Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
165/14.4TBFUN.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: EMPRESÁRIO DESPORTIVO
AUTORIZAÇÃO PARA EXERCÍCIO DE ACTIVIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Os empresários desportivos que pretendam exercer a actividade de intermediação na contratação de um jogador de futebol estão obrigados a registar-se junto da Federação Portuguesa de Futebol e na Liga Portuguesa de Futebol.
- Estando provado que a apelante não estava autorizada/credenciada para o exercício da actividade de empresária desportiva junto dessas entidades, tem de se considerar inexistente o contrato em que outorgou naquela qualidade com uma sociedade desportiva e no qual se clausulou a sua remuneração pela prestação do serviço de intermediação na contratação de um jogador de futebol.
- Não decorrendo dos factos provados que a apelada recorreu aos serviços de intermediação da apelante sabendo que esta não reunia as condições legalmente exigidas para o exercício dessa actividade e com o propósito de vir a valer-se do vício do contrato para não pagar a remuneração acordada, não se mostra que a invocação do vício de inexistência jurídica do contrato configure abuso do direito.
- Através do instituto do enriquecimento sem causa visa-se eliminar o enriquecimento de alguém à custa de outrem.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa:



I – Relatório:


O... Lda instaurou acção declarativa contra M... SAD, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia 8.000 € acrescida de juros de mora no valor de 208,66 € e juros vincendos.

Alegou, em síntese:

- a A. dedica-se com regularidade ao agenciamento de jogadores de futebol, através do seu representante  P...;
- no âmbito desta actividade foi celebrado entre A. e R. um contrato de comissão de serviço em 04/07/2013 referente aos serviços de intermediação prestados pela A. para a contratação de um jogador pela R. em 25/06/2013;
- nesse contrato a R. comprometeu-se a pagar à A. a quantia de 8.000 € acrescida de IVA, pelos referidos serviços, pagamento que não efectuou apesar de interpelada.

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Contestou a R. pugnando pela improcedência da acção, tendo invocado, em resumo:

-a A. não está legalmente habilitada para o exercício da actividade de empresária desportiva;
-o contrato em apreço refere-se aos “serviços de intermediação” prestados pela A. no âmbito da contratação pela R. de um jogador de futebol;
-assim, face ao disposto na Lei 28/98 de 26/06, o contrato celebrado entre A. e R. é inexistente, não produzindo qualquer efeito, designadamente ao nível da remuneração;
-aliás, à data dos factos a gerência da A. estava a cargo de R... e de C..., pelo que é falso que P... detivesse poderes de representação da A.

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A A. respondeu à contestação, alegando, em suma:

- P..., em representação da A., é agente de futebol – igualmente designado por empresário desportivo - da Federação Portuguesa de Futebol, estando legalmente habilitado para exercer as funções de agenciamento de jogadores de futebol;
-por isso, o contrato não é inexistente nem nulo;
-a R. nunca pôs em causa a habilitação da A. representada por aquele, aquando da contratação do jogador em causa;
-a Lei 28/98 não se aplica ao contrato de comissão de serviço;
-mas a considerar-se aplicável esta lei, sempre se advogará que a A., através do seu representante, foi contratada pela R. no sentido de intermediar a contratação do jogador e por isso, sendo o clube representado pela A. nesta contratação, é seu dever proceder à remuneração daquele que lhe prestou o serviço;
-com a sua defesa pretende a R. descartar-se da liquidação do montante correspondente aos serviços de intermediação prestados, o que configura abuso do direito.

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Foi proferido saneador-sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo a R. do pedido.

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Inconformada, apelou a R., terminando a alegação com as seguintes conclusões:

1. Após apuramento da factualidade processual e à revelia das normas jurídicas aplicáveis entendeu a Ex.ma Juíza a quo absolver a Recorrida.
2. Houve, pois, ofensa de lei pelo tribunal a quo mediante a violação de normas jurídicas, merecendo o douto despacho-sentença em crise censura.
3. No âmbito dos autos em causa, foram trazidos à colação os artigos 22.º e 23.º da Lei n.º 28/98 de 26 de Junho, nomeadamente os requisitos essenciais para a actividade de empresário desportivo, tendo sido alegado pela Recorrida que nem a sociedade Onsidefoot, nem as suas sócias, nem o seu procurador estariam registados junto da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP).
4. Ora, entende a Recorrente que este argumento automaticamente deveria ter sucumbido com a prova de que o procurador da Recorrente se encontra inscrito junto da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), bem assim como junto da Fédération Internationale de Football Association (FIFA), conforme documentos juntos aos autos, mas nunca poderia estar registado junto da LPFP, pois que esse registo simplesmente não existe!
5. Na realidade, a LPFP não procede ao registo de agentes de jogadores, sendo que essa é a informação exarada pela própria LPFP quando interpelada no sentido de proceder à indicação de Agentes de Jogadores/Empresários desportivos.
6. Aliás, o artigo 3.º, n.º1 do Players’ Agents Regulations da UEFA, comete-se às federações nacionais a competência pelo registo de Agentes de Jogadores,
7. Pelo que, não pode vingar o raciocínio alegado pelo douto Tribunal a quo de que “nem P... cumpria o registo de inscrição na Liga Portuguesa”.
8. De facto, o douto Tribunal recorrido não cuidou percepcionar se o registo a efectuar pela Liga existe ou não e simplesmente fez tábua rasa dos argumentos alegados pela Recorrente, sem qualquer possibilidade de discussão dos mesmos em sede de Tribunal e sem dar a possibilidade de chamar à colação a própria LPFP no sentido de esclarecer se esta efectua os referidos registos de empresários desportivos.
9. O certo é que se verifica uma total irrealidade entre a Lei n.º 28/98 de 26.06 e as práticas futebolísticas recorrentes, sendo que os próprios Estatutos e Regulamento da LPFP em nada se referem à competência de registo dos empresários desportivos.
10. Ademais, os artigos 22.º e 23.º da Lei n.º 28/98 de 26 de Junho trazidos à colação pela Recorrida em nada obstam a que a intermediação em causa não fosse efectuada.
11. Denotem-se ainda as conclusões do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 24.10.2013, os quais identificam o regime de inscrição subsidiária entre a FPF e a LPFP: «Os contratos celebrados com “empresário desportivo” que não se encontre registado junto da federação desportiva respectiva, ou, sendo caso disso, junto da liga, são juridicamente inexistentes.»
12. Como tal, nunca poderia ter sido defendido – conforme o fez o douto Tribunal a quo – que os poderes de representação na pessoa de P... seriam irrelevantes face ao não cumprimento do registo na LPFP, pois que esse registo é de todo impossível de ser efectuado,
13. Pelo que é de aceitar que P... se encontrava regularmente habilitado para o exercício da actividade de empresário desportivo.
14. Nesse seguimento, é igualmente de aceitar que P... poderia, legal e juridicamente, representar a Recorrente no contrato de “Comissão de Serviço” em discussão.
15. O certo é que considerou o douto Tribunal a quo que não se pode admitir que o requisito de licenciamento e registo no âmbito dos artigos 22.º e 23.º da Lei n.º 28/98 de 26.06 seja verificado na pessoa de um procurador, mas indicando que os requisitos legais aplicados ao empresário desportivo, deveriam aferir-se da própria pessoa da Recorrente, em especial devendo estar esta sociedade ou as suas sócias gerentes registadas enquanto empresárias desportivas.
16. Todavia, andou mal o douto Tribunal a quo no sentido de desprezar por completo a Procuração com poderes de representação com a qual se encontrava P... aquando da elaboração do contrato de intermediação agora em causa, pois que nada na lei ou em legislação avulsa proíbe que as partes se encontrem devidamente representadas;
17. Mas antes o que se pretende acautelar com a normativa do n.º 4 do artigo 23.º da Lei em apreço é somente que o empresário desportivo (em representação ou em nome próprio) esteja devidamente registado – tal como aconteceu no caso em concreto!
18. Neste sentido, não acautelou o Tribunal recorrido em ouvir as partes, nomeadamente para verificar se a Recorrida tinha conhecimento dos poderes de representação de P..., se os verificou e se plenamente aceitou os termos do contrato de intermediação, bem como não procurou compreender as praxes comerciais próprias do ‘mundo desportivo’, pelo que não será de aceitar o entendimento jurídico-legal apresentado pelo douto Tribunal recorrido do n.º 4 do artigo 23.º da Lei supra referenciada.
19. De facto, da leitura da normativa em causa denota-se que o que se pretende acautelar é somente que uma das partes seja um empresário desportivo e que esse se encontre inscrito junto da respectiva federação, ou seja, que o clube ou o seu representante aquando da elaboração de contratos de trabalho desportivos, o façam com um empresário desportivo devidamente habilitado para o acto.
20. Ora, o próprio douto Tribunal recorrido entende que o contrato de comissão de serviços é um contrato de prestação de serviços, através do qual se deram como provados os factos essenciais ao seu estrito cumprimento: que os serviços foram prestados, que a Recorrida se vinculou ao pagamento de uma remuneração e que não o fez.
21. Como tal, o contrato em causa foi firmado com um empresário desportivo devidamente habilitado para o efeito, pelo que nunca poderia ser o contrato tido como inexistente, sendo certo que nada nas normas aqui trazidas à colação proíbem que o empresário desportivo esteja a representar uma das partes especificamente para o acto em causa.
22. Desse modo, in casu, o empresário desportivo P... encontrava-se munido de poderes para o efeito, representou a Recorrente no acto de assinatura do Contrato de Comissão de Serviço com a Recorrida, vinculando-a nos termos próprios da figura de procurador.
23.  Nesse sentido, denote-se o douto aresto do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 24.10.2013 [disponível em www.dgsi.pt], quando bem explica que «uma “definição ampla do âmbito de exercício da actividade de «intermediação» e «representação» (…)”, na qual identifica “quatro elementos (…): capacidade e condições de exercício da profissão, âmbito de exercício da actividade, carácter oneroso da actividade e intervenção contratual específica.”. E referindo, quanto ao “segundo elemento”, que o mesmo "diz respeito ao exercício da
actividade de intermediação ou representação, i.e., à prática do ato de negociação enquanto mediador – não como, em virtude do carácter amplo do conceito, intermediário – e do ato da celebração de contratos como representante de uma das partes – tendo sido constituído «mandato desportivo» com representação.
Ao interpretar-se o art. 2.º, alínea d) do RJCTPD e o art. 24.º, n.º 1, do RJCTPD, pudemos chegar à conclusão de que, respectivamente, o empresário desportivo pode agir enquanto representante sem ter agido como mediador, e que o âmbito de exercício da actividade corresponde ao exercício da actividade de intermediação. (…) A nosso ver, a opção legislativa recaiu pelo contrato de mandato, e não pelo contrato de mediação puro, por três motivos em especial – delimitação ampla do âmbito de exercício da actividade, aliada à prática, a título principal, da
actividade de representação; visar-se a intervenção parcial do mediador, mas sempre acessória da acção como representante; e à necessidade de um vínculo contratual estável entre empresário e cliente”. (…) assim, propendemos a qualificar o contrato de “empresário desportivo”, como um contrato misto, em que surgem de forma tendencialmente predominante, que não exclusiva, elementos próprios do contrato de agência, podendo também intervir elementos do mandato, sendo que se tratam, estes, de tipos negociais distintos.», chegando-se assim à conclusão que o empresário desportivo pode agir como mero mediador, representando uma das partes;
24. Pelo que, carecem de fundamentação os argumentos da Recorrida de que o contrato ora em vigor é inexistente ou nulo, pois na realidade, o agente representante encontrava-se legalmente habilitado à representação a que se propôs, tendo a própria Recorrida reconhecido que os serviços pelos quais a remuneração se impõe foram, efectivamente, prestados e aceites
25. Acresce que nunca a Recorrente pôs em causa a habilitação do agente/empresário P... para a intermediação em causa, ou os seus poderes de representação, tendo antes assinado o contrato, sendo ainda de acrescer os diversos emails trocados entre a aqui Recorrente, representada pelo Sr. P..., e a Recorrida (juntos aos autos) que comprovam, por um lado a solicitação dos serviços de intermediação pela última, e por outro a negociação dos termos do contrato de comissão de serviço.
26. Aliás, aquando da celebração do contrato de comissão de serviço em causa, devia nesse momento a Recorrida ter verificado os poderes de representação do mesmo.
27. Pelo que, não são igualmente de subsistir os fundamentos do douto Tribunal recorrido de que o procurador/representante no caso em apreço não pudesse vincular a Recorrente ao Contrato sub judice.
28. Efectivamente, o artigo 258.º do Código Civil (CC) indica que «o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último». No caso em concreto, é ainda de acrescer a letra do artigo 262.º, n.º 1, ou seja, «diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos».
29. Como tal, são injustificados os fundamentos do douto Tribunal a quo, pois que o representante não necessita de ser o sócio gerente da sociedade para obrigá-la, mas bastando-lhe a devida procuração com poderes representativos passada pelo representado para, em determinados actos e negócios, o vincular.
30. Assim, o empresário desportivo estava devidamente habilitado para os respectivos actos dessa actividade, encontrava-se munido de poderes de representação, voluntariamente passados pela Recorrente, para que este a representasse no Contrato de Comissão de Serviço com a Recorrida e, dessa forma, vinculando-a ao mesmo.
31. De igual forma a Recorrida vinculou-se, livre, consciente e plenamente, às cláusulas apostas no contrato em questão, pelo que não pode agora invocar qualquer desconhecimento ou ilegalidade em seu próprio benefício.
32. Ora, a Recorrida não pode agora “vir dar o dito por não dito”, sendo certo que o fazendo está expressamente em pleno Abuso de Direito.
33. Efectivamente, entendeu (mal!) o douto Tribunal a quo que o abuso de direito não se compadece perante o vício de inexistência, sendo certo que é o próprio Tribunal recorrido a indicar que a parte está a socorrer-se de um aspecto formal para se recusar ao cumprimento de uma obrigação e que esse facto é ‘injusto’, sucumbindo essa injustiça perante a auto-responsabilização das partes.
34. Acresce que, o douto Tribunal recorrido entendeu que a Recorrente deveria ter diligenciado pelo cumprimento dos requisitos legais para exercer a actividade de empresário desportivo.
