Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ALEXANDRE AU-YONG OLIVEIRA | ||
Descritores: | INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA DESISTÊNCIA CONTRA-ORDENAÇÃO NULIDADE DE SENTENÇA OMISSÃO DE PRONÚNCIA IMPUTAÇÃO PESSOA COLECTIVA ANACOM CULPA PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TIPICIDADE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA ACESSO PODER DE FISCALIZAÇÃO CONCURSO DE INFRACÇÕES | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/08/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | (da responsabilidade do Relator) 1. Para verificar-se um alegado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código do Processo Penal, este tem de resultar do texto da decisão recorrida. Neste âmbito, a Recorrente pretende que seja consultado um elemento estranho à decisão recorrida (o recurso de impugnação judicial), para daqui se verificar o vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código do Processo Penal. Cremos que tal modo de ver ultrapassa a cognoscibilidade deste tribunal em sede do apontado vício. 2. Quanto a factualidade alegadamente pertinente para o eventual enquadramento dos factos no instituto da desistência (artigo 14.º do RGCO), caso a questão fosse efetivamente pertinente para fazer-se tal enquadramento e o tribunal a quo não se tivesse pronunciado sobre a mesma quando tinha sido suscitada em sede de recurso de impugnação judicial, cremos que estaríamos perante uma nulidade da sentença por omissão de pronúncia (artigos 379.º, n.º 1, al. c), n.º 2, do Código do Processo Penal, ex vi artigo 41.º, do RGCO). Tal nulidade também não se verifica na decisão recorrida. 3. O artigo 3.º da Lei n.º 99/2009, consagra o chamado modelo de autonomia, onde a imputação à pessoa coletiva faz-se autonomamente em relação às pessoas singulares. 4. Assim sendo, no caso concreto, para poder concluir-se pela imputação objetiva e subjetiva dos factos à arguida pessoa coletiva o que é necessário é que os trabalhadores desta, ao não facultar o acesso à ANACOM às respetivas instalações, equipamentos e documentação para verificação e fiscalização das obrigações a que estava sujeita aquela, tenham atuado por conta da arguida e no exercício das respetivas funções. 5. Por seu turno, em sede de culpa e consciência da ilicitude, entendemos que o que importa é que a pessoa coletiva não possa ignorar, nas circunstâncias concretas do caso, o caráter ilícito do seu comportamento. 6. Não se vislumbra nesta interpretação normativa, qualquer desconformidade com a Constituição, em especial, no âmbito dos invocados princípios constitucionais da legalidade, da tipicidade, da culpa e da presunção de inocência. 7. Os factos provados retratam 6 situações ocorridas nos dias 22-07-2021, 23-07-2021, 26-07-2021 e 04-08-2021, onde um trabalhador da arguida, diretamente ou através de outros trabalhadores da arguida, informou agentes da ANACOM no inequívoco sentido de não facultar o acesso à ANACOM às respetivas instalações, equipamentos e documentação para verificação e fiscalização das obrigações a que estava sujeita a arguida. Não é aplicável em sede contraordenacional a figura da contraordenação continuada. Por sua vez, as seis situações descritas constituem seis condutas que devem ser punidas em concurso efetivo. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa I. RELATÓRIO Recorrente/arguida: CTT – Correios de Portugal, S.A. (doravante, CTT) Recorrida/Entidade Supervisora: Autoridade Nacional de Comunicações (doravante, ANACOM). 1. A CTT impugnou judicialmente a decisão da ANACOM, que a condenou nos seguintes termos: - em três coimas no valor de €30.000,00, cada uma, pela prática dolosa de 3 (três) contra-ordenações graves, previstas na alínea p) do n.º 1 e no n.º 4 do artigo 49.º da Lei n.º 17/2012, pela violação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 37.º do referido diploma, em cada uma das três situações mencionadas nos pontos A, B e C da matéria de facto provada da decisão impugnada; e - em três coimas no valor de €15.000,00, cada uma, pela prática dolosa de 3 (três) contra-ordenações graves, previstas na alínea p) do n.º 1 e no n.º 4 do artigo 49.º da Lei n.º 17/2012, na forma tentada, tendo praticado actos de execução tendentes à violação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 37.º do referido diploma, em cada uma das três situações mencionadas nos pontos D, E e F da matéria de facto provada da decisão impugnada. - Em cúmulo jurídico, a ANACOM na coima única no valor de €82.500,00. 2.Em 01-03-2024, foi proferida decisão pelo TCRS, com o seguinte teor: “Face ao exposto e pelos fundamentos expendidos, julgo parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida pela Recorrente CTT – Correios de Portugal, S.A., contra a decisão da ANACOM – AUTORIDADE NACIONAL DE COMUNICAÇÕES e, em consequência, decido: A) Absolver a Recorrente da prática dolosa de 3 (três) contra-ordenações graves, previstas na alínea p) do n.º 1 e no n.º 4 do artigo 49.º da Lei n.º 17/2012, de 26 de Abril, na forma tentada, por respeito à violação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 37.º do referido diploma, no que tange às 3 (três) situações mencionadas nos pontos D, E e F da matéria de facto provada da presente decisão; B) Condenar a Recorrente pela prática dolosa e sob a forma consumada de 6 (seis) contra-ordenações graves, previstas na alínea p) do n.º 1 e no n.º 4 do artigo 49.º da Lei n.º 17/2012, de 26 de Abril, pela violação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 37.º do referido diploma, no pagamento das seguintes coimas parcelares: - por respeito à situação A dos factos provados nesta decisão, em coima de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros); - por respeito às situações B e C dos factos provados nesta decisão, em 2 (duas) coimas de €30.000,00 (trinta mil euros), cada; - por respeito às situações D, E e F dos factos provados desta decisão, em 3 (três) coimas de €15.000,00 (quinze mil euros), cada; C) Operar ao cúmulo jurídico das coimas parcelares acima fixadas e condenar a Recorrente. numa coima única no valor de €80.000,00 (oitenta mil euros); D) Julgar no de mais improcedente a impugnação judicial.”. 3. Inconformada com a decisão judicial dela recorreu a CTT para o presente tribunal da relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES e PEDIDO: “Do Objeto do Recurso 1) O presente recurso vem interposto da Sentença proferida pelo TCRS, em 01.03.2024, que condenou as CTT no pagamento de uma coima única no montante de EUR 80.000,00 (oitenta mil euros) pela pratica, a titulo doloso e na forma consumada, de 6 (seis) contraordenações, previstas na alínea p) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 49.º da Lei Postal, por terem, alegadamente, impedido ações de fiscalização e investigação, levadas a cabo pela ANACOM, em Centros de Distribuição Postal de Machico, Ponta do Sol e Funchal, na Madeira, em violação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 37.º da mencionada Lei. Da insuficiência da matéria de facto provada 2) A Sentença Recorrida deve ser revogada, porquanto incorreu no vício de insuficiência da decisão de facto para a decisão, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP, ex vi do artigo 41.º, n.º 1 do RGCO, uma vez que os pontos 15, 21 e 27 do elenco de factos provados não permitem demonstrar as razões que estiveram na base da revisão da posição do Diretor Regional de Operações da Madeira, ao ter decidido, num segundo momento, permitir a realização das fiscalizações, no dia 4 de agosto de 2021. 3) É inequívoco da mera leitura da Sentença Recorrida que houve dois factos cronologicamente prévios à mudança de posição de AAAA que podem relevar na determinação da mudança de posição quanto à fiscalização: a) a cominação de que o impedimento à fiscalização configuraria a prática de um crime de desobediência (pontos 15, 21 ou 27 dos factos provados); ou b) a clarificação por BBBB a AAAA, por via telefónica, da legalidade da fiscalização e do seu dever de a permitir (que resulta (i) do facto provado 26; (ii) da pág. 18 da Sentença, linhas 422 a 427, (iii) da pp. 28 e 29 da Sentença, linhas 698 a 706 da Sentença). 4) Não há, porém, qualquer facto provado que permita concluir pelas razoes que justificaram essa mudança de posição, sendo determinante dar tal relação de causalidade como provada, porque a mesma releva para (i) a decisão de condenar os CTI na pratica de 6 (seis) ilícitos a título doloso; e (ii) a qualificação da realização da fiscalização no dia 04.08.2021 como desistência, nos termos e para os efeitos do artigo 14.º do RGCO. 5) A circunstancia de ter sido dada como provada a ocorrência de um facto em momento cronologicamente anterior a outro não permite concluir pela relação de causalidade entre um e outro quando resulta (i) da alegacão da Recorrente e (ii) da análise que consta da Sentença quanto à prova produzida, que existe uma outra razão que poderá ser a causa desse facto posterior, razão essa que não foi autonomamente apurada nos autos, que não resulta do elenco de factos provados e que seria essencial que constasse, para efeitos de o Tribunal a quo ter concluído, como concluiu erradamente, pela verificação de dolo e pela não relevância da desistência do comportamento por parte do Diretor Regional de Operações da Madeira dos CTI. 6) Deve, pois, ser reconhecida a existência de vicio de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada para a decisão, nos termos do artigo 410.º n.º 2 alínea a) do CPP, por remissão do artigo 41.º n.º 1 do RGCO e, consequentemente, ser revogada a Sentença e ordenar a baixa do processo para o apuramento do referido facto, o que se requer. Da inexistência de dolo 7) A Sentença Recorrida deve, ainda, ser revogada e substituída por outra, porquanto assentou numa interpretação errada da norma extraída da conjugação dos artigos 8.º do RGCO, 13.º do CP e 3.º, n.º 2 do RQCSC, no que diz respeito a imputação de factos dolosos a pessoa coletiva, com base em factos subjetivos que não se verificam na pessoa que atua em seu nome e no seu interesse. 8) É, pois, inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade, da tipicidade, da culpa e da presunção de inocência, interpretar a norma constante da conjugação dos preceitos supra mencionados no sentido de que as pessoas coletivas são responsáveis pelas infrações decorrentes de atos praticados em seu nome e por sua conta pelos titulares de cargos de direção e chefia e pelos próprios trabalhadores no exercício das suas funções, ainda que os primeiros, ao terem praticado tais atos, não tenham consciência da sua ilicitude, só se verificando a mesma em trabalhadores que não têm intervenção nos atos típicos. 9) O Tribunal a quo sustentou a demonstração dos factos referentes ao elemento subjetivo do tipo na tese para imputação de conhecimento à sociedade, denominada risco da organização. 10) Porém, aplicou essa tese aos factos subjetivos correspondentes à consciência da ilicitude de um facto, essencial para efeitos da imputação dos ilícitos aos CTT a título de dolo, concluindo que essa consciência pode não existir no indivíduo cuja atuação preenche o tipo objetivo do ilícito imputado à pessoa coletiva, desde que se verifique noutro indivíduo, ainda que não o que atue, correndo por conta da sociedade o risco de fragmentação da informação relevante (no caso, a consciência da ilicitude do facto). 11) Constata-se, pois, que o Tribunal considerou: i) demonstrado o elemento objetivo dos tipos de ilícito com base na atuação de AAAA, Diretor Regional de Operações da Madeira, que imputa, nos termos do artigo 3.º n.º 2 do RQCSC, aos CTT; ii) provados os factos atinentes ao elemento intelectual do dolo, sustentando que, apesar de ter sido AAAA a atuar em nome e no interesse dos CTT, a representação e a consciência da ilicitude se teriam por verificadas na pessoa de BBBB, que confirmou ter conhecimento das normas legais em causa; iii) provados os factos atinentes ao elemento volitivo do dolo - a vontade de realização do facto ilícito ter-se-iam por verificados, considerando a vontade de impedir a fiscalização de AAAA, apesar de não se ter demonstrado na sua pessoa a representação e a consciência da ilicitude. 12) Porém, o Tribunal não aditou quaisquer factos - que não estão provados - sobre uma deficiente organização dos CTT nesta matéria, que pudesse ser o fundamento da censurabilidade da sua conduta, tendo concluído apenas que o conhecimento, a consciência da ilicitude, o elemento volitivo - em suma - os elementos relevantes para preenchimento do dolo deveriam imputar- se ao ente coletivo porque esse é o risco que o mesmo corre se não garantir que o conhecimento relevante chega a quem atua em seu nome e no seu interesse no cumprimento de normas legais, cujo incumprimento constitui um ilícito. 13) Não pode a referida tese aplicar-se ao caso concreto, na medida em que: i) a mesma desemboca numa responsabilização aparentemente culposa da pessoa coletiva, sem que haja, para o efeito, a punição de uma qualquer conduta censurável pela sociedade ou pela ordem jurídica, decorrendo a mesma, tão somente, de um risco da sua organização; ii) a valoração desse risco de organização como fundamento de imputação do facto subjetivo ao ente coletivo, o qual não corre na esfera da pessoa que executa o facto objetivo, é independente da demonstração da existência de um qualquer desvalor que permita justificar a falta de consciência da ilicitude na esfera individual onde ocorrem os factos objetivo e subjetivo; iii) é violadora do princípio da presunção de inocência, da legalidade e da culpa; iv) segundo a doutrina que defende a teoria do risco da organização, a mesma não permite responder à questão sobre a imputação da consciência da ilicitude para efeitos de punição a título doloso da pessoa coletiva, mas apenas à questão atinente a saber qual o conhecimento (representação de factos) que pode ser imputado à mesma. 14) Nessa medida, sempre seria necessário, por forma a concluir pela consciência da ilicitude por parte dos CTT, demonstrar que quem atuou, em nome e no interesse coletivo, tinha na sua esfera, e por sua vez, a representação dos factos e a consciência dessa ilicitude, necessários ao preenchimento do dolo ou, em alternativa, demonstrar que a falta desse conhecimento se ficou a dever a uma organização defeituosa, enquanto fundamento último para a punição. 15) Não tendo esses factos sido alegados, nem demonstrados, a conclusão pelo preenchimento do dolo por parte dos CTT, desenvolvida na Sentença Recorrida, assenta, pois, numa errada interpretação das normas que resultam dos artigos 8.º do RGCO, 13.º do CP e 3.º n.º 2 do RQCSC no sentido de ser imputado à pessoa coletiva factos subjetivos que não se verificam na pessoa que atua em nome e no interesse coletivo e realiza a ação típica. 16) Deve, pois, a Sentença ser revogada e substituída por outra que, aplicando corretamente o Direito e a norma relevante para a imputação de factos ao ente coletivo, conclua pela não prova de factos que permitam imputar os ilícitos em causa aos CTT a título de dolo, daí se retirando as devidas consequências legais. Da desistência 17) Em linha com o anteriormente exposto a propósito do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, da qual padece a Sentença Recorrida, deve o processo ser devolvido ao Tribunal a quo a fim de ser reponderada a aplicação do artigo 14.º do RGCO, referente à desistência, porquanto a decisão de não aplicação dessa disciplina assentou, unicamente, no entendimento de que aquilo que motivou a realização da fiscalização em momento posterior foi a cominação da prática do crime de desobediência, o que, como se viu, não decorre da factualidade provada. Do ilícito continuado 18) Deve, por fim, a Sentença Recorrida ser revogada e substituída por outra que aplique ao caso o regime do crime continuado, constante do artigo 30.º, n.ºs 2 do CP, aplicável ex vi artigo 32.º do RGCO e, nessa medida, determine a medida concreta da coima por referência à prática de uma única contraordenação continuada ou que, subsidiariamente, caso o Tribunal não entenda ser de aplicar esse mesmo regime, aplique o atinente ao concurso de infrações, determinando, em consequência, a medida concreta da coima por referência à prática de duas infrações, reportadas a duas resoluções ilícitas distintas, nos termos e para os efeitos do artigo 30.º, n.º 1 do CP, aplicável por remissão do disposto no artigo 32.º do RGCO. 19) O Tribunal a quo decidiu pela imputação, aos CTT, de seis ilícitos contraordenacionais ao invés de um único ilícito continuado, o que demonstra uma errada interpretação e aplicação do artigo 30.º, n.º 2 do CP, aplicável ex vi artigo 32.º do RGCO, porquanto as condutas que estão a ser imputadas aos CTT têm na sua génese numa instrução transmitida na primeira ronda de fiscalizações, a qual se traduz numa mesma resolução ilícita. 20) Para o mais, foi a situação externa traduzida na visita dos agentes de fiscalização, que motivou essa mesma resolução, por parte do Diretor Regional de Operações da Madeira, a qual se manteve inalterada nos vários dias em que essa ação de fiscalização tomou lugar, 21) razão pela qual sempre seria de concluir que a Recorrente agiu, não só no quadro de uma unidade de resoluções "criminosas", mas também, e sobretudo, no âmbito da solicitação de uma mesma situação exterior, a mesma visita reiterada da ANACOM, nos três Centros de Distribuição Postal da Madeira sob alçada daquele Diretor Regional de Operações dos CTT, num curto espaço de tempo, que releva para efeitos de diminuição considerável da sua culpa. 22) Nessa medida, andou mal o Tribunal a quo ao imputar seis ilícitos contraordenacionais aos CTT - ao invés de um único ilícito continuado - tendo errado na interpretação e aplicação do artigo 30.º n.ºs 2 do CP. ex vi artigo 32.º do RGCO, motivo pelo qual se requer que a Sentença seja revogada e substituída por outra que reveja a condenação para apenas um ilícito continuado, aplicando a referida disposição legal. 23) Mesmo que assim não se entenda - o que não se aceita - seria sempre de equacionar, pelo menos, duas (e não seis) infrações, porquanto, no limite, a factualidade provada revela duas resoluções a Recorrente, cada uma por referência a uma única vontade: i) a resolução respeitante às situações ocorridas em julho de 2021, nos termos da qual a ANACOM se viu impedida de continuar ou iniciar a fiscalização; e ii) a resolução referente às situações de agosto de 2021, no âmbito da qual a conduta proibida se reportou ao impedimento meramente inicial de se realizar a fiscalização. 24) Nestes termos, e para os efeitos do disposto no artigo 30.º n.º 1 do CP, aplicável, com as necessárias adaptações, por remissão do disposto no artigo 32.º do RGCO, terá de concluir-se que deve ser aplicado o regime do concurso de infrações, devendo, por isso, a Sentença ser revogada, devendo ser substituída por outra que altere o número de ilícitos imputados aos CTT e, consequentemente, a medida concreta da coima por referência à prática de (apenas) duas infrações. Termos em que se requer que seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, seja a Sentença declarada nula, pelas razões acima apresentadas, daí devendo retirar-se as devidas consequências legais. Caso assim não se entenda, desde já se requer que a Sentença seja revogada, sendo substituída por outra que conceda provimento ao recurso dos CTT”. * 2. A ANACOM respondeu ao recurso pugnando pela total improcedência do mesmo. 3. O Ministério Público junto do tribunal de primeira instância, respondeu ao recurso, entendendo que deve ser julgado integralmente improcedente. 4. O Ministério Público junto deste tribunal da relação emitiu parecer acompanhando a resposta do Ministério Público em 1ª instância, pugnando, portanto, pela improcedência do recurso. * II. QUESTÕES 5. Perante a fundamentação e conclusões do recurso cumpre ao presente tribunal responder às seguintes questões: i. A Sentença Recorrida deve ser revogada por vício de insuficiência da decisão de facto para a decisão, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP, ex vi do artigo 41.º, n.º 1 do RGCO, uma vez que os pontos 15, 21 e 27 do elenco de factos provados não permitem demonstrar as razoes que estiveram na base da revisão da posição do Diretor Regional de Operações da Madeira, ao ter decidido, num segundo momento, permitir a realização das fiscalizações, no dia 4 de agosto de 2021? ii. A Sentença Recorrida deve, ainda, ser revogada e substituída por outra, porquanto assentou numa interpretação errada da norma extraída da conjugação dos artigos 8.º do RGCO, 13.º do CP e 3.º, n.º 2 do RQCSC, no que diz respeito a imputação de factos dolosos a pessoa coletiva, com base em factos subjetivos que não se verificam na pessoa que atua em seu nome e no seu interesse? iii. A Sentença Recorrida deve ser revogada e substituída por outra que aplique ao caso o regime do crime continuado, constante do artigo 30.º, n.ºs 2 do CP, aplicável ex vi artigo 32.º do RGCO e, nessa medida, determine a medida concreta da coima por referência à prática de uma única contraordenação continuada ou que, subsidiariamente, caso o Tribunal não entenda ser de aplicar esse mesmo regime, aplique o atinente ao concurso de infrações, determinando, em consequência, a medida concreta da coima por referência à prática de duas infrações, reportadas a duas resoluções ilícitas distintas, nos termos e para os efeitos do artigo 30.º, n.º 1 do CP, aplicável por remissão do disposto no artigo 32.º do RGCO? * III. DA MATÉRIA DE FACTO 6. A sentença recorrida considerou a factualidade que se passa a expor. Factos provados A. Da situação de 22 de Julho de 2021, no Centro de Distribuição Postal de Machico: 1. Em 22 de Julho de 2021, pelas 14:00, os agentes de fiscalização da ANACOM iniciaram uma ação de fiscalização no Centro de Distribuição Postal (CDP) da arguida, sito na Rua do Ribeirinho, n.º 11, em Machico – CDP de Machico –, de modo a verificar o funcionamento daquelas instalações, nomeadamente, a forma como se encontrava implementada e a funcionar a operação de distribuição postal; 2. No decurso da referida diligência e durante a fiscalização do móvel de sequenciamento afeto à distribuição postal do giro MV101, o funcionário da Arguida que se encontrava presente, DDDD, gestor do CDP “9200 Machico”, contactou telefonicamente o diretor regional de operações dos CTT da Madeira, AAAA, que lhe ordenou que cessasse essa acção – ordem que executou; 3. Os agentes de fiscalização da ANACOM que se encontravam a verificar os envios postais existentes nos móveis de sequenciamento vertical do correio – de acordo com a metodologia definida para a acção de fiscalização –, foram, então, impedidos de continuar a fazer essa verificação, tendo cessado a diligência em curso; B. Da situação de 23 de Julho de 2021, no Centro de Distribuição Postal de Ponta do Sol: 4. Em 23 de Julho de 2021, pelas 14:05, os agentes de fiscalização da ANACOM deslocaram‑se ao CDP da Arguida, sito na Estrada dos Combatentes, Livramento, 10B, Ponta do Sol – CDP da Ponta do Sol –, com a intenção de verificar, de igual modo, o funcionamento daquelas instalações afetas ao tratamento dos envios postais para distribuição; 5. Recebidos naquelas instalações pelo diretor regional de operações da Madeira, AAAA, o referido funcionário da Arguida informou os agentes de fiscalização da ANACOM que “não eram permitidas fotografias aos móveis de sequenciamento dos giros, nem a qualquer outro espaço” do CDP e que “não era permitido o manuseamento dos envios constantes nesses mesmos móveis, ou em qualquer outra área” do Centro de Distribuição; 6. Assim, tendo sido impedido o acesso aos referidos móveis de sequenciamento e proibida a recolha de meios de prova por parte dos agentes de fiscalização da ANACOM, não foi possível realizar a diligência; C. Da situação de 26 de Julho de 2021, no Centro de Distribuição Postal de Funchal: 7. Em 26 de Julho de 2021, pelas 10:30, os agentes de fiscalização da ANACOM deslocaram‑se ao CDP sito no Caminho da Penteada, Tecnopolo Nave CTT, no Funchal – CDP do Funchal –, com a intenção de verificar, também, a operação de distribuição postal implementada naquelas instalações da Arguida; 8. Recebidos no CDP do Funchal pelo respetivo gestor – EEEE –, este funcionário da Arguida, após contactar telefonicamente AAAA, informou os agentes de fiscalização da ANACOM que “não eram permitidas fotografias aos móveis de sequenciamento dos giros, nem a qualquer outro espaço” daquele CDP e que “não era permitido o manuseamento dos envios constantes nesses mesmos móveis, ou em qualquer outra área” do Centro de Distribuição; 9. Assim, tendo sido impedido o acesso aos referidos móveis de sequenciamento e proibida a recolha de meios de prova por parte dos agentes de fiscalização da ANACOM, não foi possível realizar a diligência; D. Da situação de 4 de Agosto de 2021, no Centro de Distribuição Postal de Machico: 10. Em 4 de Agosto de 2021, pelas 10:00, os agentes de fiscalização da ANACOM, acompanhados por agentes da Polícia de Segurança Pública da Esquadra de Machico – a quem aquela Autoridade solicitou colaboração, invocando o n.º 2 do artigo 46.º da Lei Postal –, deslocaram-se novamente ao CDP de Machico, para verificar o funcionamento daquele Centro de Distribuição da Arguida; 11. Recebidos pelo funcionário da Arguida, responsável no local, DDDD, os agentes de fiscalização informaram que iriam proceder à vistoria das áreas do CDP destinadas à distribuição postal (sequenciamento vertical do correio, operação de separação geral e tratamento de correio de valor), à recolha das datas de entrada na rede postal dos envios postais depositados nas referidas áreas e ao registo fotográfico das áreas do CDP vistoriadas; 12. Foi ainda solicitada a disponibilização dos mapas diários de tráfego processado no CDP referentes ao período de 1 de Julho de 2021 até 4 de Agosto de 2021; 13. Aquele gestor do CDP contactou AAAA, director regional de operações dos CTT da Madeira, que não permitiu o manuseamento, a visualização dos envios postais constantes nas referidas áreas, nem a recolha de fotografias, negando o acesso aos equipamentos e documentação existentes naquelas instalações da Arguida, considerado pelos agentes de fiscalização necessário e imperativo, para efeitos de realização da acção de fiscalização; 14. Nessa sequência, a ANACOM ordenou ao responsável do CDP da arguida que, de imediato, fosse concedido tal acesso, advertindo-o de que o não acatamento daquela ordem poderia configurar a prática do crime de desobediência; 15. Após a leitura da cominação sobre a eventual prática de crime de desobediência, o responsável do CDP informou o diretor regional de operações da Madeira, AAAA, que, apenas após as 11:00, autorizou a realização da acção de fiscalização pela ANACOM; E. Da situação de 4 de Agosto de 2021, no Centro de Distribuição Postal de Ponta do Sol: 16. Em 4 de Agosto de 2021, pelas 10:00, os agentes de fiscalização da ANACOM, acompanhados por um agente da Polícia de Segurança Pública da Esquadra da Ponta do Sol – a quem aquela Autoridade solicitou colaboração, invocando o n.º 2 do artigo 46.º da Lei Postal –, deslocaram-se novamente ao CDP da Ponta do Sol, para verificar o funcionamento daquele Centro de Distribuição da Arguida; 17. Recebidos pelo funcionário da Arguida, responsável pelo CDP, CCCC, os agentes de fiscalização informaram que iriam proceder à vistoria das áreas do CDP destinadas à distribuição postal (sequenciamento vertical do correio, operação de separação geral e tratamento de correio de valor), à recolha das datas de entrada na rede postal dos envios postais depositados nas referidas áreas e ao registo fotográfico das áreas do CDP vistoriadas; 18. Foi ainda solicitada a disponibilização dos mapas diários de tráfego processado no CDP referentes ao período de 1 de Julho de 2021 até 4 de Agosto de 2021; 19. Aquele responsável do CDP contactou AAAA, director regional de operações dos CTT da Madeira, que não permitiu o manuseamento, a visualização dos envios postais constantes nas referidas áreas, nem a recolha de fotografias, negando novamente o acesso aos equipamentos e documentação existentes naquelas instalações da Arguida, considerado pelos agentes de fiscalização necessário e imperativo, para efeitos de realização da acção de fiscalização; 20. Nessa sequência, a ANACOM ordenou ao responsável do CDP da Arguida que, de imediato, fosse concedido tal acesso, advertindo-o de que o não acatamento daquela ordem poderia configurar a prática do crime de desobediência; 21. Após a leitura da cominação sobre a eventual prática de crime de desobediência, o responsável do CDP informou o director regional de operações da Madeira, AAAA, que, apenas após as 11:00, autorizou a realização da acção de fiscalização pela ANACOM; F. Da situação de 4 de Agosto de 2021, no Centro de Distribuição Postal de Funchal: 22. Em 4 de Agosto de 2021, pelas 10:00, os agentes de fiscalização da ANACOM, acompanhados por um agente da Polícia de Segurança Pública da Esquadra do Funchal – a quem aquela Autoridade solicitou colaboração, invocando o n.º 2 do artigo 46.º da Lei Postal –, deslocaram-se novamente ao CDP do Funchal, para verificar o funcionamento daquele Centro de Distribuição da Arguida; 23. Recebidos pelo funcionário da Arguida, AAAA, director regional de operações dos CTT na Madeira, os agentes de fiscalização informaram que iriam proceder à vistoria das áreas do CDP destinadas à distribuição postal (sequenciamento vertical do correio, operação de separação geral e tratamento de correio de valor), à recolha das datas de entrada na rede postal dos envios postais depositados nas referidas áreas e ao registo fotográfico das áreas do CDP vistoriadas; 24. Foi ainda solicitada a disponibilização dos mapas diários de tráfego processado no CDP referentes ao período de 1 de Julho de 2021 até 4 de Agosto de 2021; 25. Aquele funcionário dos CTT não permitiu o manuseamento, a visualização dos envios postais constantes nas referidas áreas, nem a recolha de fotografias, negando novamente o acesso aos equipamentos e documentação existentes naquelas instalações da Arguida, considerado pelos agentes de fiscalização necessário e imperativo, para efeitos de realização da acção de fiscalização; 26. Tendo solicitado aquele funcionário da Arguida um tempo para obter esclarecimentos, pelas 10:32, atenta a ausência de resposta, foi solicitada a sua presença e a ANACOM ordenou que, de imediato, fosse concedido tal acesso, advertindo-o de que o não acatamento daquela ordem poderia configurar a prática do crime de desobediência; 27. Apenas após a leitura da cominação sobre a eventual prática de crime de desobediência, às 10:45, o diretor regional de operações da Madeira, AAAA, permitiu a realização da acção de fiscalização pela ANACOM; - Factos comuns: 28. A Recorrente, enquanto prestadora histórica de serviço postal e, principalmente, enquanto concessionária do serviço postal universal, possui a experiência e uma dimensão e estrutura organizacional que lhe permitem (e exigem) conhecer as obrigações legais que regem a sua atividade e assegurar o respetivo cumprimento; 29. A Arguida tinha perfeito conhecimento de que estava obrigada, enquanto prestadora de serviço postal, a permitir que a ANACOM procedesse à vistoria dos centros de distribuição postal (zonas de sequenciamento vertical do correio, operação de separação geral e tratamento de correio de valor), à recolha das datas de entrada na rede postal dos envios postais depositados nas referidas áreas e ao registo fotográfico das áreas do CDP fiscalizadas; 30. Sabia, igualmente, que, tendo sido solicitado pela ANACOM, estava obrigada a disponibilizar os mapas diários de tráfego processado nos centros de distribuição fiscalizados, referentes ao período de 1 de Julho de 2021 até 4 de Agosto de 2021; 31. E que ao não facultar à ANACOM, acesso às instalações, equipamentos e documentos nos exatos termos acima dados como provados, estava a incumprir aquelas obrigações, bem sabendo que as condutas por si adotadas constituíam a prática de contraordenações; 32. Assim: 32.1 Ao adotar as condutas referidas nos pontos A, B e C, não facultando à ANACOM o acesso aos equipamentos e documentação ali referidos, para verificação e fiscalização das obrigações a que está sujeita, a Arguida, através dos seus funcionários que atuavam em seu nome e por sua conta, agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que sua atuação era ilícita e consubstanciava a prática de contraordenações, tendo prosseguido com o resultado antijurídico dessas condutas; 32.2 Ao adotar as condutas referidas nos pontos D, E e F, a Arguida, através dos seus funcionários que atuavam em seu nome e por sua conta, agiu de forma deliberada, livre e consciente, impedindo o acesso da ANACOM aos equipamentos e documentação ali referidos, para verificação e fiscalização das obrigações a que está sujeita, tendo as fiscalizações acabado por se realizar apenas devido à ordem ditada pela ANACOM, acompanhada da advertência de que o seu não acatamento poderia configurar a prática do crime de desobediência; 33. No ano de 2020, a Arguida teve um volume de negócios de €468.833.332,00, um balanço total de €1.053.283.402,00 e um resultado líquido do exercício no valor €16.720.995,00, tendo ao seu serviço um número médio de 10.332 trabalhadores; 34. Por respeito ao ano de 2022, a Recorrente apresentou vendas e prestações de serviços no valor de €466.029.627,04, um resultado líquido do período de €37.307.257,60, tendo ao seu serviço uma média de 10.069 trabalhadores; 35. Desconhece-se o benefício económico retirado pela arguida da prática das infrações em causa; 36. A Arguida não foi anteriormente condenada pela prática de infrações do tipo da que está em causa no presente processo, tendo existido outras fiscalizações onde sempre se apresentou colaborante; 37. Porém, foi condenada em sede dos seguintes processos, mediante decisões judiciais proferidas neste Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, transitadas em julgado nas seguintes datas, pela prática das contraordenações identificadas nas respetivas decisões introduzidas no expediente de 29.09.2023, ref.ªs 431324 a 431337, que aqui se dão por integralmente reproduzidas: 37.1 Processo nº 22/15.7YUSTR, decisão transitada em julgado em 08/06/2015; 37.2 Processo nº 92/21.9YUSTR, decisão transitada em julgado em 31/03/2022; 37.3 Processo nº 109/14.3YUSTR, decisão transitada em julgado em 20/03/2015; 37.4 Processo nº 222/18.8YUSTR, decisão transitada em julgado em 10/10/2019; 37.5 Processo nº 163/22.4YUSTR, decisão transitada em julgado em 29/08/2022; 37.6 Processo nº 177/22.4YUSTR, decisão transitada em julgado em 23/03/2023. Factos não provados 1. A Recorrente mantém constante formação e informação dos seus funcionários e agentes para que estes prestem sempre toda a colaboração necessária às ações de Inspeção da ANACOM; 2. As situações ocorreram porque a Recorrente, por intermédio dos seus funcionários, sentiu necessidade de manter o sigilo relativamente à informação dos clientes, face ao que dispõe o Regulamento Geral de Proteção de Dados; 3. A Recorrente julgava, por intermédio dos seus funcionários, que, com os seus comportamentos, não estava a violar quaisquer normativos legais, não considerando, por um lado, estar a impedir a verificação e fiscalização da ANACOM e considerando, por outro, estar a dar prevalência à obediência das previsões do Regime de Proteção de Dados. * IV. FUNDAMENTAÇÃO 7. O presente recurso segue a tramitação prevista no CPP, com as especialidades previstas no artigo 74.º, n.º 4, do RGCO. 8. No âmbito de processos de contraordenação, em recursos interpostos de decisões do tribunal de primeira instância, o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, como estatui o n.º 1, do art.º 75.º, do RGCO. 9. Podem, ainda, ser conhecidos os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código do Processo Penal. Acresce a possibilidade de conhecer de nulidades que não devam considerar-se sanadas ao abrigo do n.º 3 deste preceito [1]. 10. Importa também não esquecer, e constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores, que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação de recurso (artigo 412.º, n° 1, do Código de Processo Penal), sem prejuízo da apreciação das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito. 11. De notar, por último, que os referidos preceitos do Código do Processo Penal, quando necessário, devem ser “devidamente adaptados” ao processo contraordenacional (artigo 41.º, n.º 1, do RGCO). 12. Expostos os limites cognoscentes deste tribunal vejamos, pois, as questões suscitadas nos recursos. i. A Sentença Recorrida deve ser revogada por vício de insuficiência da decisão de facto para a decisão, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP, ex vi do artigo 41.º, n.º 1 do RGCO, uma vez que os pontos 15, 21 e 27 do elenco de factos provados não permitem demonstrar as razoes que estiveram na base da revisão da posição do Diretor Regional de Operações da Madeira, ao ter decidido, num segundo momento, permitir a realização das fiscalizações, no dia 4 de agosto de 2021? 13. Como é sabido, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código do Processo Penal, tem de resultar do texto da decisão recorrida. 14. Os vícios contemplados nas três alíneas do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal são vícios que resultam, portanto, da própria estrutura da sentença devendo ser detetáveis pela simples leitura e análise daquela. 15. Neste contexto, concordamos com jurisprudência do STJ emitida em sede processual penal, quando sustenta: “[c]oncretamente no que respeita à insuficiência da matéria de facto para a decisão, a matéria de facto apurada no seu conjunto terá de ser incapaz para, em abstrato, sustentar a decisão condenatória ou absolutória tomada pelo tribunal” (Ac. STJ de 07/06/2021, processo n.º 8013/19.2T9LSB.L1.S1). 16. De igual modo, concordamos com jurisprudência do STJ emitida em sede processual penal, quando sustenta que se verifica “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo.” (ac. STJ de 09-02-2012, processo n.º 233/08.1PBGDM.P3.S1). 17. Especificamente em sede contraordenacional concordamos, por seu turno, com o Ac. TRG de 02/05/2023, processo n.º 384/22.0T8PRG.G1, no sentido de que “[s]e for necessário analisar elementos do processo, como, a prova gravada, documentos ou mesmo peças processuais, tais como a contestação do arguido, para se concluir que faltam factos para sustentar a decisão ou que há erro na apreciação daquela prova, então, não estamos no âmbito dos vícios previstos no nº 2 do art.º 410.º do CPP”. 18. Neste contexto, e lida a decisão recorrida forçoso é concluir que inexiste o alegado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. 19. Conforme se consignou na decisão recorrida “[d]ecorre dos factos provados que nas situações ocorridas em Julho de 2021, agentes de fiscalização da ANACOM se dirigiram, em três dias distintos, a três Centros de Distribuição Postal da Recorrente igualmente distintos, para realizarem inspecções a esses Centros. Porém, foram impedidos, na primeira situação, de continuar a fiscalização e nas restantes de iniciar essas fiscalizações.” (linhas 867-870)). 20. Logo a seguir adianta “[m]ais se mostra provado que nas situações ocorridas em Agosto de 2021, agentes de fiscalização da ANACOM se dirigiram, num único dia, a três Centros de Distribuição Postal da Recorrente distintos, para realizarem inspecções a esses Centros. Porém, num primeiro momento, foram impedidos de realizar essas fiscalizações.”. 21. Neste seguimento, e após análise detalhada de argumentos aduzidos pela ora Recorrente em sede de recurso de impugnação judicial, o tribunal a quo concluiu, ou seja, subsumiu a factualidade em causa, na previsão de 6 (seis) contra-ordenações graves, previstas na alínea p) do n.º 1 e no n.º 4 do artigo 49.º da Lei n.º 17/2012, de 26 de Abril, pela violação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 37.º do referido diploma. De notar que, segundo o aludido artigo 37.º, n.º 1, al. j) “constituem obrigações dos prestadores de serviços postais facultar o acesso à ANACOM às respetivas instalações, equipamentos e documentação para verificação e fiscalização das obrigações a que estão sujeitos, no quadro das competências desta entidade, tal como estabelecidas nos respetivos Estatutos, e nos termos da legislação aplicável ao tipo de procedimento ou processo em causa”. 22. Ora, se atentarmos na factualidade provada, supra reproduzida, é forçoso concluir que inexiste insuficiência para a decisão daquela. 23. Não se olvida aqui que a ora Recorrente invoca que havia alegado no seu recurso (de impugnação judicial) que: "no decurso dos factos ocorridos uns dias antes (situações A a C) e afim de prevenir qualquer perturbação ou constrangimento, ainda que justificado na perspetiva da arguida, o responsável contactou os serviços centrais competentes, a fim de solicitar instruções para os Senhores Inspectores poderem recolher fotografias; Tendo, antes, sido solicitado aos senhores inspectores o favor de aguardarem algum tempo; Logo que se conseguiu estabelecer aquele contacto, dada a existência de algumas dificuldades, os senhores Inspectores foram informados que poderiam dar início à sua Inspecção sem qualquer restrição" (artigos 28.º a 30.º da Impugnação dos CTT).” (artigo 34 da fundamentação do recurso). 24. Ou seja, a recorrente pretende que seja consultado um elemento estranho à decisão recorrida (o recurso de impugnação judicial), para daqui se verificar o vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código do Processo Penal. 25. Ora, como deixamos supra consignado, cremos que tal modo de ver ultrapassa a cognoscibilidade deste tribunal em sede do apontado vício. 26. Por seu turno, a Recorrente conclui que “houve dois factos cronologicamente prévios à mudança de posição de AAAA que podem relevar na determinação da mudança de posição quanto à fiscalização: a) a cominação de que o impedimento à fiscalização configuraria a pratica de um crime de desobediência (pontos 15, 21 ou 27 dos factos provados); ou b) a clarificação por BBBB a AAAA, por via telefónica, da legalidade da fiscalização e do seu dever de a permitir (que resulta (i) do facto provado 26; (ii) da pág. 18 da Sentença, linhas 422 a 427, (iii) da pp. 28 e 29 da Sentença, linhas 698 a 706 da Sentença). 27. Mais resulta das alegações de recurso que a Recorrente entende que esta factualidade era essencial para a boa decisão da causa, desde logo em sede dos elementos subjetivos da infração (integrantes de dolo) e do instituto da desistência “[a] circunstancia de ter sido dada como provada a ocorrência de um facto em momento cronologicamente anterior a outro não permite concluir pela relação de causalidade entre um e outro quando resulta (i) da alegacão da Recorrente e (ii) da análise que consta da Sentença quanto à prova produzida, que existe uma outra razão que poderá ser a causa desse facto posterior, razão essa que não foi autonomamente apurada nos autos, que não resulta do elenco de factos provados e que seria essencial que constasse, para efeitos de o Tribunal a quo ter concluído, como concluiu erradamente, pela verificação de dolo e pela não relevância da desistência do comportamento por parte do Diretor Regional de Operações da Madeira dos CTI.”. 28. Ora, quanto aos elementos relativos ao dolo, julga-se que o que a Recorrente realmente visa, é a sindicância da respetiva matéria de facto, por discordar da afirmação dos elementos em causa, elementos estes que constam dos factos provados 29 a 32. 29. Tal sindicância é vedada a este tribunal (artigo 75.º, n.º 1, do RGCO). 30. Já quanto a factualidade alegadamente pertinente para o eventual enquadramento dos factos no instituto da desistência (artigo 14.º do RGCO), caso a questão fosse efetivamente pertinente para fazer-se tal enquadramento e o tribunal a quo não se tivesse pronunciado sobre a mesma quando tinha sido suscitada em sede de recurso de impugnação judicial, cremos que estaríamos perante uma nulidade da sentença por omissão de pronúncia (artigos 379.º, n.º 1, al. c), n.º 2, do Código do Processo Penal, ex vi artigo 41.º, do RGCO). 31. Neste sentido, pronunciou-se o Ac. TRL de 10/01/2013, processo n.º 905/05.2JFLSB.L1-9 “[q]uando o tribunal não dá como provados ou não provados factos relevantes alegados na acusação, no pedido cível ou na contestação, o vício de que padece é o de nulidade por omissão de pronúncia (art.º 379º/1-c) do CPP) e não o de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410º/2-a) do CPP)”. 32. Neste âmbito específico da desistência sempre se dirá, em primeiro lugar, que tal instituto não foi referido em sede do recurso de impugnação judicial. 33. Tal falta não impediu, contudo, o tribunal a quo de apreciar a sua não verificação. Nesta sede, com vista a melhor compreendermos as alegações de recurso ora em causa, a decisão recorrida concluiu “no vertente caso, consideramos que não existe uma desistência relevante para efeitos de isenção da coima pois só depois de ter sido advertida de que a sua actuação poderia configurar a prática de crime de desobediência e apenas por força dessa cominação (vide facto 32.2, última parte), é que a Recorrente permitiu a realização das acções de fiscalização, concedendo o acesso aos móveis de sequenciamento dos CDP e permitindo o manuseamento dos envios ali existentes, bem como a recolha de meios de prova por parte dos agentes da ANACOM.” (linhas 1066-1071). 34. Ou seja, o que a Recorrente pretende na presente sede é que se reconheça que o tribunal devia ter-se pronunciado não só sobre se a fiscalização foi permitida pela arguida com causa na cominação com o crime de desobediência mas também porque um seu funcionário, o AAAA, no dia 04.08.2021 estabeleceu um contacto telefónico que permitiu o esclarecimento a propósito da permissão ou impedimento de realização da fiscalização e que, cronologicamente, após esse esclarecimento foi permitida a realização da fiscalização (cf. artigo 37.º da fundamentação do recurso). 35. Conforme já deixamos supra consignado em 32, a factualidade em causa não foi alegada em sede de recurso de impugnação judicial com a conotação jurídica que ora lhe dá a Recorrente. 36. Os factos alegados naquela sede foram os seguintes: “28.º Acontece que, no decurso dos factos ocorridos uns dias antes (situações A a C) e a fim de prevenir qualquer perturbação ou constrangimento, ainda que justificado na perspectiva da arguida, o responsável contactou os serviços centrais competentes, a fim de solicitar instruções para os Senhores lnspectores poderem recolher fotografias; 29.º Tendo, antes, sido solicitado aos senhores lnspectores o favor de aguardarem algum tempo; 30.º Logo que se conseguiu estabelecer aquele contacto, dada a existência de algumas dificuldades, os senhores lnspectores foram informados que poderiam dar início a sua inspeção sem qualquer restrição; 31.º Não tendo ocorrido qualquer impedimento ou respectiva intenção, mas, tao só, necessidade imperiosa de, no momento, respeitar em absoluto o direito de a ANACOM prosseguir as suas obrigações. 32.º Cuidando, os responsáveis da arguida, de remover toda e qualquer circunstância que fosse mais tarde utilizada para alegação de perturbação da investigação”. 37. E o significado jurídico que lhes foi conferido na mesma peça foi a de “o tempo de espera solicitado não poderá integrar o conceito de actos de execução; quando muito actos preparatórios - que, aliás, não são puníveis - mas nem isso” (artigo 36.º do recurso de impugnação). 38. Ou seja, a factualidade em causa foi alegada no sentido de negar a prática de quaisquer atos ilícitos. 39. Neste contexto, a questão de facto que ao tribunal a quo cabia apurar era se efetivamente tinha havido atos praticados pela arguida, consubstanciadores do(s) ilícito(s) que lhe tinha sido imputado(s) pela entidade administrativa. 40. Obviamente que a esta questão o tribunal a quo deu resposta cabal, como o ilustram os factos provados, nomeadamente, os factos relativos ao aludido dia 04 de agosto (factos provados 10 a 15). 41. Não se verifica, pois, nem um vício enquadrável no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código do Processo Penal, nem a uma nulidade da sentença por omissão de pronúncia. 42. Nestes termos, conclui-se pela improcedência do recurso. ii. A Sentença Recorrida deve, ainda, ser revogada e substituída por outra, porquanto assentou numa interpretação errada da norma extraída da conjugação dos artigos 8.º do RGCO, 13.º do CP e 3.º, n.º 2 do RQCSC, no que diz respeito a imputação de factos dolosos a pessoa coletiva, com base em factos subjetivos que não se verificam na pessoa que atua em seu nome e no seu interesse? 43. Neste âmbito da imputação (subjetiva) das contraordenações alega a Recorrente, inclusive, que é “inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade, da tipicidade, da culpa e da presunção de inocência, interpretar a norma constante da conjugação dos preceitos supra mencionados no sentido de que as pessoas coletivas são responsáveis pelas infrações decorrentes de atos praticados em seu nome e por sua conta pelos titulares de cargos de direção e chefia e pelos próprios trabalhadores no exercício das suas funções, ainda que os primeiros, ao terem praticado tais atos, não tenham consciência da sua ilicitude, só se verificando a mesma em trabalhadores que não têm intervenção nos atos típicos” (conclusão 8). 44. As alegações da Recorrente dizem respeito não só ao chamado dolo do tipo, mas também à consciência da ilicitude, ou seja, ao dolo da culpa, pois afirma (conclusão 11): “Constata-se, pois, que o Tribunal considerou: i) demonstrado o elemento objetivo dos tipos de ilícito com base na atuação de AAAA, Diretor Regional de Operações da Madeira, que imputa, nos termos do artigo 3.º n.º 2 do RQCSC, aos CTT; ii) provados os factos atinentes ao elemento intelectual do dolo, sustentando que, apesar de ter sido AAAA a atuar em nome e no interesse dos CTT, a representação e a consciência da ilicitude se teriam por verificadas na pessoa de BBBB, que confirmou ter conhecimento das normas legais em causa; iii) provados os factos atinentes ao elemento volitivo do dolo - a vontade de realização do facto ilícito ter-se-iam por verificados, considerando a vontade de impedir a fiscalização de AAAA, apesar de não se ter demonstrado na sua pessoa a representação e a consciência da ilicitude. 45. E segundo a Recorrente “sempre seria necessário, por forma a concluir pela consciência da ilicitude por parte dos CTT, demonstrar que quem atuou, em nome e no interesse coletivo, tinha na sua esfera, e por sua vez, a representação dos factos e a consciência dessa ilicitude, necessários ao preenchimento do dolo ou, em alternativa, demonstrar que a falta desse conhecimento se ficou a dever a uma organização defeituosa, enquanto fundamento último para a punição.” (conclusão 14). 46. Seguindo a mesma linha de argumentação, diz-nos a Recorrente que “[n]ão tendo esses factos sido alegados, nem demonstrados, a conclusão pelo preenchimento do dolo por parte dos CTT, desenvolvida na Sentença Recorrida, assenta, pois, numa errada interpretação das normas que resultam dos artigos 8.º do RGCO, 13.º do CP e 3.º n.º 2 do RQCSC no sentido de ser imputado à pessoa coletiva factos subjetivos que não se verificam na pessoa que atua em nome e no interesse coletivo e realiza a ação típica.” (conclusão 16). 47. Vejamos. 48. A argumentação da Recorrente parece laborar, na sua essência, segundo os quadros do Direito Penal clássico. Como se sabe, o Direito Penal partiu, pelo menos desde o Iluminismo, do objetivo de delimitar, de forma considerada justa, as condições da responsabilidade penal de pessoas singulares. A responsabilidade penal de pessoas coletivas resulta de uma construção bastante mais recente. 49. Como é consensual no domínio do Direito Penal, o dolo do tipo é constituído pelo conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito, ou seja, por um elemento intelectual e um elemento volitivo. Estes elementos estão previstos na definição das várias modalidades de dolo previstos no artigo 14.º, do Código Penal. A verificação destes elementos é pressuposto do preenchimento do tipo de ilícito doloso. 50. Contudo, se a verificação destes elementos é condição necessária à responsabilidade penal do agente singular, não é ainda suficiente. Para tanto, “ao dolo do tipo deve acrescer um novo elemento – digamos: “emocional” –, caracterizador da específica atitude pessoal exigida pelo tipo de culpa dolosa. Elemento emocional este que é dado, em princípio, através da consciência da ilicitude” [2]. 51. Este elemento emocional adicional já não dirá respeito, portanto, à ilicitude do facto, mas à culpa do agente. Efetivamente, a ilicitude diz respeito à negação de valores (bens jurídicos) ínsita em determinada ação (ou omissão), valores tais protegidos por um tipo legal de crime. Por sua vez, a culpa jurídico-penal é constituída por um juízo de censura dirigida a uma “atitude interna ou íntima do agente (do seu Gesinnung), manifestada no ilícito-típico e que o fundamenta como obra sua, da sua pessoa ou da sua personalidade.”. Nestes termos, o tipo de culpa doloso verifica-se apenas quando “perante um ilícito-típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas” [3]. 52. Ou seja, se o dolo do tipo, tal como propugnado pela doutrina da ação final, localiza-se já no plano da ilicitude e do desvalor da ação/resultado, mais precisamente numa consciência psicológica ou intencional imanente à ação (ou omissão), a culpa jurídico-penal é um juízo de censura dirigida ao agente (pessoa física), em concreto, à sua personalidade manifestada no facto. 53. No plano contraordenacional há, no entanto, que ter desde logo em conta que “[d]iferentemente do que sucede no Direito Penal, a responsabilidade das pessoas colectivas constitui um traço matricial do Direito das Contra-ordenações” [4]. 54. No plano contraordenacional também têm sido reconhecidas especificidades que fazem diferir o conteúdo de alguns conceitos, desde logo do conceito de culpa. Aqui, como tem sido reconhecido pela doutrina e pelo nosso Tribunal Constitucional “não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal baseada numa censura ética dirigida à pessoa do agente, à sua abstracta intenção, mas apenas de uma imputação do acto à responsabilidade social do seu autor, que serve como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas” (Ac. TC. n.º 180/2014, citando Jorge de Figueiredo Dias; no mesmo sentido, entre outros, Acs. TC n.º 344/07 e 336/08). 55. Em todo o caso, nos dizeres do Ac. TC. 172/2021 será indispensável “a existência de um nexo causal mínimo entre o autor e a prática da contraordenação em causa – indispensável à satisfação do princípio da culpa”. 56. É de notar, ainda, que segundo este último acórdão, no plano contraordenacional o “princípio da culpa” não se funda na dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, da CRP), mas antes no princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2.º, da CRP). Esta conclusão torna-se ainda mais óbvia quando falamos da responsabilidade contraordenacional de pessoas coletivas. 57. Já em relação ao dolo (do tipo), há quem questione, e parece-nos com razão, se o seu conteúdo clássico (artigo 14.º, do Código Penal), se deva aplicar às pessoas coletivas. Quanto a estas, atentas as respetivas especificidades, sustenta-se que regras de imputação subjetiva (artigo 8.º, n.º 1, do RGCO) devem ser diferentes, desde logo, quanto ao conceito de dolo (a que devem acrescer diferentes critérios materiais da culpa)[5]. 58. Sempre se dirá, no plano contraordenacional, que quanto a esta forma de imputação subjetiva coloca-se “o problema de saber se a prova do dolo admite um grau de exigência menor do que o dolo dos tipos penais”, devendo a resposta ser afirmativa “não só porque os tipos contraordenacionais são em regra mais parcos em elementos objetivos e a prova do dolo por isso ser mais simples, mas também porque os agentes são frequentemente pessoas coletivas e a prova do dolo é aqui, pela natureza da coisa, mais flexível”[6]. 59. No caso concreto, como é consensual está em causa a responsabilidade da arguida vista à luz do artigo 3.º da Lei n.º 99/2009 (regime quadro das contraordenações do sector das comunicações ou RQCSC), segundo o qual, com particular relevância para o caso sub iudice, dispõe: “Artigo 3.º Responsabilidade pelas contraordenações 1 - Pela prática das infrações a que se refere o presente regime podem ser responsabilizadas pessoas singulares ou coletivas, ainda que irregularmente constituídas, e associações sem personalidade jurídica. 2 - As pessoas coletivas referidas no número anterior são responsáveis pelas infrações cometidas em atos praticados em seu nome ou por sua conta, pelos titulares dos seus órgãos sociais, pelos titulares dos cargos de direção e chefia e pelos seus trabalhadores no exercício das suas funções, bem como pelas infrações cometidas por seus mandatários e representantes, em atos praticados em seu nome ou por sua conta. 3 - A responsabilidade das pessoas coletivas é excluída quando o agente atue contra ordens ou instruções expressas daquela.” (sublinhados nossos). 60. Efetivamente, este diploma é aplicável a contraordenações aplicadas ao abrigo da Lei n.º 17/2012, conforme expressamente previsto no respetivo artigo 1.º, n.º 3, al. p). Mesmo que não se considerasse esta redação do artigo 1.º, n.º 3, al. p) da Lei n.º 99/2009 aplicável a estes autos, por se tratar de versão posterior aos factos, em concreto, dada pela Lei n.º 16/2022, de 16/08, sempre se teria de considerar este diploma aplicável às contraordenações em causa, porquanto são relativas ao setor das comunicações e a enunciação de diplomas neste normativo sempre foi meramente exemplificativa, conforme se denota da expressão “designadamente”, também presente na redação originária do preceito. 61. É de notar que não se podem dirigir as mesmas críticas ao aludido artigo 3.º da Lei n.º 99/2009, que por vezes são dirigidas ao disposto no artigo 7.º, n.º 2 do RGCO. No âmbito deste último, pela sua singela referência a “órgãos” das pessoas coletivas, há quem entenda que se deixam de fora da respetiva responsabilidade, os casos envolvendo funcionários da pessoa coletiva no exercício das respetivas funções. Tal já não será, no entanto, o caso perante o disposto no artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 99/2009, que prevê expressamente a situação de “trabalhadores no exercício das suas funções” [7]. 62. Por seu turno, como norma incriminadora aplicável ao caso concreto temos a já referida alínea j) do n.º 1 do artigo 37.º da Lei n.º 17/2012, que determina que “sem prejuízo de outras obrigações indicadas na presente lei, constituem obrigações dos prestadores de serviços postais facultar o acesso à ANACOM às respetivas instalações, equipamentos e documentação para verificação e fiscalização das obrigações a que estão sujeitos, no quadro das competências desta entidade, tal como estabelecidas nos respetivos Estatutos, e nos termos da legislação aplicável ao tipo de procedimento ou processo em causa”. Ademais, segundo o n.º 4 do mesmo preceito “[o]s prestadores de serviços postais são responsáveis pelo cumprimento integral e pontual das obrigações previstas na presente lei, ainda que, para o exercício da sua atividade, recorram a serviços de outras entidades.”. 63. Ora, segundo a perspetiva da Recorrente, parece que seria necessário provar que o trabalhador que atuou de forma ilícita no exercício das suas funções, in casu, o trabalhador da arguida chamado AAAA (segundo os factos provados diretor regional de operações da Madeira), tivesse não só o conhecimento e vontade de praticar o facto ilícito – isto é, impedisse a ANACOM de realizar ações de fiscalização, representando e querendo tal obstrução -, como teria que ser este a ter consciência da ilicitude. 64. Sempre se dirá que o alegado pela Recorrente teria, porventura, razão de ser caso estivesse em causa a responsabilidade contraordenacional (cumulativa) de funcionário, neste caso, de AAAA (e/ou BBBB e/ou outros). Concorda-se, assim, com a decisão recorrida quando afirma, em sede de motivação dos factos provados, que segundo a tese então defendida pela arguida “estar-se-ia a analisar a culpa não da Recorrente, mas do próprio trabalhador” (linhas 608-609). Contudo, não se trata aqui de (co) responsabilizar qualquer pessoa singular, causal ou cocausalmente promotora dos factos típicos. 65. O raciocínio da Recorrente parece, assim, partir do pressuposto que o citado artigo 3.º da Lei n.º 99/2009, consagra o chamado modelo de dependência, onde a imputação as pessoas coletivas ou equiparadas é sempre mediada pela imputação a pessoas singulares. 66. Contudo, julgamos inequívoco, no caso do aludido artigo 3.º, que o que aqui está em causa é o chamado modelo de autonomia, onde a imputação faz-se autonomamente em relação a cada uma das entidades ou pessoas[8]. 67. Ora, sendo a imputação da pessoa coletiva, aqui arguida/Recorrente, autónoma ou direta, não faz sentido mediar esta imputação pela imputação às referidas pessoas singulares. 68. Nestes casos – de responsabilidade direta da pessoa coletiva –, o facto praticado em nome e no interesse coletivo não é elemento constitutivo do tipo contraordenacional, mas apenas condição da imputação (neste sentido, Ac. TRL de 16/03/2011, proc. n.º 147/10.5TAPDL.L1-3). Verificada tal condição, a imputação subjetiva a considerar é diretamente em relação à pessoa coletiva. 69. No caso concreto, para poder concluir-se pela imputação objetiva e subjetiva dos factos à arguida pessoa coletiva o que é necessário, portanto, é que os trabalhadores desta, ao não facultar o acesso à ANACOM às respetivas instalações, equipamentos e documentação para verificação e fiscalização das obrigações a que estava sujeita aquela, tenham atuado por sua conta e no exercício das suas funções. 70. Obviamente que, mesmo quando tal sucede, ainda em respeito ao supra aludido “principio da culpa”, a responsabilidade da pessoa coletiva sempre seria excluída se o trabalhador em causa atuasse contra ordens ou instruções expressas daquela (artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 99/2009). 71. Ora, se analisarmos a factualidade provada verifica-se que as condutas dos trabalhadores da arguida – em essência, não facultar o acesso à ANACOM às respetivas instalações, equipamentos e documentação para verificação e fiscalização das obrigações a que estava sujeita a arguida (cf. artigos 37.º, n.º 1, al. j) e 49.º, n.º 1 al. p) e n.º 4, da Lei n.º 17/2012) –, foram inequivocamente realizadas por conta da arguida e no exercício das respetivas funções laborais. 72. Com efeito, conforme retratam os factos provados 1 a 27, o caso concreto trata de 6 situações ocorridas nos dias 22-07-2021, 23-07-2021, 26-07-2021 e 04-08-2021, onde o dito trabalhador – AAAA -, diretamente ou através de outros trabalhadores da arguida, informou agentes da ANACOM no inequívoca sentido de não facultar o acesso à ANACOM às respetivas instalações, equipamentos e documentação para verificação e fiscalização das obrigações a que estava sujeita a arguida. 73. Em concreto, conforme resulta da referida factualidade, AAAA, no dia 22-07-2021, ordenou a outro funcionário (DDDD, gestor) que cessasse a ação de fiscalização encetada pela ANACOM; no dia 23-07-2021 AAAA dirigiu-se diretamente a agentes da ANACOM dizendo-lhes que “não eram permitidas fotografias aos móveis de sequenciamento dos giros, nem a qualquer outro espaço” e que “não era permitido o manuseamento dos envios constantes nesses mesmos móveis, ou em qualquer outra área”; no dia 26-07-2021 EEEE, gestor, após contacto telefónico com AAAA, informou agentes da ANACOM de que “não eram permitidas fotografias aos móveis de sequenciamento dos giros, nem a qualquer outro espaço” daquele CDP e que “não era permitido o manuseamento dos envios constantes nesses mesmos móveis, ou em qualquer outra área”. As demais situações retratam comportamentos semelhantes. 74. Resulta, pois, manifesto da factualidade apurada, que os trabalhadores da arguida que tiveram intervenção nos factos, atuaram por conta da arguida e no exercício de funções enquanto trabalhadores da mesma. 75. Por seu turno, no plano da culpa e consciência da ilicitude, exigir-se a uma pessoa coletiva, um qualquer elemento emocional adicional como se de uma pessoa singular tratasse, roçaria o absurdo. 76. Aliás, no domínio do Direito Contraordenacional, reconhecendo-se a “indiferença ético-social” das respetivas condutas proibidas como critério de delimitação material perante o Direito Penal, a ilicitude coincidirá, pelo menos em grande medida, com a própria proibição legal. Nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já uma valoração da ilicitude. No caso das contra-ordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora alguma dessas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituída apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal” [9]. 77. Entendemos, por isso, que o que importa neste plano é que a pessoa coletiva não possa ignorar, nas circunstâncias concretas do caso, o caráter ilícito do seu comportamento [10]. 78. Ora, neste plano da culpa apurou-se que: “A Recorrente, enquanto prestadora histórica de serviço postal e, principalmente, enquanto concessionária do serviço postal universal, possui a experiência e uma dimensão e estrutura organizacional que lhe permitem (e exigem) conhecer as obrigações legais que regem a sua atividade e assegurar o respetivo cumprimento. A Arguida tinha perfeito conhecimento de que estava obrigada, enquanto prestadora de serviço postal, a permitir que a ANACOM procedesse à vistoria dos centros de distribuição postal (zonas de sequenciamento vertical do correio, operação de separação geral e tratamento de correio de valor), à recolha das datas de entrada na rede postal dos envios postais depositados nas referidas áreas e ao registo fotográfico das áreas do CDP fiscalizadas” (factos provados 28-29). 79. E, de forma coerente com tal factualidade provada, a decisão recorrida consignou que: “32.1 Ao adoptar as condutas referidas nos pontos A, B e C, não facultando à ANACOM o acesso aos equipamentos e documentação ali referidos, para verificação e fiscalização das obrigações a que está sujeita, a Arguida, através dos seus funcionários que actuavam em seu nome e por sua conta, agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que sua actuação era ilícita e consubstanciava a prática de contra-ordenações, tendo prosseguido com o resultado antijurídico dessas condutas; 32.2 Ao adoptar as condutas referidas nos pontos D, E e F, a Arguida, através dos seus funcionários que actuavam em seu nome e por sua conta, agiu de forma deliberada, livre e consciente, impedindo o acesso da ANACOM aos equipamentos e documentação ali referidos, para verificação e fiscalização das obrigações a que está sujeita, tendo as fiscalizações acabado por se realizar apenas devido à ordem ditada pela ANACOM, acompanhada da advertência de que o seu não acatamento poderia configurar a prática do crime de desobediência”. 80. Quanto a estes factos provados, que assumem, nos termos expostos, importância no âmbito da culpa e consciência da ilicitude, a decisão recorrida não deixou de consignar em sede de motivação de facto o seguinte: “Estranho seria, aliás, que uma empresa como a Recorrente, que se apresenta como uma das empresas com mais tradição e sedimentação em Portugal, tendo por isso uma experiência e uma estrutura bastante complexa que lhe permitem conhecer as normas da actividade onde se insere, se dispusesse a defender desconhecer tais normas, com quase dez anos de vigência, tempo mais do que suficiente para que qualquer empresa possa das mesmas se inteirar. Por isso, não subsistem quaisquer dúvidas de que a Recorrente conhecia as normas em causa, ou seja, tinha perfeito conhecimento dos deveres a que estava adstrita. Disso nos deram inclusivamente nota as testemunhas AAAA, acima já identificado e BBBB.” (linhas 413-421). 81. Ou seja, nas situações concretas em causa, não só a arguida não podia deixar de conhecer os deveres resultantes das normas em questão, como efetivamente os conhecia, o que foi confirmado pelos seus próprios trabalhadores na qualidade de testemunhas. 82. Nestes termos, nada temos a apontar à decisão recorrida quando imputa as condutas em causa diretamente à arguida, a título doloso e com consciência da respetiva ilicitude. 83. Não se vislumbra, também, qualquer interpretação normativa dos artigos 8.º do RGCO, 13.º do CP e 3.º, n.º 2 do RQCSC, desconforme com a Constituição, em especial, no âmbito dos invocados princípios constitucionais da legalidade, da tipicidade, da culpa e da presunção de inocência. 84. O tecido normativo supra descrito (artigo 3.º da Lei n.º 99/2009, artigo 37.º, n.º 1, al. j), artigo 49.º, n.º 1, al. p) e n.º 4, da Lei n.º 17/2012) é base suficiente para suportar as conclusões jurídicas da decisão recorrida no sentido da condenação (autónoma) da arguida, inexistindo qualquer violação dos princípios da legalidade e tipicidade (artigo 29.º, n.º 1, da CRP). 85. Por seu turno, não se pode considerar violado o “princípio da culpa”, que sempre terá de ser perspetivado no plano específico da responsabilidade contraordenacional de pessoas coletivas (artigo 2.º, da CRP). 86. Por último, tendo os factos provados resultado da prova produzida em audiência, em conjugação com as regras da lógica e regras da experiência comum, e não de qualquer presunção legal inilidível, também não se vislumbra qualquer interpretação normativa que ofenda o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP). 87. Conclui-se, assim, que o recurso deve ser aqui julgado improcedente. iii. A Sentença Recorrida deve ser revogada e substituída por outra que aplique ao caso o regime do crime continuado, constante do artigo 30.º, n.ºs 2 do CP, aplicável ex vi artigo 32.º do RGCO e, nessa medida, determine a medida concreta da coima por referência à prática de uma única contraordenação continuada ou que, subsidiariamente, caso o Tribunal não entenda ser de aplicar esse mesmo regime, aplique o atinente ao concurso de infrações, determinando, em consequência, a medida concreta da coima por referência à prática de duas infrações, reportadas a duas resoluções ilícitas distintas, nos termos e para os efeitos do artigo 30.º, n.º 1 do CP, aplicável por remissão do disposto no artigo 32.º do RGCO? 88. Em primeiro lugar, a Recorrente parte aqui do pressuposto que o regime do crime continuado, constante do artigo 30.º, n.ºs 2 do CP, é aplicável no âmbito do Direito das Contraordenações ex vi artigo 32.º do RGCO. 89. Não cremos que assim o seja. 90. Com efeito, no centro da lógica inerente ao crime continuado está o bem jurídico (artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal), sendo certo que a figura mostra-se desde logo excluída quando está em causa um bem jurídico eminentemente pessoal (artigo 30.º, n.º 3, do Código Penal). 91. Ora, em sede do Direito das Contraordenações há que recordar que “[u]ma contra-ordenação corresponde em regra a um ilícito qualitativamente distinto do ilícito criminal: o seu desvalor é pré-configurado pela criação normativa de deveres que pré-existem à infracção (as normas de conduta) e não necessariamente pelo juízo jurídico-político sobre a necessidade de tutela de um bem jurídico fundamental. A infracção do ilícito de mera ordenação social é constituída nuclearmente pela violação desse dever e, depois, pode ou não incorporar outros elementos de desvalor associados a um bem jurídico, ao resultado e à danosidade do facto e à necessidade de os evitar.” [11] (sublinhados nossos). 92. É neste contexto que se compreende que “entre os obstáculos à vigência da infração continuada no domínio das contra-ordenações dois merecem especial destaque. Por um lado, a figura foi pensada no contexto de factos lesivos de bens jurídicos pessoais (desde que não se trate de bens pessoalíssimos pertencentes a titulares distintos) e as contra-ordenações consistem na afectação de interesses funcionais ou organizatórios, destituídos, por definição, de referente pessoal. Por outro lado, a neutralidade axiológica e o carácter admonitório da culpa própria das contra-ordenações são dificilmente compatíveis com a sensível diminuição progressiva da culpa, que constitui outra marca da infracção continuada no Direito Penal português”[12]. 93. De notar que, baseando-se a figura da infração continuada numa “considerável diminuição da culpa do agente” (artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal), no contexto de penas que encontram o seu limite inultrapassável na medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal), é difícil transpor esta relevância da culpa e a respetiva função limitadora ao domínio das coimas[13]. 94. Por outro lado, se o RGCO não deixa de regular diretamente, pelo menos em certa medida, a matéria do concurso de contraordenações (artigos 19.º e 20.º), nada refere quanto à figura da continuação. 95. Aliás, em projeto de revisão do RGCO em 1995, foi proposta a inserção de uma norma com o seguinte teor: “Artigo 19°-A (Contraordenação continuada) 1. Constitui uma só contraordenação continuada a violação plúrima da mesma norma ou de várias normas que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. 2. A contraordenação continuada é punível com a coima correspondente a conduta mais grave que integra a continuação.”[14] 96. Contudo, na reforma de 1995 operada pelo DL n.º 244/95, de 14/09, tal norma não foi incluída. Interpretamos, pois, este silêncio como uma “ausência querida legislativamente”[15]. 97. Nestes termos, não se julga aqui aplicável o artigo 30.º, n.º 2 e 3, do Código Penal, por força do disposto no artigo 32.º do RGCO. 98. Mas mesmo que entendêssemos ser aqui aplicável a figura da contraordenação continuada, sempre concluiremos pela sua não aplicação ao caso concreto, tal como decidiu o tribunal a quo, porquanto “[n]o vertente caso, apesar das seis contra-ordenações cometidas entroncarem em interesses homogéneos e resultar do manancial fáctico dado como provado que as seis situações foram executadas de forma essencialmente homogénea, não logramos apurar que circunstância poderá evidenciar uma “situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente” (linhas 1360-1363). 99. Passando à apreciação do problema do concurso. 100. Neste âmbito, a decisão recorrida, após identificar a norma aplicável – artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal –, concluiu que “tendo em vista que a Recorrente impossibilitou por seis vezes o acesso à ANACOM às respectivas instalações, equipamentos e documentação para verificação e fiscalização das obrigações a que está sujeita, temos de concluir que se mostram cometidas, em termos objectivos e subjectivos, seis infracções distintas, sob a forma consumada” (linhas 1422-1425). 101. Por sua vez, entende a Recorrente que, em caso de não se entender ser aqui aplicável o regime da contraordenação continuada, “seria sempre de equacionar, pelo menos, “duas (e não seis) infrações, porquanto, no limite, a factualidade provada revela duas resoluções da Recorrente, cada uma por referência a uma única vontade: i) a resolução respeitante às situações ocorridas em julho de 2021, nos termos da qual a ANACOM se viu impedida de continuar ou iniciar a fiscalização; e ii) a resolução referente às situações de agosto de 2021, no âmbito da qual a conduta proibida se reportou ao impedimento meramente inicial de se realizar a fiscalização.” 102) Vejamos. 103) Estipula o artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal (aplicável ex vi artigo 32.º do RGCO), no que aqui releva: “Concurso de crimes (…) 1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.” 104) Adaptando a norma em causa ao plano contraordenacional, deve ler-se que o número de contraordenações determina-se pelo número de tipos de contraordenação efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de contraordenação for preenchido pela conduta do agente. 105) Como resulta do supra exposto, em causa nos presentes autos está um único tipo de contraordenação, constituído, em essência, pela violação pela arguida da obrigação de conceder o acesso à ANACOM às respetivas instalações, equipamentos e documentação para verificação e fiscalização das obrigações a que estava sujeita a arguida (cf. artigos 37.º, n.º 1, al. j) e 49.º, n.º 1 al. p) e n.º 4, da Lei n.º 17/2012). 106) Nos termos da segunda parte do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, coloca-se, assim, o problema de saber quantas condutas são imputáveis à arguida, de forma a preencher o mesmo tipo de contraordenação. Com efeito, se a lei refere, no singular, que o número de contraordenações se determina pelo número de vezes que o mesmo tipo de contraordenação for preenchido pela conduta do agente, então o número de contraordenações determinar-se-á pelo número de condutas. 107) Como já vimos, os factos provados 1 a 27 retratam 6 situações ocorridas nos dias 22-07-2021, 23-07-2021, 26-07-2021 e 04-08-2021, onde o dito trabalhador – AAAA -, diretamente ou através de outros trabalhadores da arguida, informou agentes da ANACOM no inequívoco sentido de não facultar o acesso à ANACOM às respetivas instalações, equipamentos e documentação para verificação e fiscalização das obrigações a que estava sujeita a arguida. 108) As situações referentes a julho ocorreram em três dias diferentes e em locais diferentes, no Centro de Distribuição de Machico (dia 22 de julho), no Centro de Distribuição de Ponta do Sol (dia 23 de julho) e no Centro de Distribuição do Funchal (dia 26 de julho). 109) Também as situações do dia 04 de agosto, ocorreram nos mesmos três locais, ou seja, nos Centros de Distribuição de Machico, Ponta do Sol e Funchal. 110) Conclui-se, assim, que a arguida ora Recorrente adotou 6 condutas diversas entre si e, assim, efetivamente praticou 6 contraordenações (concurso efetivo), tal como sustentado na decisão recorrida. 111) Não se olvida que a Recorrente invoca aqui que apenas se verificam duas resoluções contraordenacionais. 112) Como é sabido, o conceito de “resolução” tem o sentido de “determinações de vontade”. Entenda-se aqui determinações da vontade contra a norma de determinação (no plano do Direito Penal, o tipo de crime), substrato volitivo do juízo de censura penal (culpa). “Se, pois, diversas resoluções foram tomadas para o desenvolvimento da atividade criminosa, diversas vezes deixa a norma de alcançar concretamente a eficácia determinadora a que aspirava e vários serão os fundamentos para os juízos de censura em que a culpa se analisa”[16]. 113) O referido conceito de resolução criminosa tem sido criticada por doutrina mais recente por se afigurar ambíguo[17]. 114) Quanto a nós o que realmente importa é que com a punição das diversas infrações não se viole o princípio constitucional ne bis in idem, segundo o qual “[n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” (artigo 29.º, n.º 5, da CRP). 115) Ora, qualquer uma das condutas referidas nos factos e supra sintetizadas em 107-108 constitui um ilícito culposo, que poderia ser julgado de forma autónoma e com objetos diversos, revelando, pois, que cada conduta trata de uma contraordenação em concurso efetivo com as demais. Não se viola, pois, o aludido princípio. 102. Assim sendo, o recurso deve ser julgado integralmente improcedente. * V. DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em julgar o recurso da CTT, integralmente improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida. Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s (artigo 93.º, n.º 3, do RGCO, e artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III do RCP). ** Lisboa, 08-05-2024 Alexandre Au-Yong Oliveira Bernardino Tavares Armando Manuel da Luz Cordeiro _______________________________________________________ [1] Cf. fundamentação do Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2019, DR. n.º 124/2019, Série I de 2019-07-02. [2] Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 245. [3] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3.ª ed., Gestlegal, 2019, p. 622. [4] Augusto Silva Dias, “Direito das Contra-Ordenações”, Almedina, 2019, reimpressão, p. 91. [5] Neste sentido, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, “A tutela dos mercados de valores mobiliários e o regime do ilícito de mera ordenação social”, in Direito dos valores mobiliários, Coimbra Editora, 1999, p. 315. [6] Augusto Silva Dias, supra nota 4, p. 105. [7] Neste sentido, Augusto Silva Dias, supra nota 4, p. 92-95. [8] Sobre estes modelos veja-se a interpretação avançada por Frederico de Lacerda da Costa Pinto de norma próxima ao aludido artigo 3.º, em concreto, o artigo 677.º, do Código de Valores Mobiliários de 1991. Seguimos de perto tal interpretação (v. supra nota 5, p. 312-317). [9] Jorge de Figueiredo Dias, supra nota 2, p. 146 [10] A Lei n.º 17/2012, de 26 de Abril resultou da transposição da Diretiva n.º 2008/6/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de fevereiro de 2008. Tal como vem sendo decidido pelo TJUE em domínios contraordenacionais determinados pelo Direito da União, em particular no de infrações ao Direito da Concorrência “[q]uanto à questão de saber se uma infração foi cometida deliberadamente ou por negligência e se, por isso, é punível com coima nos termos do artigo 23.º, n.º 2, primeiro parágrafo, do Regulamento n.º 1/2003, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que este requisito está preenchido quando a empresa em causa não possa ignorar o caráter anticoncorrencial do seu comportamento, quer tenha tido ou não consciência de violar as regras de concorrência do Tratado” (Ac. TJUE de 18 de junho de 2013, Schenker & Co. e o., C‑681/11, EU:C:2013:404, n.º 37)”. [11] Frederico de Lacerda da Costa Pinto, “As garantias do Estado de Direito e a evolução do direito de mera ordenação social”, in SCIENTIA IVRIDICA, TOMO LXVI, nº 344 – Maio/Agosto, 2017, p. 250. [12] Augusto Silva Dias, supra nota 4, p. 145-146. [13] Neste sentido, Frederico Machado Simões, A Infração Sucessiva no Direito das Contraordenações, Almedina, 2022, p.74-75. [14] Cf. Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, “Revisão do regime legal do ilícito de mera ordenação social”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 37, nº 2, LEX, 1996, p. 557-591. [15] Faria Costa, citado por Augusto Silva Dias, supra nota 4, p. 145. [16] Eduardo Correia, “Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Almedina, 2.ª reimpressão, 1996, p. 94-95. [17] Como refere Inês Ferreira Leite “as teses da unidade da intenção, da culpa ou da resolução criminosa, não se furtam a críticas semelhantes [que à unidade naturalística]. Por um lado, não parece ser possível afirmar que subjacente à execução de diversos movimentos físicos subjaz sempre uma mesma vontade ou uma intenção homogênea. O que obriga a equacionar não só a pureza dos conceitos de “intenção”, “finalidade”, e “resolução”, usados por estes autores, como o tipo de relação que estabelecem com as categorias dogmáticas do Direito Penal: dolo, desvalor da ação, e culpa” (Ne (Idem) Bis in Idem – Proibição de Dupla Punição e de Duplo Julgamento: Contributos para a Racionalidade do Poder Punitivo Público, Vol. 1, Lisboa: AAFDL, 2016, p. 838-839). Em suma, “EDUARDO CORREIA acabou por ter que deixar entrar pela janela o que tinha impedido de entrar pela porta… [a]pesar de insistir na adoção de um critério normativo – o número de crimes determina-se pelo número de infrações -, o autor recorre a critérios vagos e ambíguos para resolver muitos dos seus casos, tais como a “experiência psicológica” ou a “conexão espácio-temporal” (autora e obra cit., p. 843). Estas críticas saem ainda mais reforçadas quando está em causa, como no caso concreto, a responsabilidade autónoma de pessoa coletiva em sede contraordenacional, isto é, como vimos, uma responsabilidade que não depende nem é mediada, nos seus elementos típicos, por uma imputação a uma pessoa singular. |