Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ORLANDO NASCIMENTO | ||
Descritores: | LICENCIAMENTO DE OBRAS PROVIDÊNCIA CAUTELAR TRIBUNAL COMPETENTE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/07/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. É da competência dos tribunais administrativos a providência em que é formulado um pedido de Ratificação de Embargo Extrajudicial de Obra Nova e Providência Cautelar Não Especificada de obras relativas à construção de um jardim público no âmbito da construção de um empreendimento privado, quando essas obras foram objecto de licenciamento municipal, porque a apreciação desses pedidos pressupõe a apreciação dos atos públicos de licenciamento para a qual são competentes os tribunais administrativos, por terem a natureza de relação jurídica administrativa. 2. Nos termos do disposto nas als. a) e f), do n.º 1 e no n.º 2, do art.º 4.º, do ETAF, a providência deverá ser requerida contra o empreendedor privado e a entidade municipal licenciadora. (Pelo Relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa. 1. RELATÓRIO. Nestes autos de Ratificação de Embargo Extrajudicial de Obra Nova e Providência Cautelar Não Especificada, requeridos por Fernando … e Maria Ana ... contra ...- Unipessoal, Lda, pedindo a ratificação do embargo extrajudicial promovido pelos requerentes a 8 de agosto de 2021 e a suspensão imediata das obras objecto do embargo e a demolição das construções efectuadas, repondo o prédio no estado em que se encontrava, e subsidiariamente, que fosse decretada providência cautelar não especificada, não executando quaisquer obras suscetíveis de permitir a devassa da sua habitação e da intimidade e vida privada e familiar dos requerentes, decretando a suspensão da execução das obras e a repor o prédio em construção no estado em que se encontrava, foi proferida decisão, declarando a incompetência do Tribunal em razão da matéria, absolvendo a Requerida da instância. Inconformados com essa decisão, os Requerentes dela interpuseram recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a substituição por outra que aprecie e julgue o litígio objeto dos presentes autos, formulando para o efeito as seguintes conclusões: A. No Requerimento Inicial que deu origem aos presentes autos, os ora Recorrentes alegaram que a ora Recorrida se encontra a executar, na qualidade de dono de obra, obras de construção num prédio contíguo à fração autónoma de sua propriedade (“Habitação”) e, bem assim, que a execução e conclusão de parte das referidas obras (“Obras Objeto de Embargo”) determinam quer a violação do direito de propriedade dos Recorrentes, afetando gravemente as suas faculdades de uso, fruição e disposição da Habitação, quer a violação de direitos fundamentais de personalidade dos mesmos, quais sejam o direito à integridade pessoal, ao desenvolvimento da sua personalidade e da reserva sobre a intimidade da sua vida privada, à habitação e à segurança. B. Os ora Recorrentes requereram ao Tribunal a quo o decretamento de duas providências cautelares distintas, assentes em causas de pedir igualmente distintas: C. Uma providência cautelar de ratificação judicial do embargo extrajudicial realizado pelos mesmos às Obras Objeto de Embargo, com base na referida violação do direito de propriedade dos Recorrentes; D. E, subsidiariamente (sendo que tal pedido subsidiário se mostra admissível tendo em conta o facto de a providência cautelar requerida no âmbito do mesmo assentar numa causa de pedir distinta da causa de pedir sobre a qual assenta a providência cautelar requerida no âmbito do pedido principal), E. Uma providência cautelar não especificada que iniba a conclusão da construção daquelas obras e que ordene a sua demolição, estejam estas concluídas ou não, com base na referida violação de direitos fundamentais de personalidade dos Recorrentes. F. Na sua Oposição, a ora Recorrida alegou ser o Tribunal a quo incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos, sustentando, para o efeito, a competência material da jurisdição administrativa, em virtude de estar em causa nos presentes autos uma pretensão inserida numa relação jurídico-administrativa. G. Em resposta à referida exceção invocada pela ora Recorrida, os ora Recorrentes sustentaram a inclusão dos presentes autos na esfera da jurisdição cível e não na esfera da jurisdição administrativa, porquanto, contrariamente ao alegado pela ora Recorrida, não respeitam os mesmos a uma relação jurídico-administrativa. H. Na douta Sentença sob recurso, o Tribunal a quo, seguindo de perto a narrativa e a argumentação veiculadas pela ora Recorrida, declarou-se incompetente em razão da matéria e, consequentemente, absolveu a ora Recorrida da instância, por considerar que a relação material controvertida objeto dos presentes autos consubstancia uma relação jurídico-administrativa, sendo portanto a competência para apreciar e decidir os mesmos dos Tribunais Administrativos e Fiscais. I. É firme entendimento dos Recorrentes que este andou mal ao julgar-se incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir os presentes autos, constatando-se, em suma, que a Sentença sob recurso: J. Assenta numa incorreta interpretação da relação material controvertida configurada pelos ora Recorrentes no Requerimento Inicial, quer no que concerne aos seus elementos objetivos (causas de pedir e pedidos), quer no que concerne aos seus elementos subjetivos (partes), esclarecendo-se, desde já, que esta não consubstancia uma qualquer relação jurídico-administrativa, mas apenas e tão só uma relação jurídico-privada entre dois sujeitos de direito privado – os Recorrentes, pessoas singulares, e a Recorrida, pessoa coletiva de direito privado; bem como que K. Assenta numa incorreta interpretação e aplicação do direito aos factos alegados; L. Razões pelas quais não podem os Recorrentes conformar-se com a Sentença sob recurso. M. Realce-se ainda que o Tribunal a quo se veio declarar materialmente incompetente depois de já terem decorrido mais de 5 meses após o início dos presentes autos, não obstante estarmos perante um processo que reveste natureza urgente e para cuja decisão a Lei estabelece um prazo máximo de 2 meses (cfr. artigo 363.º do CPC), o que se reputa de totalmente inadmissível num estado de direito democrático, sendo naturalmente causador de graves e irreparáveis prejuízos para os Recorrentes. N. Tal como acima já se aflorou, o Tribunal a quo, seguindo de perto a narrativa e a argumentação veiculadas pela ora Recorrida, declarou-se incompetente em razão da matéria para julgar os presentes autos por considerar que a relação material controvertida objeto dos mesmos consubstancia uma relação jurídico-administrativa, sujeita, portanto, à jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O. Para justificar tal conclusão, o Tribunal a quo invocou apenas duas circunstâncias factuais: (i) as Obras Objeto de Embargo estão a ser realizadas pela Recorrida no âmbito de um contrato administrativo e (ii) a Recorrida “não pode, sem mais, ser considerada como “dona da obra”, como se esta de uma qualquer empreitada particular se tratasse”, P. Não tendo, contudo, sequer logrado fundamentar tais considerações, sobretudo a segunda, ficando-se assim sem perceber como é que o Tribunal a quo chegou às mesmas. Q. Contrariamente ao afirmado pelo Tribunal a quo, a relação material controvertida objeto dos presentes autos não consubstancia uma relação jurídico-administrativa, mas sim uma relação jurídico-privada (não sendo as circunstâncias factuais nas quais o Tribunal se baseia suscetíveis de fazer subsumir a relação material controvertida objeto dos autos ao conceito de relação jurídico-administrativa), razão pela qual os artigos 399.º do CPC e 1.º e 4.º do ETAF invocados pelo Tribunal a quo para justificar a sua incompetência em razão da matéria não têm aplicação ao caso sub judice. R. Em primeiro lugar, importa relembrar que a competência material dos tribunais para conhecer os litígios que são lhes são submetidos é aferida unicamente em função da relação material controvertida objeto do litígio em causa (causa de pedir, pedido e sujeitos), tal como ela é delineada pelo autor na petição inicial, S. Entendimento este que, conforme referido pelo Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão proferido em 17.12.2020, é um “entendimento há muito firmado na jurisprudência”. T. Uma leitura atenta do Requerimento Inicial permite concluir, com absoluta clareza e certeza, que a relação material controvertida objeto dos presentes autos, ou seja, a relação jurídica que se discute na ação (o “quid disputatum” ou “quid decidendum”), foi configurada pelos ora Recorrentes da seguinte forma: U. Partes: (i) A ora Recorrida, sociedade comercial que se encontra a realizar as Obras Objeto de Embargo (o dono de obra); e (ii) Os ora Recorrentes, particulares lesados por tais obras. V. Pedidos: (i) Decretamento de uma providência cautelar de ratificação judicial de embargo extrajudicial, a título principal; e (ii) Decretamento de uma providência cautelar não especificada, a título subsidiário. W. Causas de Pedir: (i) Violação do direito de propriedade dos Recorrentes, no caso do pedido principal identificado em (i) do ponto b) supra; e (ii) Violação de direitos fundamentais de personalidade dos Recorrentes, no caso do pedido subsidiário identificado em (ii) do ponto b) supra. X. Posto isto, cumpre então aferir se a relação material controvertida objeto dos presentes autos, tal como foi configurada pelos ora Recorrentes no Requerimento Inicial, consubstancia ou não uma relação jurídico-administrativa. Y. Para o efeito, importa, antes de mais, aferir como se define e em que consiste uma relação jurídico-administrativa, Z. Sendo consensual na Doutrina e na Jurisprudência (inclusive em Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2021 e 17.12.2020) que a qualificação de uma relação jurídica como relação administrativa transporta duas dimensões caracterizadoras cumulativas: AA. Estabelecer-se entre, pelo menos, dois sujeitos, um dos quais é sempre a Administração Pública investida no seu poder de autoridade (jus imperium), isto é, o exercício de uma função pública, ou qualquer entidade, ainda que privada, dotada de poder e autoridade; e BB. Ser disciplinada por normas de direito administrativo e/ou fiscal. CC. Voltando ao caso sub judice, constata-se, desde logo, que as Obras Objeto de Embargo (lesivas dos direitos dos Recorrentes) estão a ser executadas pela Recorrida (cfr. Factos Assentes c) a f) da Sentença sob recurso), na qualidade de dono de obro, DD. Sendo esta uma sociedade comercial de direito privado (cfr. Facto Assente b) da Sentença sob recurso) e não uma entidade pública, “titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração)”. EE. Acresce que não resulta dos presentes autos que a Recorrida, não obstante consubstanciar uma entidade privada, se encontra dotada de “ius imperium” – para o que seria necessário ter-se verificado uma transferência, concreta e específica, dos poderes de autoridade da Administração Pública, o que não ocorreu neste caso –, não se encontrando portanto a atuar no exercício de uma função pública, exercendo poderes públicos ou de autoridade. E tanto assim é que – realce-se – esta circunstância não foi sequer alegada nem pela ora Recorrida na Oposição, nem pelo Tribunal a quo na Sentença sob recurso, nem tão-pouco objeto de prova (o que nem poderia ser de outra forma). FF. Não resulta igualmente dos presentes autos que a Recorrida se encontre a prosseguir o interesse público, não tendo tal sido sequer objeto de prova, resultando dos mesmos, muito pelo contrário, que a mesma prossegue o seu estrito interesse particular na execução da obra, já que, embora esteja a construir um jardim público, fá-lo como contrapartida do loteamento da propriedade e construção, para comercialização, de um empreendimento habitacional de luxo, da sua propriedade. GG. Em segundo lugar, uma leitura atenta do Requerimento Inicial permite constatar, sem qualquer margem para dúvidas, que o litígio objeto dos presentes autos, tal como configurado pelos ora Recorrentes, não é regulado por normas de direito administrativo, mas sim por normas de direito civil, HH. Assentando a causa de pedir subjacente ao pedido principal deduzido pelos ora Recorrentes (decretamento de uma providência cautelar de ratificação judicial de embargo extrajudicial) na violação do direito de propriedade dos Recorrentes e a causa de pedir subjacente ao pedido subsidiário deduzido pelos ora Recorrentes (decretamento de uma providência cautelar não especificada) na violação de direitos fundamentais de personalidade dos Recorrentes. II. E nem se diga, tal como parece ter pretendido o Tribunal a quo, que tais conclusões são suscetíveis de ser alteradas em virtude do simples facto de a Recorrida estar a realizar as Obras Objeto de Embargo no âmbito de um Contrato de Urbanização celebrado com o Município de Lisboa, que integra a Administração Pública, e de as mesmas dizerem respeito a um jardim público. JJ. Por um lado, o referido Município não integra a relação material controvertida objeto dos autos, tal como a mesma foi delineada pelos ora Recorrentes, sendo estes totalmente alheios à existência de tal Contrato. KK. Por outro lado, não resulta de tal Contrato qualquer transferência de poderes de autoridade, de “jus imperium”, para a Recorrida, sendo que, tal como acima já se referiu, tal facto não foi sequer alegado quer pela Recorrida, quer pelo Tribunal a quo no âmbito dos autos, nem tão-pouco objeto de prova. Ou seja, a Recorrida não se encontra a atuar investida com poderes de autoridade, conferidos pela Administração Pública. LL. Do referido Contrato não resulta também que a Recorrida se encontre a atuar tendo em vista a prossecução do interesse público. Muito pelo contrário, tal como acima já se explicitou. MM. Consta-se ainda, como é bom de ver, que a mera existência do Contrato em referência também não implica que o litígio objeto dos presentes autos, tal como configurado pelos ora Recorrentes, seja regulado por normas de direito administrativo, na medida em que, tal como acima já explicitado, as causas de pedir subjacentes aos pedidos deduzidos pelos ora Recorrentes no Requerimento Inicial assentam na violação de normas de direito civil (direito de propriedade e direitos fundamentais de personalidade). NN. Por fim, o facto de as Obras Objeto de Embargo dizerem respeito a um jardim público surge “como uma questão conexa, meramente secundária ou lateral, relativamente ao pedido de ratificação judicial do embargo de obra nova extrajudicial”, não permitindo sequer qualificar, só por si, tais Obras como obras públicas. OO. Muito pelo contrário: se tais Obras fossem efetivamente obras públicas não teriam sido sujeitas a licenciamento municipal (Alvará de Licenciamento n.º 1/2007 – cfr. Facto Assente d) da Sentença sob recurso) – por caírem no âmbito de aplicação da alínea b) do artigo 3.º, n.º 1 do RLOP –, tendo apenas o respetivo projeto sido submetido a prévia aprovação da Câmara Municipal (cfr. artigo 3.º, n.º 2 do RLOP), nem sequer constaria do referido Alvará de Licenciamento que o titular do mesmo, ou seja, o Dono de Obra, é a Recorrida (cfr. Doc. n.º 6 junto como Requerimento Inicial, que não foi impugnado nos autos). PP. Contrariamente ao entendimento defendido pelo Tribunal a quo na Sentença sob recurso, a Recorrida é, efetivamente, o Dono de Obra das Obras Objeto de Embargo, resultando tal conclusão expressamente quer do respetivo Alvará de Licenciamento, conforme se referiu, quer da informação da Câmara Municipal que consta igualmente do referido Doc. n.º 6 junto com o Requerimento Inicial, a qual identifica a Recorrida como “Promotor” das Obras Objeto de Embargo. QQ. Nesta medida, e tendo em conta que, conforme acima explicitado, o Tribunal a quo invoca como uma das duas circunstâncias factuais que utiliza para fundamentar a conclusão da sua incompetência em razão da matéria que a Recorrida “não pode, sem mais, ser considerada como “dona da obra”, como se esta de uma qualquer empreitada particular se tratasse” – o que, conforme acima se demonstrou, não corresponde à verdade –, mostra-se indubitável que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado na Sentença sob recurso que a Recorrida é o Dono de Obra das Obras Objeto de Embargo, por ter interesse para a apreciação da exceção em apreço. RR. Em face de todo o exposto, não podemos senão concluir que a relação material controvertida em discussão nos presentes autos, tal como foi configurada pelos ora Recorrentes no Requerimento Inicial, é uma relação jurídica de índole puramente particular, subsumindo-se, por isso, à esfera de competência material dos tribunais judiciais. SS. Em suma: conforme demonstrado à saciedade supra, no caso concreto, resulta patente que não se verifica a presença da Administração na execução da obra em apreço, uma vez que a Recorrida não integra a Administração, sendo uma entidade de natureza privada, que não atua sequer dotada de “ius imperium”, na certeza de que a obra em apreço não está a ser realizada pela Administração, mas sim pela Recorrida, enquanto entidade privada, e, bem assim, que a relação jurídica controvertida não é regulada pelo direito administrativo, pois está em causa nos autos a violação do direito de propriedade e de direitos de personalidade dos Recorrentes. TT. O que está, pois, em causa nos presentes autos é a defesa de um direito real (artigo 1315.º do Código Civil) e de direitos de personalidade dos Recorrentes, que não surge ligada a qualquer relação jurídico-administrativa, mas antes a uma relação jurídica de direito privado. UU. Assim sendo, não pode senão concluir-se que, contrariamente ao defendido pelo Tribunal a quo na Sentença sob recurso, não têm aplicação aos presentes autos os artigos 399.º do CPC e 1.º e 4.º do ETAF, sendo portanto o Tribunal a quo materialmente competente para apreciar e decidir o litígio objeto dos mesmos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, 40.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário e 64.º do CPC. VV. Tal como explicitado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão proferido em 14.10.2021, “não cabe, assim, no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais julgar litígios no domínio das relações entre particulares, titulares de direitos reais, regidas pelas normas do Código Civil, da competência residual dos tribunais judiciais”. WW. Em face de todo o acima exposto, não poderá senão concluir-se que andou mal o Tribunal a quo ao ter decido julgar-se incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos, em clara violação do disposto nos artigos 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, 40.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário e 64.º do CPC. A apelada contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida ou, assim não se entendendo, pelo indeferimento da providência cautelar. 2. FUNDAMENTAÇÃO. A) OS FACTOS. O Tribunal a quo julgou: A.1. Provados os seguintes factos: a) Os Requerentes são proprietários e legítimos possuidores da fracção autónoma designada pela letra “J” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º … da freguesia de Santos-o-Velho e inscrito na Matriz Predial Urbana sob o Artigo ... da freguesia da Estrela, correspondente ao apartamento sito na Av. Infante Santo, ..., 1359-177, Lisboa, e ali residem com o seu filho menor. b) A Requerida é uma sociedade que se dedica à “Promoção imobiliária, compra e venda e revenda de imóveis adquiridos para esse fim, construção e reconstrução de imóveis, adjudicação e execução de empreitadas de obras públicas e particulares, arrendamento e gestão imobiliária, gestão de imóveis próprios e alheios, exploração de empreendimentos imobiliários e turísticos, planeamento de obras e elaboração de projectos para a construção civil”. c) A Requerida encontra-se a executar obras de construção no prédio contíguo à habitação dos Requerentes, sito na Calçada das Necessidades …, em Lisboa (doravante “Prédio em Construção”). d) As obras em execução pela Requerida no Prédio em Construção consistem na construção, para comercialização, de um empreendimento habitacional de luxo denominado “… Lapa”, a corresponde o alvará de licenciamento n.º … e na construção de um jardim público, a que corresponde o alvará de licenciamento n.º …, este último em construção numa “parcela” do Prédio em Construção que confina com a Avenida Infante Santo. e) No âmbito dessas obras de construção está a ser construída uma estrutura composta por um passadiço e um miradouro (ambos em estrutura metálica, implantados na parte do Prédio em Construção que confina com a Avenida Infante Santo [“Passadiço” e “Miradouro”]) e uma escadaria (em betão, tipo anfiteatro [“Anfiteatro”]). f) As obras de construção que no requerimento inicial estão descritas e identificadas como “Passadiço”, “Miradouro” e “Anfiteatro” consubstanciam as obras objecto do embargo a que se refere o presente procedimento cautelar. B) O DIREITO APLICÁVEL. O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso). Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela apelante consiste, tão só, em saber, se o tribunal recorrido é competente em razão da matéria para conhecer dos pedidos dos autos. Vejamos. Atenta a norma de competência residual dos tribunais judiciais contida no n.º 1, do art.º 40.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ), segundo o qual, “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, a decisão da questão sub judice pressupõe, antes de mais, a resposta à questão de saber se a presente causa é da competência dos tribunais administrativos, como decidiu o tribunal recorrido, uma vez que não o sendo deverá ser apreciada e decidida pelo tribunal a quo. A competência dos tribunais administrativos é estabelecida, antes de mais, pelo n.º 3, do art.º 212.º da Constituição da República Portuguesa e pelo n.º 1, do art.º 144.º, da LOSJ, segundo o qual, “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações … que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”. Tradicionalmente a pedra de toque para a delimitação dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais era constituída pelo poder de ius imperii que assiste a uma das partes nesse litígio, usualmente um órgão da administração pública na prossecução das suas atribuições e no exercício das suas competências de interesse público, como previsto no art.º 266.º e sgts. da Constituição da República Portuguesa (CRP), ou um ente privado em que esse mesmo poder foi concedido/delegado em conjunto com o interesse público da atividade que lhe foi cometida pela administração pública, como previsto no n.º 6, do art.º 267.º, da CRP. Só quando esse ius imperii estivesse presente se trataria de uma verdadeira relação jurídica administrativa, tratando-se na sua ausência de um ato de gestão privada em que a entidade da administração, apesar de o ser, agia nas mesmas condições em que o faria qualquer privado, embora sujeita aos princípios gerais que regulam a sua atividade administrativa, como dispõe o n.º 3, in fine, do art.º 2.º, do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Dec. Lei n.º 4/2015, de 07 de Janeiro. O atual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, alargou exponencialmente a competência dos tribunais administrativos, como resulta do disposto nos seus art.ºs 3.º, 4.º e 44.º e art.ºs 18.º, 20.º e 21.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro (CPTA), exigindo um grande esforço exegético na delimitação do que sejam as relações jurídicas administrativas[1] mas a citada pedra de toque não deixa de estar presente num grande número delas. No caso dos autos, não é parte no litígio qualquer entidade que integre a administração pública, nem entidade privada à qual tenha sido cometido o exercício de poderes públicos e como salientam os apelantes nas suas alegações, a relação material controvertida, tal como delineada na petição inicial, reporta-se apenas a duas entidades privadas, os apelantes e a apelada. Mas, apesar da natureza das partes no litígio e da relação material controvertida entre elas delineada pela requerente/apelante[2], nem por isso podemos concluir que estamos perante uma mera relação jurídica entre particulares, da qual estão ausentes as caraterísticas próprias das relações jurídicas administrativas e fiscais. Com efeito, como decorre dos próprios termos em que a apelante introduziu o feito em juízo nos art.ºs 77.º a 82.º da petição e acima consta sob o facto d) da matéria de facto, a requerida/apelante encontra-se a executar uma obra sujeita a licenciamento público, nos termos do disposto nos art.ºs 4.º e 6.º, este a contrario, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo Dec. Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, e que viu aprovado esse licenciamento pela entidade competente, que é a Câmara Municipal, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 5.º do mesmo RJUE e das als. y), z) e aa), do art.º 33.º, do Regime Jurídico das Autarquias Locais aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro. Nos termos do princípio da legalidade, aplicável à atividade administrativa licenciadora por força do n.º 1, do art.º 3.º, do Código do Procedimento Administrativo (CPA) aprovado pelo Dec. L n.º 4/2015, de 07 de Janeiro, segundo o qual “Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins”, tal ato de licenciamento deverá ter respeitado o quadro legal na matéria, de que destacamos os direitos de propriedade, de habitação e de privacidade da vida pessoal e familiar que os requerentes apelantes invocam na ação, mas se tal não tiver acontecido a sindicância do respeito pela legalidade do ato de licenciamento está arredada das competências dos tribunais judiciais por se tratar, seguramente, de uma relação jurídica administrativa. Como também resulta do n.º 1, do art.º 3.º do CPTA, ao dispor que “No respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam…”, os poderes de julgar os atos da administração pública no âmbito das relações jurídico administrativas são cometidas aos tribunais administrativos. Pretendem os apelantes que nestes autos estão apenas em causa as obras e os atos da apelada, que serão lesivos dos seus direitos, mas essa é uma visão redutora da realidade que eles próprios trazem aos autos, uma vez que a apreciação destes atos não pode ser feita sem a apreciação dos atos públicos de licenciamento, para a qual os tribunais judiciais não dispõem de competência material, por estar cometida à jurisdição administrativa. O que violará o direito dos apelantes, na sua própria perspectiva vertida na petição inicial, não será, ou não será apenas, a realização das obras pela apelada, mas o seu licenciamento e as condições desse licenciamento, a que se reportam os fatos d) a f), onde pontificam a construção de um jardim público municipal e a cedência de área de construção por parte da apelada para o efeito. E na apreciação que se impõe para decisão nos autos não poderá deixar de se englobar também a eventual ilegalidade dos atos de licenciamento, com a violação do direito de terceiros no âmbito da relação jurídica administrativa, para declaração da qual também os tribunais administrativos são os competentes, nos termos do disposto nas als. a) e f), do n.º 1, do art.º 4.º do ETAF. Aliás, a competência para o litígio tipificado nos autos, tal como delimitado pelas apelantes, de eventual lesão dos direitos de titular de direito de propriedade de prédio confinante, com a execução de obra objecto de licenciamento municipal, não estando em causa a violação dos termos desse licenciamento, como no caso parece não acontecer, é expressamente cometida aos tribunais administrativos pelo n.º 2, do art.º 4.º, do ETAF, quando dispõe que: “Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos…”. Esta atribuição expressa de competência é clara no que respeita à relação jurídica administrativa subjacente ao conflito dos autos, excluindo, assim, a aplicação da norma de competência residual do n.º 1, do art.º 40.º, da Lei n.º 62/2013. Improcede, pois, a questão e com ela a apelação. C) SUMÁRIO 1. É da competência dos tribunais administrativos a providência em que é formulado um pedido de Ratificação de Embargo Extrajudicial de Obra Nova e Providência Cautelar Não Especificada de obras relativas à construção de um jardim público no âmbito da construção de um empreendimento privado, quando essas obras foram objecto de licenciamento municipal, porque a apreciação desses pedidos pressupõe a apreciação dos atos públicos de licenciamento para a qual são competentes os tribunais administrativos, por terem a natureza de relação jurídica administrativa. 2. Nos termos do disposto nas als. a) e f), do n.º 1 e no n.º 2, do art.º 4.º, do ETAF, a providência deverá ser requerida contra o empreendedor privado e a entidade municipal licenciadora. 3. DECISÃO. Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida. Custas pela apelante. Lisboa 07-04-2022 Orlando Santos Nascimento Maria José Mouro José Maria Sousa Pinto _______________________________________________________ [1] Cfr, v. g., Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, pág. 26; Prof. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 9.ª edição, págs. 55 e 103; [2] Como decidiu o acórdão do Tribunal de Conflitos de 2/12/2021, publicado in dgsi.pt “Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor…”. |