Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
124/04.5TCLSB.L1-5
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA
DEPOIMENTO INDIRECTO
FUNDAMENTAÇÃO
CO-AUTORIA
INSTIGAÇÃO
CUMPLICIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIAL
Sumário: I. “Os agentes dos crimes de associação criminosa não são [só] por esse motivo agentes dos crimes praticados na realização do seu fim” […] “daqui resulta a necessidade de individualizar […] os membros da associação criminosa já existente; e de individualizar seguidamente, os agentes de cada crime cometido” (Manuel G. Cavaleiro de Ferreira).
II. O depoimento de um inspetor da PJ, não é, na parte em que diz ter visto, durante a investigação dos factos, o arguido sempre num dado local, um depoimento indireto (art. 129 do CPP). Já o é, na parte em que depõe sobre o que ouviu em escutas telefónicas, sendo nessa parte proibida a respectiva valoração.
III – Os juízes não devem fazer relatos das declarações ou depoimentos produzidos – devem indicar os meios de prova e fazer a análise crítica dos mesmos.
IV. Não se verifica o crime de associação criminosa se, entre o mais, não ficar provado: a existência de um modo de formação da vontade coletiva, um qualquer substrato material dessa atividade e um qualquer sentimento comum de ligação. E se, para além disso, “da mera associação de vontade dos agentes não resultar, sem mais, um perigo para bens jurídicos protegidos notoriamente maior e diferente daquele que existiria se no caso se verificasse simplesmente uma qualquer forma de comparticipação criminosa” (Figueiredo Dias).
V. Não basta para fundar a coautoria (3ª alternativa do art. 26 do CP) uma atuação do agente na fase preparatória, designadamente o planeamento e organização da execução. O planeador tem de dirigir ele próprio a operação, mesmo que à distância. Se o planeador se limita a concebê-la, de todo se desinteressando da efetiva realização, e ele só pode ser então instigador ou cúmplice ( Figueiredo Dias).
Decisão Texto Parcial:António S… foi condenado, no processo supra identificado, pela prática de: a) 1 crime de associação criminosa (art. 299/3 do Código Penal = CP), na pena de 4 anos de prisão; b) 6 crimes de roubo [art. 210/1 e 2b), com remissão para o art. 204/2f), do CP], na pena, para cada um, de 5 anos de prisão; c) 1 crime de roubo (art. 210/1 do CP), na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; d) 1 crime de falsificação [art. 256/1a) e 3, do CP], na pena de 1 ano de prisão; e) 1 crime de sequestro (art. 159/1 do CP), na pena de 1 ano de prisão; f) e, em cúmulo jurídico, na pena única de 14 anos de prisão.
Este processo resultou da separação de um outro, em que o arguido, com 10 outros indivíduos, tinha sido pronunciado por estes crimes e ainda por outros de que acabou por ser absolvido por falta de prova.
O arguido recorreu deste acórdão, pedindo a revogação do mesmo e a sua absolvição.
O MP na 1ª instância defendeu o acórdão e a improcedência do recurso.
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Os factos dados como provados, para a questão da culpabilidade, foram os seguintes:
I
a) Em data não concretamente apurada o arguido juntou-se com outros indivíduos e de comum acordo, decidiram organizar-se em grupo com o objetivo principal de fazerem seus veículos com características determinadas, vulgarmente conhecidos por veículos topo de gama, e também todo-o-terreno e de valor consideravelmente elevado.
b) Tais veículos seriam transportados para países da União Europeia (nomeadamente, Bélgica e Holanda) por alguns elementos do grupo, com vista à sua exportação para países do continente africano (nomeadamente para Angola), de acordo com encomendas feitas pelos interessados, residentes nesse país.
c) Decidiram que iriam abordar os proprietários dos veículos com aquelas características, em Lisboa e áreas limítrofes, duma forma concertada, planeada, estruturada e continuada no tempo.
d) Tal abordagem seria feita quando os proprietários dos veículos se encontrassem no seu interior ou nas proximidades.
e) Mais decidiram que seriam exibidas armas e exercida força física contra as vítimas, com vista a obrigá-las à entrega das chaves e dos documentos dos veículos, representando tal facto um acréscimo de lucro na sua venda, uma vez que os veículos chegariam aos seus destinatários sem sinais de arrombamento.
f) Decidiram igualmente que iriam obrigar os ofendidos a fazer-lhes a entrega de objetos pessoais, documentos e dinheiro, e a acompanhá-los até determinados locais, privando-os assim da liberdade.
g) Sempre que era necessário esclarecer ou decidir qualquer assunto relacionado com a atividade delituosa desenvolvida pelo grupo, os indivíduos trocavam chamadas telefónicas, entre eles e com o arguido, pois todos eram possuidores de telemóvel.
h) Dentro do grupo alguns elementos, nomeadamente, Artur P…, José A… Sebastião F… Adriano P…, Júlio D… e Pedro A… participavam diretamente na execução dos roubos (eram chamados operacionais, ou tropas, expressão com a qual os mesmos se autodenominavam).
i) Outro núcleo de indivíduos, nomeadamente, Daniel F… e Ricardo J…, dedicava-se preferencialmente ao transporte dos veículos para o estrangeiro.
j) Outro núcleo de elementos, designadamente, Júlio A… e Rodrigues G… mantinham contactos com indivíduos de nacionalidade angolana residentes naquele país, que pretendiam adquirir veículos com aquelas características, e logo que tais indivíduos manifestavam interesse em adquirir tais veículos, transmitiam tal conhecimento ao arguido.
l) O arguido coordenava toda a atividade do grupo, assumindo a posição de líder, recebendo as “encomendas” dos veículos, ficando normalmente afastado dos locais dos roubos, mantendo por vezes o contacto telefónico com os operacionais e os outros membros do grupo, por forma a controlar toda a atividade delituosa desenvolvida.
m) Foi no âmbito do plano prévio traçado entre todo o grupo, que o arguido com os demais indivíduos concordaram na prática dos factos que a seguir se descrevem, em II.
II
[a numeração dos 7 assaltos que se seguem foi feita por este acórdão do TRL para mais fácil referenciação e para evitar reproduções inúteis].
i)
1. No dia 10/01/2002, cerca das 23h20m, Marta T…, dirigiu-se à Rua Cons. José Silvestre Ribeiro, em Carnide, Lisboa, ali estacionando o seu veículo Volkswagen Polo e número de matrícula 00-00-FQ.
2. Foi então avistada por um grupo de quatro indivíduos que logo formularam o desígnio de fazerem seu o referido veículo.
3. Quando M… se dirigiu à porta dum prédio ali existente, foi abordada por dois dos indivíduos.
4. Enquanto um deles se encostou a ela, impedindo-a de fugir, o outro exibiu-lhe uma pistola de gás transformada, atualmente semiautomática, de calibre 6,35 mm ordenando-lhe a entrega das chaves do seu veículo e do saco que transportava, tendo esta última obedecido, por temer pela sua própria vida.
5. De seguida, os dois indivíduos exigiram-lhe a entrega da carteira que tinha ao ombro, dizendo que a matavam se esta não obedecesse.
6. Nesse momento um dos indivíduos desferiu-lhe um soco na face, lançando ainda um gás contido num spray (cujo princípio ativo é desconhecido) que a atingiu na face e lhe causou ardor.
7. Os indivíduos retiraram-lhe a carteira, pondo-se os três em fuga, conduzindo o Volkswagen Polo, no valor de cerca de 12.000€.
8. No dia 23/01/2002, este veículo foi apreendido pela PSP na Rua das Gardénias, em Birre, Cascais, após ter sido abandonado pelos indivíduos e arguido, que o utilizaram para realização de outros roubos.
9. Submetido o veículo a exame lofoscópico, foram recolhidos vestígios digitais que foram identificados com as impressões demopapilares de Artur P…, após a realização do competente exame comparativo no LPC.
10. Na casa onde residia o arguido foi encontrada uma carteira de plástico transparente contendo um título de registo de propriedade emitido em nome de G…, referente ao Volkswagen Polo, com a matrícula 00-00-FQ, um livrete emitido pela DGV e referente ao Volkswagen Polo, de cor preta, com a matrícula 00-00-FQ, um certificado internacional de seguro automóvel, emitido pela Fidelidade, com o nº xxxxxxxxx, a favor de G…, três cheques com os números ...44, ...46 e ...47, referentes à conta com o nº ..., emitidos pela Caixa Geral de Depósitos a favor de M….
11. O arguido juntamente com os demais indivíduos agiram em comunhão de esforços, ameaçando a ofendida com uma arma, assim a pondo na impossibilidade de reagir, atingindo-a também no seu corpo, com a intenção concretizada de fazerem seus os objetos e o veículo descritos, bem sabendo que agiam contra a vontade da sua legítima proprietária.
ii)
12. No dia 23/01/2002, cerca das 20h30, persistindo no objetivo de fazerem seus veículos topo de gama, pelo menos Artur P…, Sebastião F…, José A… e Adriano P…, dirigiram-se à Quinta da Marinha, ainda em Cascais.
13. Quando passaram na Rua das Piscinas, avistaram Frederico P…que estacionava o seu veículo todo-o-terreno, Grand Cherokee e matrícula 00-00-PO em frente à sua residência.
14. Os indivíduos saíram então do Volkswagen Polo em que se faziam transportar e abordaram Frederico P….
15. Um dos indivíduos empunhou uma pistola de gás transformada, atualmente semiautomática, de calibre 6,35mm, em direção a este último, exigindo-lhe a carteira que o mesmo entregou, por recear pela sua vida, enquanto os restantes indivíduos o revistaram, retirando-lhe as chaves do veículo.
16. Na posse dos objetos, três dos indivíduos entraram para o jipe, obrigando o seu proprietário a entrar também para o banco de trás, enquanto o outro indivíduo seguiu no Volkswagen Polo que haviam retirado a Marta T… e que a fim de evitarem a eventual localização do veículo em causa por parte da polícia, substituíram a matrícula original, apondo-lhe uma outra com o número 00-00-GD.
17. O ofendido foi então obrigado a pôr o veículo em funcionamento e a indicar aos indivíduos o caminho de saída da Quinta da Marinha, sendo constantemente ameaçado de morte, tendo também sido obrigado a revelar o código dos seus cartões de débito e a entregar o seu telemóvel.
18. Ao chegarem à mata de Monsanto, no Bairro da Serafina, o ofendido foi amordaçado e amarrado nos pés e nas mãos, tendo sido posteriormente abandonado na mata, após ter sido atingido com socos e pontapés pelos indivíduos.
19. O valor de todos os objetos retirados, englobando o valor do veículo, ascende a 60.000€.
20. Posteriormente vários documentos pertencentes ao ofendido foram apreendidos a Artur P…, aquando da detenção deste último, tendo igualmente sido encontrados na resi-dência do arguido vários documentos pertencentes ao ofendido.
21. O arguido mais os outros indivíduos agiram em comunhão de esforços, ameaçando o ofendido com a utilização de uma arma, pondo-o na impossibilidade de reagir e atingindo-o no seu corpo, com a intenção concretizada de fazer seus os objetos descritos, bem sabendo que agiam contra a vontade do seu legítimo proprietário.
22. Para além disso, ao obrigarem o ofendido a entrar para o seu próprio veículo e a ali permanecer durante o percurso Quinta da Marinha - Bairro da Serafina, sob ameaça de utilização de uma arma, agiram com a vontade concretizada de privar o ofendido da sua liberdade de movimentos.
iii)
23. No dia 11/02/2002, cerca das 20h30m, quatro membros do grupo, entre os quais Sebastião F… e José A… dirigiram-se à Tapada das Mercês, em Sintra.
24. Quando se encontravam na Rua Maria Helena Vieira da Silva, avistaram Januário B… que estacionava o seu veículo Grand Cherokee, com o número de matrícula 00-00-JC, acompanhado da sua esposa e do filho de 18 meses de idade.
25. Dois dos indivíduos dirigiram-se ao ofendido, enquanto os outros dois abordaram a esposa deste último.
26. Um dos indivíduos encostou uma pistola ao abdómen de Januário B…, tendo-o o outro revistado e retirado os pertences que trazia nos bolsos, nomeadamente as chaves do veículo, tendo-lhe ainda sido arrancado com um forte puxão um fio em ouro que trazia ao pescoço.
27. Simultaneamente, os outros indivíduos rodearam Rute B…, tendo-lhe um deles encostado ao abdómen uma pistola de gás transformada, atualmente semiautomática, de calibre 6,35mm.
28. Após alguma insistência os indivíduos permitiram que Rute B… retirasse o seu filho menor de idade do veículo, e, já na posse das respetivas chaves puseram-no em marcha, retirando-se do local, enquanto os outros dois dirigiram-se para um veículo Ford e matrícula desconhecida, pondo-se imediatamente em fuga.
29. O valor de todos os objetos retirados, englobando o valor do veículo, ascende a 21.856,84€.
30. O veículo havia sido “encomendado” por Rodrigues G… ao arguido.
31. O arguido juntamente com outros indivíduos agiram em comunhão de esforços, ameaçando o ofendido com a utilização de uma arma, pondo-o na impossibilidade de reagir, com a intenção concretizada de fazer seus os objetos já descritos.
iv)
32. No dia 12/02/2002, cerca das 2h, pelo menos quatro dos indivíduos, entre os quais Sebastião F…, José A… e Júlio D…, dirigiram-se à Póvoa de Stª Iria, fazendo-se transportar no veículo Volkswagen Polo retirado a Ana C… no dia 05/02/2002.