36. Porém, sempre se dirá que a Recorrente e o seu representante cumpriram todos os pressupostos legais necessários ao exercício da actividade em causa e que a Recorrida deveria ter verificado os poderes de representação do procurador da Recorrente.
36. O certo é que dúvidas não subsistem em como a própria Recorrida não somente admitiu a prestação dos serviços de intermediação, como igualmente admitiu que foi através dos serviços de intermediação da Recorrente que a Recorrida contratou o jogador, pelo que foi esta que solicitou os serviços prestados pela Recorrente, bem como negociou todo o contrato de comissão de serviço aqui em causa, vinculando-se ao mesmo.
37. Aliás, foram dados como provados os factos essenciais para a verificação expressa de abuso de direito: a prestação de um serviço solicitado, a vinculação ao pagamento do mesmo, a posterior recusa com base num vício trazido pela parte obrigada ao cumprimento;
38. Assim, questionar agora a validade do contrato, após a efectiva contratação do jogador e o serviço ter sido prestado, é plenamente um Abuso de Direito, com o qual nunca poderá - e cremos que não irá - este douto Tribunal ad quem compactuar!
39. Como tal, estamos perante um uso manifestamente reprovável do direito à boa-fé contratual estabelecida e igualmente quanto ao fim puramente económico desse direito.
40. De facto, a existência de confiança entre as partes nos negócios jurídicos é um requisito essencial para a saudável utilização e predominância do sistema jurídico negocial, pelo que uma violação desta confiança, pode conjugar numa violação do artigo 334.º do Código Civil e, como tal, um expresso caso de Abuso de Direito: «É ilegítimo o exercício de um direito, quando exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
41. Nesse caso, denote-se a directa correlação entre a actuação da Recorrida com a atitude de se recusar expressamente a liquidar aquilo a que está contratualmente vinculada através da alegação de vícios formais que a mesma conhecia e, agora, pretende usar em seu beneficio próprio e directo.
42. Por sua parte, António Menezes Cordeiro [in Do Abuso do Direito: estado das questões e perspectivas, Revista da OA, ano de 2005, n.º 65, vol. II, Setembro de 2005] explica que o abuso de direito subdivide-se em 5 sub institutos, sendo um deles o Venire contra Factum Proprium, ou seja, o meio pelo qual duas condutas, lícitas em si mesmas, diferidas no tempo acabam por se oporem uma à outra – o factum proprium é contraditado pelo venire,
43. Sendo que o venire seria «proibido quando viesse defrontar inadmissivelmente uma confiança legítima gerada pelo factum proprium», pelo qual o agente «ficaria vinculado aos termos negociais pelo factum proprium, mas que ao perpetrar o venire estaria a violar a vinculação daí derivada».
44. Como tal, deve entender-se que os termos negociais estão intrinsecamente correlacionados com o princípio da confiança, sendo este princípio que «exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas».
45. Ora, foi isto que a Recorrida perpetrou no caso em concreto: o factum proprium mais não é de que a confiança gerada na Recorrente do pagamento do preço acordado com a Recorrida e ao qual esta se vinculou face aos serviços efectivamente prestados, sendo que o venire diz respeito à conduta agora adoptada pela Recorrida, em especial na recusa em cumprir a prestação a que livre e esclarecidamente se vinculou.
46. Acresce ainda que, conjuntamente com o Venire contra Factum Proprium, é ainda de trazer à colação um outro sub instituto do Abuso de Direito – a Inalegabilidade.
47. Efectivamente, esta conduta refere-se à «situação da pessoa que, por exigências do sistema, não se possa prevalecer da nulidade de um negócio jurídico causada por vício de forma», ou seja, «as situações em que o agente daria azo a uma nulidade formal, prevalecendo-se do negócio nulo assim mantido enquanto lhe conviesse; na melhor ou pior altura invocaria a nulidade, recuperando a sua liberdade. Haveria uma grosseira violação da confiança com a qual o sistema não poderia pactuar».
48. Por sua vez, a inalegabilidade exige, não somente, a verificação dos pressupostos da boa-fé, mas igualmente mais três requisitos, conforme Menezes Cordeiro bem expõe na obra supra identificada: “i) devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; ii) a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar; iii) o investimento da confiança deve ser sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via”.
49. Desse modo, no caso em concreto, a Recorrida está, rigorosamente, a retirar um proveito próprio ilegal, tirando partido directo do vício que a mesma alegou.
50. Aliás, foi o próprio douto Tribunal a quo que admitiu que a Recorrida está a socorrer-se de um elemento formal para recusar o cumprimento de uma obrigação, pelo que não pode a Recorrente – perante tal facto – deixar de invocar o instituto do Abuso de Direito, na sua vertente da Inalegabilidade.
51. Ainda que a Recorrente não considere que exista qualquer vício de forma ou nulidade sobre o contrato em causa, o certo é que não pode deixar de verificar (de forma estupefacta!) que é o próprio sistema judicial que decide manter esta situação ilegal.
52. Acresce que, igualmente não faz sentido trazer à colação a auto responsabilização das partes, imputando-se a verificação do vício e suas consequências à aqui Recorrente, pois que, desde logo, a admitir-se qualquer responsabilização às partes, esta não pode somente aplicar-se a uma delas – especialmente, à parte mais prejudicada e beneficiando directamente a parte que se encontra a incumprir uma obrigação contratual.
