas pelo Tribunal recorrido, intraduzíveis na transcrição e na gravação da prova, não podem ser apreciadas e contraditadas pela Relação, pois que não as percepciona.
E o que é certo é que, como está já dito, essa convicção expressa pelo Tribunal recorrido não deixa de ter suporte razoável naquilo que de probatório contêm os autos, tendo atingido aquela certeza relativa que, assentando em convicção cuja bondade não podemos discutir, tem que ser tida como boa e vinculante.
Tendo embora havido gravação (e transcrição) dos depoimentos das testemunhas que depuseram, a verdade é que os depoimentos invocados pelo apelante não são de molde a alterar a matéria de facto.
Reapreciando a prova, longe da imediação e da oralidade, nada
emerge da prova produzida que leve à pretendida alteração da matéria de facto, donde resulta liminarmente a improcedência do recurso no que tange à alteração da matéria de facto pelo que terá de improceder a pretensão do recorrente.
2 - Deve ser ampliada a decisão sobre a matéria de facto?
Pretende o apelante que não deve ser considerado provado que “O autor não chegou a executar o trabalho referente ao envernizamento dos degraus da escada do prédio, por a mesma ter sido colocada posteriormente à sua saída da obra”, uma vez que tal facto, tal como ficou redigido, não foi articulado nem por si, nem pela apelada, devendo considerar-se provado que “Na data da entrega da obra, o corrimão das escadas não estava colocado”.
Alegou a R., na contestação que “Por estar atrasada a colocação da escada do prédio, foi acordado entre A. e R. que a execução do serviço para envernizamento dos degraus da escada só seria realizado quando esta estivesse pronta”.
Por seu turno, o A., na réplica, veio dizer que “Não é verdade que a colocação da escada do prédio estivesse atrasada.
O que estava efectivamente em atraso era a colocação do corrimão das escadas, pois estas estavam já devidamente colocadas, faltando apenas uma última demão de verniz, que conforme o combinado pelo A e pela Ré ficaria postergada para a colocação do corrimão, colocação esta da responsabilidade da Ré”.
Ora, é verdade que o princípio do dispositivo impede o juiz, em regra, de conhecer dos factos que não tenham sido alegados pelas partes como integrando a causa de pedir ou que sirvam de base às excepções.
Não obstante, tal princípio está limitado, além do mais, pela faculdade que é conferida ao juiz em fundar a sua decisão nos factos instrumentais que resultem da discussão da causa.
Por outro lado, o Tribunal não tem que se limitar a dar como “provados” ou “não provados” os factos alegados pelas partes, tendo de admitir-se factos explicativos ou restritivos que permitam explicitar convenientemente o que se considera provado relativamente à matéria de facto alegada, mesmo que para isso tenha de ser reformulada em termos diversos do alegado, com o único limite imposto pelo princípio de que o Tribunal só pode conhecer da matéria de facto que foi articulada pelas partes.
Ora, ao considerar provado o facto supra referido, o Tribunal a quo não ampliou indevidamente a factualidade alegada, nem, de forma indirecta, o tema da prova.
Deste modo, não há que considerar tal facto como não provado nem ampliar a matéria de facto considerada assente, improcedendo, também neste ponto, a pretensão do apelante.
3 - Houve erro de julgamento?
Invoca o apelante que a sentença recorrida errou na apreciação da prova e extraiu conclusões que não se adequam com os elementos probatórios constantes dos autos, ao considerar que o contrato de empreitada foi o resultado do orçamento inicial, com a alteração resultante do segundo orçamento apenas relativamente aos novos trabalhos solicitados.
Pretende, deste modo, que se conclua que o contrato de empreitada (ou melhor, de subempreitada) celebrado teve na sua base dois orçamentos e que o que vigorou, na realidade, foi o apresentado em 10-4-97.
Ora, tendo-se concluído não haver lugar a qualquer alteração da matéria de facto, outra conclusão não pode ser retirada da factualidade provada senão aquela que a sentença recorrida retirou, ou seja, que o contrato celebrado entre A. e R. foi o resultante do orçamento inicial, com a alteração resultante do segundo orçamento apenas relativamente aos novos trabalhos solicitados.
E, neste ponto, em face da clareza da questão e da manifesta falta de procedência das razões alegadas pela apelante, fazendo uso do mecanismo previsto no art 713º nº5 do CPC, remete-se para os fundamentos da sentença impugnada.
4 – É de revogar a decisão recorrida, decretando-se a procedência da acção?
Não havendo lugar a qualquer alteração da matéria de facto e tendo o contrato em causa na sua base o orçamento inicial, com as alterações advenientes do segundo orçamento apenas no que concerne aos novos trabalhos solicitados, é indubitável que a acção se mostra improcedente.
Com efeito, a sentença recorrida considerou terem o A. e a R. celebrado entre si um contrato de subempreitada, o que o ora apelante não põe em causa.
A subempreitada é um contrato de tipo idêntico ao da empreitada, ao qual se aplicam as mesmas regras, subordinado a um negócio jurídico precedente, isto é, uma empreitada em "segunda mão", que se enquadra na categoria geral do subcontrato. Sendo uma espécie do género "empreitada", apesar de poder apresentar particularidades de regime, não deixa de ter por normatividade jurídica a do contrato de empreitada, tudo se passando como se o empreiteiro assumisse perante o subempreiteiro a qualidade de dono da obra.
E, como ensina P. R. Martinez (“Empreitada”, pags 184 e 185) e como refere Rosendo Dias José ("Responsabilidade Civil do Construtor de Imóveis", pags 10 e 11), em linhas gerais o empreiteiro, antes da entrega, está sujeito aos princípios comuns da responsabilidade. As suas obrigações principais são executar o trabalho prometido e efectuar a entrega logo que ele esteja terminado ou no prazo convencionado. A inexecução de qualquer destas obrigações constitui responsabilidade contratual com fundamenta na falta cometida, cujo regime não apresenta originalidades. Se o empreiteiro não faz a obra ou cai em mora o dono da obra valer-se-á dos meios comuns do credor. Para além da figura «desistência por parte do dono da obra», prevista no art 1229º do CC, pode configurar-se uma situação de resolução de empreitada, dado a este contrato serem aplicáveis as regras gerais sobre inexecução dos contratos - arts 801º nº2 e 808º nº1, ambos do mesmo diploma legal.
Ora, é indubitável que a situação descrita pela matéria da facto provada traduz, efectivamente, uma concludente atitude de incumprimento definitivo por parte do apelante (subempreiteiro).
Deste modo, porque a decisão recorrida (em sentido diverso do defendido pelo recorrente), equacionou bem a solução jurídica do caso sub judice, porque interpretou e aplicou correctamente as normas pertinentes à situação em apreço, porque a sua fundamentação é clara e merece acolhimento e porque nenhuma questão ficou por responder pode concluir-se, desde já, sem necessidade de mais explicitações, que esta Relação confirma inteiramente o julgado a tal propósito em 1ª instância, quer quanto à decisão, quer quanto aos seus respectivos fundamentos, para eles se remetendo ao abrigo do disposto no já citado art 713º nº5 do CPC.
V – DECISÃO
Nesta conformidade, acorda-se nesta Relação na improcedência da apelação, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Lisboa, 24 de Junho de 2003
ANA GRÁCIO
LOPES BENTO
ADRIANO MORAIS |