33. Ao passarem junto ao lote 82, no Casal da Serra, avistaram Teresa H… que estacionava o seu veículo Mercedes SLK 200 Kompressor e matrícula 00-00-CT, em frente à sua residência.
34. O arguido e os demais indivíduos formularam o objetivo de fazerem seu tal veículo.
35. Entretanto o arguido, Pedro A…, Daniel F… e Rodrigues G…, mantinham-se em contacto telefónico com os restantes indivíduos, aguardando o desenrolar dos acontecimentos junto à zona do Parque das Nações.
36. Quando Teresa H… se dirigia à porta do seu prédio, foi empurrada por um dos indivíduos, o que a fez cair no chão. O indivíduo pisou-lhe ambas as mãos, impedindo-a de se levantar.
37. A ofendida foi então revistada, tendo-lhe sido retirada a carteira que trazia a tiracolo, bem como as chaves do seu veículo.
38. Seguidamente os indivíduos puseram-se em fuga, na posse dos objetos pertencentes à ofendida e do veículo.
39. O veículo foi entregue por José A…a Rodrigues G.., sendo que o R… entregou ao José A… e aos restantes indivíduos e arguido uma quantia em dinheiro correspondente ao pagamento da ação levada a cabo.
40. Daniel F… conduziu o veículo com destino à Holanda. No entanto, acabou por não chegar àquele país, pois sofreu um acidente em França.
41. O veículo foi apreendido no dia 13/02/2002 na localidade de Garosse, e foi posteriormente entregue à ofendida.
42. Alguns pertences da ofendida foram também recuperados no interior do veículo Volkswagen Polo pertencente a Ana C…, recuperado em 17/02/2002.
43. O arguido e os demais indivíduos agiram em comunhão de esforços, utilizando a força física contra a ofendida, com a intenção concretizada de fazerem seus os objetos e o veículo já descritos.
v) e vi)
44. No dia 26/02/2002, cerca das 21h20m, seis indivíduos, entre os quais Pedro A…, Sebastião F…, Adriano P…, José A… e o Júlio D… dirigiram-se a Agualva, Cacém, fazendo-se transportar num veículo utilitário de cor escura, cuja matrícula não foi possível apurar.
45. Quando passavam na Rua Fernando de Bulhões, avistaram Vítor A… com uma filha menor de quatro anos de idade ao colo, bem como a mulher deste último que havia estacionado o veículo Mitsubishi Strackar com o número de matrícula 00-00-PU, pertença do primeiro.
46. O arguido e os demais indivíduos conforme o previamente decidido, formularam a decisão de fazerem seu este veículo.
47. O arguido e Artur P… supervisionaram a ação destes últimos, num outro veículo, num local afastado.
48. Os indivíduos cercaram então Vítor A… e de forma repentina desferiram-lhe um pequeno golpe na região dorsal com uma faca (aprendida a Adriano P…) apontando ainda uma pistola de gás transformada, atualmente semiautomática) de calibre 6,35mm à cabeça da filha menor do ofendido.
49. Com este comportamento os indivíduos puseram o ofendido incapaz de oferecer qualquer resistência aos intentos de fazerem seu o veículo todo o terreno.
50. Seguidamente, os indivíduos dirigiram-se a Ana A…, cercaram-na, retiraram-lhe as chaves do veículo todo o terreno e ainda a carteira que a mesma usava ao ombro e que continha diversos documentos pessoais, bem como o seu telemóvel, de marca Nokia e modelo 6110.
51. De seguida, cinco dos elementos entraram no veículo de Vítor A… e abandonaram o local, enquanto o sexto indivíduo abandonou o local no veículo de cor escura no qual os mesmos haviam chegado.
52. O valor do veículo é de 24.191,70€.
53. Nesse mesmo dia, cerca das 22h08m, Sebastião F… telefona ao arguido informando que o roubo foi efetuado com êxito.
54. Este veículo foi conduzido por Artur P… e Adriano P… para a Holanda, sendo certo que o mesmo não se encontra legalmente habilitado a conduzir veículos automóveis.
55. O arguido e os demais indivíduos agiram em comunhão de esforços, ameaçando os ofendidos com uma arma, assim os pondo na impossibilidade de reagir, atingindo ainda Vítor A… no corpo, com a intenção concretizada de fazer seus os objetos e o veículo já descritos, bem sabendo que agiam contra a vontade dos seus legítimos proprietários.
vii)
56. No dia 28/02/2002, cerca das 20h30m, três indivíduos, entre os quais Sebastião F… e José A…dirigiram-se ao Cacém.
57. Quando passavam na Praceta de S. João, avistaram João C… que abria a porta da garagem, a fim de estacionar o seu veículo Mitsubishi Pajero com o número de matrícula 00-00-MR, logo formulando a decisão de fazerem seu esse veículo.
58. Assim, os indivíduos rodearam João C…, dois deles apontando-lhe pistolas, impedindo-o de reagir aos intentos de fazerem seu o veículo todo o terreno.
59. Seguidamente, um dos elementos disparou a sua arma.
60. Os indivíduos puseram-se então em fuga no veículo de João C…, fazendo igualmente seus os objetos que se encontravam no seu interior, nomeadamente, um telemóvel Nokia 6210, diversos documentos pessoais e um computador pessoal Toshiba, tudo no valor de 4.000€.
61. O valor do veículo é de 25.000€.
62. Nessa mesma noite, este veículo foi conduzido por Daniel F… para a Holanda, após contactos prévios telefónicos havidos entre o arguido e o intermediário na compra, pessoa referenciada nos autos como se tratando de Fernando B…, “tio Nando”.
63. O veículo foi apreendido no dia 27/03/2002, no cais nº 342, do porto de embarque de Antuérpia, Bélgica, tendo sido posteriormente entregue ao ofendido.
64. O arguido e os demais indivíduos agiram em comunhão de esforços, ameaçando o ofendido com uma arma, pondo-o assim na impossibilidade de reagir, com a intenção concretizada de fazerem seus os objetos e o veículo já descritos, bem sabendo que agiam contra a vontade do seu legítimo proprietário.
III
[esta divisão foi aditada por este ac. do TRL por estes factos dizerem respeito a todos os assaltos e não só a este vii)]
65. O arguido e os demais indivíduos sabiam e queriam pertencer a uma organização cuja atividade consistia na prática de atos contrários à lei.
66. O arguido e demais indivíduos agiram na execução de planos delineados entre todos, com o objetivo comum de se apoderarem de veículos e pertences dos respetivos proprietários, acei-tando e prevendo a ameaça com armas e a utilização da força física contra estes últimos, assim como decidiram e aceitaram que em alguns casos os privariam da liberdade de movimentos.
67. Agiram voluntária e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.
[…] não se provou, relativamente à contestação do arguido, que:
127. Na época dos factos o arguido vivesse em Inglaterra, sítio onde era cozinheiro de profissão.
128. Não fosse líder de nenhum bando de meliantes. Apenas pretendesse comprar um carro em segunda mão, para enviar ao seu irmão Júlio C… que vive em Angola.
129. Desconhecesse a proveniência ilícita da viatura, que não chegou a comprar em virtude da falta de clareza de quem lha pretendia vender.
130. Não possuísse os documentos das viaturas.
131. Quando se deslocou a Portugal tivesse ficado hospedado na Pensão Avenida, em Lisboa, pelo período de 34 dias, entre Janeiro e Fevereiro do ano 2002.
132. Não possuísse o telemóvel que consta dos autos.
133. Não pertencesse à organização criminosa descrita nos autos.
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Indicação dos meios de prova e sua análise critica [alinham-se os parágrafos desta parte da fundamentação para que possam ser referenciados mais simplesmente e para se evitar repetições – aditamento deste TRL]:
A) O tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de toda a prova produzida, nomeadamente nas declarações do arguido, nos depoimentos das testemunhas, nos documentos juntos aos autos e nas transcrições das escutas telefónicas.
B) Em declarações que prestou ao tribunal, o arguido negou a prática dos factos.
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U) A testemunha José S…, Inspetor da Policia Judiciária que acompanhou, desde o início, toda a investigação, foi claro coerente e conciso.
V) De uma forma objetiva descreveu-nos o modus operandi do arguido e dos demais indivíduos (coarguidos no já tão falado processo nº 67/02.7PYLSB).
W) Começou por referir que após terem notícia de alguns crimes de carjacking intercetaram alguns dos telemóveis das vítimas que também, para além dos carros e dos documentos, haviam sido roubados e conseguiram chegar a grande parte dos indivíduos. Recordou-se que nas mãos do arguido estava um telemóvel que havia sido roubado a uma das vítimas.
X) Das muitas interceções telefónicas pode constatar que se tratava de um grupo de indivíduos com alguma estrutura organizativa. “O arguido era o cabecilha desses indivíduos” - disse.
Y) Continuou referindo que “esses indivíduos autointitulavam-se de “tropas”. Recebiam encomendas de determinado tipo de carro que era preciso roubar, normalmente isso passava pelo arguido, e com alguma antecedência marcavam o veículo. Seguiam-no até ao seu destino, regra geral perto da residência do proprietário, e aí “faziam” o carro. Por norma agiam “à mão armada”, subtraíam o carro e respetivos documentos.
Z) Depois os veículos eram trazidos por esses tais “tropas” para um determinado local de encontro e eram entregues a um indivíduo que procedia ao transporte das viaturas para Antuérpia, para Amesterdão e a partir daí eram metidos em contentores e enviados para Angola.
A1) Por seu turno, em Angola, estavam pessoas à espera desses carros que eram contactadas previamente ou pelo arguido ou então por outros indivíduos que eram os tais compradores, ou seja, indivíduos que estavam cá em Portugal mas que estavam mandatados por alguém em Angola e que entravam em contacto com o aqui arguido. Pagavam, parte do carro, a sua totalidade ou o valor pedido pelo arguido e depois ele próprio entregava os carros a quem os conduzisse para esses tais países de destino para posteriormente serem enviados para Angola.
B1) Após receberem o dinheiro, normalmente havia o frenesim da sua distribuição, mas por vezes desentendiam-se. Pelas escutas notava-se que havia uma estrutura organizativa, nomeadamente que o líder era incontestavelmente o arguido”.
C1) Mais esclareceu que quando os roubos ocorriam o arguido “normalmente estava nas imediações à espera que o roubo se concretizasse para depois proceder à transmissão da viatura a quem a iria levar ou ao comprador, que depois entregava ao transportador que era o indivíduo que levava a viatura para a Holanda ou para a Bélgica, ou então ele próprio, arguido, contactava previamente esse tal transportador. O arguido estava inevitavelmente sempre na periferia, não intervinha diretamente nos roubos”.
D1) Por várias vezes esta testemunha referiu que o aqui arguido não tomava parte direta nos assaltos mas estava sempre nas imediações.
E1) Dentro do grupo de indivíduos era o arguido que era o mais velho e que tinha mais conhecimento. Era, segundo este Inspetor da Polícia Judiciária, o mais respeitado. “Era ele que, no fundo, coordenava as coisas, que orquestrava”. Havia um “acordo tácito” de liderança. “O arguido tinha um conhecimento um bocado mais além para despachar esses carros que eram roubados por encomenda” – frisou.
F1) Mais precisou esta testemunha que foram roubados por este grupo dois veículos Volkswagen Polo, não para enviarem para Angola mas sim para por eles serem utilizados nos assaltos.
G1) Recorda-se de ter feito diligências relativamente todos os carros roubados. Em todos eles foram recolhidas impressões digitais.
H1) Todos os reconhecimentos que estão nos autos foram conduzidos por esta testemunha e foram feitos no […] cumprimento da legalidade.
I1) Esclareceu ainda que, regra geral, quem fazia os assaltos era o Papi, o Tininho, o Ju e o Copera. O Papi e o Tininho eram os mais violentos.
J1) Quanto ao Copera, Pedro A…, não quis deixar de recordar que era o “braço direito” do arguido.
K1) Confirmou o auto de busca e apreensão a casa do irmão do arguido. Participou na busca e recordou-se de lá terem sido encontrados documentos que tinham a ver com algumas das viaturas roubadas.
L1) Relativamente ao Mercedes de dois lugares que foi subtraído, pela força física, a Teresa H… esclareceu que o mesmo teve um acidente em França. Disse-nos que esse roubo está “documentado” nas conversas telefónicas entre o T e o arguido. O arguido assumiu o pagamento do preço.
M1) Questionado sobre o local onde o arguido vivia durante o período da investigação, referiu-nos estar seguro que aquele viveu na casa da Rinchoa. Era lá que era visto todos os dias. “Não tenho dúvidas nenhumas que este senhor viveu naquela casa; não tenho qualquer elemento que aponte no sentido de ele ter vivido na pensão avenida, nos Restauradores. Durante a altura em que nós o investigámos ele nunca lá viveu, isso posso garantir, vivia sim perto de um Centro Comercial, no tal apartamento onde nós fizemos a busca” – disse-nos.
N1) Quando ocorreu a detenção dos elementos do grupo, o arguido estava em Inglaterra, mas continuava a manter contactos telefónicos com os restantes elementos.
O1) As demais testemunhas ouvidas, na sua maior parte vítimas, confirmaram, na generalidade, os factos constantes da acusação que a cada uma diz respeito. Nenhuma identificou o arguido, nem efetuou qualquer reconhecimento do mesmo.
P1) As declarações do arguido não nos mereceram, no essencial, credibilidade. Elas foram contrariadas não só pelo depoimento de José S…, Inspetor da Polícia Judiciária, como também pelo teor das transcrições telefónicas.
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V1) Transcrições há onde o arguido “dá força” aos miúdos, diz-lhes frequentemente para manterem a “calma” e constante-mente fala com eles ao telefone, sempre sabendo onde estão e se já entregaram os veículos.
W1) Constata-se também que, pelo menos no período em que os telefones foram intercetados, o arguido e os demais indivíduos não tinham ocupação fixa. Aliás o próprio arguido refere que não trabalha.
X1) Existem conversas entre o arguido e o “tio Santos” sobre pormenores dos negócios, designadamente de valores e de quem leva os carros e para onde, vejam-se as sessões 2686 e 2764 do citado alvo.
Y1) Há diversas conversas entre o arguido e vários indivíduos, de entre eles os coarguidos do processo principal, que o arguido disse não conhecer ou conhecer muito vagamente. Confrontem-se as sessões, de entre outras, 3060, 3147, 2909, 2922, 2928, 2935, 2937, 2949, 2958, daquele alvo 14425. Mais uma vez as declarações do arguido são infirmadas pelo que das transcrições das escutas consta.
Z1) Os próprios adquirentes dos veículos apercebiam-se do modo como o arguido e seus companheiros arranjavam as viaturas.
A2) Muitos foram os carros “despachados” para a Holanda.
B2) Nem todos os crimes que foram, em coautoria, imputados ao arguido restaram provados, como se constata da matéria de facto assente.
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O arguido formulou as seguintes conclusões do seu recurso:
1. O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 127 e 355 do CPP ao valorar de modo que não deveria parte da prova efetuada na audiência.
2. Deste modo, compulsando a prova inserta nos CDs (CD 2 e CD 3 depoimentos de testemunhas de acusação e do próprio arguido) se verifica que não foi feita prova concludente de que os factos alegados sob as alíneas a) b) c) d) e) t) g) h) i) j) l) e m) a fls. 5189/5192 dos autos, se possam dar como provados.
3. Pontos de facto incorretamente julgados: as apontadas alíneas a) a m) (inclusive) de fls. 5189/5192
4. Provas que impõem decisão diversa da recorrida: os depoimentos do arguido (que protesta a sua maior inocência), dos ofendidos (que apenas sabem que foram roubados/espoliados nunca reconhecendo o arguido, como o acórdão aliás dá conta) e finalmente o depoimento da única testemunha de acusação inquirida, o sr. Inspetor da PJ José S… (CD 2 - 1.02.43 - 1.19.58).
5. Os factos relativos ao roubo de que foi vítima Marta T… elencados a fls. 8/11 do acórdão condenatório, não podem também ser imputados ao recorrente, uma vez que este não foi reconhecido em audiência por qualquer das testemunhas.
6. O recorrido acórdão labora em erro interpretativo (violação do art. 127 do CPP) ao considerar (e dar como provado) que o ar-guido também abandonou o VW Polo - (a fls 9 do recorrido acór-dão) - quando nenhuma prova foi feita nesse sentido na audiência (nem as testemunhas, nem o arguido ) confirmaram esse facto.
Violado foi também por tal facto o disposto no art. 355 do CPP.
7. Foi ainda violado o art. 127 do CPP ao haver-se considerado provado o item 10 de fls 9: prova inequívoca não foi feita que o recorrente viveria na casa da Rinchoa (Rio de Mouro). Nenhum dos seus ocupantes foi ouvido a tal propósito e a convicção policial da testemunha agente da PJ inquirida (Inspetor José S…) não tem suporte fáctico legalmente admissível nos termos do art. 125 do CPP.
8. Nem a circunstância de nessa mencionada residência terem sido encontrados diversos documentos referentes a Gabriela T… poderiam indicar ter sido o recorrente comparticipante no mencionado roubo, uma vez que o tribunal não dispunha de qualquer elemento factual inidóneo para concluir que o recorrente habitava, de facto, a citada residência: o Inspetor alude a "vigilâncias" mas foi incapaz de concretizar nem que fosse uma delas: é um depoimento ambíguo e que não deveria ter sido considerado pelo Coletivo. Por isso também aqui se violou a lei, no caso o art. 127 do CPP por manifesto erro interpretativo.
9. Impugnação da matéria de facto (continuação) os itens 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 2[?], 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 48, 49, 50, 51, 54, 56, 57, 58, 59, 60 dos factos provados não resultaram da prova produzida, pelo que se encontram incorretamente julgados esses concretos pontos de facto [o que se alega face à exigência contida no art. 412/2a) do CPP].
Sendo as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (art. 412/3 alínea b) do CPP) as seguintes:
- Declarações do arguido/ recorrente (Cd 2)
- Declarações dos ofendidos inquiridos na audiência e cujos depoimentos constam dos CD 2, 3 e 4;
- Declarações da testemunha de acusação Inspetor da Polícia Judiciária (CD 2)
10. Mais: o item 10 - a fls 9 - ou fls. 5193 dos autos estipula que o recorrente "residia" em determinada casa sita em Rio de Mouro. Mas os autos não contêm prova dessa residência do recorrente.
11. O recorrido acórdão cometeu a nulidade processual da insuficiência do exame crítico da prova, nulidade cominada no art. 379/1a) do CPP, por referência ao requisito exigido n.º 2 do art. 374 do mesmo CPP.
12. Já que extraiu conclusão não autorizada do depoimento do Sr Inspetor da PJ José S… ao concluir que este afirmara que "nas mãos do arguido estava um telemóvel que havia sido roubado a uma das vítimas" (a fls. 47 do recorrido acórdão, último parágrafo), quando de facto o que a testemunha havia dito a tal propósito (e de modo titubeante) fora coisa diversa, a saber: "mas recordo-me por exemplo que nas mãos deste indivíduo estaria um telemóvel que teria sido roubado a uma das vítimas". Não se precisando, como se vê, qualquer certeza e muito menos a identidade de qualquer vítima ...
13. Do excesso de pronúncia: nulidade do art. 379/1c) do CPP: A fls. 8 (fls. 5192 dos autos) o recorrido acórdão afirma que "No dia 10/01/2002 cerca das 23h20m "um grupo de quatro indivíduos" praticou um roubo qualificado, na pessoa de Marta T….
Sob os arts. 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 (fls. 5192/5193) nunca se refere a identidade de tais indivíduos. E muito menos que o recorrente se incluiria nesse grupo.
Mas já sob o item 8 diz-se que no dia 23/01/2002 "este veículo foi apreendido pela PSP na Rua das Gardénias em Birre, Cascais, após ter sido abandonado pelos indivíduos e arguido, que o utilizaram para a realização de outros roubos".
Manifestamente, o recorrido acórdão labora em erro já que nenhuma prova resultou da audiência nesse sentido, não tendo nenhuma das testemunhas reconhecido ou identificado o arguido no decurso das audiências. (A própria decisão o reconhece, a fls. 5237).
Ao conhecer do que não podia, ou não devia conhecer, foi cometida, no recorrido acórdão, a nulidade de excesso de pronúncia, a que faz jus o art. 379/1c) do CPP.
Nulidade essa que deve ser declarada pelo TRL.
Sem conceder,
14. Da violação do art. 129 do CPP: Parte relevante do depoimento do Sr. Inspetor José S… revela conhecimento indireto dos factos, (que o recorrente seria o cabecilha do grupo, que viveria em determinada casa, que teria comparticipado nos roubos do carjacking) como decorre do seu depoimento a que já fizemos referência nesta motivação. O acórdão recorrido valora positivamente esse depoimento em detrimento do arguido, quando, salvo melhor opinião, não o deveria ter feito.
15. Na verdade, o referido Inspetor da PJ, José S…, diz que "não me recordo em concreto que tele-móveis é que foram parar às mãos de quem, mas recordo-me (1.02.40 do CD2) por exemplo nas mãos deste indivíduo (o recorrente) estaria um telemóvel que teria sido roubado a uma das vítimas!"
Como se vê, usa-se o modo condicional, o senhor Inspetor afinal não tem a certeza se terá sido assim, se não...
Ipsis verbis no tocante à questão de afinal onde residia o recorrente:
A esse propósito disse o senhor Inspetor, a instância feita por uma das Srªs juízas adjuntas, que lhe perguntou "Olhe como é que descobriram que o arguido vivia na casa da Rinchoa?"
Resposta: "Porque entretanto também fizemos algumas vigilâncias e tínhamos os indivíduos sob escuta, como é óbvio e eles encontravam-se frequentemente (1.17.44) tínhamos uma equipa para os controlar" (1.17.55) CD 2: Tratando-se, como se vê, de depoimento ambíguo, evasivo e pouco convincente.
16. Os factos trazidos à audiência não eram bastantes para a condenação do arguido pelos crimes em que, afinal, se mostra ter sido condenado. Nenhuma prova se fez que o recorrente tivesse comparticipado em qualquer crime de roubo na sua forma agravada e muito menos que tivesse integrado qualquer organização criminosa, pelo que o arguido deveria ter sido, necessariamente, absolvido. Ao assim não proceder o recorrido acórdão fez interpretação não autorizada do princípio in dubio pro reo, erigindo em certezas absolutas da culpabilidade do arguido, impressões ou meras conclusões do Inspetor da PJ ouvido na mesma audiência.
I
Posto isto:
Quanto às conclusões 1 a 4:
Diz o artigo 412 do CPP, sob a epígrafe de motivação do recurso e conclusões:
1. A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; […] 4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. 6. No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Quanto ao conteúdo da especificação, sistematiza Pinto de Albuquerque (Comentário do CPP, UCP, Dez2007, pág. 1135): “A especificação dos ‘concretos pontos de facto’ só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado. […] A especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Acresce que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe decisão diversa da recorrida. Este é o cerne da especificação. […] O grau acrescido de concretização exigido pela Lei 48/2007, de 29/08, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado”.
De tudo isto decorre, desde logo, que o recorrente tem de indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e relacioná-los com passagens concretas de concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
O tribunal de recurso não vai ouvir toda a concreta prova indicada - em termos genéricos, uma dada testemunha - mas a passagem concreta desse concreto meio de prova que for indicada. E só ouvirá algo mais se o tiver por relevante. Se o recorrente não fizer essa indicação de passagem concreta do concreto meio de prova indicado, o tribunal de recurso não tem de ouvir todo o meio de prova em causa, para dele extrair o que o recorrente quer.
Ora, as conclusões 1 a 4 contêm uma acusação genérica ao acórdão recorrido. Genérica ao referirem uma violação não concretizada das regras contidas nos arts. 127 e 355 do CPP [não se diz qual a regra da experiência que foi violada, nem se diz qual foi a prova que, sem o poder ser, por não ter sido produzida ou examinada em audiência, serviu para a formação da convicção do coletivo] e genérica ao fazerem uma indicação, em globo, às declarações do arguido e aos depoimentos das vítimas dos assaltos e do Inspetor da PJ.
Dessas conclusões é pois apenas aproveitável a acusação que se extrai, com esforço, de que a prova indicada pelo tribunal seria insuficiente para dar como provados os factos sob I, e aproveitável apenas no sentido de se apurar se, da leitura do acórdão recorrido, só por si, ou conjugada com as regras da experiência comum de um juiz médio [veja-se a preferência por este, em vez de ao homem médio, por exemplo nos acórdãos do TRP de 09/09/2009, publicado sob o nº. 76/06.7GDVPA.P1, e do TRL de 13/10/2004, publicado sob o nº. 6302/2004-3], é possível concluir pela verificação de algum dos vícios indicados sob as alíneas do nº. 2 do art. 410 do CPP.
Ou, parafraseando o recorrente: visto que o arguido negou os factos sob I, que os ofendidos não os presenciaram e que Inspetor da PJ só fez a investigação dos factos e, dada a natureza desses factos, não presenciou de certeza os sob I, o tribunal não os podia ter dado como provados.
A verdade, no entanto, é que, para se poder pôr assim a questão, teria que ficar demonstrado, por um lado, que a prova invocada pelo tribunal foi essa e apenas essa. E, a verdade é que, manifestamente, não é esse o caso.
Pois que o tribunal baseou a sua convicção, como se vê da funda-mentação, nas transcrições das escutas telefónicas que referiu individualizadamente, sendo que, relativamente ao que foi dito, a propósito, pelo Inspetor da PJ, tal se limitou, nessa parte, a servir, quando muito, de guia de leitura daquelas transcrições, sendo estas que valeram e não aquele depoimento. Neste sentido, veja-se, desde logo, que em P1), R1) e U1) o acórdão recorrido põe em confronto as declarações do arguido principalmente com as escutas telefónicas; em U1), V1), W1), X1), Y1), D2) serve-se das escutas autonomamente; em C2) invoca-as com outros meios; e principalmente, veja-se G2) e I2) e Y2) em que isto é dito explicitamente, sem referência sequer ao depoimento do Inspetor da PJ.
Ora, se foram as transcrições das conversas telefónicas que serviram de base principal, se não exclusiva, dos factos sob I, o arguido, ao pôr em causa a fundamentação do acórdão, quanto a estes factos, sem fazer referência a tais escutas, está logo a apontar para a improcedência do mesmo quanto a tal questão. O tribunal, ao fundamentar a sua convicção, tem que dizer quais os meios de prova que serviram positivamente para a mesma e afastar os meios de prova que se oponham a ela; o recorrente, para ter êxito na impugnação, tem, necessariamente, pelo menos, de afastar os meios de prova que foram invocados pelo tribunal para formar positivamente a sua convicção.
Por outro lado, ao tentar rebater a prova de tais factos com elementos de prova que, por natureza, pouco ou nada poderiam realmente provar relativamente a eles [porque é que o arguido haveria de confessar os factos? como é que as vítimas dos assaltos ou o agente de investigação poderiam saber algo sobre o iní-cio e modo de funcionamento da atividade dos arguidos?], está a dizer uma inutilidade, como já fazia indiciar a referência genérica a tais meios de prova.
A questão que agora se poderia pôr e que aflora nas motivações do recurso do arguido, era a de saber se as escutas telefónicas eram um meio de prova utilizável, ou se se tratariam de um meio de prova indireto e se nesse caso não poderiam ser utilizadas.
A verdade é que, por um lado, as conversas e comunicações transcritas não são um meio de prova indireto e, por outro, são um meio de prova especialmente previsto pela lei (arts. 187 a 190 do CPP) e que, por isso, sob pena de contradição lógica, têm que poder ser utilizadas (o que aliás resulta do art. 125 do CPP).
Prova indireta é, de facto, o depoimento do Inspetor da PJ enquanto se refere àquilo que sabe quanto ao que – e apenas quanto a isto - ouviu nas escutas telefónicas, mas, nesta parte, o tribunal faz-lhe referência apenas na parte em que está a fazer o resumo do depoimento por ele prestado. Depois, como se viu acima, o tribunal serve-se diretamente do meio de prova escutas telefónicas (ou melhor: das transcrições destas) e não do que lhe foi dito pelo Inspetor quanto ao que tinha ouvido nas escutas telefónicas.
Assim, não tem razão o recorrente em nenhuma das conclusões 1 a 4.
II
Note-se que aquilo que se disse quanto a estas conclusões – a sua generalidade e falta de concretização – tem inteira razão de ser também quanto às motivações, já que estas pouco mais desenvolvidas são que aque-las e não contém nada de substancial que as conclusões já não contenham.
Quer isto dizer que era impossível mandar aperfeiçoar as conclusões do recorrente.
É que o texto da motivação constitui o limite da correção possível das conclusões (nos termos do acórdão do STJ de 05/06/2008 (08P1884 da base de dados do ITIJ: […] “se essas especificações não constam do texto da motivação, não deve o recorrente ser convidado a corrigir as conclusões da motivação. […] Ou seja, […] o texto da motivação constitui o limite da correção possível das conclusões)”. No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do STJ de 05/07/2007 (07P1766 daquela base de dados) e de 04/10/2006 (06P2678 daquela base de dados).
Solução cuja constitucionalidade tem sido aceite pelo Tribunal Constitucional (vejam-se os acórdãos 295/2002, de 18/06, 529/2003, de 31/10, 140/2004, de 10/03/2004, e 488/2004, de 07/07, todos – tal como os dois último do STJ acima referidos - citados no artigo de Ana Maria Brito, págs. 383/399, especialmente págs. 396/397, publicado na Revisto do CEJ nº. 9, 1º semestre 2008).
Nos termos do ac. do TC 140/2004, que se pronunciou sobre uma versão menos exigente destas especificações, não é “inconstitucional a norma do artigo 412/3b) e 4, do CPP, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.
III
Quantos às conclusões 5, 6 e 13:
Nas duas primeiras, o arguido diz, por um lado, que a referência que lhe é feita no ponto 8 não está comprovada por qualquer depoimento ou declaração (e dizendo-se o contrário estar-se-ia a violar o disposto nos arts. 127 e 355 do CPP). E, por outro lado, avança: como tal, não pode ser condenado por tal crime. Na última conclusão, o arguido sugere que o acórdão recorrido, ao inserir a expressão ‘arguido’ no ponto 8 dos factos provados, foi para além do que constava da pronúncia [causando a correspondente nulidade: art. 379/1c) do CPP].
Não tem razão quanto à questão de excesso de pronúncia
O ponto 8 dos factos provados corresponde ao ponto 8 da acusação [e da pronúncia subsequente] que respeitava a 11 arguidos. A redação do ponto 8 (e de vários outros pontos de todos os outros assaltos ao longo da acusação), referia-se aos arguidos, sem distinção, pelo que os englobava a todos (aos 11). Assim, quanto o acórdão recorrido considera provado que os indivíduos e arguido abandonaram o veículo, está a dar apenas outra redação – para não chamar àqueles indivíduos também arguidos, pois que eles, à data da redação do acórdão, já não eram arguidos – a um facto que já constava da acusação. Pelo que não há qualquer excesso de pronúncia ou nulidade correspetiva.
Quanto à questão de direito levantada nestas conclusões será apreciada mais à frente.
IV
Resta a apreciação da questão da falta de prova.
Para esta apreciação importa notar antes o seguinte: no ponto 8 da acusação dizia-se que os arguidos – sem distinção, pelo que se trata dos 11 arguidos – abandonaram o veículo.
Como é evidente, esta afirmação, reportando-se a um ato imediato, material, não faz qualquer sentido. É um ato materialmente impossível: 11 pessoas não podem abandonar ao mesmo tempo uma viatura…
O acórdão recorrido, no entanto, dá-o como provado também em relação ao arguido.
Sabendo-se que o veículo foi utilizado no assalto ii), na noite de 23/01/2002, estando a ser conduzido antes por um dos 4 arguidos que fizeram esse assalto, nenhum deles sendo o arguido, e que o veículo foi abandonado nesse dia, dificilmente se concebe como é que o tribunal poderia dar como provado que o veículo foi abandonado, nesse dia, à noite, pelos 11 arguidos.
E se se procurar essa prova na fundamentação do acórdão, ela de facto não se encontra. Nem se poderia encontrar, já que o arguido negou os factos, nenhuma das vítimas reconheceu o arguido, as escutas só se iniciaram mais de 1 mês depois (mais precisamente a 13/02/2010) e o Inspetor da PJ não presenciou o assalto.
V
Uma hipótese de encontrar essa fundamentação noutro lado seria a seguinte: o acórdão quando diz que o arguido abandonou o veículo, di-lo porque o arguido fazia parte de uma associação criminosa, da qual também faziam parte os outros 4 indivíduos dos quais, pelo menos um, de certeza que foi o autor do abandono material do veículo.
A ideia seria então que tudo o que pode ser imputado a um dos membros da associação, seria também imputável a esta e, por isso, também a cada um dos seus membros (e parece que teria apoio no sumário do único acórdão do STJ de 30/06/1994 (processo 45271), que se encontrou no sentido desta tese: “[…] nos casos de associação criminosa para a prática de determinados crimes, são coautores dos crimes praticados as pessoas por tal forma associadas.” (citado no ac. do STJ de 10/07/1996, publicado sob o nº. 048675).
A verdade, no entanto, é que quem se associa com outrem para a prática de crimes, comete, verificados outros pressupostos, um crime de associação criminosa (do art. 299 do CP). Não comete, também, só por isso, cada um dos crimes que venha a ser cometido por alguns dos membros daquela associação. Só comete ainda cada um desses crimes se se provar que os praticou, por si, como autor mediato, coautor ou instigador (art. 26 do CP). Não basta pois a simples pertença a uma organização criminosa para que os crimes que os membros desta organização criminosa praticarem lhe possam ser imputados, sem mais. O que quer dizer, também, que para a prova da coautoria de cada um daqueles crimes é necessária a imputação concreta de atos de autoria do crime.
Neste sentido, veja-se o parecer de Manuel G. Cavaleiro de Ferreira, Associação Criminosa Formada para a Prática de Delitos Fiscais, de Outubro de 1989, publicado na RFDUL 1998/II, págs. 455 e segs:
“O crime de associação formada para a prática de delitos fiscais é independente dos delitos de contrabando que venham a ser cometidos em execução do programa da associação. Há, por isso, que distinguir o crime de associação criminosa dos crimes de contrabando cometidos, até porque os autores e cúmplices do crime de associação não coincidem necessariamente com os autores e cúmplices de cada contrabando; na verdade, a associação tem por fim a prática de delitos fiscais, mas a perpetração do crime de contrabando não tem por autor a própria associação, nem os seus membros, só por serem membros da associação; podem ser cometidos por membros da associação e por terceiros, a ela estranhos” (pág. 458). E mais à frente: “para a punição dos crimes praticados, em obediência ao programa da associação, é indispensável individualizar os autores e cúmplices de cada crime, os quais, aliás, podem ser membros da associação ou a ela estranhos” (pág. 460).
E para que não se diga que este parecer só se aplica à associação criminosa formada para a prática de delitos fiscais, diz o autor mais a frente:
“o cerne da associação criminosa [prevista no art. 287 do CP, na redação original] consuma-se com a verificação da existência da associação; a execução dos crimes que sejam o seu objeto ou fim constituem crimes autónomos e diversos. E porque assim é, os agentes dos crimes de associação criminosa não são por esse motivo agentes dos crimes praticados na realização do seu fim. Pode haver crimes cometidos por membros da associação, como pode haver agentes desses crimes que não sejam membros da associação. E assim como os membros da associação que não participaram em alguns crimes não serão por estes responsáveis, também os que não forem membros da associação responderão somente pelos crimes de que forem agentes, sem poderem ser incriminados pelo crime de associação criminosa” (pág. 466).
E mais à frente: “daqui resulta a necessidade de individuali-zar primeiramente os membros da associação criminosa já existen-te; e de individualizar seguidamente, os agentes de cada crime cometido, sejam eles membros da associação, ou sejam eles estra-nhos à associação preexistente. A atividade em que consiste a participação no crime de associações criminosas não é a mesma, em si e no tempo em que é praticada; o crime de associações crimi-nosas está já consumado quando tem lugar a atividade praticada na execução dos crimes que se incluem no programa, ou objeto social, da associação. E também a definição os participantes no crime de associações criminosas, e dos crimes que constituem realização do objeto social não é a mesma […]” (pág. 467).
Isto mesmo decorre do que diz Muñoz Conde, Derecho Penal, Parte Especial, 16ª ed., Tirant lo Blanch, Valencia, Sept. 2007, pág. 822, relativamente à proposta feita por Quintero Olivares de supressão do caso genérico do nº. 1 do art. 515 do CP espanhol, de associação para cometer algum delito, pela sua excessiva amplitude e porque os casos dignos de sanção penal estão já expressamente tipificados…:
“Certamente, esta punição referida genericamente a qualquer delito é excessiva, ainda mais se mantiver a sua autonomia punitiva mesmo que o delito se chegue a cometer. Porém, esta autonomia do delito de associação ilícita pode ser muito importante para castigar a pertença a organizações criminosas, quando não se pode imputar aos membros da organização os fatos delitivos concretos realizados por algum outro membro. Por exemplo, a pertença a uma organização terrorista nem sempre permite imputar ao membro da mesma, o atentado cometido por outro membro, porém, pode-se e deve-se castigar a pertença como tal; ainda que, obviamente, a autonomia da punibilidade da pertença à associação deveria desa-parecer quando o delito para que se constituiu a associação, ou cuja comissão a converte em ilícita, seja cometido pelo dito membro”.
Ora, na prática, quer a acusação quer o acórdão recorrido, independentemente do que fazem e dizem a outros propósitos, seguem o entendimento de que a atuação de uns membros do grupo pode ser, sem mais, imputada a todos os outros membros.
Assim, a acusação depois de, nos vários assaltos, dedicar uma primeira parte à atuação material de alguns indivíduos (4 normalmente, mas também 3 e 6 e noutros casos um número indeterminado), noutros pontos dedicados a cada um dos assaltos passa a imputar os factos, sem qualquer correspondência com a atuação material descrita acima, a todos os 11 indivíduos, entre eles o arguido. Assim, todos eles – os 11 arguidos - tinham apontado uma só arma a uma vítima, todos eles tinham batido noutra, todos eles tinham ameaçado uma terceira e todos eles tinham abandonado um veículo (e teriam falsificado uma matrícula, se não tivesse havido esquecimento quanto a esta parte).
Ou seja, não se sabe como ou porquê, de repente, a atuação material de 3, 4 ou 6 indivíduos, passa, sem mais, a imputação genérica a todos os 11 indivíduos.
Anote-se, num parênteses, que a 03/03/2009, quando uma Srª advogada ao Serviço de Procuradoria da Coroa Britânica quis providenciar pelo cumprimento do mandado de detenção europeu contra o arguido, dá-se conta disto e diz (fls. 4567 a 4569]: “tive agora a oportunidade de estudar o mandado. Há vários pontos relativamente aos quais gostaria de obter as informações complementares a seguir referidas. Devo referir que todo o trabalho que proponho é realmente necessário e que não pedirei nada que não o seja. Creio que estas informações complementares aumentarão substancialmente as nossas hipóteses de sucesso”. Depois faz um conjunto de observações sobre o mandado, em 6 parágrafos, alguns extensos, e entre o mais diz: “no campo E. consta que o mandado diz respeito a um total de 27 delitos. Não entendo bem o modo como os 27 crimes estão classificados. A conduta referida no campo E. do mandado indica claramente um crime de participação em atividade criminosa e indica o papel do arguido dentro da organização […] não há a descrição da conduta relacionada com a falsificação de documentos e rapto relativamente a determinadas vítimas ou determinados veículos […]. Podem esclarecer qual a conduta de que o arguido é acusado? Trata-se apenas de participação numa organização criminosa que se dedicava ao furto de veículos ou deverá também ser objeto de procedimento penal por cada crime cometido pela organização criminosa?” E a resposta promovida pelo MP, a fls. 4575, diz: “segundo a lei portuguesa nesta fase do processo não é possível alterar a acusação pelo que não se mostra útil a apreciação em termos críticos da mesma”.
Voltando à questão: o acórdão recorrido segue o mesmo caminho da acusação, embora, por um lado, não tenha deixado a mais pequena dúvida de que a atuação material que descreveu foi só de (normalmente) 4 indivíduos, entre eles não se contando o arguido – por exemplo em C2), diz: embora “todos os crimes levados a efeito tenham tido a mesma dinâmica e até os mesmos intervenientes (os coarguidos do processo principal)[…]”. E também: o não ter sido identificado pelas testemunhas, não é sinónimo de não ter praticado o crime já que não intervinha, como se viu, diretamente” - e, por outro, tenha expressamente manifestado o entendimento, no mesmo §C2), de que só podia condenar o arguido relativamente aqueles factos em que, sem sombra de dúvida, ele, enquanto coautor, participou.
Ou seja, o acórdão, apesar de ter o entendimento doutrinário correto (quanto à não extensão, sem mais, da atuação de comembros de um grupo/bando a todos os outros), aceitou, na prática, a acusação naqueles termos e assim, embora seja notório, pela fundamentação da convicção do tribunal, que o arguido não participou, materialmente, naqueles atos de execução (naqueles que foram descritos em concreto sem a sua participação – ver-se-á que existem outros casos em que tal não é assim), e por isso não havia, nem podia haver, nenhuma testemunha que o tivesse visto a fazer fosse o que fosse ou que sequer o tivesse identificado ou reconhecido, deixou dado como provado que o arguido também tinha abandonado uma das viaturas assaltadas, também tinha apontado uma pistola a várias das vítimas, também tinha batido noutras e também tinha ameaçado terceiras (e condena-o por um falsificação que não chega a imputar, sequer, materialmente, a ninguém). Já agora anote-se que não foi isto que aconteceu no acórdão respeitante aos outros 10 arguidos que, bem, limitou todos estes factos, que se referiam genericamente a todos os arguidos, àqueles que estavam referidos, em concreto, na descrição de cada um dos assaltos.
Quer isto dizer, quanto à referência ao arguido que consta no ponto 8, que a mesma tem de ser desconsiderada. O mesmo se diga quanto ao ponto 11 da acusação, quando se diz que os 11 arguidos tinham ameaçado a ofendida com uma arma e que a tinham atingido no seu corpo, isto ainda quanto ao assalto i). E, quanto aos pontos 21 e 22 do assalto ii), quando se dizia que os 11 arguidos tinham ameaçado o ofendido e o tinham obrigado a entrar para o veículo e a ali permanecer sob a ameaça da utilização de uma arma. E de novo no ponto 31 referente ao assalto iii). E nos pontos 34 e 43 do assalto iv). E nos pontos 46 e 55 dos assaltos v) e vi). E, por fim, no ponto 64 do assalto vii).
Já não assim, quanto ao que consta dos pontos 10, 20, 30, 35, 39, 47, 53 e 62, visto que se tratam de referências concretas ao arguido, relativamente às quais não se pode dizer que resultem, sem mais, da extensão da atuação dos outros indivíduos do grupo ao arguido. Ou seja, sem que se possa dizer que representam, apenas, a imputação ao arguido da atuação dos outros membros do grupo/bando, por ele fazer parte do mesmo.
Assim, e nesta medida (que na prática se traduz na supressão da referência ao arguido nos pontos de facto referenciados e que, para melhor compreensão se sublinharam no próprio local), procedem estas conclusões do arguido (conjugadas com a conclusão 9 quanto aos pontos de facto 11, 21, 22, 31, 34, 43, 46, 55 e 64), embora apenas nesta parte.
VI
Nas conclusões 7, 8, 10 e 2ª parte de 15, o arguido invoca a impossibilidade de se dar como provado um facto – residência do arguido na casa da Rinchoa, onde foi feita a busca e apreensão de objetos comprometedores do arguido – porque isso só teria sido objeto de uma convicção de um Inspetor da PJ. Tal implicaria a violação do disposto nos arts. 125, 127 e 129, todos do CPP.
Para este efeito, o recorrente diz que, a este propósito uma das Srªs juízes adjuntas perguntou ao Sr. Inspetor "Olhe como é que descobriram que o arguido vivia na casa da Rinchoa?" e transcreve a resposta que terá sido dada (indicando, aqui bem, com precisão, a passagem em causa no CD2 de gravação da prova): "Porque entretanto também fizemos algumas vigilâncias e tínhamos os indivíduos sob escuta, como é óbvio e eles encontravam-se frequentemente (1.17.44) tínhamos uma equipa para os controlar" (1.17.55).
E conclui: trata-se, como se vê, de depoimento ambíguo, evasivo e pouco convincente.
VII
Mas não é assim:
O tribunal formou a convicção sobre tal facto pela conjugação dos seguintes elementos de prova (depois de ter feito um resumo criticamente comentado das declarações do arguido - submetido mais tarde ainda a análise crítica -, onde se constata que ele foi confrontado com o resultado do auto de busca e de apreensão e se vê que ele admite ir a casa do irmão aos fins de semana [vejam-se as als. c), l), m), n) e o)]):
Em K1) – quando ainda está a fazer o resumo comentado do depoimento do Inspetor da PJ [que acompanhou, desde o início, toda a investigação – tendo ela decorrido em parte durante o período dos factos em causa - acrescento da responsabilidade deste ac. do TRL] – diz que este confirmou o auto de busca e apreensão a casa do irmão do arguido [que é o de fls. 1393] e que participou na busca e recordou-se de lá terem sido encontrados documentos que tinham a ver com algumas das viaturas roubadas.
E depois, em M1), o tribunal lembra que questionado sobre o local onde o arguido vivia durante o período da investigação, esta testemunha referiu estar segura que aquele viveu na casa da Rinchoa. Era lá que era visto todos os dias. “Não tenho dúvidas nenhumas que este senhor viveu naquela casa; não tenho qualquer elemento que aponte no sentido de ele ter vivido na pensão avenida, nos Restauradores. Durante a altura em que nós o investigámos ele nunca lá viveu, isso posso garantir, vivia sim perto de um Centro Comercial, no tal apartamento onde nós fizemos a busca”.
Ou seja, os elementos de prova foram: depoimento do Sr. Inspetor da PJ e resultado da busca e apreensão.
VIII
Aquilo que o Sr. Inspetor disse, relacionado com o assunto, foi mais precisamente o seguinte:
Depois de esclarecer que tomou parte em todas as diligências de investigação relativa aos assaltos aos veículos (1:08:27 a 37) disse, a partir de 1:17:24 [até 1:18:24]:
…: Olhe, como é que descobriram que o arguido vivia nessa casa na Rinchoa?
Test. Porque entretanto também fizemos algumas vigilâncias ahhhh… portanto, nós tínhamos n indivíduos [impercetível] que tínhamos sob escuta e eles faziam… encontravam-se frequentemente, tinham grandes movimentações, e nós tínhamos uma equipa em cima deles que os controlava.
…: Portanto, o Sr. Inspetor não tem dúvidas nenhumas que este Sr. viveu naquela casa?
Test. Não tenho dúvidas nenhumas.
…: E sabe se mais algum destes indivíduos lá viveu, por exemplo, o Copera?
Test: O Copera, o Copera também penso que lá terá vivido.
…. E lembra-se se durante muito tempo, se não?
Test. Srª Drª…
…: Este arguido diz que viveu na Pensão Avenida, nos Restauradores…
Test. Não tenho qualquer elemento que me aponte nesse sentido. Na(?) altura que nós o investigámos ele nunca terá lá ido, posso-lhe garantir, vivia sim, ahhh…, ao pé do Centro Comercial X, no tal apartamento no qual fizemos a busca,… isso é garantido.
E depois, de 1:20:03 a 1:20.22:
…: Nunca o referenciaram na Pensão Avenida, aqui em Lisboa?
Test. Não tenho qualquer referência à Pensão Avenida… mas isso é ine… recordo-me perfeitamente que não há qualquer referência a essa Pensão…
…: Viam-no sempre… viveu na casa do irmão?
Test. Exatamente, nós víamo-lo sempre era ali.
…: Nesta casa aqui?
Quanto ao auto de apreensão e busca, de fls. 1393 e 1394, o seu conteúdo, na parte que agora interessa considerar, é o seguinte (deixando-se ainda dito que respeita a um mandado de busca e apreensão, emanado de uma Srª juíza de instrução, a 21/05/2002, sendo o local de diligência identificado como residência do arguido – fls. 1392 - e tendo sido cumprido a 04/06/2002):
Nele diz-se que a diligência se iniciou na presença de Miguel A…, pessoa que detinha a disponibilidade do local e ao descrever-se o resultado da busca diz-se, entre o mais:
“Passada a busca a todas as dependências da fração, foi encontrado num dos bolsos de um casaco pertença do supra identificado [expressão que só pode querer referir-se ao Miguel, irmão do arguido, e não a este – aditamento deste acórdão do TRL] uma carteira…[com vários cartões de débito e crédito de várias pessoas]”
E, mais à frente:
“No interior dos bolsos de um outro casaco pertença do supra identificado, foi ainda encontrada uma carteira […] e uma carteira em plástico transparente [segue-se aquilo que consta do ponto 10 dos factos provados]”
E ainda se acrescenta:
“As duas carteiras supra referidas, encontravam-se tal como já foi referido no interior dos bolsos de dois casacos pertença do supra identificado, os quais se encontravam pendurados num armário sito no hall de entrada da fração”
E continua de seguida:
“No interior de um dos quartos de dormir, nomeadamente na-quele onde dormia o suspeito nos presentes autos – arguido – foram encontrados dois passaportes, com os nºs. AO... e AO..., emitidos pela R.P. de Angola a favor de Nessuka A…, com datas de nascimento diferentes, mas re-lativamente ao mesmo indivíduo, sendo que o primeiro passaporte referido contém no seu interior uma fotografia solta referente ao suspeito – arguido – dois cartões de inf. saldo referentes ao Banco de Fomento e Exterior, onde figura o nome do arguido […], uma fotocópia de uma carta de condução onde figura a fotografia e o nome do arguido”.
IX
Tendo então agora presente o conteúdo real dos meios de prova invocados pelo tribunal, trata-se então de saber se estes meios podiam permitir a convicção quanto ao facto do início do ponto 10 dos factos provados, isto é, que o arguido residia naquela casa naquela período de cerca de dois meses (Janeiro e Fevereiro de 2002, no essencial).
Primeiro, o depoimento do Inspetor da PJ, na medida em que está a fazer a investigação em cima dos acontecimentos, não é, na parte em que diz ter visto o arguido sempre naquela casa, um depoimento indireto (art. 129 do CPP). É aquilo que ele viu, durante a investigação, o que ele está a contar, não aquilo que foi visto por outrem ou que lhe foi contado por outrem. É certo que, sendo a investigação conduzida não só por ele, como por uma equipa que está em cima dos arguidos, para os controlar, e que ouve as conversas telefónicas que trocam entre eles, parte dos conheci-mentos serão desta equipa de investigação, no seu conjunto, e não apenas do Inspetor em causa. Mas daquilo que ele diz decorre que aquilo que ele está a contar é também aquilo que ele próprio viu e não o que foi visto por outro elemento da equipa, sendo-lhe contado depois (sobre várias hipóteses de depoimentos diretos no âmbito de um depoimento indireto, veja-se, apenas por último, o artigo de Costa Pinto, sobre Depoimento Indireto, Legalidade da Prova e Direito de Defesa, nos Estudos em Homenagem ao Prof. Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2010, págs. 1041 a 1088, especialmente págs. 1062 a 1066, com inúmeras sugestões colhidas num estudo de Carlos Adérito Teixeira, publicado no nº. 2, 2005, da Revista do CEJ, conforme ali referido). Aquilo que ele diz permite perfeitamente este entendimento, que foi o que foi seguido implicitamente pelo tribunal recorrido. Aquilo que o recorrente diz não impõe entendimento diverso. E se o recorrente tinha dúvidas, teve ocasião para as tirar na ocasião, tal como teve então ocasião para inquirir a testemunha de modo a fazer criar essa dúvida aos juízes que compunham o tribunal.
Por fim, não é verdade aquilo que o arguido diz, ou seja, que “o inspetor alude a ‘vigilâncias’ mas foi incapaz de concretizar nem que fosse uma delas”. Pois que só se demonstra a incapacidade de alguém em fazer alguma coisa, pondo-o perante o teste de a ter de fazer. Ora, ao Sr. Inspetor em causa não foi pedido, nunca, que concretizasse qualquer vigilância.
Mais, para além do depoimento do Inspetor da PJ nesta parte não ser um depoimento indireto, ele ainda podia, na outra parte, ser aproveitado, aliás em direta conexão com um dos argumentos do recorrente: o Inspetor, integrado num conjunto de investigadores dos factos, enquanto eles ainda se encontravam a decorrer, teve acesso a um conjunto enorme de elementos que lhe permitiram [provavelmente também aos outros, mas é ele que está aqui em causa] formar uma convicção, quanto ao local da residência do arguido, designadamente para servir de base ao mandado de busca; essa convicção foi formada por alguém que tem por função a investigação de factos, com base em indícios, e que tem a sua formação e treino orientada para esse efeito, e foi formada precisamente no âmbito do exercício dessa função. É pois uma parte do seu depoimento em que manifesta convicções sobre um facto em função da sua técnica, perfeitamente admissível porque prevista no art. 130/2b) do CPP e na estrita medida do aí indicado.
Aponta também no sentido de que o arguido lá vivia, o facto de lá terem sido encontrados, num quarto de dormir, documentos que são inequivocamente do arguido, referidos acima na transcrição que se fez do auto da busca.
Note-se, aqui, que um auto de busca é um documento autêntico e que se consideram como provados os factos materiais dele constantes enquanto a autenticidade ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa (art. 169 do CPP), o que não há notícia de ter ocorrido neste processo. O que quer dizer que o facto de tais documentos terem sido encontrados e o local onde o foram, estava provado, sem mais, por tal auto de busca. O que já não estava provado era de quem é que era o casaco em cujos bolsos alguns dos documentos foram encontrados, ou que o quarto, onde outros documentos foram encontrados, fosse onde o arguido dormia. Mas isto nada tem a ver com o que foi aproveitado de tal auto.
Assim, o depoimento do Sr. Inspetor, corroborado por este indício, permite, a convicção do tribunal sobre o facto em causa, sendo que o que o recorrente invoca não impede esse convicção, nem impõe uma convicção em sentido diverso.
Note-se, de resto, que no mesmo sentido apontava ainda o seguinte:
O facto de o mandado de busca e apreensão ter sido emitido por um juiz para aquela morada – pois que tal demonstra que não há qualquer “fabricação” de versões depois dos factos. Daqui decorre, com base na lógica das coisas (e não com base na consulta, por este TRL, de outros elementos do processo que não tenham sido referidos no acórdão recorrido, por se entender que essa consulta não pode ser feita), que não é depois de se descobrir aqueles documentos em circunstâncias que apontam para o arguido que o Inspetor da PJ vem dizer que aquela era a residência do arguido. É antes, perante os dados da investigação que está a fazer, que o Inspetor da PJ se convence que o arguido lá reside e por isso é que pede [ele, ou o MP, ou seja quem for, não interessa ao caso], para lá e não para outro lado qualquer, um mandado de busca judicial.
Aponta nesse sentido, ainda, o facto de o arguido admitir que lá – em casa do seu irmão – aparecia nos fins de semana, visto que a residência não implica a permanência contínua num único local, principalmente uma residência que é assumida claramente como temporária, ou seja, relativa a um período de dois meses.
Como indício do indício (documentos encontrados), veja-se que o arguido o confirma parcialmente, ao admitir que se possa ter lá esquecido de documentos seus (como se vê do resumo comentado das declarações do arguido).
Por fim, aponta ainda nesse sentido, a incongruência da versão do arguido: um dos seus coarguidos – que não é irmão do arguido - residiu naquela casa durante cerca de um mês, naquele período, enquanto o arguido, irmão dos residentes permanentes naquela casa, teria ficado numa pensão.
Posto isto tudo, conclui-se que é improcedente esta impugnação de facto, constante destas 4 conclusões, tal como são improcedentes as alegações aí feitas de violação das normas referidas: arts. 125, 127, 129 e 130, todos do CPP: a violação da norma do art. 125 estava dependente da invocação comprovada de alguma proibição de prova; a violação da norma do art. 127 estava dependente da invocação, em concreto, de alguma regra de experiência violada ou que o tribunal tinha atribuído a algum meio de prova um valor abstrato, independente da sua apreciação no caso concreto; a suposta violação do disposto nos arts. 129 e 130 já foi apreciada.
X
A conclusão 9 não passa de uma série de generalizações: a) impugnam-se, no essencial, todos os factos - deixando de lado, inexplicá-velmente (na lógica utilizada), alguns deles (como o 20 ou 21, 30, 35, 47, 52, 53 e 55) -; b) fazem-se acusações genéricas de falta de prova e de erro de julgamento; c) indicam-se em termos genéricos meios de prova – todas as vítimas –; e d) não se indicam concretamente as passagem dos meios de prova concretizados em que se funda a impugnação.
Assim, para além daquilo que pôde ser aproveitado quanto às imputações genéricas ao arguido da conduta dos outros membros do grupo/bando, em consequência do que foi apurado quanto ao ponto 8, não há nada mais, por isso, que possa ser aproveitado (tanto mais que os vícios apontados não são só das conclusões mas das motivações no seu todo).
XI
A conclusão 11 acusa o acórdão recorrido de insuficiência do exame crítico da prova, invocando uma suposta correspondente nulidade cominada no art. 379/1a) do CPP, por referência ao requisito exigido n.º 2 do art. 374 do mesmo CPP, mas, primeiro, a nulidade em causa é para a total falta de exame e não para o exame insuficiente; segundo, o recorrente não indica em que é que traduz, em concreto, essa insuficiência; e, por fim, é evidente, face aos parágrafos e parágrafos de análise crítica espalhados pela fundamentação aduzida pelo tribunal recorrido (aliás vários deles já individualizados acima), que não há qualquer insuficiência de análise crítica da prova.
*
*
XII
Na conclusão 12 – concretizada muito mais à frente na 1ª parte da conclusão 15 - põe-se em causa um passagem concreta da fundamentação do acórdão recorrido.
O acórdão tinha escrito, ao fazer o resumo comentado do depoimento do Inspetor da PJ, nas três últimas frases de W), que este tinha dito que "nas mãos do arguido estava um telemóvel que havia sido roubado a uma das vítimas", quando afinal o que ele teria dito teria sido "não me recordo em concreto que telemóveis é que foram parar às mãos de quem, mas recordo-me (1.02.40 do CD 2) por exemplo nas mãos deste indivíduo [o recorrente] estaria um telemóvel que teria sido roubado a uma das vítimas".
O recorrente entende que o uso do modo condicional e a imprecisão da vítima, demonstraria que o Sr. Inspetor não teria a certeza se terá sido assim, se não..., pelo que o tribunal recorrido teria apreciado mal este depoimento.
O que a testemunha disse, mais precisamente foi (do minuto 1:02:10 a 1:02:51):
“Portanto, nós, portanto, a polícia, tivemos conhecimento de que, de alguns crimes de carjacking, começamos a investigar, entretanto… alguns telemóveis de algumas vítimas foram também roubados, para além dos carros e da documentação desses carros, e através desses telemóveis nós fizemos algumas interceções telefónicas, e conseguimos chegar, a grande parte destes indivíduos. Agora, não me recordo em concreto que telemóveis é que foram parar às mãos de quem, mas recordo-me de que, por exemplo nas mãos deste indivíduo, estaria um telemóvel que teria sido roubado a uma das vítimas”.
Ou seja, a testemunha estava a fazer um relato de toda a investigação, pelo que o modo condicional não era muito significativo; e o tribunal não identifica a vítima, pelo que as diferenças, entre o relato que o tribunal faz e o que de facto a testemunha disse, não seriam muito significativas.
No entanto, a verdade é que em P2), o tribunal, ao referir-se ao assalto ii) - dos factos 12 a 22 - , diz, a dada altura, que “para além disso, o telemóvel retirado a este ofendido estava na posse do arguido, como nos referiu a testemunha José S...” (que é o referido inspetor).
Ora, este Sr. inspetor, como já se viu, não disse isto.
Pelo que, ao fim e ao cabo, sempre existe um erro de apreciação da prova por parte do tribunal recorrido, ao referir a este meio de prova uma afirmação de facto que a testemunha não fez.
Pelo que, para já, pelo menos tem que se suprimir a parte final de P2), já que ele não corresponde à prova produzida em julgamento. E como o facto referido nas duas primeiras frases desse conjunto de três, não tem outra prova que o sustente (no sentido de que o tribunal recorrido não invoca diretamente outras provas para ele, nem elas resultam de forma linear da restante fundamentação; de resto, nem se sabe qual o nº. de IMEI do telemóvel), também elas devem ser retiradas.
Terá mais algum reflexo este único erro descoberto com a ajuda do recorrente? Ou dito de outro modo: este erro implicará que os factos sob 12 a 22 devam ser considerados não provados? Ou, mais ainda, este erro na apreciação do depoimento desta testemunha, levará a que tudo aquilo que ela disse tenha sido mal apreciado e por isso deva ser totalmente desconsiderado?
Como é evidente, não. Uma parte do depoimento da testemunha que é deficientemente apreciada pelo tribunal recorrido não tem, sem que se demonstre o contrário, influência no resto: o facto de o tribunal ter estendido, erradamente, o depoimento da testemunha a um facto instrumental que ela não confirmou, não quer dizer que o tenha entendido erradamente no seu todo.
Mas aqui volta-se a colocar a mesma questão que já foi vista quanto ao ponto 8 do assalto i).
A participação concreta do arguido neste assalto ii) está referida apenas em P2). Nele fazem-se três conjuntos de afirmações: o primeiro é uma petição de princípio: diz-se que a participação do arguido é por demais evidente, quando era isso que tinha que ser demonstrado. No segundo, invoca-se a apreensão dos documentos no já referido auto de fls. 1393. Ora, se é certo que este auto, junto com o depoimento do Sr. inspetor da PJ, já foi considerado prova suficiente do facto do início do ponto 10, já não se vê como é que uma apreensão de documentos feita em 04/06/2002, pode, só por si, provar a participação concreta do arguido, num assalto ocorrido em 23/01/2002. O terceiro conjunto de afirmações, refere-se à tal posse do telemóvel, que já foi afastada.
Quer isto dizer que o afastamento de um dos meios de prova invocados pelo tribunal recorrido para dar como provada a participação do arguido neste assalto, levando à apreciação da suficiência dos restantes meios de prova invocados para o efeito, conduz à conclusão da inexistência de qualquer prova da participação do arguido nesse assalto, nesta medida sendo parcialmente procedentes as conclusões em causa.
Ou seja, teriam de considerar-se não provadas as referências que no ponto 21 (e reflexamente no ponto 22) dos factos provados são feitas ao arguido, se não fosse o facto de elas já terem sido afastadas, servindo então esta parte da fundamentação para confirmar, por outra via, o acerto de tal exclusão já feita acima.
XIII
Na conclusão 14 invoca-se a violação das condições de admissibilidade do depoimento indireto (art. 129 do CPP), relativamente a três pontos: ser o arguido o cabecilha do grupo, viver em determinada casa e ter participado nos roubos de carjacking.
Quanto à questão da residência já foi vista.
Relativamente ao ser o arguido o cabecilha do grupo/bando é facto que consta de I dos factos provados, para os quais já foi visto acima que a prova não foi o depoimento deste Sr. Inspetor, mas sim as transcrições das escutas telefónicas. Se realmente tivesse sido valorado o depoimento deste Sr. Inspetor, nesta parte, em vez das escutas telefónicas, haveria, sim, um depoimento indireto, proibido, nem que fosse por aplicação analógica do nº. 2 do art. 129 do CPP (porque o tribunal se estaria a servir de um meio de prova indireto, quando tinha ao seu dispôr o meio de prova direto).
Mas o tribunal não fez uso desse depoimento para o efeito, embora ao recorrente possa parecer que sim: é que o tribunal fez um relato comentado do depoimento de uma testemunha, aliás seguindo aquilo que vai sendo prática habitual de alguns tribunais, apesar de sistematicamente criticada pelo STJ [veja-se, como exemplo, o ac. de 19/05/2010, publicado sob o nº. 459/05.0GAFLG.G1.S1 “a fundamentação da sentença, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de “assentada” em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, sob pena de se violar o princípio da oralidade que rege o julgamento” (remetendo para um outro, já antigo, de 07/02/2001, Proc. 3998/00 – 3.ª). Ou, como também se diz no ac. do STJ de 30/01/2002, Proc. 3063/01 – 3ª, também citado no 1º, “a disposição do artigo 374/2 do CPP […] não obriga os julgadores […] a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão] e como tal relato não tem enquadramento legal, o recorrente não se apercebe que o tribunal, na maior parte do que aí escreve, está apenas a fazer o resumo do que foi dito pela testemunha, não está a dizer que a aproveitou, em tudo, como meio de prova. Mas, como já foi visto acima, a testemunha, nessa parte, serviu apenas como uma espécie de guia para o tribunal poder seguir as transcrições das escutas telefónicas, sendo estas que foram, aqui bem, aproveitadas pelo tribunal como meio de prova, como o próprio tribunal foi referindo várias vezes, em partes já assinaladas [embora na 2ª parte de I2viii) se faça uma referência a esse depoimento, com um sentido diferente do de um resumo…; mas trata-se de comentários laterais que não afastam as afirmações já referidas de que a prova foram as transcrições].
Quanto à participação nos carjackings: a fundamentação concreta e específica da convicção do tribunal quanto aos mesmos consta de J2) a W2) e, tirando a referência feita em P2), já desconsiderada, nenhuma outra é feita ao depoimento desta testemunha.
Portanto, nenhum problema se levanta quanto a qualquer valoração ilegal de depoimento indireto.
XIV
A conclusão 16 pode-se dividir em três partes.
A 1ª, até ao 1º ponto, trata-se uma impugnação da decisão de direito: trata-se de saber se os factos provados preenchem ou não – o arguido diz que não – os elementos dos vários tipos de ilícito pelos quais o arguido foi condenado.
A 2ª, até ao 2º ponto, pode ser vista - principalmente se ligada à 3ª parte -, como uma acusação genérica de falta de prova. Seria inaproveitável pelos motivos já vistos. Ou pode ser vista, como sendo uma outra formulação da 1ª parte: de novo tratar-se-ia de ver se se provaram factos suficientes para se poder dizer que o arguido comparticipou nos vários assaltos concretizados.
A 3ª parte, até ao ponto final, trata-se uma acusação genérica de violação do princípio do in dubio pro reo que não levanta outras questões que não aquelas que já foram tratadas a outros propósitos (acrescentando-se apenas que as motivações do recurso de modo algum demonstram que o acórdão recorrido tenha decidido, na dúvida, contra o arguido; as questões que se levantam, colocam-se noutro plano).
XV
Falta então apreciar as duas primeiras partes da conclusão 16, nos termos que se deixaram concretizados.
Quanto ao crime de associação criminosa, ele baseia-se nos factos dados como provados de a) a m) de I dos factos provados.
Diz o acórdão recorrido quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos neste tipo de crime:
Estatui o atual art. 299/1 do CP que “Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou atividade seja dirigida à prática de um ou mais crimes é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
O nº 3 deste mesmo normativo estabelece que “Quem chefiar ou dirigir os grupos, organizações ou associações referidos nos números anteriores é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”.
Acrescenta o nº 5, na nova redação do citado preceito, que “Para efeitos do presente artigo, considera-se que existe grupo, organização ou associação quando esteja em causa um conjunto de, pelo menos, três pessoas, atuando concertadamente durante um certo período de tempo”.
São assim elementos típicos do crime de associação criminosa, a existência de uma pluralidade de pessoas, pelo menos três, uma certa duração, um mínimo de estrutura organizatória, que sirva de substrato material à existência de algo que supere os simples agentes, com estabilidade dos seus agentes, um qualquer processo de formação de vontade coletiva e um sentimento comum de ligação. Sendo que para além disso a atividade dessa associação seja dirigida à prática de crimes, nos moldes contidos no aludido art. 299 do CP. Neste sentido, Figueiredo Dias, in “As Associações Criminosas” no Código Penal Português de 1982 (arts 287 e 288), 1988, Coimbra, Coimbra Editora, pgs 31-47; e os acs do STJ de 09/02/1995, CJSTJ, TI, pg. 198, e de 08/01/2003, processo nº 02P4221 (…).
Podemos, assim, concluir que para se falar em crime de associação criminosa, é necessário que se verifiquem os três elementos essenciais:
Elemento organizatório; elemento de estabilidade associativa e elemento da finalidade criminosa.
Aplicando os conceitos supra enunciados ao caso subjudice, não há dúvida que, da factualidade provada se mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivo do crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299 do CP.
Com efeito, no que respeita ao elemento organizatório e de estabilidade associativa, não há dúvidas que se verifica um acordo de vontades entre o arguido e outros indivíduos (coarguidos no processo principal) para a formação do grupo, os quais se mantinham em permanente e estreito contacto entre si, bem patente nas escutas telefónicas, transcritas e juntas aos autos, a fim de estabelecerem a estratégia mais adequada para levarem a bom termo os desígnios criminosos previamente acordados.
Quanto à finalidade criminosa do grupo, verifica-se que, por um lado, o escopo do grupo tinha como fim exclusivo a apropriação indevida de veículos, topo de gama ou todo o terreno e de valor consideravelmente elevado, para posterior transação, bem como a apropriação indevida de veículos automóveis, para serem utilizados na prática dos crimes referidos. Por outro lado, para levarem a bom termo esta atividade criminosa os elementos do grupo tinham tarefas determinadas.
Na generalidade dos assaltos que levava a cabo o grupo utilizava armas, carros roubados e com os elementos identificativos – matrículas – alterados.
Algumas vezes elementos do grupo sequestravam os proprietários dos veículos.
No que concerne ao elemento subjetivo do tipo, o arguido, aliás como os demais elementos do grupo, sabia que lhe não era permitido, por lei, fundar, ou pertencer a um grupo, cujo objetivo era a prática de ilícitos penais legalmente previstos e punidos.
Mas, provado também ficou que o aqui arguido era o líder dessa associação. Era ele “o cabecilha”, o que determinava o que fazer e a quem os elementos do grupo respeitavam. Era apelidado “pelas tropas” de “chefe” e de “comandante”. Era ele que dava ordens e que assumia a figura principal dentro do “grupo”.
O arguido era pois o membro que dirigia a estrutura de comando e controlava o processo de formação da vontade coletiva da associação criminosa. Era quem coordenava as operações.
Ora, repara-se desde logo que se parte de um conjunto de normas que não eram as normas que estavam em vigor à data dos factos, 2002. A redação do artigo, invocada, é de 2007 (da Lei 59/2007, de 04/09). O que tem especial relevo, visto que o nº. 5 (que nem sequer existia), invocado expressamente pelo acórdão recorrido, inclusive quando fala dos elementos típicos do crime, estabelece quando é que se deve considerar, para efeitos do art. 299, que existe grupo, organização ou associação, permitindo uma leitura muito menos restritiva, e por isso mais criminalizadora, do tipo de ilícito em causa.
Por outro lado, Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do CP, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 1158, §58, chama a atenção para que:
“o problema mais complexo de interpretação e aplicação que aqui se suscita é, na verdade, o de distinguir cuidadosamente - sobretudo quando se tenha verificado a prática efetiva de crimes pela organização – aquilo que é já associação criminosa daquilo que não passa de mera comparticipação criminosa”. E diz que não é suficiente a verificação da existência dos elementos típicos que confor-mam a existência de uma organização no sentido da lei, é ainda “indispensável que o aplicador se pergunte se, na hipótese, logo da mera associação de vontade dos agentes resultava sem mais um perigo para bens jurídicos protegidos notoriamente maior e dife-rente daquele que existiria se no caso se verificasse simplesmente uma qualquer forma de comparticipação criminosa. E que só se a resposta for indubitavelmente afirmativa (in dubio pro reo) possa vir a considerar integrado o tipo de ilícito do art. 299. (Um bom critério prático residirá em o juiz não condenar nunca por associação criminosa, à qual se impute já a prática de crime, sem se perguntar primeiro se condenaria igualmente os agentes mesmo que nenhum crime houvesse sido cometido e sem ter respondido afirmativ-mente à pergunta.)” (este comentário teve por base o estudo deste Prof. publicado sob o título AS Associações Criminosas no Código Penal Português de 1982 (arts. 287.° e 288.°) na RLJ nºs. 119, págs. 289, 327 e 360, e 120, págs. 5, 39, 101, 135, 169 e 198, bem como, antes, o parecer de 1985, elaborado em conjunto com o Prof. Manuel da Costa Andrade, publicado na CJ.1985, tomo 4, pás. 9 a 19
Ora, lendo-se os factos de a) a m) de I dos factos provados, e tendo em conta os elementos típicos referidos no acórdão recorrido, não se vê que naquele factos exista algo mais, no essencial, do que a descrição pormenorizada de uma partilha de funções e de um plano de atuação dos arguidos nos roubos que viessem a praticar, sem qualquer menção: a) à existência de um modo de formação da vontade coletiva [o máximo que se refere em g) é ao modo de contacto entre eles para o efeito…], b) a um qualquer substrato material dessa atividade, ou c) a um qualquer sentimento comum de ligação.
E mesmo que se considerassem existir todos estes elementos típicos não se vê que daqueles factos [de a) a m) de I] resultasse um maior perigo para bens jurídicos protegidos do que de uma qualquer forma de comparticipação criminosa (no caso, de uma comparticipação criminosa sob a forma de um bando: art. 204/2g) do CP).
Compreende-se assim que, no julgamento anterior dos outros 10 arguidos, embora o essencial de todos estes factos também tenham sido dados como provados, todos os arguidos tenham sido absolvidos do crime de associação criminosa... (certidão a fls. 4969 e segs que contém o ac. do tribunal da 1ª instância, do ac. do TRL e do ac. do STJ, sendo que esta absolvição não foi sujeita, sequer, a recurso, embora, repita-se, tais factos tenham sido dados, no essencial, como provados – note-se que nesta parte do acórdão se está a discutir o Direito pelo que a invocação do acórdão do julgamento dos outros arguidos se destina só a salientar que a posição agora seguida não deve causar qualquer estranheza doutrinária, pois que até parece pacífico; não se está pois a invocar aquele acórdão como matéria de facto ou caso julgado).
Assim, considera-se que este tipo de crime (associação criminosa) não está preenchido e o arguido deve ser dele absolvido.
XVI
Quanto aos vários roubos pelos quais o arguido foi condenado:
Os assaltos podem-se dividir em três grupos.
O primeiro grupo constituído pelos dois primeiros assaltos, factos 1 a 11 e 12 a 22. Deles não constam – feitas as exclusões que antecedem – quaisquer referências ao arguido. Ou seja, não há qualquer prova da comparticipação do arguido nesses assaltos.
Aliás, ainda a nível da fundamentação de facto, o acórdão recorrido é claro quanto à falta dessa prova, apesar da condenação do arguido. Pois que em R1) diz: “o facto é que [o arguido] teve intervenção nos diferentes roubos que foram dados por provados, já que ou estava nas imediações […] ou os documentos dos veículos roubados foram encontrados na casa onde […] viveu enquanto esteve em Por-tugal”. Ou seja, a prova da “coautoria” do arguido nestes factos dois assaltos – é a eles que o acórdão se está a referir na 2ª alternativa (vejam-se os pontos de facto 10 e 20) – é a detenção, que pode realmente ser imputada ao arguido, quase 5 meses depois, de documentos que antes estavam com as pessoas assaltadas. Ora, a detenção de documentos – ainda para mais 5 meses depois dos factos – não é prova de qualquer coautoria dos assaltos em causa (ou do sequestro praticado em simultâneo por aqueles indivíduos ou da falsificação da matrícula que é imputada, em abstrato, a um dos 11 arguidos iniciais).
Quer isto dizer que o arguido deve ser absolvido destes 2 crimes de roubo, de 1 de sequestro e de 1 falsificação de matrícula.
XVII
Antes de se passar à análise dos outros dois grupos de assaltos, relembre-se o que o Prof. Figueiredo Dias, no seu Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Agosto de 2007, págs. 794 e 795,§§ 34 a 37, diz quanto à 3ª alternativa do art. 26 do CP, ou seja, quanto à coautoria:
ela “exige […] que o coautor tome “parte direta na execução” e, por conseguinte, preste, neste estádio uma contribuição objetiva para a realização do facto. Essencial é a ideia segundo a qual o princípio do domínio do facto se combina aqui com a exigência de uma repartição de tarefas, que assinala a cada comparticipante contributos para o facto que, podendo situar-se fora do tipo legal de crime, tornam a execução do facto dependente daquela mesma repartição”.
E mais à frente: “A referida repartição […] tem, nos termos da lei, de persistir no estádio da execução, é dizer, tem de refletir-se ainda em momento situado entre o do início da tentativa e o da consumação do facto. É óbvio que os contributos para o facto não têm de ocorrer simultaneamente ou no mesmo período de tempo, como também não é indispensável que o coautor se encontre presente no lugar em que vai dar-se a execução material. O que interessa é que a contribuição material possa ser vista como exercício do domínio do facto e, por conseguinte, como parte do preenchimento do tipo.
Somos com isto de opinião que deve ser recusada, entre nós, […] uma conceção […] segundo a qual basta para fundar a coautoria uma atuação do agente na fase preparatória. Como igualmente a ideia […] segundo a qual se impõe dar relevo, dentre os contribu-tos preparatórios, pelo menos àqueles que respeitam ao “planeamento e organização” da execução. […] Uma de duas: ou o plane-ador dirige também ele próprio a operação – mesmo que à distância – e deve ser considerado coautor; ou se limita a concebê-la, de todo se desinteressando da efetiva realização, e ele só pode ser então instigador ou cúmplice”.
Ora, tendo presente isto e os factos dados como provados de a) a m) de I, bem como os factos 32 a 43 do assalto iv) e 44 a 55 dos assaltos v) e vi), é fácil de concluir que o arguido foi, nestes três assaltos, coautor de cada um deles.
Pois que o arguido era líder de um bando de indivíduos que se tinham juntado para o roubo de veículos, decidindo-se previamente, a execu-ção, ao pormenor, desses assaltos por alguns deles; era o arguido que “coordenava toda a atividade do grupo, assumindo a posição de líder, recebendo as “encomendas” dos veículos, ficando normalmente afastado dos locais dos roubos, mantendo por vezes o contacto telefónico com os operacionais e os outros membros do grupo, por forma a controlar toda a atividade delituosa desenvolvida” [facto l) de I] (note-se que já se viu acima que tudo isto não dá para falar de uma associação criminosa, por falta de, pelo menos, os três elementos referidos, embora se possa falar de um grupo, que terá o sentido de “bando” - conceito do art. 204/2g) do CP, cujo preenchimento permitiria, aliás, como se verá, a agravação dos roubos -, tendo de ler-se nesse sentido o ali dado como provado: é pois de um líder, de um membro e da coordenação de um bando que se trata, e não de um grupo que fosse já uma associação criminosa com um modo de formação da vontade coletiva, com um substrato material dessa atividade e com um sentimento comum de ligação).
Ora, no assalto iv) sabe-se (pontos 35 e 39) que o arguido e outros três indivíduos daquele grupo mantinham-se em contacto telefónico com os restantes indivíduos [do mesmo grupo], aguardando o desenrolar dos acontecimentos, ou seja, do assalto, junto à zona do Parque das Nações, e que o veículo, depois de assaltado, foi entregue a outro daqueles indivíduos do grupo e que este, em troca, entregou ao arguido e outros elementos do grupo, uma quantia em dinheiro correspondente ao pagamento da ação levada a cabo.
E no caso dos assaltos v) e vi) sabe-se (pontos 47 e 53) que o arguido e outro indivíduo do grupo supervisionaram a ação daqueles seis, num outro veículo, num local afastado e que menos de 50 minutos depois do início do assalto um daqueles indivíduos telefonou ao arguido informando-o do êxito do roubo.
Temos pois, nestes casos, a descrição da atuação de alguém que participa na elaboração de um plano que depois é posto em execução, execução que, num dos casos, é acompanhada pelo arguido que depois recebe também o pagamento da ação levada a cabo; e que, nos outros dois casos, é supervisionada pelo arguido e outros membros do grupo, que depois é informado do êxito do roubo (ou melhor dos roubos).
XVIII
Quanto ao terceiro grupo de assaltos, ele engloba os assaltos iii) – factos 23 a 31 - e vii) – factos 56 a 64.
No assalto iii) sabe-se apenas (ponto 30) que o veículo assaltado tinha sido “encomendado” ao arguido por um outro indivíduo. No assalto vii) sabe apenas (ponto 62) que na mesma noite do assalto, o veículo foi conduzido por um dos membros do grupo para a Holanda, após contactos prévios telefónicos havidos entre o arguido e o intermediário na compra (Fernando B…, “tio Nando”).
Ora, isto é insuficiente para dizer que o arguido comparticipou nestes assaltos, mesmo que a título de instigador (4ª alternativa do art. 26 do CP - para além do mais não há qualquer afirmação de que tenha comparticipado na elaboração do plano deste assalto) ou cúmplice (art. 27/1 do CP), pois que num caso apenas se sabe de uma atuação antes dos atos de execução (o recebimento de uma encomenda) e no outro de uma atuação depois dos atos de execução (art. 22/2 do CP).
XIX
Ou seja, subsistem apenas os roubos iv) v) e vi), sendo pois, procedente, nesta medida, a conclusão 16 do arguido.
XX
O roubo iv) (factos 32 a 43) trata-se de um roubo simples, do art. 210/1 do CP. É certo que se poderia dizer que tal roubo se tratava de um roubo agravado, pela qualificativa da atuação em bando [arts. 210/2b) e 204/2g) do CP], mas a questão não foi levantada em recurso pelo MP ou assistente, pelo que não pode ser agora objeto de uma decisão que agrave a situação do arguido (por força do princípio da proibição da reformatio in pejus).
Os roubos v) e vi) (factos 44 a 55) tratam-se de dois roubos agravados pela posse de armas, dos arts. 210/2b) e 204/2f), ambos do CP (agravado também pela atuação em bando, agravação que, de novo, não pode ser agora objeto de uma decisão que agrave a situação do arguido).
XXI
Resta a questão das penas, que não foi posta em causa pelo arguido, mas, como questão de direito pode ser apreciada oficiosamente, desde que seja evidente que elas foram fixadas fora do “espaço de liberdade” [com limites encontrados tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial e a culpa do arguido dentro da moldura penal do tipo de crime em causa], ou de forma desproporcionada ou com violação das regras da experiência (pois que são controláveis em via de recurso os limites ou a moldura da pena, assim como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção (tentou-se adaptar para este efeito a lição de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, págs. 196/197).
Por cada um dos crimes de roubo agravado, o arguido foi punido com uma pena de 5 anos de prisão. Pelo crime de roubo simples, o arguido foi punido com uma pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
Como ponto de comparação, esclareça-se o seguinte:
Os arguidos do processo principal tinham sido condenados, na 1ª instância, por cada crime de roubo agravado, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, exceto nos casos em que tinha sido apontada uma arma a uma criança, em que a pena foi de 5 anos e 6 meses. Isto com exceção de um dos arguidos que confessou os factos com muito relevo para a descoberta da verdade, tendo-se-lhe aplicada uma pena de 3 anos e 6 meses e 4 anos e 6 meses, respetivamente (tudo conforme se pode ver na pág. 62 desse acórdão, fls. 5001 deste processo).
No TRL, em recurso, baixaram-se as penas e o critério seguido pode ser assim sistematizado:
4 anos e 6 meses – os casos mais graves por terem sido ameaçadas crianças;
4 anos – os casos um pouco mais grave do que os seguintes por ter havido agressão física;
3 anos e 6 meses – os casos sem ameaça a crianças e sem agressão física, mas com ameaça de arma de fogo à cabeça;
3 anos – os casos menos grave que os anteriores.
Estas penas foram confirmadas pelo STJ.
Ora, no caso do arguido, se é certo que não se pode dizer que este, como membro do grupo, tivesse previsto e querido a ameaça também de crianças, a verdade é que ele se trata de um líder de um bando, que previu e quis a agressão física e a ameaça com armas de fogo, sendo por isso, de algum modo, a sua conduta tão censurável como a mais grave da de todos os outros, pelo que deve ser punido com a mais grave das penas que tiver sido aplicada (4 anos e 6 meses).
Pelo que a pena pelos dois roubos agravados (5 anos) se mostra algo desproporcionada em relação aos outros arguidos, o que no caso não pode deixar de ser tido em conta, já que nada foi apontado que diferenciasse a atuação deste arguido da dos outros membros do grupo (e também ele não tem antecedentes criminais), pelo que uma diferença de penas (que fosse para além da mais grave, justificada do modo agora introduzido), sem critério que a justificasse, seria sentida como uma injustiça.
Razão pela qual se baixa a pena por cada um dos roubos agravados, ficando fixada em 4 anos e 6 meses de prisão (vítimas Vítor A… e Ana A…).
XXI
Visto que o arguido praticou os três crimes antes do trânsito em julgado por qualquer deles, deve ser condenado numa pena única, na determinação da qual devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art. 77/1 do CP).
Para a determinação da pena importa consignar agora os factos que foram dados como provados quanto ao arguido:
68. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta.
69. O arguido é um cidadão angolano, em que as frágeis ligações a Portugal se traduziram em vivências disfuncionais, sem enquadramento profissional e habitacional, experimentando uma situação de reclusão.
70. Antes de estar em prisão preventiva no âmbito deste pro-cesso o arguido residia com a sua companheira em Inglaterra e dois filhos de ambos, de 12 e 4 anos de idade. Ao nível profissional de-sempenhava funções de cozinheiro, angariador de mão-de-obra de cidadãos angolanos para Inglaterra e comerciante de automóveis.
71. O arguido tem mais nove filhos, de anteriores relações e que vivem em Angola com os pais. Em Portugal tem dois irmãos a residir.
72. Ao nível pessoal o arguido revela ser um indivíduo defensivo que sabe gerir a informação sobre a sua vida no sentido que a mesma lhe seja favorável.
O acórdão recorrido disse o seguinte quanto a estas questões:
Ponderando, enfim, em conjunto os factos e a personalidade do arguido, bem como as exigências de prevenção geral, trata-se de crimes muito graves, muito acima do patamar médio da criminali-dade, que começam a surgir com alguma frequência no nosso país, devendo procurar devolver-se à comunidade a confiança nos bens jurídicos violados, e, especial, que assume particular relevo – a conduta do arguido impõe uma necessidade de prevenção especial acentuada, tendo em atenção a gravidade do quadro factual da sua conduta e o não ter ainda interiorizado o seu desvalor.
[…]
Tendo em conta todo o circunstancialismo descrito e, dentro dos limites mínimo de 5 anos de prisão e máximo de 25 anos de prisão (já que a soma de todas as penas é de 38 anos e 6 meses de prisão) – art. 77/2 do CP -, entende-se adequado aplicar ao arguido uma pena unitária de 14 anos de prisão.
Aceitando-se que seja grave a ilicitude global dos factos - dada a gravidade dos factos (mesmo sem se deixar de ter em conta que se tratou de um período provado de cerca de 15 dias) e a personalidade que o arguido demonstrou com a sua participação no planeamento dos mesmos e subsequente acompanhamento ou supervisão -, e que, por isso, sejam grandes as exigências de prevenção geral, já não se aceita que as exigências de prevenção especial tenham o significado que lhes foi dado pelo tribunal recorrido, pois que o arguido não tem antecedentes criminais, os factos provados não apontam para uma tendência criminosa da sua parte (de expressão de um modo de vida fala o ac. do STJ de 23/09/2009, publicado sob o nº. 210/05.4GEPNF.S2) e o arguido estava razoavelmente inserido familiar e laboralmente.
Assim, dentro de uma moldura abstrata para a pena única que vai dos 4 anos e 6 meses a 11 anos e 6 meses, não se vê razões para aplicar quase metade das penas parcelares menores, como fez o tribunal recorrido [afastando-se, em muito, daquilo que tem sido defendido por uma “corrente mais alargada” do STJ no sentido de, nestes casos, não se aplicar mais do que 1/3 da(s) pena(s) restante(s) - para um caso em que há tendência criminosa e que por isso não se aplicou tal fator de compressão, veja-se o ac. do STJ de 21/10/2009, publicado sob o nº. 360/08.5GEPTM.S1; no caso do ac. do STJ de 23/09/2009, aplicou-se ¼ das parcelares restantes; falando do acquis jurisprudencial de 1/3, mas revelando que se chega a aplicar apenas 1/6 das restantes parcelares e falando ainda de uma série de outras sugestões de regras, nenhuma delas conduzindo a uma aplicação de um fator de compressão menor, veja-se o ac. do STJ de 13/07/2009, publicado sob o nº. 206/07.1GAVNF; aplicando menos ainda que 1/6, veja-se o ac. do STJ de 1/7/2009, publicado sob o nº. 732/06.0GCFAR.S1].
Considera-se antes que as exigências de prevenção geral não permitiriam uma pena única inferior a 6 anos nem uma pena superior a 9 anos, sendo que a culpa, em sentido lato, do arguido, também não permitiria a ultrapassagem desse limite. E dentro destes limites, de uma moldura de prevenção, as exigências de prevenção especial, de grau médio, impõem a fixação da pena única em 7 anos e 6 meses (desse modo não nos afastando muito do critério maioritário do STJ).
*

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido, a) suprimindo-se, dos pontos de facto provados 8, 11, 21, 31, 34, 43, 46, 55 e 64, as expressões aí sublinhadas, b) absolvendo-se o arguido dos crimes de associação criminosa, de 4 roubos agravados, de 1 falsificação e de 1 sequestro; c) baixando-se as penas aplicadas pelos dois roubos agravados [arts. 210/2b) e 204/2f) do CP)] pelos quais continua condenado, para 4 anos e 6 meses de prisão, cada um; d) mantém-se a pena pelo roubo simples (art. 210/1 do CP): 2 anos e 6 meses de prisão; e e) alterando-se a pena única, que se fixa agora em 7 anos e 6 meses de prisão.
Nesta pena terá que ser descontado todo o tempo de privação de liberdade já sofrido pelo arguido; para já, sabe-se estar preso preventiva-mente desde 26/08/2009; mas há ainda que apurar o tempo de detenção imputável ao mandado de detenção europeu, em relação ao qual são contraditórias as informações existentes: a fls. 3874 diz-se que o arguido foi detido a 01/09/2003; no mesmo sentido, veja-se o verso de fls. 4148; a 22/01/2004, fls. 4167 e 4168, ainda se informa que o arguido está detido, a aguardar a extradição de Inglaterra; a fls. 4473 e 4474 diz-se que o extraditando foi detido e ouvido no dia 18/03/2004?; a fls. 4480 e 4481 diz-se que o extraditando foi detido a 1/1/2003?, ficou sob detenção, contudo, posteriormente? o tribunal libertou-o sob fiança e deste então desapareceu; a fls. 4483 a 4485 dão-se uma série de informações, que são irrelevantes quanto a esta questão; no despacho de fls. 4533 e 4534 dá-se nota dalgumas destas contradições; a fls. 4565 a 4569 e 4572, dá-se nota de nova detenção do arguido, com data imprecisa, que poderá ser de 27/02/2009 e esclarece--se que o arguido irá ser ouvido a 17/03/2009; a fls. 4620, informa-se que o arguido será entregue às autoridades portuguesas no dia 11/08/2009 [o que acabou por só ocorrer a 26/08/2009]; assim, é provável que o arguido tenha estado detido, à ordem deste processo ou do mandado de detenção emitido por ele, pelo menos, desde 01/09/2003 até 22/01/2004 ou 18/03/2004, mas poderá ter estado desde data anterior e até data posterior; e foi de novo detido, pelo menos, a 27/02/2009 e assim tem estado até hoje).
Custas pelo arguido, com 2 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 29 de Junho de 2010

Pedro Martins
Nuno Gomes da Silva
Decisão Texto Integral: