Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ROSA MARIA CARDOSO SARAIVA | ||
Descritores: | INADMISSIBILIDADE DE RECURSO PARTE CIVIL LIBERDADE DE EXPRESSÃO DIFAMAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/08/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | I. É inadmissível o recurso interposto de uma condenação em pedido cível no valor de 700,00€, na exacta medida em que tal montante é inferior a metade da alçada do Tribunal recorrido; de resto, essa irrecorribilidade, no caso, também decorreria do facto do pedido deduzido ser inferior ao valor da sobredita alçada. II. Suscitada uma questão em sede de contestação, tendo sido esta apreciada em decisão anterior à prolação da sentença final e não tendo o sujeito processual afectado com o sentido da mesma interposto tempestivamente recurso, não pode ressuscitar-se tal problemática em sede de recurso final. III. Quando a mesma fraseologia atinge simultaneamente a honra e consideração de pessoa individual e o direito ao bom nome de uma pessoa colectiva, cada um dos ofendidos tem legitimidade própria e autónoma para apresentar procedimento criminal contra o autor do facto penalmente relevante. IV. Nos casos de difamação agravada do art. 184º do CPenal, o procedimento criminal depende de queixa, pelo que, de acordo com o estatuído nos arts. 48º e 49º do CPPenal, é o Ministério Público que tem legitimidade para promover o processo penal, sendo a este que cabe a decisão de dedução de acusação, ou de arquivamento, do inquérito. V. Inexistindo acusação pública – isto é, na ausência de promoção pelo MP da acção penal – está vedado ao tribunal, face à estrutura acusatória do processo penal português, condenar por tal crime. VI. A sentença proferida nessa confluência emerge ferida de nulidade insanável pelo facto da condenação ter irrompido à revelia da promoção do processo pela entidade exclusivamente dotada da pertinente legitimidade. VII. Todavia, a declaração da nulidade não prejudica o aproveitamento dos actos não directamente afectados face a tal decisão – vale por dizer que tendo sido deduzida acusação particular deverá aferir-se da eventual adequação da emergência de uma condenação por um crime de difamação do âmbito daqueles em que o assistente está habilitado para impulsionar o processo. VIII. O direito à honra e o direito à liberdade de expressão estão identicamente garantidos na Constituição Portuguesa (respectivamente nos artigos 26º, 1 e 2 e 37º) em relação de paridade. IX. O TEDH, em aplicação da CEDH, vigente no Direito nacional, tem vindo a dar prevalência ao direito à liberdade de expressão, quando em conflito com o direito à honra, justamente por reconhecer o papel fundamental da liberdade de crítica na construção de uma sociedade livre, pluralista e autenticamente democrática. X. As pessoas públicas estão sujeitas ao escrutínio das condutas que assumem no domínio da sua vida, sendo certo que essa exposição tem tendência a amplificar-se quando ocorre uma qualquer situação de conflitualidade. XI. Não viola o direito à honra de um cidadão. conjunturalmente a exercer um cargo público de nomeação política, a mensagem enviada para uma instituição escolar e para o seu núcleo familiar próximo, onde se alude à suspeita que o visado tenha usado eventual influência para que houvesse sido aberta vaga escolar para o seu filho. XII. Tal conduta consubstanciada na aludida imputação corresponde ao exercício do direito de crítica a uma pessoa pública, não se afirmando como dotada das características que pudessem atingir o núcleo essencial conexo à dignidade da pessoa humana, não revestindo a carga ofensiva que a faça alcançar o patamar da tipicidade e justifique a atribuição de dignidade penal. XIII. Nos termos do artigo 402º, 1 e n.º 3, do artigo 403º, ambos do CPP, impõe-se que se retirem todas as conclusões emanadas do recurso interposto. XIV. Ora, a absolvição do crime pelo qual a recorrente foi condenada – na medida em que representa a inexistência de facto típico ilícito em que se fundamente a condenação civil – importa necessariamente o mesmo efeito no que respeita ao segmento civil (isto, não obstante, a decisão não ser recorrível de um ponto de vista estritamente cível, como no caso dos autos). | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal (9ª) do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório: No Juízo de Competência AA – Juiz 2, foi proferida sentença, datada de .../.../2024, que decidiu do seguinte modo (transcrição): “IV. DISPOSITIVO Pelos fundamentos factuais e legais expostos, o Tribunal decide: [RESPONSABILIDADE CRIMINAL] a) Condenar a arguida BB pela prática, a ........2022, de um crime de difamação, agravado, previsto e punido nos termos dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 1, alínea l), todos do Código Penal, numa pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 10,00 € (dez euros). b) Absolver a arguida do crime de difamação, agravado nos termos previstos nos dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal, de que vinha acusada. c) Absolver a arguida do crime de injúria agravada, previsto e punido nos termos dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 184.º, ex vi artigo 132.º, alínea l), todos do Código Penal, de que vinha acusada. [RESPONSABILIDADE CIVIL] d) Condenar a arguida BB no pagamento ao demandante CC da quantia de 700,00 € (setecentos euros) a título de danos não patrimoniais originados pela prática do crime, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa de 4% desde a data da prolacção da sentença até integral pagamento. e) Absolver a arguida do demais peticionado.” * Inconformada, a arguida BB interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem: “CONCLUSÕES 1. Tendo o e-mail da arguida sido remetido à creche “o ...”, na qual faz constar “como cidadã, gostaria de mostrar o meu desagrado pela susceptibilidade da instituição à pressão de pessoas com cargos públicos” e que “assim, a abertura excepcional de vaga após pressão pelo pai, figura pública local e regional, denota tráfico de influência e favorecimento pessoal, que constituem crime (art 335º do Código Penal) e revela valores institucionais dúbios”, o ofendido não é o Assistente CC mas sim a instituição em causa e os titulares dos órgãos dirigentes que admitiram a abertura de tal vaga excecional. 2. Não tendo a instituição nem nenhuma das pessoas singulares que tomaram a decisão de permitir a inscrição excecional do menor apresentado queixa, carece o Ministério Público de legitimidade para promover o procedimento criminal. 3. A falta da queixa relativamente aos factos descritos na acusação particular pelo seu titular, dentro do prazo a que alude o citado artigo 115º, nº 1, do Código Penal, enquanto pressuposto de procedibilidade, obsta ao conhecimento do mérito da causa com a consequente absolvição da arguida dos crimes que lhe foram imputados. 4. O ofendido apresentou-queixa crime contra a arguida na qual, entre outros, lhe imputa a prática de um crime de denúncia caluniosa” (…) “agravada nos termos do art. 184º, ex vi alínea l) do n.º 2 do artº 132 e 182º, todos do CP. 5. A .../.../2023 é proferido despacho pelo Ministério Público de convite à apresentação de acusação particular nos seguintes termos: “Nos presentes autos de inquérito foram denunciados factos susceptíveis de configurar a prática de um crime de difamação e de injúria, previstos e punidos pelos artigos180.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do Código Penal. De harmonia com o disposto no artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal, tais crimes assumem natureza particular”. 6. Notificado para deduzir acusação particular, o Assistente, ao invés de aceitar tal convite, deduz acusação particular contra a arguida imputando-lhe a prática, “como autora material e na forma consumada, 1 crime de difamação agravada, executada por escrito, através de meio – mensagem de correio eletrónico – que permite a sus fácil e rápida propagação, nos termos dos artºs 180º, nº 1, 182º, 183, nº 1, alínea a) e b), e 184 ex vi artº 132º, alínea l), todos do CP”. 7. A .../.../2023, o Ministério Público profere despacho no qual “acompanha a acusação particular deduzida, a ls. 113-122, nos termos do disposto no artigo 285.º, n.º 4, do Código de Processo Penal. Apenas se discorda da qualificação jurídica, conforme despacho de fls. 104” 8. Dispõe o artigo 188.º n.º 1. al. a), que a agravação do crime de difamação nos termos do art. 184.º constitui um crime de natureza semipública. 9. Notificado do despacho de convite à dedução de Acusação Particular pelo crime de injúria e difamação na forma simples, e não se conformando o Assistente com tal entendimento, o mecanismo processual adequado para o efeito é o Requerimento de Abertura da Instrução e não a dedução de acusação particular em substituição do Ministério Público, solução que não tem qualquer previsão legal no nosso ordenamento jurídico. 10. Pelo que, estando em causa crime de natureza semipública, deve a acusação particular deduzida pela assistente ser declarada nula, nos termos conjugados do art. 188.º do Código Penal, e 48.º, 49.º, e 143.º, n.º 2 e alínea b) do art. 119.º do CPP. 11. Tal nulidade é do conhecimento oficioso, e pode ser decretada a todo o tempo ao longo do processo. 12. Tendo o Assistente optado por praticar ato ilegal – por ausência de legitimidade para acusar por crimes de natureza semipública - ao invés de deduzir acusação particular pelo crime natureza particular, não podem os autos ser remetidos a inquérito nem a sentença objeto de retificação, pelo que se impõe a absolvição da Arguida pelos crimes que lhe foram imputados. 13. Atendendo a globalidade da matéria de facto provada e não provada, não podia o tribunal a quo ter dado como provados os pontos 6 e 7 da matéria de facto provada. 14. Tendo o Tribunal dado como provado que a “8. A arguida agiu conforme descrito sob o número 5. suspeitando que o assistente havia exercido, conforme descreveu no email remetido, pressão sobre a Instituição referida para que fosse aberta uma vaga não anteriormente prevista para o seu filho, fazendo uso da influência que tinha na comunidade por força do cargo político que ocupava” e “9. Desde o divórcio, constituía prática habitual que a troca de correspondência electrónica entre a arguida e o assistente fosse feita com o conhecimento (vulgo “Cc”) de familiares de ambos” e como não provado que “a) A arguida sabia que as afirmações referidas em 5. eram falsas”, bem como na referido na fundamentação da matéria de facto apurada que a “a suspeita levantada não se afigura, atendendo aos contornos do caso, absolutamente desprovida de sentido”, tais factos dados como provados no ponto de 6 e 7 a constar da matéria de facto não provada. 15. Passando tais factos a constar da matéria de facto não provada deverá a arguida ser absolvida do crime que lhe é imputado na acusação particular porquanto estamos perante um caso de ausência de consciência da ilicitude com exclusão da culpa nos temos do art. 17.º do Código Penal. 16. O crime de difamação agravada imputado à arguida implica a existência de dolo, não se admitindo que o mesmo seja praticado de forma negligente, como foi o caso. 17. Resulta provado que a suspeição da arguida levantada no e-mail remetido à creche “o ...”, era verossímil e portanto, tida como possível ou, adianta-se, como muito provável para o homem médio, pelo que a arguida não agiu com dolo mas sim de forma negligente pois a arguida age na convicção, legítima, que aquela vaga foi obtida de forma ilegal ou irregular – ilegal no sentido lato de violação de procedimentos e não necessariamente no sentido da ilegalidade criminal. 18. A Arguida remeteu aquele e-mail à própria instituição – ainda que com o conhecimento de terceiros que estavam em “CC” em todas as comunicações tidas entre o Assistente e o Arguido – e não a terceiros alheios às questões relativas à Regulação das Responsabilidades Parentais do menor. 19. Se quisesse conscientemente efetivamente difamar o ofendido, teria a arguida enviado tal e-mail a terceiros que não os já mencionados, nomeadamente a órgãos de comunicação social ou, no mínimo, a colegas de Trabalho do Assistente ou a membros do ..., uma vez que o cargo do Ofendido era de nomeação política. 20. Tendo de se concluir que a atuação da arguida foi negligente e não dolosa, pelo que se impõe a sua absolvição uma vez que o tipo de crime em causa não admite a condenação por negligência. 21. Resulta evidente da prova produzida que o ofendido não se encontrava no exercício das suas funções nem foi “vítima” por força das funções que exerceu, sendo que a atuação da ofendida decorre no âmbito de relações de foro familiar sendo o ofendido objeto do crime não por tais funções mas por ser pai do filho da arguida. 22. Entendimento diverso permitira admitir que sempre que estivéssemos perante ofendido titular de órgão público, qualquer crime contra ele praticado, ainda que fora do exercício das suas funções, seria sempre agravado. 23. Deverá entender-se que não foi esse o objetivo do legislador, o que se pretende com o regime da agravação no casos dos titulares de cargos públicos ou equiparáveis é proteger o exercício das funções e não a pessoa titular das funções, ou seja, se o ofendido é vítima de um crime no âmbito da sua vida privada, como foi caso do ofendido, num contexto, familiar, de discordância na escolha de escola de menor, é nesse contexto que deverá aferir-se a prática do crime e não no contexto de presidente da “...”. 24. O Tribunal a quo não realizou tal exercício de distinção entre o ofendido Assistente, pai do menor objeto da inscrição na creche, do ofendido presidente da sociedade .... 25. Pelo que, mantendo-se a condenação, não deverá ser o crime agravado, apenas podendo ocorrer a condenação pelo crime de difamação simples, p. e p. no art. 180.º n.º 1 do CP, com a devida redução da moldura penal aplicável, e consequentemente, da medida concreta da pena aplicável. 26. A aplicação á arguida de uma pena de 130 dias de multa, e portanto situada acima da mediana da moldura penal é desproporcional e excessiva. 27. Os factos constituem uma comunicação realizada no âmbito de uma legitima suspeita de eventual ilicitude na colocação do menor na creche conforme reconhecido pelo Tribunal a quo. 28. Pelo que o grau de culpa é diminuto, atendendo que, quanto muito, o que exigiria seria um maior cuidado na comunicação remetida à creche quando confrontada com essa legítima suspeita. 29. A Arguida não apresenta condenações pela prática de quaisquer crimes, nem nunca beneficiou do regime da suspensão provisória do processo e apresenta uma adequada inserção social, profissional e familiar. 30. A arguida nunca se coartou de colaborar com a aplicação da justiça, foi prestável, educada e cooperante, tendo confessado o envio do mencionado e-mail em sede de audiência de julgamento e explicando as circunstâncias do envio do mesmo. 31. O e-mail chegou ao conhecimento de um grupo restrito de pessoas, e não imputou a quais interveniente a prática de quaisquer factos mas sim a possibilidade da prática. Durante se provou que tal e-mail tenha provocado quaisquer danos efetivos na reputação do ofendido ou do estabelecimento de ensino. 32. Pelo que não poderia a recorrente ter sido condenada na pena 130 dias de multa, situada acima da mediana da moldura penal, devendo o Tribunal a quo ter condenado a arguida em pena inferior, próxima do seu mínimo legal e sempre, situada num quarto da moldura penal aplicável (até 60 dias). 33. Decidindo o Venerando Tribunal da Relação pela absolvição da arguida pelos crimes que lhe foram imputados deverá a arguida demandada ser absolvida do Pedido de Indemnização Civil deduzido pelo Assistente/Demandante.” * O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo. * O MP respondeu ao recurso, que motivou, escrevendo nas conclusões o seguinte (transcrição): “1. Evidentemente que com o escrito que redigiu, a arguida visava o seu ex-marido e ora assistente, sendo, de acordo com o mesmo texto, o pai e a figura com cargo público que pressionou terceiros para conseguir um benefício pessoal. 2. Sendo o visado com a narrativa da arguida, tem o assistente legitimidade para apresentar queixa por ser titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação do crime de difamação. 3. A arguida foi condenada pela prática do crime de difamação agravada na forma dolosa pois o escrito teve o evidente propósito de atingir a honra e a consideração do assistente. 4. Cabendo-lhe asseverar-se da veracidade de uma tal afirmação antes de a divulgar. 5. Sendo que no limite a arguida considerou a possibilidade de aquilo que escreveu não ser verdade e conformou-se com essa possibilidade. 6. Não está, pois, em causa qualquer forma negligente do crime de difamação. 7. A pena é adequada e justa às circunstâncias do caso. 8. Pelo que não merece censura a douta decisão recorrida que deverá ser confirmada.” * Por seu turno, o Assistente apresentou resposta ao recurso referindo, desde logo, que as expressões em causa nos autos também o visavam a si, atacando a sua honra e consideração, pelo que não pode deixar de ser considerado ofendido, tendo assim legitimidade para se queixar. Relativamente ao pedido de nulidade da acusação particular por si deduzida, com a subsequente absolvição da recorrente, considera que existe falta de promoção do MP nos termos do artº 48º do CPP, o que constitui uma nulidade insanável nos termos e para os efeitos do artº 119º, alínea b) do CPP, ab initio, que é de conhecimento oficioso e pode ser suscitada em qualquer momento do processo, que deferida terá como consequência a invalidade desse acto do MP bem como de todos os actos que dele dependam, como decorre do artº 122º, nº 1 do CPP; e não a absolvição da recorrente. No que tange ao que qualifica como impugnação da matéria de facto por a arguida pretender que se considerem como não provados os pontos 6 e 7 dos factos provados, considera que não foi dado cumprimento ao disposto no art. 412º, 4 do CPPenal, uma vez que não foram indicadas as concretas passagens em que se funda a impugnação, nem são mencionadas por referência ao consignado em acta nos termos do artº 364º, nº 3 do CPP, pelo que a Relação não poderá conhecer de tal questão. No que tange ao vício da sentença invocado, previsto no art. 410º, nº 2, alínea b) do CPP, a consequência da verificação de tal vício não é dar tais factos como não provados, fazendo actuar o artº 17º, nº 1 do CP, como pretende a recorrente, mas o reenvio à 1ª instância, para novo julgamento, nos termos do artº 426º, nº 1 do CPP. Relativamente à invocação pela arguida de que a sua conduta foi negligente, como tal não sendo punível, uma vez que tal modalidade não se encontra prevista para o crime de difamação, tinha que ter impugnado os factos provados sob 6 e 7, o que não fez. Por outro lado defende, ao contrário da recorrente, que a condenação pelo crime de difamação agravada está correcta considerando que as frases dirigidas por aquela ao recorrido, o foram por causa do cargo que o mesmo exercia. Afirma, igualmente, que a pena aplicada se mostra adequada e proporcional, não devendo ser modificada. Finalmente, considera ainda que a condenação no PIC se deve manter, mesmo na hipótese de a recorrente ser absolvida do crime de difamação agravada. * Uma vez remetido a este Tribunal, a Ex.mª Senhora Procuradora-Geral emitiu o seguinte parecer (transcrição parcial): “VI. Posição do Ministério Público no TRL Questões prévias Relativamente à primeira questão prévia suscitada pela recorrente – falta de legitimidade do assistente para apresentar queixa, acompanhamos nesta parte, nos seus precisos termos em que vem formulada, a resposta da Exª. Senhora Magistrada do Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância à motivação dos recursos interpostos pela arguida e bem assim do Assistente, pelo que nesta parte deve improceder o recurso. Porém, e no que concerne à segunda questão prévia suscitada pela arguida /recorrente (das conclusões 4 a 12 do recurso), como bem anota a recorrente, estamos perante uma nulidade insanável da acusação particular deduzida pela assistente, porquanto estando em causa um crime de natureza semipública, a legitimidade para deduzir acusação é do MP. Com efeito, em .../.../2023, o MP proferiu despacho com o seguinte teor: “Nos presentes autos de inquérito foram denunciados factos suscetíveis de configurar a prática de um crime de difamação e de injúria, previstos e punidos pelos artigos 180.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do Código Penal. De harmonia com o disposto no artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal, tais crimes assumem natureza particular. CC apresentou queixa, bem como constituiu-se assistente, em conformidade com o estatuído no artigo 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo, para o efeito, sido admitida a sua intervenção nessa qualidade (fls. 31). No âmbito do presente inquérito, mostram-se já realizadas todas as diligências tidas por necessárias ao apuramento da verdade dos factos e sua autoria, tendo sido inquiridas as testemunhas indicadas pela assistente, assim como constituída e interrogada como arguida BB. Isto posto, notifique o assistente, CC bem como a sua Ilustre Defensora, a Sra. Dra. DD, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para deduzir no prazo de 10 (dez) dias, querendo, acusação particular. Em cumprimento do disposto no artigo 285.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ponderados os elementos de prova carreados nos autos, é do entendimento do Ministério Público que foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime de difamação e de injúria, previstos e punidos pelos artigos 180.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do Código Penal.” (refª CITIUS 56071201). Em face de tal notificação, o assistente deduziu acusação particular, bem como pedido de indemnização cível (PIC), sendo que naquele concluiu, naquela peça processual, nos seguintes termos: “A arguida BB praticou, como autora material e na forma consumada, 1 crime de difamação agravada, executado por escrito, através de meio – mensagem de correio eletrónico - que permite a sua fácil e rápida propagação, nos termos dos artºs 180º, nº 1, 182º, 183º, nº 1, alíneas a) e b), e 184º ex vi artº 132º, alínea l), todos do CP..” (refª CITIUS 5452223) Em .../.../2023, o MP proferiu despacho com o seguinte teor: “O Ministério Público acompanha a acusação particular deduzida, a fls. 113-122, nos termos do disposto no artigo 285.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.” (refª CITIUS 56241707) Em .../.../2023, o MP proferiu despacho onde consigna o mesmo teor, quanto ao acompanhamento da acusação particular, mas acrescentando “Apenas se discorda da qualificação jurídica, conforme despacho de fls. 104.” (refª CITIUS 56385331) A arguida não requereu a abertura de Instrução, tendo os autos sido remetidos para julgamento, com a arguida a apresentar a sua contestação e rol de testemunhas, que foram admitidos, tendo o tribunal a quo, desde logo conhecido da exceção de ilegitimidade do assistente como lesado, e quanto ao PIC, alegada pela arguida, que lhe foi indeferida, por não verificada, e da qual, não recorreu. A arguida foi submetida a julgamento, tendo sido proferida sentença, que a condenou no crime de difamação, agravado, previsto e punido nos termos dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 1, alínea l), todos do Código Penal. Ora, como bem anota o recorrente, estamos perante uma nulidade insanável da acusação particular deduzida pela assistente, porquanto estando em causa um crime de natureza semipública, a legitimidade para deduzir acusação é do MP. O Ministério Público, ao encerrar o inquérito, entendeu «que dos autos não resultam indícios suficientes da prática, pela arguida, do crime de difamação participado pelo assistente» e concluiu não estarem preenchidos os pressupostos da agravação dos crimes participados, pelo que, em consonância com essa decisão, não deduziu acusação publica e promoveu a notificação do assistente, nos termos do disposto no nº l do artigo 285º do CPP, para deduzir acusação particular. Donde, se o assistente é notificado pelo Ministério Público, findo o inquérito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285º do CPP, apenas lhe é lícito deduzir acusação por crime particular. Ao contrário o Assistente não agiu em conformidade com a notificação promovida pelo Ministério Público e, ao invés de deduzir acusação particular pelos crimes de difamação e injúria simples (p.p pelos artigos 180º e 181 º do Código Penal), deduziu acusação particular pelos crimes de difamação injúria agravadas (p.p. pelos artigos 180º, 181 º, 183 e 184º do CJ’). Os crimes imputados na acusação particular do Assistente são crimes de natureza semipública e, quanto a estes, apenas o Ministério Publico tinha legitimidade para deduzir a acusação, uma vez que este não o fez (pelas razões suprarreferidas e que o MP consignou quando encerrou o inquérito) deveria o Tribunal a quo ter rejeitado a acusação particular do Assistente. E, aliás, caso considerasse estar suficientemente indiciada a prática de um ou mais crimes de natureza semipública, o Assistente tinha a opção de arguir, perante o próprio Ministério Público que ordenou aquela notificação (nos termos do n.º 1 do art. 285º do CPP), a omissão de acusação pelo crime de natureza semi-publica. Tinha também a opção de suscitar a intervenção do superior hierárquico do referido Ministério Público (nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 278º do CPP); e tinha a opção de requerer a abertura de instrução (nos termos do disposto na alínea b) do n.º l do art. 287º do CPP). O Assistente podia ter feito prosseguir o processo penal quanto aos crimes de natureza particular, bastando, para tanto, que tivesse deduzido, nos 10 dias concedidos, a acusação em conformidade. Porque é facto irrefutável que a acusação deduzida pelo Assistente constituiu uma usurpação dos poderes do Ministério Público (o único com legitimidade para prosseguir a ação penal quanto a crimes de natureza pública e semipúblico. Estando em causa um crime de natureza semipública, deve consequentemente a acusação particular deduzida pelo assistente ser declarada nula, nos termos conjugados do art. 188.º do Código Penal, e 48.º, 49.º, e alínea b) do art. 119.º do CPP e sendo tal nulidade do conhecimento oficioso, pode ser decretada a todo o tempo. Assim, e nesta parte, afigura-se-nos que assiste razão à arguida/Recorrente, pelo que deve ser o recurso proceder. Mas, e se assim se não entender, mantemos no mais a posição já expressa pelo Ministério Público da 1ª instância.” * O assistente apresentou resposta ao parecer do MP reiterando o que havia concluído na resposta anteriormente apresentada. * Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência. * II- Questão prévia: Estatui o n.º 2 do artigo 400º, do CPPenal, que “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”. Ora, na hipótese dos autos o assistente/demandante deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 3.000,00€ (três mil euros) a título de danos não patrimoniais causados pela arguida com a prática do crime, acrescidos juros de mora a contar desde a data da prolação da sentença. Na sentença em recurso a arguida foi condenada no pagamento de 700,00 € (setecentos euros) a título de danos não patrimoniais originados pela prática do crime, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa de 4% desde a data da prolação da sentença até integral pagamento Ora, preceitua o art. 44º da Lei 62/2013 de 26 de Agosto que: 1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00. 2 - Em matéria criminal não há alçada, sem prejuízo das disposições processuais relativas à admissibilidade de recurso. 3 - A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação. Ou seja, a alçada do tribunal recorrido é de €5000,00, sendo assim indubitável que o pedido efectuado pelo demandante é inferior à alçada do Tribunal recorrido. Acresce que, no caso dos autos, também se verifica que a decisão objecto de recurso, condenando no pagamento da quantia de €700,00, também não é, evidentemente, desfavorável para a recorrente em valor superior a €2 500,00 – isto é, metade da alçada do tribunal de primeira instância. Ou seja, do exposto resulta que o recurso, em tal segmento, é inadmissível por a decisão ser, nessa parte, irrecorrível. No sentido do texto veja-se o que refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 3ª Edição Actualizada, pág. 1019: “Não é admissível o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil se o valor do pedido não for superior à alçada do tribunal recorrido (...) A versão inicial do CPP só previa a regra da sucumbência, mas a Lei 59/98 de 25.8, acrescentou-lhe a exigência do pedido superior à alçada do tribunal recorrido, pondo fim ao tratamento privilegiado dos recursos em matéria civil interpostos no processo penal.”. Assim, face ao ditame contido no n.º 3, do artigo 414º, do CP Penal, não obstante o recurso ter sido admitido pelo Tribunal a quo, não pode, neste momento, deixar de ser rejeitado, ao abrigo do disposto no art.º 420.º, n.º 1, al. b), por não estarem reunidos os pressupostos da respectiva admissibilidade; com efeito, no que tange à parte cível, dado o valor do pedido, a sentença é manifestamente irrecorrível, pelo que, nesse domínio, vai o recurso liminarmente rejeitado. III- Questões a decidir: Preceitua o art. 412.º, n.º 1, do CPPenal que “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”. É consabido que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou de nulidades que não se considerem sanadas, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na decorrência dos argumentos expendidos em sede de motivação. As questões a decidir prendem-se com o seguinte: - Legitimidade do assistente para apresentação da queixa relativamente aos factos em causa nos autos. - Falta de legitimidade do assistente para dedução de acusação por crime de natureza semi-pública, com a subsequente absolvição da recorrente pelo crime que lhe foi imputado na decisão em recurso ou, mantendo-se a condenação, a mesma deve ocorrer pela prática do crime de difamação simples. - Vícios da sentença (designadamente, a invocada contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão previsto no art. 410º, nº 2, alínea b) do CPP), com a subsequente alteração da qualificação jurídica dos factos – a arguida actuou com falta de consciência da ilicitude, com exclusão da culpa nos termos do art. 17º do CPenal, sendo a actuação da recorrente negligente e não dolosa. - A medida concreta da pena. * IV – Da sentença recorrida (transcrição parcial): “III. FUNDAMENTAÇÃO III.I. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos: [Acusação Particular] 1. O assistente CC e a arguida BB foram casados entre si por casamento contraído a ... de ... de 2017, tendo-se separado de facto em ... e o seu matrimónio cessado por divórcio decretado administrativamente a ... de ... de 2023. 2. Deste matrimónio nasceu um filho, EE, actualmente com 5 (cinco) anos de idade. 3. Por sentença proferida a ... de ... de 2023 no âmbito do processo n.º 251/22.7... que correu termos no J2 do Juízo de Competência AA – Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, foram reguladas as responsabilidades parentais do casal relativamente ao filho em comum, tendo aí ficado determinado que a criança ficaria a residir habitualmente com a arguida BB na ..., a cuja guarda ficava confiada, e que o progenitor CC passaria com a criança 70% do período de férias da mesma, podendo, no mais, estar com o filho de sexta-feira a domingo ou segunda-feira da semana seguinte, contabilizando tal período em 10 (dez) dias. 4. CC era, no decurso do ano de ..., Presidente do Conselho de Administração da sociedade “...”, nomeado pelo ... para o cargo, pelo período de 3 anos. 5. No dia ... de ... de 2022, a arguida BB enviou do seu endereço de correio electrónico ...” um email para o endereço electrónico da creche “...”, ...”, com o conhecimento (vulgo “Cc”) do endereço de correio electrónico ...”, titulado pelo assistente CC, bem como dos endereços de correio electrónico pertencentes ao Presidente da Direcção daquela instituição – ...” -, à tia do assistente – ...” -, ao pai da arguida – ...” -, à mãe da arguida – ...” -, e da irmã da arguida – ...” – com o seguinte teor: Exmos senhores, O meu nome é BB e sou mãe do EE. Escrevo-vos como mãe/tutora legal e como cidadã, na sequência do vosso email datado de ... de ... de 2022 que comunica a decisão da direção da instituição ... sobre a integração do meu filho da dita instituição. Como mãe, informo que: 1. O Tribunal da Horta decidiu a ... de ... de 2022 que a guarda do FF é atribuída a mãe. 2. A regulação das responsabilidades parentais, decidida na mesma sessão de tribunal, atribuiu ao pai direito de visita mensal de 5 dias, dada a ausência de vínculo do FF com o pai (reconhecida durante a frequência do FF na vossa instituição pelo vosso corpo docente e patente pela ausência de visita do pai ao FF nos últimos 6 meses). 2. O FF integrou já as atividades escolares de uma instituição junto da sua residência, em Lisboa. Assim, como tutora legal, informo que discordo da integração do FF na vossa instituição. Como cidadã, gostaria de mostrar o meu desagrado pela susceptibilidade da instituição à pressão de pessoas com cargos públicos. Todos sabemos que o FF não tinha vaga para continuidade na vossa instituição (junto em anexo o contrato de creche convosco onde consta a ausência de continuidade na instituição e o email onde tal foi reforçado) e que não era dos primeiros meninos na lista de espera para a sala dos 3 anos. Assim, a abertura excepcional de vaga após pressão pelo pai, figura pública local e regional, denota tráfico de influência e favorecimento pessoal, que constituem crime (art 335º do Código Penal) e revela valores institucionais dúbios. Solicito que revejam a vossa posição, sendo que não hesitarei em expor publicamente e superiormente, a secretaria regional da educação e eventualmente ministério da educação, esta situação. Antecipadamente grata pela atenção dispensada, BB. 6. A arguida sabia que as afirmações contidas no referido email eram adequadas a denegrir a imagem, dignidade e honra pessoal e profissional do assistente CC, perante o destinatário principal e demais familiares a quem a mensagem foi remetida, bem como perante a comunidade em face do cargo que o assistente ocupava, o que representou como consequência necessária do seu comportamento. 7. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta lhe estava vedada por lei. * [Contestação] 8. A arguida agiu conforme descrito sob o número 5. suspeitando que o assistente havia exercido, conforme descreveu no email remetido, pressão sobre a Instituição referida para que fosse aberta uma vaga não anteriormente prevista para o seu filho, fazendo uso da influência que tinha na comunidade por força do cargo político que ocupava. 9. Desde o divórcio, constituía prática habitual que a troca de correspondência electrónica entre a arguida e o assistente fosse feita com o conhecimento (vulgo “Cc”) de familiares de ambos. * 10. A arguida nasceu a ... de ... de 1981. 11. É licenciada em …. e mestre em …. 12. É pós-graduada em …. 13. Trabalha como médica especialista em …. no ..., auferindo um rendimento mensal líquido no valor de 3.500,00€ (três mil e quinhentos euros). 14. Reside em casa própria, sita em .... 15. Paga ao banco uma prestação mensal no valor de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros) para liquidação de empréstimo para aquisição de casa própria. 16. Despende a quantia mensal de 480,00 € (quatrocentos e oitenta) euros para pagamento da prestação devida à creche frequentada pelo seu filho FF. 17. Recebe uma pensão de alimentos devida ao filho menor de idade, paga pelo assistente, no valor de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros) mensais. * [Antecedentes Criminais] 18. A arguida não tem antecedentes criminais conhecidos. * [Pedido de Indemnização Civil] 19. O ofendido CC, virtude dos factos descritos sob os números 1 a 5, sentiu-se humilhado, angustiado e revoltado, além de ansioso e preocupado, sentimentos que perturbaram o seu descanso, o seu sono e a sua produtividade. * Por sua vez, resultaram não provados os seguintes factos, relevantes para a decisão da causa: [Acusação] a) A arguida sabia que as afirmações referidas em 5. eram falsas. [Contestação] b) O filho menor do casal, uma vez que residia com a progenitora em Lisboa, não carecia da vaga na instituição “...”, pois já frequentava, ali, outra instituição de ensino. c) A ocupação da vaga pelo filho do casal na instituição “...” conduziu à preterição de 9 (nove) crianças que se encontravam primeiramente na lista de espera para admissão na Instituição, uma vez que estava colocado no 10.º lugar na referida lista. d) A arguida agiu conforme descrito em 5. por acreditar que tal verbalização, perante o assistente, o presidente da instituição, a intuição e os familiares do casal, se afigurava necessária e pertinente para garantir a equidade e a justiça social no tratamento da situação individual das demais crianças em espera. * III.II MOTIVAÇÃO DE FACTO O Tribunal formou a sua convicção a respeito da factualidade apurada com base, desde logo, nas declarações da própria arguida, que reconheceu, grosso modo, a factualidade objectiva que lhe era imputada. Não se mostrava, assim, controvertida a factualidade que acabou por dar-se como demonstrada sob os números 1 a 5, reconhecida pela própria arguida – encontrando-se, de resto, a descrita sob os números 1 e 3 devidamente corroborada pela cópia das decisões (administrativa e judicial, respectivamente) em causa, conforme fls. 119 e 120 a 122 dos autos, e o email descrito sob o número 5 com respaldo na captura de ecrã de fls. 15 dos autos, documentação cuja validade probatória a defesa não colocou em causa. Quanto ao mais, negou que, com tal conduta, tivesse agido com a intenção de denegrir a imagem do assistente, invocando, em suma, encontrar-se a actuar na prossecução de um interesse público, tendo sido essa a sua intenção quando expôs o que apelidou como “injustiça social”, e na procura de restabelecer a equidade de tratamento das crianças que aguardavam a sua admissão na mesma creche, uma vez que suspeitava (ainda que não tivesse a certeza) que da pressão exercida pelo ex-marido sobre a creche frequentada pelo filho havia resultado a preterição de outras crianças que se encontravam à frente na lista de espera. No entanto, admitiu ter conhecimento de que as mensalidades do contrato mantido com a referida creche até ... continuaram a ser pagas pelo assistente [facto dado como provado sob o número 7], e que, sendo atribuído ao assistente, enquanto pai, o direito de convívios com o filho, este necessitaria de frequentar uma creche diferente da que frequentava no continente, nos dias em que viajasse para a ... para estar na companhia do progenitor. Ora, os factos consubstanciadores do elemento subjectivo do crime tratam-se, naturalmente, de elementos do foro interno do agente, não objectiva ou directamente demonstráveis através dos meios de prova coligidos, mas que, no entanto, facilmente se inferem dos demais factos objectivos apurados – muito concretamente, in casu, do contexto em que ocorreram as imputações em causa. Temos, pois [factos dados como provados sob os números 1 a 5, admitidos pela arguida], que a arguida dirigiu um email a uma das creches frequentadas pelo filho, levantando a suspeita de que a instituição havia cedido à pressão efectuada pelo assistente para a abertura de uma vaga extraordinária, o que apenas ocorreu devido ao cargo político que o mesmo ocupava, e tal consubstanciava a prática de um crime. É certo que a suspeita levantada não se afigura, atendendo aos contornos do caso, absolutamente desprovida de sentido. De facto, o próprio assistente CC reconheceu que a vaga do filho FF na creche “...” não se encontrava assegurada pela simples frequência do ano lectivo anterior. Acrescentou que, no sentido de garantir o direito a convívios prolongados que acabou por solicitar uma reunião com o presidente da instituição, sensibilizando-o para a questão, tendo sido então, nessa sequência, aberta uma vaga para o filho do casal, reconhecidamente extraordinária. A explicação adiantada acabou por ser corroborada, de forma serena, clara e, de um modo geral, isenta, pela testemunha GG, então presidente da instituição, que assegurou, no entanto, que na mesma situação de FF se encontravam, pelo menos, outras cinco crianças, referindo ser prática habitual da creche “...” facilitar a abertura de vagas que não se encontravam anteriormente previstas para assegurar a admissão de menores em situações familiares mais problemáticas, no seu superior interesse (v.g. em situação de divórcio, separação ou crianças em situação de perigo ou em vias de adopção), como considerou ser o caso, para o qual abriu, nestes termos, a referida excepção. É, portanto, verosímil que a arguida, confrontada com a abertura de uma vaga assumidamente extraordinária, tenha aventado hipótese da sua ilegalidade. Tanto mais, que foi por todos reconhecido que a arguida e o assistente não comunicavam entre si, por se encontrarem no decurso de um processo de divórcio litigioso, com admitidas animosidades de parte a parte, relatadas quer pela própria arguida, quer pelo assistente, quer pelo próprio pai da arguida - testemunha HH. Demonstrativo da gravidade do conflito, ainda que não atípico em contextos semelhantes, é a circunstância, pelos mesmos igualmente relatada, de as comunicações entre o ex-casal, desde a separação de facto, terem passado a ocorrer exclusivamente via email e com o conhecimento de familiares e/ou da Segurança Social [facto dado como provado sob o número 9]. Não surpreende, assim, que a arguida, no seio de uma relação deteriorada com o seu ex-companheiro, desconfiando, conforme a própria referiu, desde eventos passados, da integridade profissional do assistente, tenha agido na crença de que o mesmo havia abusado da sua posição de poder por forma a conseguir uma vaga que, do que tinha conhecimento e segundo lhe havia sido comunicado pela instituição em momento anterior, não se encontrava prevista nem garantida. Tal circunstância surge, aliás, corroborada pelas declarações do assistente e da testemunha GG, que reconheceram a circunstância de a criança FF, uma vez que iria completar três anos de idade em ..., deixaria de ter vaga assegurada na creche que frequentava, circunstância que foi comunicada aos pais no início do ano, conforme aduzido pela arguida. Crê-se, assim, que a arguida agiu efectivamente sob a suspeita da veracidade das imputações realizadas [facto dado como provado sob o número 8], ainda que não se encontrasse certa das mesmas. No entanto, é ponto assente que o filho do ex-casal necessitaria de frequentar, se não esta, qualquer outra instituição nos momentos em que se encontrasse a residir com o pai (assistente) na ..., caso lhe fosse conferido direito a convívios. Por outro lado, como se referiu supra, a arguida reconheceu não ter a certeza das suspeitas que levantava. Afigura-se-nos, assim, que o email em causa surge num quadro de conflito grave e actual entre a arguida e o ofendido, após a separação do casal e o compasso de espera pela decisão judicial da guarda do filho menor em comum, conjuntura naturalmente favorável – conflitos destes e de outro tipo não raras vezes tomam como palco as salas dos Tribunais de Família e das Crianças - a condutas de retaliação pouco reflectidas de parte a parte. Como resulta ter sido o caso. O email foi, pois, remetido não só à instituição visada, como também ao próprio assistente e a outros cinco familiares, e ainda ao presidente da instituição. De facto, se a arguida efectivamente pretendesse, de boa fé, conforme alegou, expor legitimamente a situação que tomava como crime, poderia e deveria ter optado por se dirigir às autoridades policiais ou judiciárias com competência para dar seguimento ao procedimento devido. A capacidade de discernimento da arguida - diga-se, necessariamente acima do cidadão comum, evidenciada no seu percurso profissional e nas suas elevadas qualificações académicas - não poderia fazê-la ignorar que seria esse o único meio através do qual poderia obter a “justiça social” que alegou estar na base da sua conduta. E caso pretendesse exclusivamente desencadear um procedimento interno, bastaria que para tal remetesse o email em causa à direcção da instituição, expondo as suas dúvidas e solicitando esclarecimentos. Ao invés, a arguida optou livremente por imputar a prática de factos, não sobre a forma de suspeita, mas sob a forma de certeza (quando em audiência admitiu não ser o caso), que sabia necessariamente serem graves, porquanto revestiam a prática de um crime, perante uma instituição, insinuando práticas ilícitas que tinham como co-autor o assistente, com o conhecimento também do próprio e de quem lhe era mais próximo. E não pode colher a alegação de que os demais destinatários apenas constaram do email por tal constituir prática habitual nas comunicações entre o casal, dado que não estava em causa o tratamento de qualquer questão pessoal ou familiar. Na verdade, a arguida, conhecendo todas as vias alternativas lícitas à sua conduta, não poderia deixar de com o aludido comportamento pretender, não procurar alcançar um qualquer interesse público de exposição do que acreditava ser uma injustiça, mas sim utilizar esse conhecimento – ainda que crente de que a sua suspeita era fundada – para prosseguir uma retaliação pessoal. O que resulta do contexto em causa, é, pois, uma clara intenção de condicionar eventuais convívios do filho em comum com o assistente, ao sugerir perante a instituição que a abertura da vaga poderia ser vista, sem qualquer outro enquadramento, como decorrente de uma permeabilidade da instituição à influência política do assistente. Não cremos, pelas mesmas razões, que a arguida visasse directamente com a sua conduta restabelecer uma qualquer justiça social, repondo o lugar ocupado pelo filho e vagando-o para outras crianças que tivesse à sua frente. Por um lado, porque a própria admitiu não estar segura da veracidade das suas imputações, podendo sempre, para esse efeito, conforme se referiu, ter simplesmente pedido esclarecimentos à instituição em causa, ao invés de, como fez, verbalizar uma imputação de factos graves, como forma de acusação informal de um crime. Por outro lado, porque, na qualidade de mãe, não lhe interessaria – ou não lhe deveria interessar – que o seu filho não tivesse qualquer ocupação ou ficasse sem guarida adulta durante o horário laboral do pai nos momentos em que se encontrava a residir na .... E se pretendia, mais uma vez, então seria com a finalidade de criar entraves e dificuldades acrescidas na procura de uma solução viável por parte do assistente, impedindo uma eventual decisão judicial de contactos prolongados com o filho comum, por falta de condições do assistente, e não por se encontrar tolhida de preocupações altruístas ou de solidariedade social. É, assim, clara a intenção perversa da arguida ao suscitar suspeitas, ainda que no seu entender fundadas – mas sem que tenha procurado esclarecer-se -, da prática de factos com relevância criminal por parte do assistente, perante uma instituição e alguns familiares de ambos [facto dado como provado sob o número 6], nada tendo resultado, no mais, que permitisse fazer questionar o carácter livre, voluntário e consciente deste seu comportamento. Ainda assim, analisando a conduta em causa, não consideramos poder ir tão longe ao ponto de afirmar que tenha tido a deterioração da imagem do assistente como sua finalidade primordial, mas sim aquela (de desocupar a vaga atribuída ao filho naquela instituição, com o intuito de prejudicar o assistente nas questões de regulação judicial do exercício das responsabilidades parentais), conforme, aliás, se extrai da “ameaça” constante da parte final do email enviado (“Solicito que revejam a vossa posição, sendo que não hesitarei em expor publicamente e superiormente, a secretaria regional da educação e eventualmente ministério da educação, esta situação”). Veja-se, pois, que a arguida remeteu o email em causa à creche onde o filho se encontrava matriculado, ao que tudo indica para condicionar, de forma directa, a imagem da instituição perante si mesma, insinuando que a mesma poderia ficar igualmente comprometida caso a situação fosse tornada pública [referindo que o filho “não tinha vaga para continuidade na (…) instituição (…) e que não era dos primeiros meninos na lista de espera para a sala dos 3 anos”, razão pela qual teria ocorrido “a abertura excepcional de vaga após pressão pelo pai, figura pública local e regional”, circunstância que qualificou como “tráfico de influência e favorecimento pessoal, que constituem crime (art 335º do Código Penal)” e que revelava “valores institucionais dúbios” - facto dado como provado sob o número 5]. Mas, ao endereçar a mensagem igualmente ao seu presidente, ao assistente e a outros familiares, há que concluir que, ainda que não tenha sido a sua finalidade primordial, a arguida não podia deixar de ter presente como consequência necessária da sua conduta o comprometimento da imagem de confiança que também o assistente poderia representar no seio familiar e na comunidade, atenta a gravidade da sua imputação e o cargo público/político por este ocupado [facto dado como provado sob o número 6]. Não podia a arguida, no mais, deixar de conhecer o carácter proibido do seu comportamento, movida por tais intentos, uma vez que a responsabilidade criminal daquele que incorre em semelhantes condutas é sobejamente conhecido na comunidade, sobretudo quando se revelava claro que a sua conduta não seria, daquela forma, adequada a desencadear qualquer investigação ou procedimento criminal contra o assistente, mas tão-só prejudicar o lugar do filho na instituição e reflexamente prejudicar a imagem do assistente [facto dado como provado sob o número 7]. No mais, no que concerne às condições pessoais da arguida, o Tribunal ateve-se às declarações prestadas pela arguida a este respeito, cuja razoabilidade e espontaneidade, nesta parte, afastaram motivos para duvidar da respectiva veracidade, as quais encontraram, além disso, respaldo nas pesquisas oficiosamente realizadas às bases de dados da Segurança Social [factos dados como provados sob os números 10 a 17]. Quanto aos seus antecedentes criminais, o Tribunal considerou o teor do seu certificado de registo criminal, atenta a força probatória de que beneficia [facto dado como provado sob o número 18]. Já a consequência das condutas descritas na pessoa do assistente foram, no mais, espontaneamente descritas pelo próprio e pela testemunha HH, ambos que relataram o estado de preocupação, tristeza e ansiedade que o comportamento da arguida lhe provocara, que, de todo o modo, não deixa de considerar-se como reacção natural de qualquer cidadão comum a acusações com a gravidade em causa (práticas criminais), sobretudo quando adequadas a comprometer a imagem de confiança e de integridade perante a comunidade inerente ao desempenho de funções num cargo público e político como aquele que era ocupado pelo assistente [facto dado como provado sob o número 19]. As demais testemunhas não demonstraram manter qualquer convívio pessoal com o ofendido, razão pela qual os seus relatos conclusivos a respeito de publicações pontuais de viagens que foram vendo nas redes sociais, que pouco ou nada permitem extrair, como bem se sabe, do estado mental do respectivo autor, não foram consideradas. No que concerne à factualidade dada como não provada, dir-se-á que a mesma surgiu em flagrante contradição com a demais matéria apurada. Assim, em primeiro lugar, se se apurou que a arguida suspeitava das acusações que dirigiu à instituição, visando o assistente, por tudo quanto supra se deixou exposto, surge a referida crença contrariada, necessariamente, pela invocação de que a mesma se encontrava ciente de que as mesmas eram falsas [facto dado como não provado sob a alínea a)]. No que concerne às alíneas b), c) e d), contêm as mesmas versões factuais trazidas pela arguida que, conforme igualmente supra se expôs, não puderam colher. Com efeito, sendo certo que o filho menor do casal acabou por ficar a residir com a progenitora em Lisboa mesmo antes da decisão do Tribunal de lhe atribuir a sua guarda, conforme reconheceram quer a arguida, quer o assistente, certo é que, tendo o ofendido, na qualidade de progenitor, direito a convívios e residindo fora do continente, passava a tornar-se necessária a frequência, pelo filho comum, de uma outra instituição nos momentos em que eventualmente se encontrasse a residir com o pai, pelo que constituiria raciocínio falacioso concluir-se, sem mais, que a simples circunstância de a criança se encontrar matriculada numa instituição significaria que não teria interesse em matricular-se em qualquer outra (maxime, reitere-se, no local de residência do progenitor). Da mesma forma, que a arguida tivesse agido com a intenção de garantir equidade e justiça social no tratamento das crianças em lista de espera é invocação que surge em manifesta contradição com a clara intenção depreciativa com que levantou a suas suspeitas perante a instituição, conforme apurado. Por outro lado, da prova produzida não foi possível adquirir qualquer convicção no sentido de que a vaga extraordinária ocupada filho do casal na instituição “...” conduziu à preterição de 9 (nove) crianças que se encontravam primeiramente na lista de espera para admissão na Instituição, uma vez que tal foi negado pelo próprio presidente da instituição GG, num discurso coeso, sereno, objectivo, não contrariado por qualquer outro meio de prova, e, como tal, credível. * III.III FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO III.III.I. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS O assistente imputa à arguida a prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um (1) crime de difamação agravada, previsto e punido nos termos dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 1, alínea l), todos do Código Penal; e de um (1) crime de injúria agravada, previsto e punido nos termos dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 184.º, ex vi artigo 132.º, alínea l), todos do Código Penal. Importa, assim, analisar se os factos apurados são subsumíveis aos imputados crimes. * Nos termos do artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal que “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”. Por sua vez, determina o artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”. O artigo 182.º esclarece, no mais, que “À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”. Encontrando o seu fundamento constitucional no direito ao “bom-nome” e à “reputação” (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), o BEM JURÍDICO reconduz-se, em ambos os casos, à honra na sua dimensão normativo-pessoal, temperada com uma dimensão fáctica. A criminalização opera, assim, numa estreita ponderação entre a liberdade de expressão, igualmente constitucionalmente tutelada (artigo 37.º, n.º 1, da Lei Fundamental) e o direito à honra, segundo o princípio de que “A liberdade de expressão tem de ser exercida sempre dentro de limites do respeito à honra e reputação alheios, constitucionalmente garantidos” [Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.05.2006, processo n.º 836/2006-5, relatado por Margarida Blasco, consultado em www.dgsi.pt]. Assim entendida, a honra é tida como um bem jurídico complexo, que inclui simultaneamente o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade (honra stricto sensu, enquanto núcleo essencial da integridade moral do indivíduo), quer a sua manifestação exterior, ou seja, a sua reputação, consideração e bom nome no seio da comunidade [Costa, José Faria de, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, 2012, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 909 e 910, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.12.2019, processo n.º 4695/15.2T9PRT.L1-9, relatado por Abrunhosa de Carvalho, consultado em www.dgsi.pt], pertencendo a todas as pessoas, independentemente do seu valor social [op. cit.]. Por outras palavras, o bem jurídico honra contempla duas concepções: uma concepção fáctica e uma concepção normativa. Na primeira concepção seria possível distinguir a “honra subjectiva”, consubstanciada “no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma” e a “honra exterior”, correspondente à “representação que os outros têm sobre o valor da pessoa, o mesmo é dizer, a consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza num contexto social envolvente”. Na segunda, é possível distinguir o conceito normativo-social de honra que representa, para Costa Andrade (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, 2012, Coimbra Editora, Coimbra, p. 602), “a merecida ou fundada pretensão de respeito da pessoa no contexto das relações de comunicação e interacção social em que é chamada a viver” e o conceito normativo-pessoal de honra, enquanto “aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade”. Tratam-se, ambos, de crimes de perigo abstracto-concreto, sendo suficiente a possibilidade de ofensa à honra ou consideração de outrem, desde que essa possibilidade seja concretamente verificável, designadamente quando o modo de actuação do agente tenha aptidão para o resultado danoso. Partilhando ambos os crimes essencialmente dos mesmos ELEMENTOS TÍPICOS OBJECTIVOS, o crime de injúria distingue-se do crime de difamação porquanto o preenchimento do primeiro depende da imputação directa dos factos ou juízos ofensivos da honra do indivíduo, dirigindo-se exclusivamente à pessoa do ofendido, ao passo que o crime de difamação pressupõe a interposição de uma terceira pessoa, à qual são dirigidas as expressões ofensivas da honra do ofendido, seu destinatário (imputação indirecta). Para que se verifique a fattispecie incriminadora torna-se essencial, pois, a constatação de uma imputação directa (injúria) ou indirecta (difamação) de factos ou juízos desonrosos e ofensivos da honra ou consideração de uma determinada pessoa (ainda que meramente sob a forma de suspeita). Neste conspecto, a acção pode consistir em imputar um facto ou em formular um juízo. A este respeito, refere José de Faria Costa que a imputação de um facto se traduz na imputação de algo “que é ou que acontece, na medida em que se considera como dado real da experiência”. Já o juízo, que poderá ser psicológico, lógico, axiológico ou jurídico, “deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa à existência de uma ideia ou de um coisa mas ao seu valor. E trata-se de uma valoração que tem a sua origem no agente, logo, sempre eivada de uma umbilical relação com a sua compreensão do mundo” [in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, 2012, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 913 a 914]. E, nos termos do citado artigo 182.º, a conduta poderá ser verbal, como escrita, gestual, ou perpetuada por imagens ou por qualquer outro meio de expressão. No que ao TIPO SUBJECTIVO diz respeito, cumpre referir que ambos se tratam de crimes dolosos, em qualquer uma das formas previstas no artigo 14.º do Código Penal, bastando-se com a verificação de um dolo genérico, isto é, com a consciência do facto ser lesivo da honra e consideração alheia, dispensando a verificação de um dolo específico, traduzido no animus diffamandi vel injuriandi, isto é, numa especial intenção e propósito de ofender [vide, neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.1986, processo n.º 038571, relatado por Vasconcelos de Carvalho e de 14.01.2009, processo n.º 08P3056, relatado por Souto de Moura; e, na jurisprudência da Relação, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 24.09.2018, processo n.º 363/16.6T9CHV.G1, relatado por Fátima Furtado, Tribunal da Relação do Porto de 12.01.2022, processo n.º 136/19.4PASJM.P1, relatado por Pedro Vaz Pato e do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.01.2023, processo n.º 1027/19.4T9VFX.L1-5, relatado por Mafalda Sequinho dos Santos, todos consultados em www.dgsi.pt]. * Do exposto resulta, antes de mais, a manifesta impossibilidade, mesmo no plano puramente dogmático, de, através da mesma conduta, ter preenchido a arguida, simultaneamente, os dois crimes imputados. É que a injúria, como refere Faria Costa (in, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, p. 629), e conforme já supra se deixou exposto, concretiza-se num ataque directo, sem intromissão de terceiros, à pessoa do ofendido, estruturando-se, por conseguinte, numa relação de existência comunicacional bipolar, contrariamente à da difamação, que se realiza numa relação triangular. Assim, são dois os elementos objectivos do tipo de ilícito de injúria: (i) a ofensa propriamente dita, que pode concretizar-se na imputação de um facto lesivo da honra, ou por meio de uma formulação de um juízo também lesivo de honra ou ainda pela reprodução daquele facto ou juízo; e (ii) a imputação directa ao ofendido. O primeiro elemento enunciado é, assim, comum a ambos os ilícitos. Já o segundo elemento enunciado permite a distinção entre a injúria e a difamação, com base na imputação directa ou indirecta do facto, ainda que sob a forma de suspeita, ou juízo ofensivo da honra ou consideração, ocorrendo injúria sempre que o agente se dirige de forma directa ao sujeito passivo, e a difamação sempre que o acto ofensivo se dê por interposta pessoa. De forma mais impressiva, e recorrendo às palavras de Faria Costa na obra supra referenciada [pp. 911 e 912] “uma coisa é a violação da honra perpetrada de forma directa (na forma mais simples e comum: isto é, perante a vítima) outra será levar a cabo aquela mesma ofensa fazendo intervir uma terceira pessoa, operando uma tergiversação, instrumentalizando um terceiro para conseguir os seus intentos (…). Nesta óptica, fácil é de entender que o ponto nevrálgico da difamação se centra, como de imediato ressalta mesmo com a mais desatenta das leituras do tipo, na imputação a outrem de factos ou juízos desonrosos efectuada, não perante o próprio, mas dirigida, veiculada através de terceiros”. * Ora, no caso sub judice, resultou provado que a arguida endereçou à creche onde o filho se encontrava matriculado um email no qual referia que o mesmo “não tinha vaga para continuidade na (…) instituição (…) e que não era dos primeiros meninos na lista de espera para a sala dos 3 anos”, razão pela qual teria ocorrido “a abertura excepcional de vaga após pressão pelo pai, figura pública local e regional”, circunstância que qualificou como “tráfico de influência e favorecimento pessoal, que constituem crime (art 335º do Código Penal)” e revelava “valores institucionais dúbios” [facto dado como provado sob o número 5]. Temos, assim, que dirigindo-se a um terceiro (instituição) mas imputando factos quer à instituição, quer ao assistente (a prática de um crime), sempre seríamos levados a concluir que, quanto ao assistente, apenas poderia estar em causa a prática de um crime de difamação - [sem prejuízo de se concluir que a conduta seria adequada a constituir a prática de um crime de injúria, mas contra a instituição – não tendo, no entanto, sido dirigida pela mesma qualquer queixa que pudesse legitimar o procedimento criminal quanto à mesma (artigo 188, n.º 1, do Código Penal)], mas já não, simultaneamente, quanto ao mesmo ofendido, de um crime de injúria. E temos por certo que a arguida, com a conduta perpetrada, preencheu, efectivamente, o referido tipo legal de crime (difamação). Veja-se, na verdade, que a sua conduta se poderia dizer abstractamente adequada a preencher o ilícito-típico de denúncia caluniosa previsto no artigo 365.º, n.º 1, do Código Penal, nos termos do qual “Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Conforme refere Manuel da Costa Andrade, a multiplicidade de bens jurídicos tutelados pelo crime de denúncia caluniosa determina que o aludido crime estabeleça com os demais crimes contra a honra, previstos e punidos nos termos dos artigos 180.º e seguintes do Código Penal, uma relação de “concurso aparente (ex vi especialidade)” [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, p. 554]. Pelo que, in casu, ao imputar a prática de um crime ao assistente, mas não se verificando a consciência da falsidade da imputação [facto dado como provado sob o número 8 e facto dado como não provado sob a alínea a)], nem a intenção de instauração de procedimento criminal, mas representando os factos imputados como adequados a ferir a imagem do assistente e representando como consequência necessária, através deles, feri-lo na sua honra e na sua consideração [facto dado como provado sob o número 6], prevalece o ilícito que se limita a tutelar aquela honra. Diga-se, de resto, que a circunstância de ter resultado apurado que a arguida suspeitava da veracidade da sua afirmação [facto dado como provado sob o número 8] não se afigura suficiente para desencadear o disposto no artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal, que determina que “[a] conduta não é punível quando: a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”. Desde logo, porque os mencionados requisitos são cumulativos (sentido da expressão “e”), não tendo resultado da matéria apurada quaisquer circunstâncias que pudessem levar a concluir que a arguida visava a consecução de interesses legítimos (antes pelo contrário…) [vide facto dado como não provado sob as alíneas b), c) e d)]. Não resultando apuradas quaisquer outras circunstâncias que pudessem excluir a sua culpa ou a sua ilicitude, tendo, pelo contrário, resultado provado que a arguida agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, ciente de que a sua conduta era legalmente punida [factos dados como provados sob os números 6 e 7], cumpre concluir que incorreu a mesma na prática do crime de difamação de que vinha acusada, nos termos do artigo 180.º, n.º 1, por força da equiparação prevista no artigo 182.º (tendo sido perpetuada por mensagem escrita), ambos do Código Penal, sob a forma de dolo necessário, nos termos do artigo 14.º, n.º 2, do Código Penal (nos termos do qual “Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta”). Deverá, inversamente, ser absolvida do crime de injúria agravada, previsto e punido nos termos dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 184.º, ex vi artigo 132.º, alínea l), todos do Código Penal, de que igualmente vinha acusada. * A arguida vem ainda acusada de ter incorrido nas circunstâncias agravantes previstas nos artigos 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 1, alínea l), todos do Código Penal. Cumpre analisar. * PUBLICIDADE E CALÚNIA [ARTIGO 183.º, N.º 1, ALÍNAS A) E B), DO CÓDIGO PENAL Com base neste tipo fundamental do crime de difamação, o artigo 183.º, n.º 1, vem proceder à agravação da sua moldura abstracta, determinando que “Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º: a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seu limites mínimo e máximo”. A primeira das alíneas aponta para a difamação cometida através de meios ou em circunstâncias que aumentem o efeito seu propulsor ou a sua ressonância [publicidade]. Estará, portanto, em causa uma agravação ao nível da ilicitude do facto, cujas refracções são susceptíveis de revelar um maior contributo na dimensão de perigo para o bem jurídico tutelado (a possibilidade da proliferação aumenta a probabilidade de afectação do bom nome e imagem da vítima). Já a segunda assenta na maior perversidade do agente do crime que, sabendo da falsidade dos factos, mesmo assim avança com a sua imputação [calúnia] [Costa, José Faria de, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Editora, Coimbra, p. 642], operando assim, a agravação ao nível da culpa. Em ambos os casos não se dispensa, de todo o modo, a consciência do arguido de que encontram reunidas, no caso concreto, as referidas circunstâncias agravativas, devendo, no primeiro caso, representar que o meio empregue ou as circunstâncias que o rodeiam surgem como adequados a facilitar a propagação das expressões imputadas, e no segundo caso, representar a falsidade dos factos – não se admitindo que o mesmo se encontre em dúvida ou represente como provável a sua inverdade, o que afasta a possibilidade de punição ao nível do dolo meramente eventual [ob. cit., p. 645]. Ora, quanto à calúnia, in casu, resultou não provado que a arguida actuava ciente da falsidade das imputações efectuadas [facto dado como não provado sob a alínea a)], além de, similarmente, nada ter resultado provado acerca da veracidade ou inverdade dos factos insinuados. No que se refere à publicidade, explica José de Faria Costa que “é a contextualização que vai determinar o sentido da ideia de facilitação e não propriamente o número de pessoas (…) que escuta ou «partilha» a imputação ou a valoração desonrosas” [in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 640 a 641]. Em maior desenvolvimento do tema, remete Paulo Pinto de Albuquerque para o conceito de publicidade contido no crime de ultraje por motivo de crença religiosa (artigo 251.º do Código Penal), sobre o qual refere o carácter público pressupõe o “círculo aberto de destinatários”, o que, segundo o autor, sempre se verificará quando no local onde os factos tenham lugar seja público, ou a ofensa seja produzida face a um número indeterminado de sujeitos [in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição actualizada, 2015, Universidade Católica Editora, Lisboa, pp. 733 e 920 a 921]. Já J. M. Damião da Cunha interliga a ideia de ofensa pública somente à produção da mesma “face a um conjunto indeterminado de pessoas, quer no número, quer na individualidade”, afastando a publicidade nos casos em que os factos tenham lugar perante um círculo restrito de pessoas, a menos que possam vir a ser revelados para a sociedade. E acrescenta: “A publicidade afere-se pelo facto de as afirmações ofensivas poderem ser apreendidas por terceiros que ultrapassem aquele círculo restrito de pessoas. Não parece, pois, que, para afirmar a publicidade da ofensa, basta que esta seja produzida em lugar público ou tão-só na presença de outras pessoas (…) mas sim o facto de dela poderem tomar conhecimento terceiros, face àquele restrito círculo de pessoas” [in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, 2.ª edição, 2022, Gestlegal, Coimbra, p. 852]. É este o entendimento que se acompanha no que a este tipo de crime respeita, sob pena de, em sentido diverso, a esmagadora maioria das ofensas à honra que chegam aos Tribunais, vulgarmente no contexto de altercações que têm lugar em local público, passarem a reconduzir-se na sua totalidade a uma agravação que o legislador (nessa qualidade) visou para casos cuja dignidade penal acrescida a justificava – esgotando o sentido e aplicação daquele tipo-de-crime matricial, o qual já visa tutelar a preservação da imagem da pessoa tanto perante si mesma como perante terceiros. Volvendo ao caso dos autos, resultou apurado que a ofensa em causa foi perpetrada sob a forma escrita, através da remessa de um email a um grupo restrito de pessoas, concretas e determinadas. Não pode, assim, afirmar-se que as expressões imputadas teriam sido apreendidas por um número indefinido, e assim passíveis de serem facilmente proliferadas a terceiros, com acréscimo do perigo para o bem jurídico tutelado. Por outro lado, sempre se diria que nada foi apurado quanto à consciência da arguida a respeito da facilitação que as circunstâncias do caso proporcionariam à proliferação das imputações realizadas (elemento omisso na acusação particular, nada tendo resultado da prova no sentido de o demonstrar por forma a justificar uma eventual alteração substancial de factos). Por todo exposto, conclui-se que não preencheu a conduta da arguida qualquer uma das circunstâncias agravantes previstas no artigo 183.º, n.º 1, do Código Penal. * DA AGRAVAÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 184.º DO CÓDIGO PENAL Sob a epígrafe “Agravação”, dispõe ainda o artigo 184.º do Código Penal que “As penas previstas nos artigos 180.º, 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade”. Entendeu, assim, o legislador existirem especiais razões de proteção e de tutela penal se os factos forem praticados contra qualquer das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, que estejam no exercício de funções ou por causa delas, acarretando a exigência de uma proteção da honra acrescida, radicada na dignidade, reputação e consideração exteriores inerentes a tais funções. A conduta do agente revelará, assim, especial censurabilidade se o crime for praticado (i) contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, (ii) no exercício das suas funções ou por causa delas. In casu, resultou apurado que o ofendido CC era, à data dos factos, Presidente do Conselho de Administração da sociedade “...”, nomeado pelo ... para o cargo, pelo período de 3 anos [facto dado como provado sob o número 4]. Estabelece o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro (que aprova o Regime Jurídico do Sector Público Empresarial), que 1 - São empresas públicas as organizações empresariais constituídas sob a forma de sociedade de responsabilidade limitada nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma direta ou indireta, influência dominante, nos termos do presente decreto-lei. 2 - Consideram-se ainda empresas públicas as entidades com natureza empresarial reguladas no capítulo IV”. Por sua vez, determina o artigo 56.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro, integrado no aludido capítulo, que “São entidades públicas empresariais as pessoas coletivas de direito público, com natureza empresarial, criadas pelo Estado para prossecução dos seus fins, as quais se regem pelas disposições do presente capítulo e, subsidiariamente, pelas restantes normas do presente decreto-lei”. Constitui facto de conhecimento público que a “...” se trata de sociedade pertencente ao Sector Público Empresarial Regional, no qual a ... detém mais de 50% do capital social ou do património associativo, na medida em que é o único accionista (vide, v.g., Relatório n.º 22/2007-FS/SRATC do Tribunal de Contas, que procedeu à Auditoria às Remunerações dos Gestores Públicos da RAA entre os anos ... – ..., consultado https://erario.tcontas.pt/pt/actos/rel_auditoria/2007/audit-sratc-rel022-2007-fs.pdf). O Decreto-Lei n.º 326/79, de 24 de Agosto, transferiu para a ... a jurisdição e administração dos portos do arquipélago, tendo sido nesse âmbito criada a “... (...)”, através do Decreto Legislativo Regional n.º 30/2003/A (vide artigo 19.º, n.º 1), que tem como objecto social “a gestão integrada sob a forma empresarial da ... de participações públicas no sector portuário regional e, através das empresas participadas de objecto especializado, a gestão indirecta dos portos comerciais da ...”. Inexistem, assim, dúvidas, que o assistente, ao tempo dos factos, era membro de organismo que exercia autoridade pública, tendo sido a ofensa perpetrada por causa das funções que aí exercia, isto é, na qualidade Presidente do Conselho de Administração da sociedade em causa. É o que resulta claro das expressões usadas pela arguida: “(…) a abertura excepcional de vaga após pressão pelo pai, figura pública local e regional, denota tráfico de influência e favorecimento pessoal, que constituem crime (art 335º do Código Penal) e revela valores institucionais dúbios” [facto dado como provado sob o número 5], circunstância que de era conhecedora, nos termos apurados sob o número 6, o que denota, no contexto em causa, especial perversidade e censurabilidade. Conclui-se, pelo exposto, que integra a conduta da arguida a circunstância agravante prevista no artigo 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 1, alínea l), do Código Penal. * III.III.II. AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME Efectuado o enquadramento jurídico da conduta imputada à arguida, cumpre determinar a medida concreta da pena a aplicar, dentro dos limites fixados pela moldura penal abstracta aplicável. O crime de difamação simples, é punido, abstractamente, com uma pena de prisão de 1 a 6 meses (artigos 41.º, n.º 1 e 180.º, n.º 1, do Código Penal) ou com uma pena de multa de 10 a 240 dias (artigos 47.º, n.º 1, e 180.º, n.º 1, do Código Penal). Todavia, tendo-se concluído que o assistente era, ao tempo dos factos, membro de organismo que exercia autoridade pública, tendo a ofensa sido perpetrada, contra si, por virtude dessa função, nos termos do o artigo 184.º, do Código Penal, procede-se a uma agravação da referida moldura abstracta, sendo a pena elevada “de metade nos seus limites mínimo e máximo”. Pelo que o crime de difamação perpetrado pela arguida é punido, abstractamente, com uma pena de prisão de 45 (quarenta e cinco) dias a 9 (nove) meses ou com uma pena de multa de 15 a 360 dias. * ESCOLHA DA PENA Sendo o crime de difamação agravada punível, em alternativa, com uma pena principal de multa ou de prisão, cumpre, em primeiro lugar, proceder à escolha da pena a aplicar. A um tal respeito dispõe o artigo 70.º, n.º 1 do Código Penal, nos termos do qual “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda”, desde que as finalidades de prevenção geral e especial positivas, previstas no artigo 40.º, n.º 1, do mesmo diploma, se demonstrem desse modo suficientemente acauteladas. Concretiza a citada disposição legal um dos princípios constitucionais basilares em matéria penal, de que a pena de prisão constitui ultima ratio da política criminal [cfr. artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa], devendo optar-se pela pena não privativa da liberdade sempre a mesma satisfaça, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição. Para as teorias de prevenção positiva, a que o legislador penal nacional indubitavelmente adere, tal como decorre do artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a pena tem em vista, desde logo, reforçar a confiança da comunidade na validade da norma e na força e manutenção da sua vigência da sua, apesar da violação de que foi alvo (prevenção geral positiva). Por sua vez, evitando a total instrumentalização do indivíduo ao serviço de fins meramente utilitários ou pragmáticos que pretendem alcançar-se no contexto social, a ele externos - a que obsta, desde logo, o princípio da dignidade da pessoa humana, basilar da República Portuguesa nos termos do artigo 1.º da Constituição - determina o mesmo artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, que a pena logrará igualmente prover à reintegração do indivíduo na sociedade (prevenção especial positiva). Descendo ao caso concreto, será de considerar que ainda se afigura perfeitamente adequada a opção por uma pena não privativa da liberdade como sancionamento do tipo incriminatório cometido por ambos os arguidos, não se vislumbram quaisquer razões que levem a concluir ser necessária, para lograr a prossecução das aludidas finalidades preventivas a aplicação de uma pena detentiva. Pelo contrário. Efectivamente, a arguida encontra-se no auge da sua vida adulta, sendo este o seu primeiro contacto com o sistema sancionatório crimina, denotando estabilidade laboral e inserção familiar e social [factos dados como provados sob os números 10 a 18]. Por conseguinte, entende-se que as exigências de proteção dos bens jurídicos e de reintegração da arguida ainda se mostrarão plenamente satisfeitas com a aplicação de uma pena não privativa da liberdade. Opta-se assim pela imposição, quanto ao referenciado crime, de uma pena de multa. * MEDIDA DA PENA Concluindo, assim, que pela prática do crime em causa a arguida irá punida com uma pena de multa, importa fixar a medida concreta da referida pena, dentro da moldura abstratamente prevista. Para tanto, deve atender-se aos critérios previstos no artigo 71.º do Código Penal, nos termos do qual “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Sobre a forma como estes critérios, da prevenção e da culpa, se relacionam, o modelo seguido tanto pela generalidade doutrina como pela jurisprudência nacionais é o da chamada Teoria Geral da Moldura de Prevenção [cfr. Dias, Jorge Figueiredo de, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas Do Crime, Reimpressão, 2005, Coimbra Editora, Coimbra, p. 227, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.11.2017, processo n.º 10/17.9GCSEI.C1, relatado por Helena Boliero, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13.09.2021, processo n.º 85/16.8GCVRL.G1, relatado por Paulo Serafim e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2018, processo n.º 170/16.6JAGRD.C1.S1, relatado por Baltazar Pinto, de 27.01.2021, processo n.º 1663/16.0T9LSB.L1.S1, relatado por Manuel Augusto de Matos e de 12.01.2022, processo n.º 169/21.0JAPDL.L1.S1, relatado por Conceição Gomes, todos consultados em www.dgsi.pt] Com efeito, a medida concreta da pena será encontrada, num primeiro momento, dentro da moldura penal abstracta, tendo em conta a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos (prevenção geral), sem ultrapassar a medida da culpa (limite máximo da pena concreta). Num segundo momento, a pena concreta será encontrada, dentro desta nova moldura, fazendo actuar as exigências de prevenção especial de socialização que o caso revele. A determinação é auxiliada pelo artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, que fornece, de forma exemplificativa, os factores de determinação de medida da pena. * Desta forma, e com directa relevância para a determinação da medida da pena, dir-se-á que em desfavor da arguida milita, em particular, o grau de ilicitude do facto praticado, por referência ao nível de ofensa do bem jurídico tutelado (honra), atendendo à gravidade da suspeita levantada e ao seu potencial danoso para a imagem e consideração do ofendido. De facto, a arguida, por referência ao cargo desempenhado pelo assistente, não se limitou a tecer juízos desonrosos depreciadores das suas capacidades ou competências profissionais; foi mais longe, levantando a suspeita de que o mesmo havia praticado um crime em abuso do poder público e político que o referido cargo lhe conferia. Ainda assim, o referido potencial desonroso surge sopesado pela circunstância de os factos concretamente imputados (uso da sua influência política para levar a creche do filho a abrir uma vaga excepcional) nunca puderem consubstanciar a prática do crime imputado [nestes termos, sob a epígrafe “Tráfico de Influência”, estabelece o artigo 335.º, n.º 1, do Código Penal que comete o aludido crime “Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para abusar da sua influência, real ou suposta, junto de qualquer entidade pública”], pelo que as suspeitas levantadas sempre se diriam passíveis de serem, facilmente, esclarecidas perante aqueles que delas tomaram conhecimento e perante os quais a imagem do ofendido poderia ter saído prejudicada. Não se apuraram, de resto, consequências particularmente gravosas da conduta perpetrada, posto que a difamação foi cometida ora perante membros da própria família da arguida e do ofendido, ora perante a instituição que também se encontrava envolvida na suspeita levantada, tendo, como tal, conhecimento da verdade ou inverdade da imputação, de molde que a imagem do assistente não poderia ficar, perante ela, prejudicada. Já em abono da arguida militará o diminuto juízo de censura merecido, atendendo, por um lado, ao grau de culpa manifestado no dolo (de segundo grau) com que cometeu os factos – dolo necessário, nos termos do artigo 14.º, n.º 2, do Código Penal – e, por outro lado, ao contexto de divórcio em que foram cometidos os factos, susceptível, segundo a própria realidade dos Tribunais, a condutas de retaliação, conforme já supra se deixou exposto, menos reflectidas. Tudo o que acaba por atenuar, reflexamente, as exigências de prevenção geral positivas que o caso reclama. Em seu favor milita, renove-se, a inserção social, familiar e laboral da arguida, que descreveu um percurso profissional de excelência, sem nunca ter tido, anteriormente, aos 43 anos idade, qualquer contacto com o sistema de justiça, assim revelando igualmente diminutas a exigências de prevenção especial reclamadas, ainda que, ainda assim, tenha negado a intenção com que praticou os factos, pretendendo escudar-se em justificações pouco plausíveis para a sua conduta. Sopesando devidamente todas estas circunstâncias, julga-se ainda adequado, necessário e proporcional à sua culpa efetiva, crendo-se suficiente para a afirmação da validade da norma por si violada e para evitar uma sua recidiva no futuro, aplicar à arguida uma pena de 130 (cento e trinta) dias de multa. * QUANTITATIVO DIÁRIO DA PENA ÚNICA DE MULTA Determinada a pena única de multa a aplicar à arguida, importa fixar o seu quantitativo diário. Segundo dispõe o artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”. Sopesando as circunstâncias pessoais da arguida, no binómio entre os seus rendimentos líquidos mensais (no valor de 3.500,00 € líquidos, conforme apurado sob o número 13, o que corresponde a um salário bruto que ultrapassa em cinco vezes o rendimento mínimo nacional) e as suas despesas fixas de maior relevo (250,00€ a título de empréstimo ao ... para aquisição de casa própria – facto dado como provado sob o número 15 – e o pagamento à creche do filho menor que tem a ser cargo do valor de 480,00€ mensais, sem prejuízo da pensão de alimentos paga pelo progenitor na ordem dos 250,00€ mensais – factos dados como provados sob os números 16 e 17) considera-se razoável fixar o quantitativo diário da sua pena de multa em 10,00€ (dez euros). * SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE MULTA Processo Comum (Tribunal Singular) Mais se consigna não se encontrarem reunidas as condições para substituição da pena supra determinada, na medida em que, nos termos do artigo 60.º, n.º 2, do Código Penal, tal dependeria, além do mais, da demonstração de que o dano havia sido reparado, o que in casu, não se verificou (v.g. apresentação de um pedido de desculpas ao ofendido ou esclarecimento perante a instituição e dos demais destinatários do email enviado). * III.III.III. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL O demandante (assistente) CC deduziu pedido de “indemnização civil” contra a arguida, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 3.000,00€ (três mil euros) a título de danos não patrimoniais causados pela arguida com a prática do crime, acrescido juros de mora a contar desde a data da prolacção da sentença, alegando, em suma, ter-se sentido, em virtude dos factos imputados, humilhado, angustiado, revoltado e ansioso, o que o perturbou no seu sono, produtividade e tranquilidade. A prática de uma infração criminal pode gerar, além da condenação do arguido numa pena, a formulação de um pedido de natureza civil, para ressarcimento do lesado pelas perdas e danos emergentes do crime, tal como prevê o artigo 129.º do Código Penal, conduzindo ao arbitramento, no âmbito do próprio processo crime, de uma indemnização cuja determinação é regulada nos termos da lei civil. Também assim, o artigo 71.º do Código Penal, em conformidade com o designado Princípio da Adesão. Este pedido assume, no processo penal, a natureza de verdadeira acção civil [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.06.2022, processo n.º 25639/18.4T8LSB.L2.S1, relatado por Jorge Arcanjo, consultado em www.dgsi.pt], à qual se aplicam, em tudo quanto não se encontrar expressamente regulado, as regras do direito substantivo e processual cível (artigo 4.º do Código de Processo Penal). Há, assim, que atender primeiramente ao disposto no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, segundo o qual “Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da indemnização”. Com base no transcrito dispositivo legal, tendem a doutrina e a jurisprudência a reconduzir os pressupostos da responsabilidade civil à existência de (i) um facto voluntário do agente, (ii) à ilicitude do facto do lesante (decorrente da violação de direitos subjectivos alheios ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios), (iii) à imputação do facto ao lesante (culpa, lato sensu, enquanto juízo de reprovação da acção ou omissão do agente que podia e devia ter agido de outro modo, susceptível de assumir a configuração de uma atitude dolosa ou negligente), (iv) ao dano (perda in natura sofrida pelo lesado nos interesses materiais, espirituais ou morais que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar) e (v) ao nexo de causalidade entre o facto e o dano (o qual se deverá aferir segundo um critério de causalidade adequada adoptado pleo artigo 563.º do Código Civil, o que pressupõem que a acção ou omissão do agente seja adequado ou apropriado ao seu desencadeamento) [Lima, Pires de e Varela, Antunes, Código Civil Anotado, Vol. 1, 4.ª edição revista e actualizada, 1987, Coimbra Editora, Coimbra, p. 471]. Cumpre, então, apreciar. O facto voluntário e ilícito, bem como a sua imputação subjectiva ao agente (arguida) não será objecto de nova análise, já que revestem igualmente pressupostos da punibilidade, cujo preenchimento, no caso sub judice, já se concluiu. A análise deverá, portanto, centrar-se no apuramento de danos emergentes do crime, verificados em relação ao ofendido/lesado. Quanto a estes, cumpre referir que, embora não se vislumbrem quaisquer prejuízos económicos resultantes da prática do crime, o mesmo já não se pode afirmar em relação a danos morais. Com efeito, resultou provado que, em consequência dos factos praticados pela arguida, o assistente se sentiu humilhado, angustiado e revoltado, além de ansioso e preocupado, sentimentos que perturbaram o seu descanso, o seu sono e a sua produtividade [facto dado como provado sob o número 19]. Tratam-se, pois, de danos que, porque atingem bens que não integram o património do ofendido, como a sua honra e o seu bem-estar, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente. Tratam-se, numa palavra, de danos não patrimoniais emergentes da prática do crime. Incorreu, assim, a arguida, em responsabilidade civil extracontratual, nos termos supra expostos. A principal consequência da responsabilidade civil constitui a obrigação de indemnizar. Na determinação da mesma, atenta a natureza dos danos em causa (não patrimoniais), há que atender ao disposto no artigo 496.º do Código Civil. A este respeito, cumpre referir que a indemnização por danos não patrimoniais não consubstancia uma indemnização em sentido próprio, na medida em que não visa repor as coisas no estado em que existiam antes da prática do facto danoso, mas sim proporcionar uma satisfação ou compensação pelo dano sofrido, atribuindo-lhe uma soma em dinheiro que lhe permita o acréscimo de bem-estar que sirva de contraponto ao sofrimento moral provocado pela lesão. O critério para fixação do montante compensatório encontra-se previsto no n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil, de acordo com o qual "o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º”. Portanto, o montante da indemnização deverá ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias que o caso concreto exija. Por outro lado, o valor encontrado não deve proporcionar enriquecimentos injustificados assim como não deve deixar aquém a compensação plena devida, devendo ser proporcional face à gravidade dos danos sofridos [a este respeito vide, a título exemplificativo, o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 11.06.2019, processo n.º 107/17.5T8MMV.C1, relatado por Emídio Santos e no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.04.2021, processo n.º 99/16.8SRLSB.L1-9, relatado por Calheiros da Gama, ambos consultados em www.dgsi.pt]. Assim, na determinação do quantum indemnizatório, o Tribunal levará em conta a extensão e gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, como a gravidade da lesão, a desvalorização da moeda e os padrões normalmente utilizados nos casos análogos. Há que atentar, porém, que apenas serão indemnizáveis os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil), ou seja, aqueles que, segundo um critério objetivo e afastados que sejam fatores de sensibilidade exacerbada do lesado, atinjam um limite mínimo de gravidade, a qual se deverá medir, como referem Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1987, p. 471), “por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deve ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”. Conforme vem apontando a generalidade da doutrina e da jurisprudência, se o grau de culpa apresenta relevância na fixação do referido quantum indemnizatório, facilmente se conclui que a obrigação em causa, além de uma natureza compensatória (sem os critérios de reparação estabelecidos para o ressarcimento de danos patrimoniais), reveste também uma função punitiva, assumindo-se como “pena privada”, estabelecida no interesse da vítima [vide, na doutrina, a título exemplificativo, Prata, Ana, Código Civil Anotado, Volume I, 2.ª edição revista e actualizada, 2021, reimpressão, Almedina, Coimbra, p. 682 e Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Volume I, 15.ª edição, 2018, Almedina, Coimbra, pp. 335 a 336, e na jurisprudência o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2010, processo n.º 4784/06.4TBVCT.G1.S1, relatado por Fonseca Ramos, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Março de 2013, processo n.º 793/07.4TBAND.C1, relatado por Henriques Antunes e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Janeiro de 2023, processo n.º 1754/18.3T8CSC.L1-2, relatado por Carlos Castelo Branco, todos consultados em www.dgsi.pt]. Como tal, ainda que seja de atender às condições económicas do lesante e do lesado, não poderão as mesmas obstar à função punitiva da responsabilidade civil, na qual assumem carácter essencial, na fixação da compensação, de entre os diversos critérios apontados, o grau de culpa do lesante, a natureza, extensão e localização temporal das lesões sofridas e o grau de ilicitude do comportamento lesivo [Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Janeiro de 2021, processo n.º 411/19.0GAVNF.P1, relatado por João Pedro Nunes Maldonado, consultado em www.dgsi.pt]. No caso em apreço, dão-se por inteiramente reproduzidas as considerações já supra expostas a respeito do grau de ilicitude da conduta (mediana-elevada, atenta a circunstância de as ofensas perpetradas se reconduzirem à suspeita da prática de um crime, grave, por parte do assistente), e do grau de culpa (diminuto) da lesante/arguida. Já quanto à natureza e extensão das lesões provocadas, nada se apurou no sentido de evidenciar particular gravidade ou durabilidade dos sentimentos de humilhação, angústia, revolta, ansiedade e preocupação, perturbação do descanso, sono e produtividade do assistente, ainda que as mesmas naturalmente configurem violações de direitos de personalidade do ofendido, como a sua integridade física e moral, esta onde se inclui a saúde, o bem-estar físico e psíquico e a sua tranquilidade, como tal, integralmente indemnizáveis (artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil). A lesante sabia que a sua conduta constituía um comportamento proibido e executou-o intencionalmente. No que respeita à situação económica da arguida, resultou apurado, conforme já supra se referiu, que a mesma se encontra empregada, sendo médica de profissão, e auferindo mensalmente um salário na ordem dos 3.500,00€ líquidos mensais (conforme apurado sob o número 13), tendo como despesas fixas de maior relevo 250,00€ a título de empréstimo ao ... para aquisição de casa própria – facto dado como provado sob o número 15 –, e o pagamento à creche do filho menor que tem a ser cargo do valor de 480,00€ mensais, sem prejuízo da pensão de alimentos paga pelo progenitor na ordem dos 250,00€ mensais – factos dados como provados sob os números 16 e 17). Analisando os factores disponíveis e fazendo recurso a um juízo de equidade, julga o Tribunal adequado atribuir uma indemnização ao ofendido no valor de 700,00 € (setecentos euros). Nos termos dos artigos 805.º, n.º 3, e 559.º, n.º 1, do Código Civil, sobre a referida quantia incidirão juros de mora. Uma vez que o cálculo da referida indemnização foi efetuado no âmbito da presente decisão, e em conformidade com o entendimento plasmado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2002 de 09.05.2002, publicado no Diário da República, Série I-A, de 27.06.2002 [que fixou jurisprudência no seguinte sentido: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado nos termos do nº 2 do artº 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, nº 3 (interpretado restritivamente), e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”] a condenação em juros sobre tais montantes indemnizatórios ficará restrita aos que se vençam após a data da prolação da presente sentença. Os juros devidos são os legais, calculados à taxa prevista para os juros civis e fixados pela portaria que os regula – artigos 806.º, n.º 2, e 559.º, n.º 1, do Código Civil – ou seja, à taxa anual de 4% [assim fixada pela Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril] ” * * V - Do mérito do recurso: - Legitimidade do assistente para apresentação da queixa relativamente aos factos em causa nos autos. A primeira questão invocada no recurso em exame prende-se à eventual ilegitimidade do assistente para apresentação da queixa, defendendo-se, em concomitância, que o titular do direito de queixa era a ...” e já não o assistente. Desde logo, deve dizer-se que a recorrente já havia suscitado tal questão no âmbito da contestação apresentada – que foi apreciada na decisão proferida em .../.../2024, que concluiu pela improcedência da ilegitimidade invocada pela arguida/demandante. Com efeito, a perspectiva, quase unívoca, que se abordou na decisão então proferida foi a da legitimidade do assistente/demandante para a dedução do pedido de indemnização civil, considerando que o mesmo era lesado na acepção constante do art. 74º do CPPenal – isto apesar de na peça processual em causa se invocar também que o assistente, por não ser o titular do bem jurídico protegido, consequentemente também não poderia intervir nessa qualidade nem ter participado os factos. Ora, da sobredita decisão não foi interposto qualquer recurso, no prazo de 30 dias que a lei confere para o efeito. A dita decisão foi notificada aos sujeitos processuais em .../.../2024, sendo certo que o recurso agora em análise apenas foi interposto em .../.../2024. Ou seja, tal significa que a decisão então proferida não poderia agora ser alterada em sede do presente recurso. Todavia sempre se dirá que não assiste qualquer razão à recorrente, no aludido segmento do recurso interposto. Na realidade, dependendo o procedimento criminal de queixa, como ocorre no caso dos autos, quem tem legitimidade para a apresentar é o ofendido, isto é, o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com essa incriminação, nos termos do preceituado no art. 113.º, n.º 1, do CPenal. O art. 113º, nº 1, do Código Penal, estatui que “quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, resultando assim da letra da lei que o legislador teve em vista a tutela do portador do bem jurídico – cfr., no sentido do texto Ac, do TRC de 09/11/2011, proferido por JORGE JACOB, no processo nº 1377/07.2PCCBR.C1, in ECLI. No caso dos autos em que o bem jurídico protegido é a honra, constata-se, atendendo às expressões concretamente em causa e dadas como demonstradas no ponto 5) da matéria de facto provada, que o assistente era inequivocamente visado pelas expressões proferidas – isto independentemente de as mesmas poderem, igualmente, conhecer repercussão quanto à destinatária, a instituição “...”. Com efeito, o titular do direito de queixa é o portador concreto do bem jurídico violado, sendo certo que nos casos de bens jurídicos eminentemente pessoais, como a honra, não é difícil de determinar o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger. A este propósito refere CONDE CORREIA, in Comentário Judiciário do CPPenal, Tomo I, 2ª ed., pág. 548 que “(…) em certos casos, podendo tutelar mais do que um interesse e ter mais do que um beneficiário, impõe-se uma correcta e completa exegese do tipo de ilícito, com vista a determinar, quem são, afinal, os ofendidos. Na verdade, por exemplo, no crime de dano é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa, o proprietário da coisa destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada, mas também quem, estando por título legitimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fricção (Ac. STJ/FJ7/2011, 27/04/2011 (António Henriques Gaspar).” Assim, verificando-se que o assistente apresentou queixa tempestivamente e tinha legitimidade para o fazer por ser um dos titulares dos interesses tutelados pela incriminação, está verificada a condição de procedibilidade cuja falta foi invocada pela recorrente. * - Eventual falta de legitimidade do assistente para dedução de acusação por crime de natureza semi-pública, com a subsequente absolvição da recorrente pelo crime que lhe foi imputado na decisão em recurso ou, mantendo-se a condenação, a mesma deve ocorrer pela prática do crime de difamação simples. No caso dos autos verifica-se que o assistente apresentou queixa contra a arguida, imputando-lhe a prática de um crime de injúria com denúncia caluniosa, nos termos do artº 181º, 183º, nº 1, alínea a) e b), agravada nos termos do artº 184º, ex vi alínea l) do artº 132º e artº 182º, todos do CP. Findo o inquérito, em .../.../2023, o MP proferiu despacho com o seguinte teor: “Nos presentes autos de inquérito foram denunciados factos susceptíveis de configurar a prática de um crime de difamação e de injúria, previstos e punidos pelos artigos 180.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do Código Penal. De harmonia com o disposto no artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal, tais crimes assumem natureza particular. CC apresentou queixa, bem como constituiu-se assistente, em conformidade com o estatuído no artigo 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo, para o efeito, sido admitida a sua intervenção nessa qualidade (fls. 31). No âmbito do presente inquérito, mostram-se já realizadas todas as diligências tidas por necessárias ao apuramento da verdade dos factos e sua autoria, tendo sido inquiridas as testemunhas indicadas pela assistente, assim como constituída e interrogada como arguida BB. Isto posto, notifique o assistente, CC bem como a sua Ilustre Defensora, a Sra. Dra. DD, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para deduzir no prazo de 10 (dez) dias, querendo, acusação particular. Em cumprimento do disposto no artigo 285.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ponderados os elementos de prova carreados nos autos, é do entendimento do Ministério Público que foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime de difamação e de injúria, previstos e punidos pelos artigos 180.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do Código Penal.” Em consequência de tal notificação, o assistente deduziu acusação particular, bem como pedido de indemnização cível (PIC), imputando à arguida/recorrente a prática de 1 crime de difamação agravada, executado por escrito, através de meio – mensagem de correio electrónico – que permite a sua fácil e rápida propagação, nos termos dos artºs 180º, nº 1, 182º, 183º, nº 1, alíneas a) e b), e 184º ex vi artº 132º, alínea l), todos do CPenal e um crime de injúria agravada, executado por escrito, e meio – mensagem de correio electrónico – que permite a sua fácil e rápida propagação, nos termos dos artºs 180º, nº 1, 182º, 183º, nº 1, alíneas a) e b), e 184º ex vi artº 132º, alínea l), todos do CP. Em .../.../2023, o MP proferiu despacho com o seguinte teor: “O Ministério Público acompanha a acusação particular deduzida, a fls. 113-122, nos termos do disposto no artigo 285.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.” Tal despacho não foi notificado, tendo sido substituído por outro proferido em .../.../2023, com idêntico teor, mas em que se acrescentou “Apenas se discorda da qualificação jurídica, conforme despacho de fls. 104.” Não foi requerida a abertura de instrução. A acusação particular foi recebida e designada data para realização do julgamento. Como resulta do que supra já se deixou exarado, na sentença proferida a arguida foi condenada pela prática de um crime de difamação agravado, previsto e punido nos termos dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 1, alínea l), todos do Código Penal. Ou seja, do excurso efectuado resulta que a arguida foi condenada pela prática de um crime semi-público, sem que tivesse existido dedução de acusação por parte do Ministério Público, relativamente a tal ilícito. Na verdade, o art. 189º, 1, al. a) do CPenal estatui que “O procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo depende de acusação particular, ressalvados os casos do art. 184; (…) em que é suficiente a queixa ou a participação”. Isto é, nos casos de difamação agravada, previstos no art. 184º do CPenal, o procedimento criminal depende unicamente da queixa ou da participação, pelo que, de acordo com o estatuído nos arts. 48º e 49º do CPPenal, é o Ministério Público que tem legitimidade para promover o processo penal, sendo a este que cabe a decisão de dedução de acusação, ou de arquivamento, do inquérito. Por seu turno, estabelece o art. 69.º, 1 do CPPenal que “Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei”. Já o nº 2, al. b) da norma citada preceitua que “Compete em especial aos assistentes deduzir acusação independente do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza; (…)” No Assento nº 1/2000, in DR, I-A, de 6/01/2000, a propósito de questão similar àquela em causa nos autos, pode ler-se “(…) é hoje entendimento pacífico na jurisprudência e na doutrina que a titularidade da acção penal pertence exclusivamente ao Ministério Público (…) (…) Assente, por conseguinte, a competência exclusiva do Ministério Público para promover o processo penal e a subordinação estrita da intervenção processual dos assistentes, salvo nos crimes particulares e semipúblicos, à actuação do Ministério Público, temos que, excepto quando o procedimento criminal depender de acusação particular (…), é ao Ministério Público que compete, em especial, deduzir a acusação (artigos 50.º e seguintes) e deve deduzi-la sempre e logo que no inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime público ou semipúblico e de quem foi o seu agente [artigos 52.º, n.º 1, 53.º, n.º 2, alínea c), e 283.º, n.º 1] e «só após a notificação da acusação do Ministério Público, o assistente pode também deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles», enquanto, «quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público [findo o inquérito] notifica o assistente para que este deduza [...], querendo, acusação particular» (artigo 285.º, n.º 1), podendo o Ministério Público, posteriormente à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles (artigo 285.º, n.º 3). Por outro lado, se o Ministério Público não deduzir acusação relativamente a factos pelos quais o procedimento não depende de acusação particular, pode o assistente requerer a abertura de instrução [artigo 287.º, n.º 1, alínea b)]. Donde, se o assistente é notificado pelo Ministério Público, findo o inquérito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285.º do Código de Processo Penal, apenas lhe é lícito deduzir acusação por crime particular, e, acaso o assistente entenda indiciar-se com suficiência a prática pelo arguido de crime público ou semipúblico, resta-lhe, tão-só, ou arguir, perante o próprio agente do Ministério Público que ordenou a notificação, a omissão da acusação, por parte deste, pelo crime público ou semipúblico ou suscitar a intervenção do superior hierárquico do aludido agente do Ministério Público (artigo 278.º) ou requerer a abertura da instrução [artigos 278.º e 287.º, n.º 1, alínea c)]. O que está vedado ao assistente, quer por falta de legitimidade para tal, quer por violação da tempestividade do processamento, é deduzir ele mesmo a acusação pelo crime público ou semipúblico. Se o fizer, viola inquestionavelmente as disposições legais citadas, como é reconhecido por qualquer das correntes em confronto, que unicamente divergem no tocante à espécie do vício consubstanciada: nulidade insanável ou simples irregularidade. Em nossa opinião, e como supomos já decorrer do expendido, propendemos para a existência de nulidade insanável.” No caso dos autos verifica-se que, findo o inquérito, o Ministério Público notificou o assistente para deduzir acusação particular, considerando que haviam sido recolhidos indícios suficientes da verificação do crime de difamação e de injúria, ps. e ps. pelos arts. 180º, 1 e 181º, 1 do CPenal. Em consequência de tal notificação o assistente deduziu acusação por difamação e injúria agravada, tendo o MP aderido à acusação particular, mas salientando que discordava da qualificação jurídica, de acordo com o que já havia referido anteriormente aquando da notificação do assistente para dedução de acusação particular. Apesar disso, a acusação particular foi recebida, nos exactos termos deduzidos, tendo a arguida vindo a ser condenada pela prática de um crime de difamação agravada – isto é, a arguida foi condenada pela prática de um crime, sem que tivesse existido acusação pelo MP (sendo a acusação particular aduzida pelo assistente crassamente inválida no que tange a tal tipo de crime). CONDE CORREIA, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, pág. 1274, tomo I, 2ª ed., Almedina, explicita que “O principio do acusatório, elevado à categoria de preceito jurídico-constitucional (art. 32º, 5CRP) pressupõe uma rígida separação (formal e material) entre quem exerce a acção penal (art. 219º/1CRP) e quem julga (art. 202º,1CRP). Para assegurar as garantias de defesa do arguido e de terceiros e para garantir a liberdade de convicção, a objectividade e a imparcialidade do decisor, é imprescindível uma clara separação de funções entre as diversas entidades que intervêm no processo penal.” Mais à frente, a páginas 1275, afirma ainda “Se o MP não promover a acção penal, o juiz não pode julgar e se, por acaso, o fizer a sua decisão será inválida, podendo ser anulada até transitar em julgado”. Ou seja, do exposto é patente que no caso dos autos a sentença proferida padece de nulidade insanável, na medida em que a arguida/recorrente foi condenada pela prática de crime relativamente ao qual o Ministério Público não havia deduzido acusação – quando se trata da única entidade legitimada, in casu, a efectuá-la. Isto mesmo é expressamente referido por CONDE CORREIA, obra supra citada, pág. 559, quando escreve “(…) se, ao invés, o assistente usurpar os poderes do MP, deduzindo acusação por crimes públicos/semipúblicos, o ato será inválido por «falta de promoção pelo MP, nos termos do art. 48º», devendo os efeitos precários que o ato, apesar de tudo, tiver produzido, ser destruídos, assim se repondo a legalidade processual”. Contudo, também se verifica que o assistente apesar de não ter legitimidade para dedução de acusação pela prática do crime previsto no art. 184º do CPenal, já dela dispunha para o fazer relativamente ao crime de difamação previsto no art. 181º, 1, do CPenal. Aliás, foi para dedução de tal acusação particular que foi notificado pelo MP, findo o inquérito. Estatui o art. 122º d CPenal, sob a epigrafe “Efeitos da declaração de nulidade”, que: “1 - As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar. 2 - A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade. 3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.” A propósito do preceito normativo citado escreve HENRIQUES GASPAR, in Código de processo Penal, Comentado, 2014, Almedina, pág. 405 “A disciplina relativa aos efeitos da declaração de nulidade está construída na base do principio do máximo aproveitamento possível dos actos do processo, expressamente inscritos no nº 3; a nulidade não contamina necessariamente todo o processo ou toda a sequência do processo posterior ao acto nulo, mas apenas o próprio acto nulo e «os que dele dependerem» e que a nulidade possa afectar. No regime está expressa uma necessária relação de causalidade entre a função do acto nulo e os efeitos e as consequências nos restantes actos do processo; a contaminação existe apenas e na medida em que, numa relação de causalidade processual, os actos posteriores dependam ou estejam directamente condicionados, na sua função e efeitos, pelo acto inválido”. Mais à frente, acrescenta o autor citado, “A decisão sobre a nulidade deve proceder ao reordenamento retrospectivo dos actos do processo, identificando quais os actos que ficam afectados; a declaração de nulidade do acto não é pura e simples, mas deve ser sempre completada pela determinação das consequências no processo. A regra vale tanto para as nulidades insanáveis como para as nulidades sanáveis; a natureza definitiva da invalidade ou a sanação referem-se mais à gravidade da inobservância da lei e menos às consequências no processo; porém, vista a gravidade das causas das nulidades insanáveis, as consequências no processo podem ser, e são, por definição e regras, mais intensas”. CONDE CORREIA, obra supra citada, pág. 1331, refere igualmente que a norma em análise pretende que se proceda ao máximo de aproveitamento dos atos inválidos. Com efeito, afirma o citado autor que “Assim, sem esquecer a possibilidade da redução (…) e da conversão (…) dos actos processuais penais inválidos, «ao declarar uma invalidade o juiz deverá aproveitar todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela» (nº 3). Aliás, o citado autor, considera ainda, que com recurso à aplicação analógica do CPCivil (art. 195º, 2), pode ocorrer a redução do acto processual nulo (diferentemente, considerando que tal resulta directamente da norma em análise, cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do CPPenal, 3ª ed., Universidade Católica, pag. 310). Com efeito, a páginas 1332 e 1333, escreve “Sempre que o acto processual penal possa ser fraccionado, nada impede a conservação dos seus componentes, que não se mostrem viciados. Não há nenhuma razão para destruir e depois renovar (nº2) aquelas partes que, embora não tenham constituído um ato processual penal autónomo, ainda conservam alguma identidade e obedeceram ao respectivo formalismo legal. A repetição dessa actividade não acrescentaria nada de novo, configurando um mero desperdício de tempo e de meios sempre tão escassos. (…) Neste cenário dogmático, obedecendo à máxima utile per inutile non vitiatur, a jurisprudência nacional tem utilizado a figura da invalidade parcial, aplicando-a mesmo aos atos processuais mais importantes, designadamente a sentença. Na verdade, na praxis jurídica quotidiana não faltam exemplos da redução da sentença à parte válida (ac. TC 404/2015 e ACS. STJ, 27.10.1994 (SÁ NOGUEIRA), CJ-STJ, 3, p. 219; 12.03.1997 (HUGO LOPES), BMJ, 465, P. 445.” Ou seja, no caso dos autos declarando-se a invalidade da sentença na parte referente à condenação da arguida pelo crime de difamação agravada, por falta de acusação do MP, tal não significa que a factualidade constante da dita sentença não possa ser aproveitada, designadamente para aferir da eventual adequação da emergência de uma condenação por um crime de difamação, na medida em que o assistente tinha legitimidade para deduzir acusação particular por tal tipo de ilícito criminal. Assim, apenas se declara a invalidade parcial da sentença proferida, precisamente no segmento em que condena a arguida pela prática de um crime de difamação agravada. No mais, considerar-se-á o aproveitamento da sentença proferida, pelo que, de seguida, se apreciarão as demais questões suscitadas pela arguida no recurso interposto. * - Vícios da sentença (designadamente, a invocada contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão previsto no art. 410º, nº 2, alínea b) do CPP), com a subsequente alteração da qualificação jurídica dos factos – a arguida actuou com falta de consciência da ilicitude, com exclusão da culpa, nos termos do art. 17º do CPenal, sendo a actuação da recorrente negligente e já não dolosa. Estatuiu o artigo 410.º, n.º 2 do CPPenal, que “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova”. Ora, deve dizer-se que do citado inciso resulta que qualquer um dos mencionados vícios tem de decorrer da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: isto é, o vício tem de ser verificado sem que se recorra a elementos estranhos à decisão, como por exemplo declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito, a instrução ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum, no dizer de Germano Marques da Silva “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece, englobando as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos” (citado no Ac. RL de 15-01-2019, in www.dgsi.pt). Está-se, nestes casos, perante vícios da decisão e não do julgamento. Nesta hipótese, poderão adquirir relevância o segundo e o terceiro dos vícios elencados na norma em análise. Comecemos por examinar aquele da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Para que se esteja na presença do citado vício é necessário que se conclua que a fundamentação justificaria uma decisão em sentido oposto ao seguido, ou que se considere que a decisão não fica suficientemente esclarecida atenta a colisão existente entre os fundamentos invocados e o seu sentido. De novo nas palavras de SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, ob. citada, págs. 78, terá de se tratar de uma “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”. Finalmente, o último dos vícios previstos na norma citada é o do erro notório na apreciação da prova. No que tange ao citado vício, o mesmo inclui as hipótese de erro evidente, de que qualquer pessoa possuidora de qualidades médias de lógica e inteligência dá conta; paradigmaticamente existirá quando se retira de determinado facto provado uma consequência logicamente insustentável ou quando se dá como assente algo manifestamente errado. Por outro lado, tal vício também decorre de fazer decorrer conclusões contraditórias ou crassamente emergentes contra as regras de experiência comum de um determinado facto. De resto, a violação flagrante das regras de experiência também poderá consubstanciar o apontado vício. Recorrendo-se mais uma vez ao supra citado Acórdão de 29/03/2011, do TRL “O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; Acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994, em http://www.dgsi.pt).” Diga-se, desde logo, que os vícios em causa são de conhecimento oficioso, não sendo assim necessária a sua concreta invocação por parte do recorrente. De resto, a indagação da sua existência perfila-se como uma operação eminentemente jurídica de interpretação da sentença e da sua análise pela perspectiva da experiência comum, dispensando-se qualquer exame do material probatório produzido. Nas palavras de Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pág. 1291, “É a lei quem o inculca com clareza ao impor que o vício resulte do texto da decisão recorrida, apenas e só, eventualmente com recurso às regras de experiência comum. Por isso, fica excluída da previsão do preceito toda a tarefa de apreciação e ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objecto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto.” Na presente hipótese, apesar do modo algo imperfeito como o faz – pugnando por uma impugnação e alteração da matéria de facto no que concerne aos pontos 6 e 7 da matéria de facto provada – verifica-se que a recorrente pretendeu invocar, na realidade, o vício previsto na al. b), do nº 2, do art. 410º do CPenal, alegando que os factos em causa se encontram em contradição com os pontos 8 e 9 da matéria de facto provada e o ponto a), da matéria de facto não provada. No caso dos autos verifica-se, pois, que a discordância da arguida relativamente à matéria de facto provada se refere unicamente à circunstância de se ter dado como demonstrada a factualidade atinente ao elemento subjectivo quando igualmente se deu como demonstrado que “8.A arguida agiu conforme descrito sob o número 5. suspeitando que o assistente havia exercido, conforme descreveu no email remetido, pressão sobre a Instituição referida para que fosse aberta uma vaga não anteriormente prevista para o seu filho, fazendo uso da influência que tinha na comunidade por força do cargo político que ocupava. 9. Desde o divórcio, constituía prática habitual que a troca de correspondência electrónica entre a arguida e o assistente fosse feita com o conhecimento (vulgo “Cc”) de familiares de ambos” e como não provado que “a) A arguida sabia que as afirmações referidas em 5. eram falsas.” Ora, relativamente aos factos em causa, consta do texto da decisão recorrida o seguinte: “Ora, os factos consubstanciadores do elemento subjectivo do crime tratam-se, naturalmente, de elementos do foro interno do agente, não objectiva ou directamente demonstráveis através dos meios de prova coligidos, mas que, no entanto, facilmente se inferem dos demais factos objectivos apurados – muito concretamente, in casu, do contexto em que ocorreram as imputações em causa.” Ou seja, constata-se que a solução da questão de direito influenciou a decisão proferida no que tange à matéria de facto. Todavia, se a conduta perpetrada pela recorrida não for objectivamente subsumível ao crime de difamação, não poderá concluir-se pela verificação do elemento subjectivo dessa espécie de ilícito. Na verdade, o elemento subjectivo consiste, precisamente, no conhecimento e representação dos elementos que preenchem o tipo objectivo e na vontade de os praticar. Assim, em muitos casos, os factos integrantes do dolo podem resultar, exclusivamente, das acções desenvolvidas pelo agente conjugadas com as regras da normalidade da vida. Ora, poder-se-ia estar perante o erro notório da apreciação da prova, ou perante uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, se se chegar à conclusão inversa – defendida pela recorrente – de que os factos provados não realizavam o tipo objectivo de difamação, circunstância que inviabilizaria a consequente demonstração dos factos atinentes ao dolo. Assim mesmo se concluiu em recente Acórdão do STJ, datado de 13-03-2024, relatado por ANA BARATA BRITO, no processo nº 253/21.0T9GDM.P1.S1, em circunstâncias semelhantes às dos autos e que, neste domínio, se tem vindo a seguir de perto. Aliás, diga-se que no seguimento do defendido em tal aresto se irá de seguida apreciar o enquadramento jurídico dos factos objectivos, para no final se proferir decisão no que tange à eventual verificação, ou não, de um dos vícios a que alude o art. 410º, 2 do CPPenal, mais concretamente àqueles previstos nas als. b) e c) do referido inciso. Com efeito, no caso dos autos também se considera, como aí se escreveu, que “A precedência-regra do tratamento da questão de facto sobre a questão de direito, no presente caso terá de sofrer inversão, pois a resolução da questão de direito colocada em recurso não permite o tratamento dissociado e sequencial dos dois problemas (primeiramente, o de facto, e depois, o de direito). Concretamente, eles entrecruzam-se aqui num «insolúvel círculo lógico» (na expressão de Castanheira Neves).” Assim, antes de conhecer da sobredita problemática – com aparente incidência factual – cumprirá atentar nos contornos jurídicos da questão colocada. * - Enquadramento jurídico: Na sentença objecto de recurso a arguida foi condenada, na parte aproveitável da sentença proferida, pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180.º, 1 do Código Penal. Estatuiu o art. 180º do CPenal, no seu nº 1, que “Quem, dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”. Por seu turno, o nº 2 de tal preceito estabelece que “A conduta não é punível quando: a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”. O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a honra, entendida numa concepção dual em que se inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior. Ou seja, como salienta FIGUEIREDO DIAS1 “a jurisprudência e a doutrina jurídico penais portuguesas têm correctamente recusado sempre qualquer tendência para uma interpretação restritiva do bem jurídico“honra”, que o faça contrastar com o conceito de “consideração” (...) ou com os conceitos jurídico-constitucionais de “bom nome” e de “reputação”. Nomeadamente, nunca teve entre nós aceitação a restrição da “honra” ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito quer puramente fáctico, quer – no outro extremo – estritamente normativo”. No que diz respeito ao tipo objectivo, este preceito legal fica preenchido mediante a ofensa, que pode ser concretizada por qualquer pessoa, por meio de imputação de facto ofensivo da honra de outrem, ou através da formulação de um juízo de valor. De facto, o legislador equiparou a imputação desonrosa de um facto à formulação, igualmente desonrosa, de um juízo. Concretamente, no que tange à difamação, tem de existir a imputação de um facto ou a formulação de um juízo, não perante o próprio, mas veiculada através de terceiros. Difamar é desacreditar, diminuir a reputação, o conceito público em que alguém é tido; isto é, imputar a outra pessoa um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou da sua consideração. Já relativamente ao tipo subjectivo de ilícito, estamos perante um tipo doloso, que se basta com a emergência do dolo em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do CPenal. Ou seja, apenas é necessário que o agente actue com o conhecimento da adequação da sua conduta, activa ou omissiva, para a produção do resultado proibido como consequência directa, necessária ou eventual daquela. FARIA E COSTA, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, p. 630, ensina-nos que o carácter ofensivo de certas palavras tem de ser visto “à luz do concreto contexto situacional” de vivência humana em que as mesmas foram proferidas e que, se o significante das palavras permanece intocado, o seu significado poderá variar consoante os contextos. Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros, se for atendido o mínimo de respeito cívico e social. Este mínimo de respeito não se confunde, note-se, com educação ou com cortesia. De facto, os comportamentos indelicados, mesmo crassamente boçais, não merecem a tutela do Direito Penal; na verdade, este ordenamento não deve – nem pode – proteger as pessoas de meras impertinências, indelicadezas, grosserias ou erupções de má educação de um agente, desde que não adquiram repercussão relevante na dignidade ou do bom nome do visado. E isto porque a riqueza da vida nos ensina que é recorrente – quase se diria “normal” – algum grau de conflitualidade animosa entre membros de uma comunidade, podendo originar situações em que pessoas que a integram possam expressar-se, ao nível da linguagem, de forma excessiva, deselegante ou indelicada. De resto, como é consabido, o direito penal assume uma natureza subsidiária ou fragmentária (cfr. artigo 18º, nº 2 da Constituição). Esta subsidiariedade impõe certos limites à aplicação do direito penal e, consequentemente, às condutas que se podem considerar “típicas” para efeito de perseguição criminal. Há, assim, um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela penal (é abundante a jurisprudência neste sentido, citando-se, a título meramente exemplificativo, o Ac. TRP de 04-11-2020 e o Ac. TRG de 23/2/2015, ambos in www.dgsi.pt). Na realidade, nestes casos, a difamação não é punida – não por existir uma causa de exclusão da tipicidade quando se verificam as circunstâncias previstas cumulativamente no n.º 2 do art. 180º ou porque ocorra alguma das causas que, em termos gerais, excluem a ilicitude, nomeadamente as previstas no n.º 2 do art. 31º do Código Penal – mas por se estar perante a designada cláusula geral de “adequação social”, quer se considere a mesma como uma causa de justificação implícita ou supra legal, quer como uma causa de exclusão da tipicidade – cfr. no sentido do texto GERMANO MARQUES DA SILVA, in Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime, Verbo, 2005, pág. 83-85. Isto é, como afirma no Acórdão do TRE de 23/01/2018 ANTÓNIO JOÃO LATAS, no processo nº 80-16.7GGBJA.E1, in ECLI, “(…) o preenchimento dos tipos legais de difamação e injúria apenas se verifica quando as palavras, no que ao caso importa, devam considerar-se lesivas da honra ou consideração do visado, nas circunstâncias concretas em que foram proferidas, ou seja, as palavras referidas ou dirigidas a outra pessoa só terão típicas se, sendo depreciativas, puder concluir-se que nas circunstâncias concretas em que foram dirigidas ao visado as mesmas violaram o direito de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros, ou seja, a pretensão de não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade.” Por outro lado, no Acórdão do TRP de 2/12/2015, relatado por ERNESTO NASCIMENTO, in www.dgsi.pt também se diz, “É próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade (…) O direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função. Pelo que não há que considerar típicas sem mais, para efeitos das incriminações que tutelam o bem jurídico honra, todas e quaisquer expressões, imputações e juízos de valor que impliquem uma imagem negativa da pessoa que por eles é visada, por mais grave que essa imagem possa, a priori, afigurar-se – Cfr. Ac. da Relação do Porto de 12.06.2002, 05.11.2008 e 8.05.2013, dgsi, que se seguem de perto. (…)”. No que tange ao crime de difamação o pressuposto da intervenção penal é, exactamente, a tutela constitucional do direito fundamental ao bom nome e reputação de qualquer pessoa, consagrado no art. 26º, n.ºs 1 e 2, da Constituição. Todavia, tal direito não pode deixar de ser compatibilizado com o exercício do direito de liberdade de expressão, identicamente constante da Constituição da República Portuguesa, mais concretamente no artigo 37º do Texto Fundamental. Estatui o mencionado inciso constitucional que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento por palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e ser informados, sem impedimentos ou discriminações”. Ora, a liberdade de expressão constitui um direito individual de cada pessoa, enquanto demonstração de que a crítica e a livre opinião são essenciais nas sociedades democráticas e pluralistas, contribuindo para a igualdade e desenvolvimento cívico dos cidadãos e das instituições. Aliás, tal direito à liberdade de expressão e de opinião está igualmente consagrado em mecanismos de direito internacional, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (art. 10º) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 19º), incluindo, designadamente, a liberdade de transmitir e difundir ideias por qualquer meio de expressão. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) vem reiteradamente considerando que a liberdade de expressão é um dos pressupostos fundamentais de uma sociedade democrática e plural, assumindo um papel fundamental para o livre desenvolvimento da personalidade de cada um e funcionando como factor de inequívoca relevância na projeccção da evolução comunitária. Ora, uma das exteriorizações mais evidentes e inderrogáveis da mencionada liberdade de expressão é, precisamente, o direito de cada cidadão de divulgar a sua opinião e de exercer cabalmente o direito de crítica. Porém, como também é patente, o exercício de tal direito pode conflituar com bens jurídicos pessoais, como a honra e a consideração. Assim, as expressões utilizadas devem conter-se ao sentido próprio da crítica, não atingindo o nível da ofensa pessoal desnecessária, gratuita, inadequada ou desproporcional, tendo como ... o normal exercício do direito de expressar opiniões. Por isso, a existência de um eventual conflito entre tais direitos (à honra e consideração, por um lado, e de liberdade de expressão, por outro), terá de ser solucionado através da ponderação criteriosa dos interesses em colisão, com recurso a critérios de proporcionalidade, necessidade e da adequação (art. 18º, n.º 2, da Constituição), tendo em vista a salvaguarda do sentido fundamental das mencionadas normas, que se encontram em pé de igualdade na hierarquia dos valores constitucionalmente protegidos. Tal significa que terão de se fixar limites a cada um dos direitos fundamentais em presença, com o objectivo de preservar o núcleo essencial de cada um deles, a fim de ser possível a desejável composição dos interesses conflituantes, com recurso à harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, com vista à sua optimização. Assim, uma vez que os factores que permitem a identificação de condutas ofensivas da honra e consideração de uma determinada pessoa são de múltipla natureza, somente atendendo aos contornos de cada hipótese se poderá concluir pela verificação, ou não, do potencial ofensivo das expressões usadas. Ora, no exercício de tal tarefa deve atender-se não apenas às palavras em si mesmas ou ao seu significado imediato, mas também ao contexto e às circunstâncias em que foram efectivamente proferidas, designadamente a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes na contenda, a relação existente entre os mesmos, bem como o modo como as expressões são proferidas. Com efeito, o objectivo visado é o de obter a solução que melhor defenda os interesses em conflito, levando em conta o concreto circunstancialismo em que irrompeu. Assim, uma vez que ao nível constitucional os assinalados direitos possuem valor rigorosamente equivalente, ter-se-á de recorrer às disposições infraconstitucionais. Designadamente, adquire relevância a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), que vigora na ordem interna. Ora, indiscutivelmente, as decisões proferidas pelo TEDH têm vindo a ser no sentido de dar prevalecente primazia à liberdade de expressão em detrimento do direito à honra e consideração, salientando-se que aquela é um dos pilares essenciais de uma sociedade democrática, valendo não apenas para as “informações” ou “ideias” favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam. Entende-se, pois, que tal é exigido pelo pluralismo, pela tolerância e espírito de abertura sem os quais não existe "sociedade (verdadeiramente) democrática". Nos termos do preceituado no parágrafo 2º, do artigo 10º, da CEDH, a dita liberdade de expressão tem, todavia, excepções – que se considera, no entanto, que têm de ser interpretadas de modo restritivo, tendo qualquer limitação ao predito direito de ser demonstrada de forma convincente e fundamentada. Relativamente, à interdependência entre a jurisprudência do TEDH e os tribunais nacionais, HENRIQUES GASPAR, in “A influência da CEDH no diálogo interjurisdicional”, Revista Julgar, nº 7, Janeiro-Abril de 2009, págs. 38-40 escreve: "As relações de mútua influência entre o TEDH e os tribunais nacionais tecem-se dentro de um modelo que não reveste natureza processual, seja hierárquica ou normativa. O sistema convencional de controlo está instituído num quadro de autonomia, sem continuidade processual direta entre as ordens judiciais nacionais e o TEDH; não existe recurso de decisões judiciais internas, nem partilha de decisões no processo com a instância europeia. (…) (…) os tribunais dos Estados que não sejam parte do litígio ou (…) fora de um caso em que foi proferida a decisão, a relação não está diretamente estabelecida. A relação (…) poderá eventualmente ser enquadrada numa categoria de diálogo judicial «semivertical», no sentido em que os tribunais de qualquer dos Estados membros estão também diretamente compreendidos no respeito pelos direitos fundamentais tal como são garantidos pela CEDH, ou seja, com o desenvolvimento e como são interpretados e aplicados pelo TEDH. No entanto, não obstante os termos limitado da vinculação direta, as decisões do TEDH quando interpretam as disposições da CEDH devem ter uma «autoridade específica» que se impõe a todos os Estados por força da chamada autoridade de «chose interpreté»: o TEDH tem por função «clarificar, garantir e desenvolver» as normas da CEDH, contribuindo para assegurar o respeito pelos Estados dos compromissos que assumem pela vinculação convencional. A interpretação pelo TEDH de normas convencionais deve ser considerada como integrando a própria CEDH. (…) Os juízes nacionais estão, assim, vinculados à CEDH e em diálogo e cooperação com o TEDH. Vinculados porque, sobretudo em sistema monista, como é o português (artigo 8.º da Constituição), a CEDH, ratificada e publicada, constitui direito interno que deve, como tal, ser interpretada e aplicada, primando, nos termos constitucionais, sobre a lei interna. E vinculados também porque, ao interpretarem e aplicarem a CEDH como primeiros juízes convencionais (…), devem considerar as referências metodológicas e interpretativas e a jurisprudência do TEDH, enquanto instância própria de regulação convencional. (…) Os tribunais nacionais e, entre estes, em último grau de intervenção mas no primeiro de responsabilidades, os Supremos Tribunais, são os órgãos de ajustamento do direito nacional à CEDH, tal como interpretada pelo TEDH; as decisões do TEDH têm, pois, e deve ser-lhes reconhecida uma autoridade interpretativa." O citado autor, a propósito de outra das questões em causa nos autos, explicita no artigo intitulado “Liberdade de Expressão: o art. 10º da Convenção Europeia dos direitos do homem. Uma leitura da Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, pág. 698 que «o TEDH enunciou o seguinte princípio fundador: os limites da crítica admissível são mais amplos em relação a personalidades públicas visadas nessa qualidade, do que em relação a um simples particular. Diferentemente destes, aqueles expõem-se, inevitável e conscientemente, a um controlo apertado dos seus comportamentos e opiniões, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos, devendo, por isso, demonstrar muito maior tolerância. Esta perspetiva garante uma extensa margem de atuação na expressão crítica e nas intervenções publicadas». No mesmo sentido, existe inúmera jurisprudência, dando-se aqui como exemplo o Acórdão do STJ de 14-10-2003, proferido no processo nº 03A2249, citado no Acórdão do Tribunal de Relação de Guimarães, de 13/07/2020, em que é relator JORGE BISPO, in www.dgsi.pt, que se tem vindo a seguir de perto, onde se pode ler “(…) os cidadãos que exercem cargos públicos, nomeadamente políticos, (…), estão sujeitos à crítica, quer das coletividades pela satisfação de cujos interesses devem pautar o exercício das respetivas funções, quer dos titulares de entidades que tutelem interesses conflituantes, do ponto de vista da sua própria perspetiva de satisfação do bem comum. (…) as pessoas que ocupam lugares de relevância política ou altos cargos na administração pública estão sujeitas a figurar como alvos de mais e de mais intensas críticas que os demais cidadãos, provenham elas de seus pares ou não. Em democracia, a tutela da honra pessoal e reputação dos políticos é, por isso, também menos intensa que a dos cidadãos em geral.” No caso dos autos verifica-se que a arguida “No dia ... de ... de 2022, (…) enviou do seu endereço de correio electrónico ...” um email para o endereço electrónico da creche “...”, ...”, com o conhecimento (vulgo “Cc”) do endereço de correio electrónico ...”, titulado pelo assistente CC, bem como dos endereços de correio electrónico pertencentes ao Presidente da Direcção daquela instituição – ...” -, à tia do assistente – ...” -, ao pai da arguida – ...” -, à mãe da arguida – ...” -, e da irmã da arguida – ...” – com o seguinte teor: Exmos senhores, O meu nome é BB e sou mãe do EE. Escrevo-vos como mãe/tutora legal e como cidadã, na sequência do vosso email datado de ... de ... de 2022 que comunica a decisão da direção da instituição ... sobre a integração do meu filho da dita instituição. Como mãe, informo que: 1. O Tribunal da Horta decidiu a ... de ... de 2022 que a guarda do FF é atribuída a mãe. 2. A regulação das responsabilidades parentais, decidida na mesma sessão de tribunal, atribuiu ao pai direito de visita mensal de 5 dias, dada a ausência de vínculo do FF com o pai (reconhecida durante a frequência do FF na vossa instituição pelo vosso corpo docente e patente pela ausência de visita do pai ao FF nos últimos 6 meses). 2. O FF integrou já as atividades escolares de uma instituição junto da sua residência, em Lisboa. Assim, como tutora legal, informo que discordo da integração do FF na vossa instituição. Como cidadã, gostaria de mostrar o meu desagrado pela susceptibilidade da instituição à pressão de pessoas com cargos públicos. Todos sabemos que o FF não tinha vaga para continuidade na vossa instituição (junto em anexo o contrato de creche convosco onde consta a ausência de continuidade na instituição e o email onde tal foi reforçado) e que não era dos primeiros meninos na lista de espera para a sala dos 3 anos. Assim, a abertura excepcional de vaga após pressão pelo pai, figura pública local e regional, denota tráfico de influência e favorecimento pessoal, que constituem crime (art 335º do Código Penal) e revela valores institucionais dúbios. Solicito que revejam a vossa posição, sendo que não hesitarei em expor publicamente e superiormente, a secretaria regional da educação e eventualmente ministério da educação, esta situação. Antecipadamente grata pela atenção dispensada, BB.” Ou seja, no caso dos autos é fundamental atender ao contexto e às circunstâncias em que as expressões em causa foram utilizadas. Ora, desde logo o assistente, atentas as funções públicas que exercia enquanto Presidente do Conselho de Administração da sociedade “...”, nomeado pelo ..., terá de estar ciente de que os seus actos estão necessariamente sujeitos a um escrutínio total da comunidade em que se integra, designadamente por parte de cidadãos que consigo mantenham uma relação de maior ou menor proximidade, designadamente quando, como no caso dos autos, se verifica a existência de uma conflitualidade exacerbada decorrente do fim do casamento mantido entre a arguida e o assistente, bem como da regulação das responsabilidades parentais relativamente ao filho menor de ambos. Acresce que, como consta da matéria de facto dada como demonstrada, a arguida quando escreveu e remeteu o mail em causa actuou suspeitando que o assistente havia exercido, conforme descreveu no email remetido, pressão sobre a Instituição referida para que fosse aberta uma vaga não anteriormente prevista para o seu filho, fazendo uso da influência que tinha na comunidade por força do cargo político que ocupava. Ou seja, no mail enviado à instituição “...”, a recorrente actuou no exercício de um direito de crítica objectiva, na medida em que estava convencida que a vaga criada para o seu filho na dita instituição tinha origem em influências movidas pelo assistente. Ora, de acordo com a factualidade demonstrada, a arguida não agiu com o propósito de rebaixar, achincalhar e humilhar o assistente, antes visando uma alteração de algo que lhe parecia ter na origem o que considerava serem comportamentos inadequados quer do assistente, quer da Instituição, neste último caso por se deixar pressionar por aquele. Aliás, na motivação da decisão de facto dada como demonstrada diz-se inclusivamente, a propósito do facto em causa, que a suspeita levantada pela arguida, “nem sequer se mostrava, atendendo aos contornos do caso, absolutamente desprovida de sentido. De facto, o próprio assistente CC reconheceu que a vaga do filho FF na creche “...” não se encontrava assegurada pela simples frequência do ano lectivo anterior. Acrescentou que, no sentido de garantir o direito a convívios prolongados que acabou por solicitar uma reunião com o presidente da instituição, sensibilizando-o para a questão, tendo sido então, nessa sequência, aberta uma vaga para o filho do casal, reconhecidamente extraordinária. A explicação adiantada acabou por ser corroborada, de forma serena, clara e, de um modo geral, isenta, pela testemunha GG, então presidente da instituição, que assegurou, no entanto, que na mesma situação de FF se encontravam, pelo menos, outras cinco crianças, referindo ser prática habitual da creche “...” facilitar a abertura de vagas que não se encontravam anteriormente previstas para assegurar a admissão de menores em situações familiares mais problemáticas, no seu superior interesse (v.g. em situação de divórcio, separação ou crianças em situação de perigo ou em vias de adopção), como considerou ser o caso, para o qual abriu, nestes termos, a referida excepção. É, portanto, verosímil que a arguida, confrontada com a abertura de uma vaga assumidamente extraordinária, tenha aventado hipótese da sua ilegalidade. Tanto mais, que foi por todos reconhecido que a arguida e o assistente não comunicavam entre si, por se encontrarem no decurso de um processo de divórcio litigioso, com admitidas animosidades de parte a parte, relatadas quer pela própria arguida, quer pelo assistente, quer pelo próprio pai da arguida - testemunha HH. Demonstrativo da gravidade do conflito, ainda que não atípico em contextos semelhantes, é a circunstância, pelos mesmos igualmente relatada, de as comunicações entre o ex-casal, desde a separação de facto, terem passado a ocorrer exclusivamente via email e com o conhecimento de familiares e/ou da Segurança Social [facto dado como provado sob o número 9]. Não surpreende, assim, que a arguida, no seio de uma relação deteriorada com o seu ex-companheiro, desconfiando, conforme a própria referiu, desde eventos passados, da integridade profissional do assistente, tenha agido na crença de que o mesmo havia abusado da sua posição de poder por forma a conseguir uma vaga que, do que tinha conhecimento e segundo lhe havia sido comunicado pela instituição em momento anterior, não se encontrava prevista nem garantida. Tal circunstância surge, aliás, corroborada pelas declarações do assistente e da testemunha GG, que reconheceram a circunstância de a criança FF, uma vez que iria completar três anos de idade em ..., deixaria de ter vaga assegurada na creche que frequentava, circunstância que foi comunicada aos pais no início do ano, conforme aduzido pela arguida. Crê-se, assim, que a arguida agiu efectivamente sob a suspeita da veracidade das imputações realizadas [facto dado como provado sob o número 8], ainda que não se encontrasse certa das mesmas.” É certo que tal tipo de conduta por parte da arguida é passível de escrutínio, nomeadamente para indagar se a via por ela trilhada emerge isenta de escolhos, por exemplo de ordem moral; contudo, seja qual o for juízo emitido sob esse parâmetro, sempre resultará claramente que as expressões em causa não adquirem a intensidade indispensável para fazer actuar o direito penal. Com efeito, diferentemente do afirmado na sentença recorrida, qualquer interesse pessoal que a arguida tivesse no sentido de que o seu filho não tivesse vaga na creche em causa, designadamente como aí se aduz, tendo em vista agravar as condições do assistente para poder estar com o filho de ambos no âmbito da regulação das responsabilidades parentais, não significa que a mesma não pudesse exercer o seu direito a crítica relativamente a comportamentos que, aos seus olhos, se mostravam desadequados. Acresce que o email em causa, como também salienta a recorrente no recurso interposto, apenas chegou ao conhecimento de um grupo restrito de pessoas, concretamente determinado, sendo maioritariamente familiares da arguida e do assistente. É certo, como também se diz na decisão em recurso que, in casu, inexiste a causa especial de dirimente da ilicitude prevista no art. 180º nº 2 do C. Penal (prova da verdade da imputação de factos para realizar interesses legítimos), na medida em que os respectivos pressupostos são de aplicação cumulativa; ou seja, o interesse legítimo desacompanhado da prova da verdade dos factos não faz funcionar o referido mecanismo. Contudo, tal não significa que a conduta da arguida a tenha feito incorrer na prática do crime em análise. Na verdade, não pode deixar de se considerar que o conteúdo do referido email é um legítimo exercício do direito de liberdade de expressão, assumindo a feição de uma crítica a determinado comportamento assacado ao assistente e a uma concreta instituição. Assim, apesar de se conceder que o email em causa tenha incomodado e ferido a susceptibilidade do assistente – que se sentiu ofendido com o respectivo teor, no contexto em que a aludida correspondência ocorreu – as palavras usadas não são passíveis de atingir o núcleo essencial e infrangível postuladas pela dignidade da pessoa humana, não revestindo a carga ofensiva que as faça alcançar o patamar da tipicidade e justifique a atribuição de dignidade penal. Ou seja, do exposto decorre que os factos objectivos dados como demonstrados não permitem que se conclua que o comportamento da arguida colidiu com o sentido social de valor contido no tipo, pelo que não se pode considerar que se encontre preenchido o tipo objectivo do crime de difamação. Com efeito, não se pode olvidar como é salientado no Ac. do STJ de 13/03/2024, já supra citado que “(…) dos princípios da fragmentariedade, da intervenção mínima e da proporcionalidade do direito penal, mas também da insignificância e da adequação social, sempre resulta que determinados comportamentos “insultuosos” não são susceptíveis de contrariar o sentido social de valor no tipo “difamação”. E, por isso, não o realizam materialmente, meso quando formal e aparentemente até o pareçam preencher.” Efectivamente, os factos dados como demonstrados não permitem que deles se conclua que a arguida actuou com intenção de atingir o assistente na sua honra e consideração. Na verdade, concluindo-se, como se concluiu, que os factos provados não realizavam o tipo objectivo de difamação, deles nunca poderia assim decorrer a demonstração dos factos do dolo do citado crime, isto é, vontade e conhecimento por parte da arguida de atingir a honra e consideração do assistente. Nestes termos, o comportamento da arguida não pode ser considerado difamatório, sendo, consequentemente, insusceptível de censura penal. Ora, concluindo desse modo, tem de se concordar com a recorrente quanto à existência do vício previsto na al. b), do nº 2 do art. 410º do CPPenal. Com efeito, não se podia ter concluído dos factos objectivos – que como já se explicitou não se subsumem ao tipo objectivo do crime de difamação – a demonstração dos “factos interiores”, do tipo subjectivo – consistentes num querer (elemento volitivo) e num saber (elemento cognitivo) dos factos do tipo objectivo – cfr. Ac do STJ que se tem vindo a citar – que segundo o tribunal a quo resultariam, precisamente, daqueles factos exteriores. Assim, julgando-se, nesse segmento procedente o recurso interposto, corrigindo o vício assinalado, os pontos 6 e 7 da matéria de facto provada passarão a integrar a matéria de facto dada como não provada. * - Absolvição do pedido de indemnização civil: A arguida recorrente pretendia ainda que, em consequência da absolvição do crime que lhe era imputado, fosse igualmente absolvida do pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente. Tal segmento do recurso foi rejeitado por irrecorribilidade. Todavia, nem por isso a questão deixará de estar presente no horizonte cognitivo do presente Acórdão – com efeito, nos termos do artigo 402º do CPP, designadamente do respectivo n.º 1 (…) “o recurso de uma sentença abrange toda a decisão”, especificando a al. b) que aquele interposto pelo arguido aproveita ao demandado. Neste sentido, ver PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário ao CPPenal, 5ª ed. Vol. II, pág. 592, “Da decisão sobre o recurso referente a matéria penal devem ser retiradas as consequências que aproveitem ao requerente à matéria civil (não impugnada) que dependa da matéria final. Por exemplo, o arguido é condenado pelo crime de dano e no pedido de indemnização civil correspondente ao prejuízo do ofendido. O arguido interpõe recurso apenas quanto à condenação penal, alegando que era proprietário da coisa. O recurso é julgado procedente com o fundamento invocado. O tribunal de recurso deve absolver o arguido também do pedido de indemnização.” A mesma orientação, quanto à obrigação de atentar em todas as consequências do recurso, resulta do nº 3 do art. 403º do CPPenal. Assim, não poderá deixar de se aferir das eventuais repercussões que a absolvição do crime possa adquirir em sede concretamente respeitante à indemnização civil fixada. Ora, no que tange ao pedido de indemnização civil, preceitua o art. 377º, 1 do CPPenal, que “A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no nº 3 do art. 82º”. Ou seja, não é pelo facto de a sentença penal ser absolutória que tal implica, só por si, a absolvição de tal pedido; terá, assim, de averiguar-se se, apesar da decisão de absolvição já proferida, no caso se verificam os pressupostos da responsabilidade civil. No que respeita a este domínio, a responsabilidade civil ancora na prática de actos ilícitos culposos – dolosos ou negligentes. Ora, foi precisamente a prática de qualquer acto ferido de ilicitude que não ficou demonstrada. Assim, face ao exposto, não obstante a inadmissibilidade do recurso neste domínio, atenta a imposição que emana do artigo 402º do CPPenal, absolve-se igualmente a arguida do pedido de indemnização civil em que havia sido condenada. * Face à decisão proferida fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela arguida no âmbito do recurso interposto. * VI – Decisão: Pelo exposto acordam os Juízes da 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e, em consequência, absolve-se a arguida BB do crime por que estava condenada, bem como, consequentemente, do pagamento da quantia indemnizatória que havia sido judicialmente fixada. * Condena-se o assistente no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (cfr. art. 515º, 1, al. b) do CPPenal). Lisboa, 8 de Maio de 2025 Rosa Maria Cardoso Saraiva Ana Marisa Arnêdo Eduardo de Sousa Paiva 1. In RLJ, 115º, 105. |