53. Ademais, a manutenção da situação em crise leva a um grosseiro caso de desequilíbrio no exercício das posições jurídicas das partes, desde logo em virtude da “desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem”.
54. Na realidade, é este desequilíbrio de posições jurídicas que está na base do abuso, pelo que somente através da boa-fé se permitirá corrigir o sistema jurídico. Como tal, e citando o Autor em causa “a boa-fé surge tão-só como uma via para permitir, ao sistema, reproduzir, melhorar, corrigir e completar as suas soluções”.
55. Assim, não pode nunca o sistema jurídico e judicial deixar permanecer uma situação de pleno incumprimento contratual, reconhecendo que a parte faltosa se encontra a retirar um benefício directo desse incumprimento, e aproveitando-se livremente de um alegado vício que a mesma conhecia e deixou acontecer para seu próprio proveito.
56. É, ainda, de trazer à colação o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 15.05.2014 [disponível em www.dgsi.pt] o qual explica que «Os efeitos da declaração de nulidade de um negócio jurídico por vício de forma podem ser afastados através do instituto do abuso de direito, impedindo-se designadamente a procedência do pedido deduzido - em acção intentada - de declaração judicial de nulidade do contrato; 2 - Todavia, para efeitos do referido em 1., carece porém o demandante de alegar e provar pertinente factualidade que revele e demonstre inequivocamente existir um quadro manifestamente excepcional, v,g, que a declaração de nulidade do negócio e os efeitos da mesma conduzem a uma clamorosa ofensa da Justiça, do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade.».
57. De verdade, a Recorrente acredita que se encontra provado que existe uma clamorosa ofensa da Justiça, através da imposição à Recorrente de uma posição prejudicial, em detrimento da manutenção do benefício à Recorrida, apesar do seu comprovado incumprimento.
58. Assim, a Recorrente está a ser sobrecarregada com a auto-responsabilização imposta, em total benefício da parte incumpridora, sem que esta seja igualmente responsabilizada pelo seu incumprimento provado pelo mesmo douto Tribunal a quo.
59. De igual modo concluem os Meritíssimos Juízes no Acórdão imediatamente supra indicado que «já no âmbito da jurisprudência pátria, temos para nós que, paulatinamente, se vem caminhando para o entendimento largamente maioritário, e praticamente unânime nos dias de hoje, no sentido de se admitir a possibilidade de o abuso do direito poder conduzir à validade do negócio não obstante a falta de forma exigida. (…) Já em 2009, o nosso mais Alto Tribunal, veio a decidir/ concluir que, ainda que na presença de uma nulidade absoluta, pode o promitente comprador “invocar com sucesso o abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) por estarmos diante de uma das circunstâncias excepcionais que justificam o afastamento do princípio da inalegabilidade das nulidades; (…) Este último entendimento, volta novamente a merecer a adesão do STJ em 2010 e em 2012, concluindo-se no primeiro que “Embora em casos excepcionais, é de admitir a relevância da invocação
do abuso de direito em negócios formais”, e, no segundo, que “se a invocação do abuso de direito não pode redundar, com subversão do escopo das exigências de forma, em mero instrumento de convalidação de negócios que a lei declara inválidos, os efeitos da invalidade por vício de forma podem, apesar disso, ser excluídos pelo abuso de direito, mas sempre em casos excepcionais ou de limite, a ponderar casuisticamente, em que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo”. Em suma, é para nós inquestionável que, ainda que com algumas reticências, não afasta o nosso mais Alto Tribunal a possibilidade de se poder lançar mão, em casos pontuais e verdadeiramente excepcionais [maxime quando a clamorosa injustiça que derivaria da declaração de nulidade se manifeste por um conjunto de factos que permitam concluir que o interessado nessa declaração gerou uma situação de confiança da qual é responsável, que o afastamento da declaração de nulidade não afecta os interesses de terceiros de boa fé e que o investimento de confiança é sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via], do “instituto” da inalegabilidade de nulidades formais com vista a lograr-se o afastamento das injustiças resultantes, em certos casos, da nulidade formal. Para tanto, na linha da letra do próprio art. 334.º do CC (que exige que o titular exceda manifestamente os limites impostos da boa fé, pelos bens costumes ou pelo fim social ou económico do direito).»
60. Ora, ainda que a situação em causa não se reconduza a uma nulidade, mas a uma inexistência (caso que somente se indica por mera cautela de patrocínio e não se aceita de todo conforme já supra explicitado), o certo é que os efeitos jurídicos da inexistência em nada se modificam com aqueles decorrentes da situação de uma nulidade: a invocação a todo o tempo, efeito retroactivo e restituição de tudo quanto prestado, pelo que sempre advogará a Recorrente de que igualmente este instituto deverá ser aplicado ao caso agora exposto.
61. Como tal, dúvidas não subsistem em como a conduta da Recorrida excede manifestamente os limites da boa-fé comercial, levando a Recorrente a querer na manutenção e cumprimento das cláusulas contratuais emergente do contrato de comissão de serviço e, posteriormente, aproveitando-se em benefício directo e contra legem de uma alegada nulidade formal.
62. Aliás, denote-se com especial cuidado que a Recorrida contratou o jogador em causa, beneficiou dos seus serviços nos jogos do clube, retirou benefício do mesmo, sem nunca ter liquidado o valor legal e contratualmente em dívida para com a Recorrente.
63. Ora, se esta situação, não consubstancia um caso expresso e real de Abuso de Direito, não sabe a Recorrente que outras situações o consubstanciarão!
64. Não podendo persistir e o sistema judicial permitir a manutenção de um situação de incumprimento contratual “legal”.
65. Por outro lado, caso o douto Tribunal ad quem não considere ser de aplicar o instituto do Abuso de Direito à situação de inexistência em causa – que, denote-se, não se aceita ser de aplicar ao caso em concreto pois o vício que subjaz à mesma não existe e, como tal, somente se expõe por mera cautela de patrocínio – sempre será de aplicar o instituto do enriquecimento sem causa.
66. Nesse sentido, denote-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 24.10.2013 [disponível em www.dgsi.pt], o qual indica que «III – A figura do abuso de direito não opera em matéria de invocação da inexistência jurídica. IV – Não prescinde, o enriquecimento sem causa, da demonstração de que à aquisição patrimonial do enriquecido correspondeu o empobrecimento de quem prestou sem causa jurídica. V – Tal empobrecimento não se verifica se não obstante a inexistência jurídica do negócio em cumprimento do qual foi efectuada a prestação ao enriquecido, o autor daquela viu o seu património acrescido por via da actividade correspectivamente desenvolvida por aquele.»
67. De facto, não é de aceitar a decisão do douto Tribunal a quo de que a Recorrente não alegou factos que permitissem aplicar o instituto do enriquecimento sem causa, desde logo porque esses factos sobressaem dos próprios factos dados como provados em Saneador-Sentença e efectivamente se encontra comprovado o benefício directo que a Recorrida obteve pela sua conduta ilícita.
68. Estipula o artigo 473.º CC que «1 - Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. 2 - A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».
69. Conforme bem explica Menezes Leitão [in O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, colecção Teses, Almedina, 2005, pág. 608] “para determinar a aplicação do instituto basta determinar os seguintes pressupostos: 1) a aquisição de um enriquecimento; 2) mediante a prestação de outrem; 3) sem causa justificativa”.
70. Quanto ao primeiro pressuposto, este consiste numa vantagem patrimonial obtida pelo enriquecido, i.e., numa valorização económica do património global do receptor.
In casu, essa vantagem consistiu na aquisição pela Recorrida do passe do jogador A..., contratando-o para jogar pelo clube - o que efectivamente aconteceu conforme facto dado como provado e cujos benefícios retirou.
71. Relativamente ao segundo pressuposto, esse requisito pretende é, nas palavras de Menezes Leitão, “reprimir o enriquecimento injustificado”, não tendo como exigência “o empobrecimento concomitante do outrem”.
72. Ora, não há dúvidas de que a Recorrida enriqueceu à custa dos serviços prestados pela Recorrente!
73. De facto, a Recorrida enriqueceu directamente o património do clube com a contratação do jogador, às custas do serviço prestado pela Recorrente, sem a consequente liquidação desse serviço.
74. Como tal, a Recorrida obteve um benefício/valoração económica directa sem qualquer contraprestação, sendo que o incremento patrimonial foi realizado – a saber, a contratação do jogador, termos em que se locupletou às custas da Recorrente.
75. Quanto ao terceiro requisito, o que está em causa é “o incremento consciente e finalisticamente orientado do património alheio, sendo a não realização do fim visado com esse incremento que determina a restituição. A realização ou não desse fim é verificada por referência a uma relação obrigacional, cuja execução se visou, mas que por qualquer razão não existe subjacente a essa prestação, não se verificando futuramente”.
76. O fim visado com o incremente era, para Recorrente, o pagamento do preço respectivo, cuja prestação não se realizou; porém, não existiu a razão subjacente a essa prestação, o pagamento do preço.
77. Dessa forma, não é de todo aceitável que o douto Tribunal recorrido entenda que não existem factos que permitam o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa, pois que os três pressupostos encontram-se, conforme supra mencionado, estritamente preenchidos através das atitudes adoptadas pelas partes.
78. Ademais, sendo certo que a Recorrida não pode restituir o que recebeu – neste caso, devolver o passe do jogador – é igualmente certo que a Recorrente tem direito à prestação que não se concretizou e respectiva indemnização, in casu, o valor legal e contratualmente estabelecido, acrescido dos respectivos juros comerciais à data em vigor, nos termos do artigo 479.º, n.º 1, in fine,
79. Pelo que, entende a Recorrente sempre ter direito ao valor peticionado nos presentes autos, pelo mesmo lhe ser legal e juridicamente devido pela Recorrida.
80. Deste modo, conclui-se que, na realidade, a Ex.ma Juíza a quo desprezou as razões de facto e direito expressas pela ora Recorrente.
81. Sendo que, ao se ter pronunciado da forma que vem exarada no douto Saneador-Sentença, ora em crise, a Mma. Juíza a quo fez uma errónea interpretação da lei, violando determinados dispositivos legais, pelo que a sua decisão deverá ser revogada, ordenando-se a sua substituição por outra que vise aplicar os fundamentos aqui expressa, fundada e exaustivamente alegados.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente
deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão ora impugnada e ordenando-se a substituição por outra que dê por não provados os factos constantes da douta sentença em crise, condenando a Recorrida, farão V. Ex.ªs a acostumada JUSTIÇA.

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A apelada contra-alegou defendendo a confirmação do julgado.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Questões a decidir:

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso pelo que as questões a decidir são estas:
-se o acordo escrito invocado na petição inicial não pode ser tido como um contrato inexistente;
-se a invocação da inexistência do contrato por parte da apelada configura abuso do direito, devendo por isso ser condenada no pagamento do preço estipulado pelos serviços prestados pela apelante;
-se, no caso de o tribunal entender não aplicar o instituto do abuso do direito, sempre será de aplicar o instituto do enriquecimento sem causa.

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Consigna-se que não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto, nem no corpo da alegação nem nas conclusões, não é de considerar como objecto do recurso o segmento em que a apelante após as conclusões, pugna pela substituição da sentença recorrida «por outra que dê por não provados os factos constantes da douta sentença em crise.»

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III – Fundamentação:

A) Na sentença recorrida vem dado como provado:

1. Em 4.07.2013 a Autora, na qualidade de “Segundo Outorgante” e representada por P... e a Ré, designado por “M... SAD” outorgaram um documento denominado “Contrato de Comissão de Serviço” do qual consta, entre outros elementos, o seguinte: “Considerando que a M... SAD assegurou no passado dia 25 de Junho de 2013 a contratação do jogador A..., reconhecendo a intermediação do Segundo Outorgante em tal acto… (…)
Clausula Primeira
Pela Intermediação efectuada pelo Segundo Outorgante, a M... SAD compromete-se a pagar àquele, o valor de 8.000,00 (oito mil eutros), acrescido de IVA, se aplicável”.
2.  No dia 25.06.2013, a R. assegurou a contratação do jogador A....
3. No dia 19.09.2013, foi enviada à Ré missiva solicitando o pagamento da quantia referida em 1., sendo indicado como credor “P...”.
4. Em 25.06.2013 e 04.07.2013, R... e C... eram as únicas sócias e gerentes da A. e a A. obrigava-se, nos termos do pacto social, com a intervenção de um gerente.
5. Está registada pela AP1/20130920, a cessão de funções como gerente de C...
6. Está registada pela AP 2/20130920, a designação de P... como gerente da A..
7. A R. não procedeu ao pagamento da quantia referida em 1.
8. P... teve licença da Federação Portuguesa de Futebol para o exercício da actividade de agente de jogadores desde 31.11.2009 a 24.09.2014.
9. Em 25.06.2013 e 04.07.2013, a A., R... e C... não estavam autorizadas/credenciadas para o exercício da actividade de empresário desportivo junto da Federação Portuguesa de Futebol e da Liga Portuguesa de Futebol.
10. Em 25.06.2013 e 04.07.2013, P... não estava autorizado/credenciado para o exercício da actividade de empresário desportivo junto da Liga Portuguesa de Futebol.

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B) O Direito:

Verifica-se que o documento 1 de fls.11/12, mencionado no ponto 1 dos factos provados, destinou-se a formalizar um acordo quanto à remuneração pelos serviços que já tinham sido prestados pela apelante à apelada e que consistiram na intermediação daquela para a contratação por esta, de um jogador de futebol.
Portanto, apesar desse escrito vir intitulado como «Contrato de Comissão de Serviço», o que está em causa é o exercício da actividade de empresário desportivo prevista na Lei nº 28/98 de 26/06, que estatui no art. 2º:

«Para efeitos do presente diploma entende-se por:
(…)
d) Empresário desportivo a pessoa singular ou colectiva que, estando devidamente credenciada, exerça a actividade de representação ou intermediação, ocasional ou permanente, mediante remuneração, na celebração de contratos desportivos;
(…)».

Por sua vez, o art. 22º dispõe:
«1– Só podem exercer actividade de empresário desportivo as pessoas singulares ou colectivas devidamente autorizadas pelas entidades desportivas, nacionais ou internacionais, competentes.
2– A pessoa que exerça a actividade de empresário desportivo só pode agir em nome e por conta de uma das partes da relação contratual.».

E o art. 23º determina:
«1– Sem prejuízo do disposto no número anterior, os empresários desportivos que pretendam exercer a actividade de intermediários na contratação de praticantes desportivos devem registar-se como tal junto da federação desportiva da respectiva modalidade, que para este efeito, deve dispor de um registo organizado e actualizado.
3– Nas federações desportivas onde existam competições de carácter profissional o registo a que se refere o número anterior será igualmente efectuado junto da respectiva liga.
3– O registo a que se refere o número anterior é constituído por um modelo de identificação do empresário, cujas características serão definidas por regulamento federativo.
4– Os contratos de mandato celebrados com empresários desportivos que se não encontrem inscritos no registo referido no presente artigo, bem como as cláusulas contratuais que prevejam a respectiva remuneração pela prestação desses serviços, são considerados inexistentes».

Resulta deste diploma legal que os empresários desportivos que pretendam exercer a actividade de intermediação na contratação de um jogador de futebol estão obrigados a registar-se junto da Federação Portuguesa de Futebol e da Liga Portuguesa de Futebol.

Ora,estando provado que a apelante não estava autorizada/credenciada para o exercício da actividade de empresária desportiva junto dessas entidades, não tem razão ao sustentar que o contrato foi firmado com um empresário devidamente habilitado para o efeito pelo facto de P... ter tido licença da Federação Portuguesa de Futebol para o exercício da actividade de agente de jogadores desde 31/11/2009 a 24/09/2014.
Na verdade, P... não é outorgante no contrato, pois nele intervém tão só em representação da outorgante O... Lda, ora apelante, e é esta que se arroga o direito à remuneração.

Portanto, o acordo formalizado no doc. 1 de fls. 11/12 foi celebrado contra disposição legal imperativa que o sanciona com o vício da inexistência.

Sobre a inexistência jurídica e a sua distinção relativamente à invalidade, explica Inocêncio Galvão Teles:
«(…)

b) A inexistência jurídica de um acto supõe que este não se molda ao tipo legal em que pretende integrar-se, porque não se ajusta à sua natureza tal como a lei a define ou modela, mas também não se enquadra em qualquer outro tipo legal, nem pode valer como acto atípico.
(…)

Para compreender bem a ideia de inexistência jurídica é preciso confrontá-la com a de nulidade. O negócio nulo (nulo desde a origem ou tornado nulo em consequência da sua anulabilidade) não produz, em princípio, efeitos. Mas não está necessariamente privado de toda a eficácia, mesmo que o vício o afecte na sua integralidade. O negócio, apesar de nulo, pode eventualmente gerar algum ou alguns efeitos, de natureza secundária u marginal. (…)
(…)

a) A invalidade supõe que o acto existe material e juridicamente mas padece de um defeito ou vício de formação que o priva de eficácia ou torna precária essa eficácia.». (in Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Actualizado, 4ª ed, 2002, pág. 355 a 357).

Em consequência, a estipulação da remuneração pelos serviços de intermediação prestados pela apelante tem de ser considerada inexistente.

Mas, diz a apelante, a invocação da inexistência do contrato, configura abuso do direito porque a apelada pretende retirar um proveito próprio do vício depois de ter criado a confiança de que pagaria o preço pelos serviços prestados e de beneficiar dos serviços do jogador.

Porém, não decorre dos factos provados que a apelada recorreu aos serviços de intermediação da apelante sabendo que esta não reunia as condições legalmente exigidas para o exercício dessa actividade e com o propósito de vir a valer-se do vício do contrato para não pagar a remuneração acordada.

Assim, não se mostra que a invocação do vício de inexistência jurídica do contrato ofenda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, pelo que a defesa da apelada não se integra na figura do abuso do direito prevista no art. 334º do Código Civil.

Apreciemos então se deve ser accionado o instituto do enriquecimento sem causa previsto nos art. 473º a 482º do Código Civil.

Como princípio geral, estabelece o art. 473º:
«1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».

E nº 1 do art. 479º diz-nos que «A obrigação de restituir fundada no enriquecimento em causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente».

Portanto, a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição (neste sentido, cfr Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, vol I, 4ª ed, pág. 456).

Ora, dos factos alegados e provados não decorre que a apelante pretenda ver restituído ao seu património quantia que tenha despendido para prestar os seus serviços, mas sim, obter a remuneração que foi acordada. Isto é, sob a invocação do instituto o enriquecimento sem causa, visa a apelante atingir o mesmo objectivo que alcançaria se o contrato fosse válido.

É certo que a apelante sustenta que a apelada logrou alcançar uma vantagem patrimonial ao adquirir o passe do jogador porque o contratou à custa dos seus serviços. Mas, não tendo sido alegado sequer que o passe do jogador pertencia à apelante, não se mostra que tenha sido à custa do seu património que a apelada obteve o enriquecimento correspondente ao valor – que aliás se desconhece nos presentes autos - desse passe.

Em suma, não estando provado que a apelada viu o seu património enriquecido à custa do património da apelante, não tem fundamento a invocação do instituto do enriquecimento sem causa, pois através deste o que se visa é eliminar o enriquecimento de alguém à custa do património de outrem.

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IV – Decisão:

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.


Lisboa, 22 de Outubro de 2015


Anabela Calafate                                  
Regina Almeida                                  
Maria Manuela Gomes
Decisão Texto Integral: