Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9461/23.9T8SNT-B.L1-1
Relator: SUSANA SANTOS SILVA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O art.º 186º, n.º1 do CIRE fixa uma noção geral de insolvência culposa, declarando, genericamente, que a insolvência é culposa “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
II - Para auxiliar a tarefa probatória, estabelece nos seus nºs 2 e 3 um conjunto de presunções que assumem caráter taxativo, consagrando o denominado duplo sistema de presunções legais, sendo que o nº 2 da referida norma contém um elenco de presunções juris et de jure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente; por seu turno, no nº 3 consagra-se um conjunto de presunções juris tantum de culpa grave desses administradores.
III - O incumprimento do dever de apresentação e colaboração previsto na alínea i) do art. 186º do CIRE deve ser reiterado. Uma vez verificada a reiteração, a insolvência é sempre qualificada como culposa.
IV - No n.º3 do art.º 186º do CIRE é estabelecida uma presunção de culpa reportada, unicamente, a um dos pressupostos daquela qualificação, a culpa. Para se concluir depois pela efetiva insolvência culposa, por violação do dever de requerer a insolvência, nos termos da alínea a) daquele n.º3, é necessária a demonstração do nexo de causalidade entre este facto (de não requerer atempadamente a insolvência), e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
V - Conjugando o teor das al.s a) e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º, deve considerar-se acolhido no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada atendendo às circunstâncias do caso (o que está provado no processo e o que levou à qualificação), que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude das pessoas afetadas (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência), sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização.
Decisão Texto Parcial:Acordão no Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Por sentença proferida em 11/10/2023, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade “AA”– LDA.
O Sr. Administrador da Insolvência apresentou parecer a que se refere o art.º 188.º, n.º 1 do CIRE, para efeito de qualificação da insolvência, concluindo pela sua qualificação como culposa, com afetação dos sócios gerentes “B” e “C”, enquanto gerentes, respetivamente, de facto e de direito da insolvente.
Suportou tal conclusão nos seguintes pressupostos:
- incumprimento por parte da requerida e dos seus gerentes dos deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º do CIRE.
- a não apresentação/depósito das contas anuais.
- o incumprimento da obrigação em se apresentar à insolvência.
Por despacho de 15.01.2024 foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência.
O Ministério Público apresentou parecer, concordando na íntegra com o parecer do Sr. Administrador de Insolvência, no sentido de qualificar a insolvência de “AA”, Lda. como culposa, atendendo à prova indicada, devendo ser afetados por tal qualificação “B” e “C”.
Notificada a devedora insolvente e pessoalmente citados os seus gerentes, vieram os mesmos deduzir oposição ao incidente, alegando, em síntese, que:
- A Requerida “C” é gerente de Direito, não sendo gerente de facto da Insolvente.
- Nunca tendo praticado atos de direção, gestão ou que integrassem as suas funções como Gerente;
- A função de Gerente foi exercida pelo Requerido “B” desde a constituição da Insolvente, até março de 2022, data em que as funções de gerência de facto passaram a ser exercidas por “D”, atual gerente de facto e de direito da Insolvente;
- Em novembro / dezembro de 2021, iniciou-se um litígio entre a Insolvente e os senhorios da sede da Insolvente, pelo não cumprimento de obrigações pelos senhorios do contrato de arrendamento;
- A Insolvente acabou por encerrar atividade em dezembro de 2021, tendo liquidado a grande maioria das suas dívidas até então;
- Nessa altura e na sequência do mesmo, o Requerido “B” solicitou repetidamente à Contabilista Certificada da Insolvente que cuidasse da formalização contabilística do encerramento de atividade, bem como da aprovação das contas anuais;
- Em março de 2022, “D” passou a gerir, de facto, a Insolvente, tendo em vista retomar a sua atividade, desde que fosse possível pôr fim ao litígio com os senhorios da Insolvente;
- A cessão de quotas e gerência só veio a materializar-se com efeitos reportados ao Verão de 2023;
- Seja como for, o Requerido “B” sempre procurou e diligenciou pela aprovação das contas anuais.
Não foi deduzida qualquer oposição pela requerida insolvente.
Com data de 10.05.2024, foi proferido despacho saneador que certificou a validade e regularidade da instância, fixou o valor do incidente, definiu o objeto do litígio, enunciou os temas da prova e apreciou os requerimentos probatórios.
Realizou-se audiência de julgamento, na sequência da qual, em 3.11.2024, foi proferida sentença, cujo dispositivo tem o seguinte teor:
«Em face do exposto, decide-se:
a) Qualificar como culposa a insolvência de “AA”- LDA.”, sociedade por quotas, pessoa coletiva nº (…), com sede (…);
b) Declarar os sócios gerentes da insolvente, “B” e “C” afetados pela qualificação da insolvência como culposa, na medida em que são os seus responsáveis;
c) Declarar “B” e “C” inibidos da administração do património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 2 (dois) anos;
e) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a massa insolvente, que “B” e “C” detenham sobre a sociedade insolvente;
f) Condenar “B” e “C” a indemnizarem os credores da devedora insolvente reconhecidos em sede de reclamação de créditos no montante de € 28 611,98 (cem mil euros) até às forças do respetivo património, sendo solidária a sua responsabilidade;
h) Condenar os requeridos no pagamento das custas do presente incidente, fixando-se a taxa de justiça em 2UC´s – art 527º, do CPC.»
Inconformados com a decisão proferida, vieram os requeridos “B” e “C” interpor recurso de apelação, que finaliza com as seguintes conclusões que se reproduzem:
1. Gerência de Direito de “C”. Em termos simples, a Recorrente “C” não exerceu qualquer função como gerente de facto na Sociedade, conforme devidamente explanado e alegado na Oposição, como resultou da prova documental e testemunhal produzida nos autos.
2. A Recorrente especificamente mencionou que não praticou nenhum ato de gerência tal como assinar cheques, efetuar pagamentos, cumprir obrigações legais ou outros próprios ou semelhantes, o que foi confirmado pelo Recorrente ”B”.
3. Não resultou provado que a Recorrente “C” tenha praticado um único ato de gerência, quanto mais, ter minimamente contribuído para a situação geral da Sociedade e respetiva declaração de insolvência, confiando em “B” na normal gestão da Sociedade.
4. Com efeito, a sentença é integralmente omissa ao debruçar-se sobre a matéria. Com efeito, nenhum facto dado como provado demonstra a culpabilidade específica da Recorrente “C”.
5. Como referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 16.05.2023, relativo ao processo n.º 2365/21.3T8STS-B.PI menciona “em sede de incidente de qualificação de insolvência de sociedade comercial, para que outrem que não o gerente de direito possa ser declarado como afetado pela insolvência culposa, necessário é que resulte demonstrada a respetiva qualidade de gerente de facto. Uma certa atuação do marido da gerente de direito, por conta e no interesse da sociedade insolvente, traduzida nomeadamente na formalização de encomendas a um credor, assim como na receção dos produtos encomendados, e mesmo em conversações no âmbito de diligências destinadas a acordar no pagamento de dívida ao mesmo credor, num quadro em que a gerente de direito também assume presença ativa na vida da empresa, apresenta-se consentânea com a qualidade de auxiliar ou assessor, não sendo bastante para afirmar a qualidade de gerente de facto.”
6. O quadro apresentado é, objetivamente, inferior ao que resultou do depoimento das testemunhas sendo certo que, neste quadro concreto, a falta de resposta da Recorrente “C” às comunicações do Administrador Judicial estão alinhadas com a confiança que esta depositou no Recorrente “B” quanto à gestão normal da Sociedade.
7. Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), é nula a sentença que o Juiz não se pronunciou sobre questões que devesse apreciar, pelo que há nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à verificação se a Recorrente “C” era gerente de facto da Sociedade.
8. Adicionalmente, mesmo que assim não se entenda e por mera cautela de patrocínio, não se verifica provado um único facto imputável à Recorrente ”C”, pelo que, assim sendo, deverá ser a sentença revogada por outra que reconheça a ausência de qualquer culpa desta na insolvência da Sociedade.
9. Da falta de culpa de “B”. A sentença limita-se a remeter para a prova documental apresentada nos autos pelo Administrador Judicial e declarar irrelevante o conteúdo das declarações parte tomadas pelas testemunhas, sendo que o Tribunal não especifica com que motivação declarou como provado cada um dos factos.
10. Em termos objetivos, o Tribunal só declara que “Da análise critica e conjunta da prova produzida resulta evidente um total e indevido alheamento/falta de atuação dos requeridos face à situação de insolvência declarada”. Que prova? Que elementos? Que documentos? Desconhece-se.
11. Inexistiu evidências de condutas praticadas pelo gerente “B” para a situação da sociedade.
12. O único facto que lhe foi alegadamente imputado foi a omissão na prestação de contas da Sociedade. Porém, como foi repetidamente alegado, foi entregue toda a documentação contabilística da Sociedade à (…), mais concretamente, à (..).
13. Era esta, técnica e juridicamente, a responsável por assegurar o cumprimento das obrigações legais em matéria de contabilidade, designadamente, apresentação de declarações de imposto e apresentação das contas anuais.
14. O Recorrente “B” solicitava-lhe regularmente informações e o cumprimento das obrigações legais a que esta estava adstrita, como decorreu claramente do alegado na Oposição Judicial e no depoimento de Parte.
15. Destarte, após encerrar a atividade sem dívidas a terceiros, o Recorrente “B” reiterou por diversas vezes, junto da sua contabilista, que a mesma agisse em conformidade, nomeadamente, pelo encerramento de atividade e, bem assim, da aprovação das contas anuais.
16. O Tribunal fundamentou uma decisão muito severa, que destrói a atividade profissional dos dois Recorrentes e objetivamente coloca-os numa situação de desemprego, além de uma indemnização que os coloca a eles próprios numa provável situação de insolvência, com base num único elemento: a não apresentação de contas. Sendo certo que a apresentação de contas é um facto que carece, obrigatoriamente, de ser apresentado por um contabilista certificado.
17. Inexistem factos dados como provados que imputem um juízo de censura ou desvalor jurídico ao Recorrente “B”.
18. Como se encontra alicerçado na Jurisprudência, designadamente, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no processo n.º 2273/10.1TBLRA-B.C1: “A qualificação da insolvência como culposa reclama, portanto, uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores. A ilicitude do comportamento do devedor ou dos seus administradores reparte-se por elementos objectivos e subjectivos. A culpa do devedor ou dos seus administradores decorre de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura. A censurabilidade da conduta é uma apreciação de desvalor que resulta do reconhecimento de que o devedor, ou os seus administradores, nas circunstâncias concretas em que actuaram, podiam ter conformado a sua conduta de molde a evitar a queda do primeiro na situação de insolvência ou agravamento do estado correspondente. A censurabilidade do comportamento do devedor ou dos seus administradores é um juízo feito pelo tribunal sobre a atitude ou motivação de um e de outros, segundo o que pode ser deduzido dos factos provados.”
19. Nenhum destes juízos foi feito pelo Tribunal a quo.
20. Assim, em primeiro lugar, deverá considerar-se nula a sentença na medida em que não especificou os factos de facto e direito que suscitaram a conclusão de que a insolvência se verificou culposa, ou seja, que factos específicos imputáveis ao Recorrente “B” constituíram uma ação que levou à insolvência da Sociedade e, aliás, face à factualidade provada, que documentos, elementos, provas e depoimentos levaram à formação da factualidade dada como provada, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
21. Adicionalmente, mas sem conceder, não se verificam verificados os pressupostos ínsitos no artigo 186.º do CIRE e, em particular, não se verificando a correta interpretação dos factos, nem da aplicação da Lei ao caso concreto.
22. Existindo, notoriamente, uma falha grave na aplicação de uma sanção muitíssimo grave num quadro de notória falta de factos que permitissem suscitar comportamentos específicos de culpabilidade.
23. O que levaria, por isso, à revogação da sentença proferida e ao proferimento de sentença que declare que os sócios gerentes da insolvente não foram responsáveis pela insolvência da sociedade e, por isso, não serem declarados inibidos da administração de património.
24. Sem conceder, mas por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que, face à manifesta falta de culpa do Recorrente “B” e aos demais alegado supra, de que estão reunidos os pressupostos para a redução do período de inibição de cargos para 6 (seis) meses.
25. Da desproporcionalidade de indemnização. Por fim, o Tribunal fixou o valor equivalente a 50% dos créditos reconhecidos (€ 28.611,98) o valor da indemnização a pagar pelos requeridos, que ficam solidariamente responsáveis pelas mesmas, considerando as forças dos respetivos patrimónios.
26. O valor da indemnização decorreu, única e exclusivamente, de um juízo dito por “adequado e proporcional”. Inexiste, em absoluto, um elo de ligação entre os factos dados como provados pelos Recorrentes e a efetiva culpabilidade na situação de insolvência da Sociedade.
27. É uma indemnização puramente arbitrária, tanto mais que não foi dado como provado um único prejuízo especificamente causado por algum comportamento dos Recorrentes. A própria sentença, nas parcas frases que dedicou ao caso concreto, limita-se a mencionar a omissão na prestação de contas, facto que, objetivamente, dependia da efetiva execução do serviço pela contabilista certificada.
28. Face ao exposto, consideram-se não verificados os pressupostos para a indemnização que, no caso concreto, pelo seu valor manifestamente excessivo e desproporcional, têm como consequência direta colocar os Recorrentes numa situação financeira catastrófica. Pelo que, em caso de improcedência dos argumentos supra alegados, se deverá reduzir a indemnização para um valor adequado, que se julga ser de € 5.000,00 (cinco mil euros).
Dos autos não consta que tenham sido apresentadas contra alegações.
O recurso foi admitido, após o que os autos subiram a este Tribunal da Relação, onde foram colhidos os vistos legais.
II. Objeto do Recurso:
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
As questões decidendas são as seguintes:
I. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à verificação se a Recorrente “C” era gerente de facto da Sociedade.
II. Nulidade da sentença por falta de fundamentação dos pressupostos de facto e de direito relativos à conclusão da insolvência culposa relativo ao recorrente “B”.
Na improcedência das nulidades arguidas:
III. Verificação dos pressupostos de qualificação da insolvência como culposa e em caso afirmativo, aferir se o período de inibição e a indemnização aos credores fixados na sentença são excessivos, devendo ser reduzidos.
III. Fundamentação
De Facto
A factualidade relevante para a decisão é a que foi dada da sentença recorrida nos termos que seguem infra, consignando-se que em face do consagrado no art.º 662.º n.º 1 do CPC, nada nos autos implica uma alteração da decisão de facto nos termos consagrados na sentença recorrida, nem o recorrente nada invocou que tal o permitisse, ou o justificasse, não existindo documentos que suportem decisão diversa.
1. “AA”, LDA, é uma sociedade comercial por quotas, com sede (…).
2. Em 05.06.2023 a sociedade comercial “(…), Lda.” requereu a declaração de insolvência de “AA”, Lda.”;
3. A insolvência foi decretada em 11.10.2023, com prévia dispensa de audição da requerida, por terem resultado frustradas as tentativas iniciais de citação.
4. A insolvente iniciou a sua atividade em 17 de novembro de 2020, tendo por objeto social; padaria, pastelaria, fabrico e comércio por grosso e retalho de pão, bolos e salgados. Restauração do tipo tradicional, snack-bar, com lugares ao balcão e serviço de take away. Fornecimento de refeições para eventos e outras atividades de serviços de refeições, tais como, fornecimento de refeições para cantinas de empresas, estabelecimentos públicos e escolares e mesas militares, entre outras.
5. De acordo com os elementos constantes do registo comercial à data de declaração da insolvência o capital social atual da “AA”, LDA, era de € 1.000,00 e encontrava-se repartido por 2 quotas: uma no montante de 800,00 €, titulada por ”B”; outra, no montante de 200,00 €, titulada por “C”.
6. A gerência da sociedade encontrava-se atribuída àqueles dois sócios.
7. A sociedade foi declarada insolvente, por sentença proferida a 11-10-2023.
8. A sociedade nunca procedeu ao depósito das contas anuais na conservatória do registo comercial.
9. A declaração da insolvência foi requerida pela sociedade “(…)”, LDA, com base em fornecimento de matérias primas (farinha), à Devedora, no valor global de 4.134,00 €, cuja constituição final do crédito, remonta a 25/04/2022.
10. Das reclamações de créditos recebidas no âmbito dos presentes autos, consta que a sociedade detém dividas para com a Segurança Social, no montante global 3.207,88 €, a qual foi constituída entre janeiro/21 e junho de 2021.
11. Das reclamações de créditos, resulta ainda, que a sociedade tem uma divida para com a Estado, no valor global de 7.430,54 €, a qual resulta de IVA não entregue nos cofres do Estado, e que se refere aos seguintes períodos de tributação; 3.º e 4.º trimestre de 2021 e ainda, aos 1.º, 2.º e 3.º trimestres de 2022.
10. Por email remetido pelo AI em 04.12.2023 e também por cartas registadas, foi solicitado aos requeridos “B” e “C” a entrega dos seguintes elementos: Relação de todos os credores; identificação de ações/execuções pendentes; documento contendo a explicitação da atividade; Relação de bens; Contas anuais relativas aos 3 últimos exercícios e respetivos relatórios de gestão, pareceres e documentos de certificação legal de contas; Mapa de pessoal; contrato de cessão de quotas e extrato comprovativo do respetivo movimento financeiro;
12. Apesar de receberam as referidas missivas, os requeridos não disponibilizaram os elementos pretendidos.
13. Os requeridos não diligenciaram pela apresentação/ depósito das contas anuais da sociedade na respetiva conservatória do registo comercial.
14. A totalidade de créditos reclamados e reconhecidos perfez a quantia total de € 57.223,96.
15. O processo de insolvência foi encerrado com fundamento na insuficiência de bens suscetíveis de integrarem a massa insolvente, nos termos do disposto nos art.ºs 230º, n.º 1, al. d) e 232º, n.º 2, do CIRE.
16. Em 19.10.2023 foi registada na CRC a cessação de funções de gerente dos requeridos e ainda a transmissão das suas quotas a favor de “D”.
Factos não provados:
Com interesse, não se provou que:
a) A função de Gerente foi exercida pelo Requerido “B” desde a constituição da Insolvente, até março de 2022, data em que as funções de gerência de facto passaram a ser exercidas por “D”;
b) A Insolvente acabou por encerrar atividade em dezembro de 2021, tendo liquidado a grande maioria das suas dívidas até então;
c) Nessa altura e na sequência do mesmo, o Requerido “B” solicitou repetidamente à Contabilista Certificada da Insolvente que cuidasse da formalização contabilística do encerramento de atividade, bem como da aprovação das contas anuais;
d) O Requerido “B” sempre procurou e diligenciou pela aprovação das contas anuais.
I. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à verificação se a Recorrente “C” era gerente de facto da Sociedade.
Considera o recorrente ser a sentença nula nos termos previstos pelo artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC por omissão de pronuncia relativa à matéria de facto alegada pela recorrente “C” quanto à gerência de facto da sociedade insolvente, nenhum facto tendo sido dado como provado que demonstre a culpabilidade específica da Recorrente “C”.
O Tribunal recorrido não se pronunciou quanto à invocada nulidade, como o impõe o artigo 617.º, n.º 1, do CPC.
Não obstante, considera-se não ser indispensável mandar baixar o processo para esse efeito (como previsto no n.º 5 do referido preceito), razão pela qual das mesmas se conhecerá desde já.
Dispõe o artigo 615.º, n.º 1 que a sentença é nula quando: a) não contenha a assinatura do juiz, b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, e) condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Como se disse, invoca o recorrente a nulidade prevista na al. d), nos termos da qual é nula a sentença quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta concreta causa de nulidade consiste no facto de a decisão não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer.
É posição pacífica na doutrina (cf. entre muitos Alberto dos Reis, in CPC Anotado, V, pág.143, Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, , 2ª edição pág. 690) a que vai no sentido de relacionar este vício da sentença com o dispositivo do art.º 608º do CPC, designadamente, com o seu nº 2, havendo, assim, de, por ele, ser integrado. Deste modo, a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não ter tido aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
Porém, não é qualquer omissão de pronúncia que conduz à nulidade da sentença. Essa omissão só será, para estes efeitos, relevante quando se verifique a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias quanto às quais a lei imponha que sejam conhecidas e sobre as quais o juiz deva tomar posição expressa. Essas questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal (cf. n.º 2 do artigo 608.º do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
Esta nulidade está, pois, correlacionada com a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC, que dispõe: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;…”
Desta forma, a omissão de pronúncia é um vício gerador de nulidade da decisão judicial que ocorre quando o tribunal não se pronuncia sobre questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer motivo ou argumento aduzido pelas partes. A pronúncia cuja omissão releva incide, assim, sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objeto que é submetido à cognição do tribunal, correspondendo aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir (ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir) e não aos motivos ou às razões alegadas. Não padece, por isso, de nulidade por omissão de pronúncia a sentença ou o despacho na qual o tribunal não responda, um a um, a todos os argumentos das partes ou que não aprecie questões com conhecimento prejudicado pela solução dada a anterior questão.
Aqui chegados, vejamos então se a decisão recorrida enferma ou não do apontado vício, ou seja, se deixou se pronunciar sobre qualquer questão de que não pudesse deixar de conhecer, como pretende a recorrente.
Relativamente ao alegado pela apelante na oposição consta da matéria de facto dada como provada que: “5. De acordo com os elementos constantes do registo comercial à data de declaração da insolvência o capital social atual da ”AA”, LDA, era de € 1.000,00 e encontrava-se repartido por 2 quotas: uma no montante de 800,00 €, titulada por “B”; outra, no montante de 200,00 €, titulada por “C” e que “6. A gerência da sociedade encontrava-se atribuída àqueles dois sócios.”
Na oposição os apelantes haviam alegado que: A Requerida “C” é gerente de Direito, não sendo gerente de facto da Insolvente, que nunca praticou atos de direção, gestão ou que integrassem as suas funções como Gerente e que a função de Gerente foi exercida pelo Requerido “B” desde a constituição da Insolvente, até Março de 2022, data em que as funções de gerência de facto passaram a ser exercidas por “D”, atual gerente de facto e de Direito da Insolvente.
Consta da matéria de facto não provada que “a) A função de Gerente foi exercida pelo Requerido “B” desde a constituição da Insolvente, até março de 2022, data em que as funções de gerência de facto passaram a ser exercidas por “D”.”
Ou seja, ao contrário do que vem defendido pelos apelantes, o Tribunal a quo pronunciou-se, expressamente, quanto à factualidade alegada na oposição e que era relativa à exclusiva gerência de facto pelo apelante “B”, dela excluindo a apelante “C”.
Ademais, relativamente ao invocado pela apelante, consta da sentença recorrida que: “Convém igualmente ter presente que, se para atingir pela qualificação as pessoas que atuem como gerentes de facto é necessário a prova da factualidade inerente a esse exercício efetivo da gerência, já nas situações dos gerentes de direito a circunstância de não exercerem os poderes/deveres de gerência não os desresponsabiliza das consequências da atuação indevida da pessoa coletiva (mormente quando sobre eles recai o dever legal de obstarem à prática de atos lesivos, como o sejam a dissipação ou ocultação do património societário), para cujo órgão de administração foram nomeados e voluntariamente aceitaram.// Conforme se diz no Ac. do TRP, de 27.10.2020, proferido no proc. n.º 1139/19.4T8AMT-B.P1, disponível na internet, no sítio jurisprudência.pt ., “A previsão do artº 186º nºs 1 e 2 CIRE não visou excluir os administradores de direito, que o não sejam de facto, mas, inversamente, estender a qualificação a actos praticados por administradores de facto.” Vide ainda sobre esta questão o Ac. do TRC, de 22.11.2016, in CJ, tomo V/2016, pág. 23 e ss.”
Do referido retira-se que, segundo o entendimento do tribunal recorrido, sendo a recorrente gerente de direito da sociedade insolvente, o invocado facto de apenas o ser “de direito” (não assumindo as funções de facto da gerência) não a exclui da qualificação da insolvência como culposa como parece ser o seu entendimento. Considerando o que acima foi transcrito e tendo presente que a nulidade da sentença com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras), como resulta da sentença e do excerto que supra se transcreveu, contrariamente ao invocado pela apelante, o tribunal a quo pronunciou-se expressamente sobre a questão por si suscitada, não ocorrendo, por isso, qualquer nulidade por omissão de pronuncia.
O Mmº Juiz a quo pronunciou-se sobre o exercício da gerência pela apelante, e analisou-o quanto ao caso concreto em face dos factos que deu como provados.
Se o decidido foi ou não o mais acertado será já outra questão, mas que não se confunde com o vício apontado pelo apelante (a nulidade da decisão traduz um vício intrínseco da mesma, que em nada se confunde, como já mencionamos, com qualquer eventual erro de julgamento).
Improcede, nesta parte, a pretensão da apelante.
II.
O mesmo se tem que concluir relativamente ao suscitado, pelos mesmos fundamentos, pelo apelante “B”.
Diz o apelante que a sentença é nula nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, na medida em que não especificou os factos específicos imputáveis ao recorrente “B” que constituíram uma ação que levou à insolvência da sociedade e que, face à factualidade provada, que documentos, elementos, provas e depoimentos levaram à formação da factualidade dada como provada.
Também quanto a esta nulidade, não se pronunciou o Tribunal recorrido, como o impõe o artigo 617.º, n.º 1, do CPC.
Não obstante, do mesmo modo, neste caso, considera-se não ser indispensável mandar baixar o processo para esse efeito (como previsto no n.º 5 do referido preceito), razão pela qual da mesma também se conhecerá.
A al. b), do nº 1, do art.º 615.º do CPC, dispõe que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o disposto no art.º 607.º, nº 3 do Código do Processo Civil, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
A este propósito refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/03/2021, processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, relatora Leonor Cruz Rodrigues, disponível em dgsi.pt que: “Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual - nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma - ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.”.
Acresce que, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.”.
Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22/01/2019, processo n.º 19/14.4T8VVD.G1.S1, relator Oliveira Abreu, se conclui em termos idênticos: “1. A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.”
Ou seja, só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão, quando exista uma falta absoluta de fundamentação, ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial (cf. ainda neste sentido os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 23/05/2024, processo n.º 754/19.0T8VNG-C.P1, relatora Manuela Machado, de 26/09/2024, processo n.º 1139/22.7T8VFR.P1, relatora Isabel Ferreira).
Não é claramente o que ocorre no caso, porquanto o Mmº juiz a quo expôs, ao referir, em sede de motivação de facto, que - “A factualidade provada resultou da conjugação dos documentos juntos aos autos, designadamente, o parecer apresentado pelo AI, os documentos que instruem, o teor da sentença, do relatório previsto no art. 155º, do CIRE, o registo de matricula, a lista de credores reconhecidos e do despacho de encerramento que se encontram no processo principal”, e que: “Os requeridos prestaram declarações, mas do teor das mesmas apenas resultou a defesa da respetiva desresponsabilização, colocando a culpa pelo sucedido em terceiros, o que não logrou convencer, em face dos demais elementos objetivos constantes dos autos e que contrariam os relatos apresentados. Da análise critica e conjunta da prova produzida resulta evidente um total e indevido alheamento/falta de atuação dos requeridos face à situação de insolvência declarada”, ainda que de forma sucinta, quais os elementos que teve em consideração para fundar a sua convicção quanto à factualidade dada como provada e não provada na sentença recorrida.
Quanto à motivação da matéria de facto, refere Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, pág. 348 que “o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”. O que se pretende, em suma, é que o destinatário perceba as razões de facto e de direito que levaram à decisão.
Quanto ao que se deve entender como absoluta falta de fundamentação quanto à fundamentação de facto, tem a jurisprudência entendido que “no atual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório” (cf. os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08/02/2021, proc. 3841/18.9T8MAI-A.P1, relator Carlos Gil e o já citado Acórdão de 23/05/2024, proc. 754/19.0T8VNG-C.P1).
Ao contrário, quando essa motivação foi deficiente ou incompleta ou mesmo errada, já integrará o vício de erro de julgamento de facto, a ser sindicado em sede de impugnação da matéria de facto (neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/12/2021, proc. 8513/09.2YYLSB-B.L2-7, relatora Ana Rodrigues da Silva e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 03/03/2016, proc. 130/14.1T8VRL.G1, relatora Isabel Silva e de 05/11/2011, proc. n.º 2480/18.9T8VRL.G1, relatora Vera Sottomayor).
Em conclusão, a deficiente fundamentação de facto, seja ao nível da enumeração dos factos provados e não provados, seja ao nível da motivação da convicção do tribunal (incluindo a análise crítica da prova), não é causa de nulidade da sentença, mas pode ser fundamento para impugnação da matéria de facto, invocando-se erro de julgamento. Já a falta absoluta de fundamentação (ou em termos tais que não permita a perceção das razões de facto da decisão), seja quanto à enumeração dos factos provados e não provados, é causa de nulidade da sentença, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. b), do CPC.
No caso concreto, o recorrente invoca a nulidade por falta absoluta de fundamentação por ausência de fundamentação da matéria de facto e de direito (conclusões 10, 12 e 20), mas nas conclusões 11, 12, segunda parte, e 13 a 15 alude a uma situação de vício da decisão quanto à análise crítica da prova.
Ora, ao pretender fundamentar a nulidade da sentença com fundamento na al. b) - falta de fundamentação de facto -, o recorrente suscitou duas questões distintas. A primeira relativa à falta de motivação ao dizer que: “Em termos objetivos, o Tribunal só declara que “Da análise critica e conjunta da prova produzida resulta evidente um total e indevido alheamento/falta de atuação dos requeridos face à situação de insolvência declarada”. Que prova? Que elementos? Que documentos? Desconhece-se.” (conclusão 10).
Ora, a falta de motivação não corresponde à falta de fundamentos de facto. Esta última é a que constitui o fundamento de nulidade prevista na al. b) do n.º1 do art.º 615º do CPC. Já a falta de motivação constitui irregularidade que tem apenas como efeito o previsto pelo art.º 662º, nº 2, al. c) do CPC, ou seja, a devolução dos autos à 1ª instância para que o tribunal recorrido supra a falta ou deficiente fundamentação (se e apenas quando da leitura da sentença e dos elementos de prova disponíveis nos autos a Relação não consiga alcançar quais os meios de prova ou raciocínios lógicos indutivos realizados pelo tribunal para chegar ao resultado de facto que descreveu na sentença relativamente a um ou mais factos, e desde que relevantes ao mérito da causa/do recurso).
Apenas na alegação de que "O único facto imputado aos Recorrentes, em particular, ao Recorrente “B” foi a falta de apresentação do depósito das contas (conclusão 12) e que “A inteira sentença é omissa na imputação de um único facto mediante o qual o Recorrente “B” contribuiu, de alguma maneira, para a situação de insolvência da Sociedade." (conclusão 20) é que os apelantes imputam o vício da falta de fundamentação de facto, falta que se restringe aos factos concretizadores dos pressupostos das normas/fundamentos de direito da decisão (que ocorre quando na aplicação do direito a sentença invoca ou pressupõe como existentes factos que não constam dos factos provados).
Ora, na sentença recorrida, depois de elencados os factos dados como provados e como não provados, versou-se sobre a respetiva motivação, elencando-se os elementos probatórios e a apreciação que levaram à decisão sobre a matéria factual. A leitura da factualidade provada e não provada e a respetiva motivação, permite-nos compreender a explicação da razão pela qual o tribunal formou a sua convicção acerca da factualidade que apurou e pode dar como provada e que não apurou e por isso deu como não provada.
Da motivação de facto supra transcrita, as explicações são perfeitamente percetíveis por quem lê a sentença, não deixando quaisquer dúvidas quanto às razões pelas quais o tribunal recorrido deu como provados os factos dos pontos 1 a 16, com base no parecer apresentado pelo AI, os documentos que instruem, o teor da sentença, do relatório previsto no art. 155º, do CIRE, o registo de matricula, a lista de credores reconhecidos e do despacho de encerramento que se encontram no processo principal, e deu como não provados os factos das alíneas a) a d): as declarações dos requeridos das quais apenas resultou a defesa da respetiva desresponsabilização, colocando a culpa pelo sucedido em terceiros, o que não logrou convencer, em face dos demais elementos objetivos constantes dos autos e que contrariam os relatos apresentados. Conclui, de forma perfeitamente percetível que: da análise critica e conjunta da prova produzida resulta evidente um total e indevido alheamento/falta de atuação dos requeridos face à situação de insolvência declarada.
Da leitura da sentença recorrida, mais concretamente do segmento relativo à motivação da matéria de facto, concluímos, pois, que se mostra perfeitamente percetível quais os elementos constantes do processo e ponderação efetuada pelo Tribunal que levaram à convicção sobre a matéria de facto, quer a provada, quer a não provada, atingindo-se o desiderato do legislador plasmado no art.º 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil e, em consequência, não se verificando a nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil.
Caso o recorrente pretendesse colocar em causa a análise crítica da prova, tal situação não é geradora de nulidade, sendo certo que não impugnou a matéria de facto no recurso, limitou-se a invocar a nulidade.
Depois, na fundamentação de direito, o Tribunal a quo subsumindo juridicamente os factos adquiridos processualmente, concluiu que tendo-se provado que a insolvente e respetivos gerentes não prestaram qualquer colaboração ao AI, não fornecendo as informações documentos necessários para a elaboração do relatório previsto no art. 155º, do CIRE e elencados em boa parte no art.º 24º, do CIRE; que nenhum dos gerentes providenciou, como lhes competia e era exigível, pelo depósito das contas na respetiva conservatória do registo comercial e que tendo em consideração a data dos respetivos incumprimentos e a natureza das dividas (impostos e contribuições), tal seria, em seu entendimento, suficiente para o preenchimento dos requisitos contidos no art.º 186º, n.º2, al. i) e 186º, n.º3, al. a) e b) do CIRE.
Não se verifica, pois, a nulidade apontada, o que não invalida a apreciação que adiante se fará, acerca da bondade da subsunção jurídica da facticidade adquirida processualmente, levada a cabo pelo Tribunal recorrido, o que é, de resto, uma das questões que decorre do objeto do presente recurso.
III.
Verificação dos pressupostos de qualificação da insolvência como culposa.
Na sentença recorrida entendeu o tribunal a quo que, face aos factos provados, se encontra preenchido o disposto no artº 186º, nº2, alínea i) e n.º3, als. a) e b) do CIRE e que assim não se pode deixar de concluir que a insolvência é culposa.
Diz a apelante “C” que não se verifica um único facto que lhe seja imputável, nomeadamente não resultou provado que a recorrente tenha praticado um único ato de gerência, quanto mais ter minimamente contribuído para a situação geral da sociedade e respetiva declaração de insolvência, confiando em “B” na normal gestão da sociedade e que, por isso, deverá a sentença ser revogada por outra que reconheça a ausência de qualquer culpa desta na insolvência da sociedade (conclusões 5 e 8).
Por seu turno, defende o recorrente “B” que inexistem factos dados como provados que lhe imputem um juízo de censura ou desvalor jurídico (conclusão 17), que existe um quadro notório de falta de factos que permitam suscitar comportamentos específicos de culpabilidade, o que determina a revogação da sentença, declarando-se que os sócios gerentes da insolvente não foram responsáveis pela insolvência (conclusões 21 a 23).
Os preceitos legais convocados para apreciação das questões são os artigos 186º, n.º 2 e n.º 3 e 189º, n.º2, ambos do CIRE, que estabelecem o seguinte:
art.º 186º - (…) 2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma catividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º.
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
art.º 189º “(…) 2 – Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;
b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.
O incidente de qualificação destina-se a averiguar se a situação insolvencial é mera consequência de acontecimentos fortuitos, ou se, pelo contrário, é consequência de uma atuação culposa do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, quando estes tenham, nos 3 anos anteriores ao início do processo, de forma dolosa ou gravemente negligente, atuado de forma a impossibilitar o cumprimento das obrigações perante os credores ou, pelo menos, praticado factos que agravaram o risco de tal vir a ocorrer.
O citado art.º 186º, depois de no seu n.º 1 fixar uma noção geral de insolvência culposa, declarando, genericamente, que a insolvência é culposa “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” estabelece nos seus nºs 2 e 3 um conjunto de presunções que assumem caráter taxativo.
Para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE veio consagrar o denominado duplo sistema de presunções legais, sendo que o nº 2 da referida norma contém um elenco de presunções juris et de jure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente; por seu turno, no nº 3 consagra-se um conjunto de presunções juris tantum de culpa grave desses administradores. Como sublinha Carneiro da Frada (in A responsabilidade dos administradores na insolvência, in Revista da Ordem dos Advogados, consultado in https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/manuel-a-carneiro-da-frada-a-responsabilidade-dos-administradores-na-insolvencia/), a opção por esta técnica legislativa justifica-se pela necessidade de garantir uma maior “eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências”, favorecendo, para além disso, a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos.
No concernente às presunções do primeiro tipo, dizem-nos Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680, que uma vez demonstrado o facto nelas enunciado (base da presunção), fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador (isto é, a insolvência será sempre considerada como culposa), sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a inobservância dos comportamentos tipicamente descritos nas diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. No mesmo sentido Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, pág. 160, onde afirma que se tratando de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no n.º 2 do art.º 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato. Na jurisprudência cf. o Acórdão desta secção de 13/09/2024, proferido no processo n.º 2024/13.9TYLSB-A.L1, relatora Manuela Espadaneira Lopes, onde se lê que: “I - Contrariamente ao que se verifica relativamente ao tipificado no nº3 do art.186º do CIRE - que apenas consagra uma presunção “juris tantum” de culpa grave -, o apuramento de factualidade integradora do previsto na alínea h) do nº 2 – e nas demais alíneas desse normativo - consubstancia presunção inilidível ou presunção jure et de jure, da qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de prova do nexo de causalidade entre o facto e a insolvência ou o seu agravamento. II- Naturalmente que esta presunção não determina que o afectado fique impedido de alegar e provar que não se verificaram os factos que a lei, pela sua gravidade, ali associa à existência de uma insolvência culposa, estando dessa forma garantido o direito previsto constitucionalmente a um processo equitativo. (…)”
No que diz respeito ao âmbito objetivo das presunções estabelecidas no nº 3 do art.º 186º, consagra-se apenas uma presunção de culpa grave, que não também de presunção do respetivo nexo causal.
No caso em apreço, releva, desde logo, a presunção estabelecida na alínea i) do nº 2 do citado art.º 186º, no qual se dispõe que a insolvência é culposa no caso de o devedor ter “incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e colaboração previstos no art. 83º até à data da elaboração do parecer referido no n.º6 do art. 188º”.
Nos termos do art. 83º do CIRE o devedor insolvente fica obrigado a: a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal; b) Apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência, salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário; c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.
A previsão desta alínea i) incide, pois, sobre formas de incumprimento que produzem ou podem produzir “efeitos de ocultação” sobre a real situação patrimonial e financeira do devedor, com todos os riscos que tal coenvolve, dificultando ainda uma atuação célere e eficaz do AI. Acresce que a falta ao dever de colaboração pode não resultar de um simples alheamento do processo, de desinteresse ou negligência, mas antes da intenção deliberada de não concorrer para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz de qualquer das restantes previsões – neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/2012 e o acórdão da Relação de Coimbra de 06/07/2016 (Proc. n.º 682/15.9T8FND-A.C1, relator Fonte Ramos).
Por outro lado, o incumprimento do dever de apresentação e colaboração deve ser reiterado. Uma vez verificada a reiteração, a insolvência é sempre qualificada como culposa (cf. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in Ob. Cit., pág. 681), o que não se confunde com a intempestividade ou incompletude da informação.
O Tribunal a quo fundamentou o seu juízo de qualificação da insolvência como culposa dizendo, quanto a esta questão que: de acordo com a factualidade apurada constata-se que se mostram preenchidos os fundamentos constantes da alínea i) do n.º2, (…), para qualificação da insolvência como culposa. De facto, perante os dados apurados a insolvente e respetivos gerentes não prestaram qualquer colaboração ao AI, não fornecendo as informações documentos necessários para a elaboração do relatório previsto no art. 155º, do CIRE e elencados em boa parte no art. 24º, do CIRE.
O substrato factual que foi considerado provado e não provado no ato decisório sob censura não sofreu alteração nesta sede recursiva, tendo resultado provado que por email remetido pelo AI em 04.12.2023 e também por cartas registadas, foi solicitado aos requeridos “B” e “C” a entrega dos seguintes elementos: Relação de todos os credores; identificação de ações/execuções pendentes; documento contendo a explicitação da atividade; Relação de bens; Contas anuais relativas aos 3 últimos exercícios e respetivos relatórios de gestão, pareceres e documentos de certificação legal de contas; Mapa de pessoal; contrato de cessão de quotas e extrato comprovativo do respetivo movimento financeiro (facto 11) e que apesar de receberam as referidas missivas, os requeridos não disponibilizaram os elementos pretendidos (facto 12).
Enviado pelo AI pedidos de informação e renovados que foram, a ausência de resposta pelos administradores da insolvente permite a conclusão da imputada reiteração na ausência de prestação das informações solicitadas.
Também resultou provado que a gerência da sociedade se encontrava atribuída aos dois sócios “B” e “C” (factos 5 e 6), não tendo a apelante logrado demonstrar, como alegou, que a função de gerente foi exercida pelo apelante “B” desde a constituição da Insolvente, até março de 2022, data em que as funções de gerência de facto passaram a ser exercidas por “D” (facto a) dos não provados).
Ainda que assim não fosse, e como se faz referência na sentença recorrida, por estatuição expressa da lei, e num patente esforço de moralização, estão abrangidos quer o administrador de direito quer o administrador de facto do devedor que tenha praticado, nos três anos anteriores ao início do processo, algum dos factos base descritos.
Como se lê no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/09/2024, processo n.º 3377/20.8T8STS-A.P1, relatora Alexandra Pelayo: III - Da previsão do art. 186º, nºs 1 e 2 do CIRE resulta que não foi objetivo do legislador excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto da qualificação da insolvência como culposa, mas sim estendê-la a atos praticados por administradores de facto. IV - A circunstância de a gerente de direito não exercer, de facto, tais funções, que eram desempenhadas por uma outra pessoa, não a isentava das suas obrigações legais, enquanto gerente de direito. V - O alheamento da gerente de direito relativamente aos destinos da sociedade constitui, por si só, violação dos deveres gerais que se lhe impunham nessa qualidade. No mesmo sentido, o Acórdão desta secção de 23/03/2021, processo n.º 1396/11.4TYLSB-B.L1-1, relatora Fátima Reis Silva, onde se lê que: “(…) Um administrador, devidamente nomeado e cuja designação foi registada que não exerce qualquer ato de gerência de facto é um gerente que viola o fundamental dever de cuidar, de administrar, previsto no art.º 64º do CSC. Não é um gerente isento de responsabilidade, é um gerente que já se colocou em situação de ilicitude. (…) Um administrador de direito que não exerce, de facto, está, por opção, ou seja, com dolo, a não exercer o dever de cuidar, ao menos na modalidade do dever de controlo, com gravidade acrescida em situação de dificuldades em que o cenário de insolvência é um dos possíveis. Está a violar vários dos deveres previstos no art. 186º, seja por não fazer (nos casos em que as violações se analisam em omissões, como é o caso da obrigação de manter a contabilidade organizada ou de colaborar com o Administrador da Insolvência) seja por não impedir de fazer, nos casos em que os atos são praticados por outros. O cargo de gerente/administrador é incompatível com o não exercício, com a inatividade”.
Tendo ambos os recorrentes assumido a gerência e demonstrada que está a previsão normativa da alínea i) do n.º2 do art.º 186º, que estabelece uma presunção inilidível quer da existência de culpa grave, quer do respetivo nexo de causalidade, não tendo os recorrentes, em face da factualidade que se tem por adquirida, demonstrado não terem praticado o facto que serve de base à presunção, bem andou a sentença recorrida ao julgar verificados os pressupostos da insolvência culposa. Por outro lado, em momento algum da oposição, e mesmo em sede de recurso, é contrariado que o AI solicitou os referidos esclarecimentos.
Em conclusão, e ao contrário do que defendem os recorrentes, provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do n.º2 do art. 186º do CIRE, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Resta por fim aferir do preenchimento dos pressupostos enunciados nas alíneas a) e b) do n.º3 do art. 186º que a sentença recorrida julgou igualmente verificados.
Vimos já que, contrariamente ao que se verifica tipificado no n.º 2 do art.º 186º do CIRE, nas alíneas a) e b) do n.º 3 consagra-se uma presunção “iuris tantum” de culpa grave, em resultado da atuação dos administradores da sociedade devedora, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência exigindo-se a demonstração nos termos do n.º1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.
A base da presunção é constituída por omissões, concretamente pela omissão de cumprimento dos seguintes deveres: 1. Do dever de requerer a declaração de insolvência; 2. Do dever de elaborar as contas anuais; 3. Do dever de submetê-las à devida fiscalização; 4. Do dever de as depositar na conservatória no registo comercial.
O dever de requerer a declaração de insolvência está previsto no n.º 1 do artigo 18.º do CIRE. Em casos como o dos autos, em que o devedor é uma sociedade, o artigo 19.º do mesmo diploma faz recair tal sobre o órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer um dos seus administradores. O dever de elaborar as contas da sociedade, está previsto no n.º 1 do 65.º do CSC. Da conjugação deste número com o n.º 4 do mesmo preceito resulta que o dever em causa recai sobre os “membros da administração que estiverem em funções ao tempo da apresentação…”. O dever de depositar as contas, está previsto no n.º 1 do artigo 70.º do CSC combinado com os artigos 3.º, n.º 1, alínea n), 15.º, n.º 1, e 42.º, todos do Código de Registo Comercial. Embora o n.º 1 do artigo 70.º não identifique quem deve pedir o registo das contas, é de afirmar que tal pedido cabe aos administradores da sociedade, dado que se trata de um ato de administração da sociedade. Com efeito, o registo das contas é realizado através da entrega da IES, (regulada pelo Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de janeiro que estabelece o regime jurídico da IES e define as suas obrigações, diploma que foi posteriormente alterado, sendo a mais recente operada pela Lei 119/2019 de 18 de setembro e que cumpre em simultâneo a obrigação declarativa fiscal anual, o pedido de registo das contas, e as comunicações devidas ao Instituto Nacional de Estatística, ao Banco de Portugal e à Direção Geral das Atividades Económicas), sendo a entrega que compete ao Contabilista Certificado realizar. Porém, naturalmente que o registo das contas não será realizado se as contas não forem apresentadas ou, tendo-o sido se, no prazo de 5 dias, não for paga a taxa devida pelo registo (art.º 7º do Decreto-Lei n.º 8/2007 e Portaria n.º 562/2007 de 30 de abril), sendo que é aos gerentes que compete submeter as contas a aprovação e pagar a dita taxa, donde se conclui que se trata de um ato que compete à administração da sociedade.
Estando ambos os administradores da insolvente, enquanto gerentes, obrigados a cumprir os seus deveres, quer os gerais previstos no artigo 64.º do CSC, quer os deveres legais específicos, como sucede com os que estão em causa no presente recurso, tinham ambos, por força da lei (fossem gerentes de direitos ou de facto), o dever de requerer a declaração de insolvência dela e o dever de diligenciarem pela apresentação/ depósito das contas anuais da sociedade na respetiva conservatória do registo comercial, o que não fizeram.
Não tendo cumprido tais deveres, há base de facto suficiente para presumir a culpa grave de ambos, nos termos do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE.
Porém, para além da atuação dolosa ou com culpa grave, exige-se a alegação de que essa situação esteve na origem da insolvência ou do seu agravamento, pois, só assim se poderá afirmar a situação de insolvência culposa, conforme resulta do disposto no artigo 186º, n.º 1 do CIRE.
E relativamente a esta última afirmação haverá de fazer-se a respetiva prova, já que não se encontra abrangida pela presunção estabelecida no nº 3 do artigo 186º do CIRE.
Com efeito, este normativo é claro e inequívoco, no sentido de que não admite, com o apoio mínimo no texto da lei que o artigo 9º, nº 2 do Código Civil exige, uma interpretação mais abrangente, que inclua no âmbito da presunção estabelecida no nº 3 do artigo 186º do CIRE também o exigido nexo de causalidade entre a atuação descrita naquele preceito legal e o despoletar da situação de insolvência ou do seu agravamento.
Nestas situações haverá que alegar e provar o nexo de causalidade entre a atuação e a situação da insolvência, nos termos em que o exige o n.º 1 do citado artigo 186º. Como se refere no Acórdão desta secção de 21/05/2024, proferido no processo n.º 1983/18.0T8VFX-E.L1, relatora Paula Cardoso, ao que cremos não publicado, no n.º3 do art.º 186º do CIRE é estabelecida uma presunção de culpa reportada, unicamente, a um dos pressupostos daquela qualificação, a culpa. Para se concluir depois pela efetiva insolvência culposa, por violação do dever de requerer a insolvência, nos termos da alínea a) daquele n.º3, necessário se mostra então a demonstração do nexo de causalidade entre este facto (de não requerer atempadamente a insolvência), e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Ora, um dos fundamentos invocados na sentença sob recurso para a qualificação da insolvência como culposa foi, precisamente, a omissão por parte dos apelantes do dever de requerer a declaração de insolvência, o que constitui, nos termos do art.º 186.º n.º 3, al. a) do CIRE, presunção ilidível, mas, segundo a sentença, não ilidida, de culpa grave.
Neste ponto, escreveu-se na sentença recorrida que: “tendo em consideração a data dos respetivos incumprimentos e a natureza das dividas (impostos e contribuições) presume-se de forma inilidível o conhecimento por parte daqueles gerentes da situação de insolvência da sociedade, conforme se extrai do disposto no art. 18º, n.º3 e 20º, n.º1, al. g), o CIRE, tendo como certo avolumar dos créditos incumpridos conhecidos e a total inexistência de bens suscetíveis de integrarem a massa insolvente.”
O art.º 18º do CIRE obriga o devedor a requerer a declaração de insolvência, tal como descrita no n.º1 do art. 3º, ou à data em que devesse conhecê-la, presumindo-se tal conhecimento, quando titular de uma empresa, decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º1 do art.º 20º do CIRE.
Assim, resultando dos factos provados que a insolvência foi requerida por terceiro (a sociedade comercial “(…), Lda.); que das reclamações de créditos recebidas no âmbito dos presentes autos, consta que a sociedade detém dividas para com a Segurança Social, no montante global 3.207,88 €, a qual foi constituída entre janeiro de 2021 e junho de 2021; que das reclamações de créditos, resulta ainda, que a sociedade tem uma divida para com o Estado, no valor global de 7.430,54 €, a qual resulta de IVA não entregue nos cofres do Estado, e que se refere aos seguintes períodos de tributação; 3.º e 4.º trimestre de 2021 e ainda, aos 1.º, 2.º e 3.º trimestres de 2022; que a totalidade de créditos reclamados e reconhecidos perfez a quantia total de 57.223,96€ e que o processo de insolvência foi encerrado com fundamento na insuficiência de bens suscetíveis de integrarem a massa insolvente, nos termos do disposto nos art.ºs 230º, n.º 1, al. d) e 232º, n.º 2, do CIRE, é fundada a conclusão de que a sociedade insolvente se encontrava em situação de incumprimento generalizado, desde pelo menos julho de 2021, e que o não cumprimento do dever estabelecido no art.º 18º do CIRE contribuiu, como se concluiu na sentença recorrida, quer para o avolumar dos créditos incumpridos conhecidos quer para o total desconhecimento da inexistência de bens suscetíveis de integrarem a massa insolvente.
Nestes termos, está também demonstrado o conhecimento que os gerentes da devedora tinham ou, pelo menos, deviam ter de que esta se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas desde o início de junho de 2021, o que sempre se presumiria de forma inilidível, visto estar demonstrado o incumprimento generalizado das obrigações à Segurança Social previstas no artigo 20.º, n.º 1, al. g), do CIRE, em conformidade com o disposto no artigo 18.º, n.º 3, do mesmo código. Considerando que as dívidas à Segurança Social a partir das quais se presume o conhecimento se reportam a contribuições de janeiro a junho de 2021 e que o art.º 20º, al. g), para o qual remete o art.º 18º, prevê como presunção de insolvência dívidas à Segurança Social durante os últimos seis meses, então presume-se que a devedora estava insolvente desde julho de 2021 e que os requeridos conheciam ou deviam conhecer essa situação desde outubro de 2021 (cf. art.º 18º, n.º3 do CIRE), estando obrigados a apresentar a devedora à insolvência até final de outubro 2021 (cfr. art.º 18º, n.º1 do CIRE).
Decorre do que ficou exposto a respeito das consequências da não apresentação à insolvência que os factos provados permitem estabelecer o nexo de causalidade entre o comportamento dos aqui requeridos e, pelo menos, o agravamento da situação de insolvência. Mesmo que não possamos afirmar que a insolvência foi criada pela atuação dos requeridos, sabemos que foi agravada por essa mesma atuação, ao não terem cumprido o dever de requererem a insolvência a qual se presume gravemente culposa.
Deste modo, entendemos que a decisão recorrida não merece censura quando fundamenta a qualificação da insolvência como culposa, quanto ao também no disposto no artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE, conjugado com o n.º 1, do mesmo artigo.
Concluindo-se, verificada que está a mencionada presunção de culpa e o exigido nexo de causalidade, pelo menos, no que contende com o agravamento da situação de insolvência, impõem-se, também, por via do disposto na alínea a) do n.º3 do art. 186º do CIRE a qualificação da insolvência como culposa.
Resta apreciar o último dos fundamentos invocados na decisão recorrida para qualificar a insolvência como culposa.
Nos termos do artigo 186.º, n.º 3, al. b), do CIRE, presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
No caso concreto provou-se que os requeridos não diligenciaram pela apresentação/depósito das contas anuais da sociedade na respetiva conservatória do registo comercial.
É, assim, absolutamente inquestionável que se presume a existência de culpa grave, nos termos daquela norma.
Acresce que, ao contrário do que entendem os recorrentes, decorre dos factos apurados e de tudo quanto ficou exposto supra que está igualmente estabelecido o nexo de causalidade que o n.º 1, do artigo 186.º, do CIRE igualmente pressupõe quanto ao disposto na alínea a) do n.º3 do art. 186º do CIRE.
Porém, a verdade é que quanto à previsão da alínea b) do n.º3 do art. 186º nada foi alegado ou ficou demonstrado que permita estabelecer qualquer relação entre a obrigação de depositar as contas e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. De resto, não se vislumbra em que termos a falta de elaboração e depósito das contas, por si só, possa criar ou agravar a situação de insolvência. Como escreve Rui Estrela de Oliveira (in Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência, Revista Julgar, n.º 11, pág. 244), esta conduta, «a ocorrer, poderá constituir um indício de que algo corria mal para os lados da sociedade em causa, mas nunca poderemos subsumi-la à causa da produção ou do agravamento do estado de insolvência». Estando verificada a presunção de culpa grave prevista no artigo 186.º, n.º 3, al. b), do CIRE, a qualificação da insolvência como culposa dependerá, ainda, da demonstração do nexo de causalidade entre a criação ou o agravamento da situação de insolvência e o comportamento dos gerentes da devedora, o qual se presume gravemente culposo.
Deste modo, não podemos subscrever a conclusão da sentença recorrida quando fundamenta também a qualificação da insolvência como culposa, quanto ao disposto no artigo 186.º, n.º 3, al. b), do CIRE, conjugado com o n.º 1, do mesmo artigo.
E, assim sendo, pelas razões expostas, impõe-se confirmar a qualificação da insolvência como culposa, como concluiu a sentença recorrida, com base na verificação dos fundamentos previstos nos n.ºs 2, al. i) e n.º 3, al. a) do art.º 186º do CIRE.
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Dos pressupostos de afetação do sócio gerentes da insolvente – período de inibição e indemnização aos credores.
Tratando-se de insolvência culposa, cabe ao juiz determinar as pessoas que são atingidas pelos seus efeitos – artigo 189.º, n.º 2, al. a), do CIRE.
No caso, o tribunal a quo declarou ambos os recorrentes afetados, ambos sócios e gerentes da insolvente – cf., também, artigo 6.º, n.º 1, al. a) do CIRE.
E, como consequência dessa qualificação, decidiu, ainda:
- declarar a inibição dos afetados pelo período de 2 (dois) anos para administração do património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa – al. c) do n.º 2 (que prevê que o período de inibição pode ser fixado entre 2 e 10 anos).
- condenar os mesmos afetados a indemnizar os credores da devedora insolvente reconhecidos em sede de reclamação de créditos no montante de € 28 611,98 até às forças do respetivo património, sendo solidária a sua responsabilidade; – al. e) do n.º 2.
Carvalho Fernandes e João Labareda (in Ob. Cit., pág. 695), aludindo à inibição prevista na al. c), referem que “Revela-se aqui uma atitude de desconfiança quanto à atuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência.”
Por tal motivo, escreve Maria do Rosário Epifânio, in Ob. Cit., pág. 160/161, que na decisão, o juiz “deverá ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento – a gravidade do comportamento poderá ser aferida em função do preenchimento do n.º 2 ou do n.º 3”.
Na jurisprudência tem-se entendido igualmente que os períodos de inibição relativos às pessoas afetadas pela qualificação da insolvência a que se referem as alíneas b) e c) devem ser graduados em função da gravidade do seu comportamento e da sua relevância na verificação da situação de insolvência, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e a moldura abstrata de inibição prevista pelo legislador (cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/04/2021, processo n.º 252/20.0T8AMT-A.P1, relator Rodrigues Pires).
A este propósito escreveu-se na decisão recorrida que “Nos termos das alíneas b) e c), do nº2, do artigo 189º, do CIRE, considera-se adequado decretar a inibição para a administração do património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 2 anos.”
O recorrente “B” defende que face à manifesta falta de culpa e aos demais alegado, estão reunidos os pressupostos para a redução do período de inibição para seis meses (conclusão 24).
Face ao que já se referiu quanto à verificação das circunstâncias previstas no artigo 186.º, n.º 1 e n.º 2, al. i) e n.º3, al. a) que nos dispensamos de repetir, associado ao facto de os recorrentes serem os únicos sócios e gerentes da sociedade (só a eles competindo gerir o negócio e os destinos da empresa insolvente, razão pela qual eram gerentes de facto e de direito), e de nada terem carreado para os autos que pudesse infirmar a decisão tomada quanto à sua responsabilização e afetação pela qualificação (sendo a sua conduta, pelo menos, reveladora de culpa grave), subscrevemos o decidido na sentença recorrida, mantendo-se a inibição nos moldes em que foi fixada, que, de resto, se situa no seu limite mínimo.
Resta apreciar o decidido quanto à obrigação de indemnizar prevista na al. e).
A este respeito, conforme referido supra, dispõe o art.º 189º, n.º 2, al. e) do CIRE que na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.
Do nº 4 do mesmo preceito resulta que na aplicação do disposto na alínea e) o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas. Caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, deverá pelo menos estabelecer os critérios a utilizar para a sua quantificação a efetuar em liquidação de sentença.
Entendem os recorrentes que a indemnização fixada – equivalente a 50% dos créditos reconhecidos – é arbitrária, porquanto não foi dado como provado um único prejuízo especificamente causado por algum comportamento dos recorrentes, considerando que não se verificam os pressupostos para a indemnização que, no caso concreto, têm como consequência direta colocar os recorrentes numa situação financeira catastrófica, pugnando, ainda pela sua redução, para o valor de 5000,00€.
A pretensão dos recorrentes de se eximirem ao pagamento de qualquer indemnização é destituída de fundamento.
Por outro lado, considerando desproporcional o montante indemnizatório fixado, não avançam quaisquer argumentos para a adequação do montante de 5000,00€ proposto.
Para além de se ter provado factualidade integrante das circunstâncias anteriormente elencadas e que correspondem às al. i) do n.º 2 do artigo 186.º e al. a) do n.º3, e verificados que estão os requisitos do seu n.º 1 (o que determina a qualificação da insolvência como culposa) - nada tendo os recorrentes logrado provar em sentido contrário -, máxime que tenham, no período relevante, encetado qualquer esforço tendente a evitar a insolvência. Pelo contrário, com a sua atuação culposa, contribuíram para a situação insolvencial da empresa e para o seu agravamento, impedindo o ressarcimento dos credores da devedora (desde logo evidenciado na ausência de quaisquer bens que determinaram o seu encerramento nos termos do disposto nos art.ºs 230º, n.º 1, al. d) e 232º, n.º 2, do CIRE).
Inexiste, pois, fundamento/justificação para que não sejam alvo de condenação nos termos decorrentes da previsão do artigo 189.º, n.º 2, al. e).
No que diz respeito ao montante a fixar a título de indemnização, prevê a atual redação da alínea e) do n.º2 do art. 189º do CIRE (alterada pela Lei n.º 9/2022) expressamente que possa ficar aquém do montante dos créditos não satisfeitos e que a condenação deverá considerar as forças dos patrimónios dos propostos afetados, o que significa que tal como vinha sendo entendido pela jurisprudência, nomeadamente, do Tribunal Constitucional (Acórdão nº 280/2015 (DR 115/2015, Série-II), deveria fazer-se uma interpretação que salvaguardasse precisamente o princípio da proporcionalidade. A este propósito o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/09/2022, Proc. n.º 2367/16.0T8VNG-H.P1, relator Filipe Caroço refere que: “na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2015 (DR 115/2015, Série-II) deve fazer-se uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade. Conjugando o teor das al.s a) e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º, deve considerar-se acolhido no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afetado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa. Extrai-se daquele acórdão do TC: «Esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do artigo 189.º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas colectivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal».
De igual modo se referiu no Acórdão do STJ de 22/06/2021, proc. n.º 439/14.7T8OLH-J.E1.S1, relator Barateiro Martins, que à primeira vista e numa interpretação literal/superficial, parece que o legislador – que antes, na redação inicial do CIRE, foi omisso na “imputação” de danos às pessoas afetadas pela qualificação da insolvência – se basta agora com muito pouco (ou quase nada), uma vez que, para impor a condenação na obrigação de indemnizar os credores pelo montante dos créditos não satisfeitos, se satisfaz com a mera qualificação da insolvência como culposa, fazendo incidir, como que automaticamente, tal obrigação de indemnizar sobre as pessoas afetadas por tal qualificação culposa. Ou seja, à primeira vista, o juiz não terá que efetuar qualquer apreciação/verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, uma vez que, verificados os pressupostos da insolvência culposa, têm necessariamente que ser identificadas as pessoas afetadas (cf. art. 189.º/2/a) do CIRE) e estas, a seguir, serão necessária/automaticamente condenadas a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos; pelo que, nesta linha de raciocínio, os factos constitutivos da responsabilidade constante do art. 189.º/2/e) do CIRE – o facto ilícito que criou ou agravou a situação de insolvência; a culpa do art. 186.º/1 e/ou a presumida nos n.º 2 e 3 do mesmo art. 186.º; o dano consistente na não satisfação dos créditos no processo de insolvência; e a causalidade (também presumida nos n.º 2 e 3 do art. 186.º do CIRE) entre a atuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência – ficam, no essencial, “previamente” apreciados quando se procede à qualificação da insolvência como culposa. Porém, uma tal interpretação/aplicação – automática ou quase-automática do critério art. 189.º/2/e) do CIRE, com a condenação dum qualquer afetado numa indemnização no montante dos créditos não satisfeitos – resiste mal ao que, em termos racionais, pode/deve ser observado e contraposto.
Em consequência, conclui-se, no referido Acórdão do STJ que independentemente do tipo de responsabilidade que se considere ter sido consagrada no art.º 189.º, n.º2, al. e) – seja de cariz meramente ressarcitório, seja de cariz sancionatório, seja de cariz misto – sempre a mesma terá que ser considerada como sujeita a algum controlo de proporcionalidade, ou seja, por exigência do princípio constitucional da proporcionalidade e da proibição do excesso (que decorre da própria ideia de Estado de Direito e que é claramente traçado no art. 18.º/2 da CRP, na parte em que se diz que devem “as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos”), o dever de indemnizar estabelecido no art. 189.º/2/e) do CIRE tem que ter “limites”, tem de algum modo que se relacionar com o grau de culpa das pessoas afetadas e/ou com a gravidade da ilicitude (contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência).
Em suma, tendo em conta o severo regime que emerge da aplicação conjugada dos arts. 186º e 189º está o juiz vinculado a uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade. Na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afetado, que responderá na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.
E, assim, quanto ao valor da indemnização, como se refere no Acórdão desta secção de 6/02/2024, processo n.º 2098/21.9T8BRR-A.L1-1, relator Nuno Teixeira, o juiz pode/deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas atendendo às circunstâncias do caso (o que está provado no processo e o que levou à qualificação), que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude das pessoas afetadas (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência), sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização
Tendo por premissa as considerações supra, no caso em recurso, haverá que na concretização do montante indemnizatório a atribuir nos termos dos nºs 2, al. e) e 4 do art.º 189º do CIRE ter em atenção os factos que levaram à qualificação da insolvência como culposa espelhados na violação do dever de colaboração e no incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência.
O processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente, não constando terem sido apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente.
Os créditos reclamados e reconhecidos pelo AI (constantes da lista a que alude o artigo 129.º do CIRE) ascendem ao montante global de 57.223,96€, créditos esses que não foram ressarcidos (nem sequer parcialmente).
Acresce, o montante das dívidas que não teriam sido constituídas se a insolvente tivesse sido apresentada à insolvência no prazo legal (até outubro de 2021), e que correspondem às dívidas reclamadas pela AT no valor global de 7.430,54 € (IVA dos 3.º e 4.º trimestre de 2021 e aos 1.º, 2.º e 3.º trimestres de 2022 (facto 11) e ao crédito da requerente da insolvência, que se constituiu até abril de 2022 e o desconhecimento da existência de bens por falta de informação dos recorrentes o que, pela natureza do facto (desconhecimento), justifica que na quantificação da responsabilização civil com esse fundamento o tribunal recorra à equidade, sendo equitativo fixar a indemnização no correspondente a metade do valor dos créditos reclamados, valor esse, além do mais, proporcional à dimensão da sociedade atendendo ao valor do seu capital social.
Ao contrário do defendido pelos recorrentes nas alegações de recurso os factos dados como provados permitem a formulação de um juízo de censura ou desvalor jurídico a ambos os recorrentes que eram os administradores da sociedade insolvente.
Em conclusão, inexistindo factos provados que permitam mitigar o juízo de ilicitude em relação à atuação dos recorrentes e às suas responsabilidades no contexto do desenvolvimento da atividade societária, bem como ao modo como violaram os deveres que sobre si impendiam, que se refletem causal e necessariamente em efeitos danosos para os credores, considerar, a final, que a sua conduta omissiva gera uma obrigação de indemnizar definida numa percentagem de 50% sobre o total dos créditos não satisfeitos não pode, atendendo ao montante destes, ser considerado como ofensivo de um critério de razoabilidade e proporcionalidade, correspondendo a uma indemnização excessiva e arbitrária.
Impõe-se, deste modo, negar razão aos recorrentes, confirmando-se, na sua totalidade, a decisão recorrida.
*
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam as Juízas desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o presente recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas do presente recurso pelos recorrentes/afetados.

Susana Santos Silva
Amélia Sofia Rebelo
Elisabete Assunção
Decisão Texto Integral: