Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1784/17.2T9AMD.L2-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
INDÍCIOS
DECISÃO INSTRUTÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Indícios não são prova. Os elementos recolhidos ao longo do inquérito ou da instrução são meramente indiciários, não se pode falar em prova, esta exclusivamente reservada para o julgamento.
II - O juiz de instrução, dentro dos limites da sua intervenção (sem oralidade, sem imediação e sem contraditório), tem, todavia, que proceder à apreciação dos elementos dos autos e procurar um grau de convicção semelhante ao julgamento, embora para atingir os juízos indiciários próprios desta fase processual (e não a prova).
III – Não é não, independentemente da conversa entre ambos mantida, que em momento algum revela assentimento da recorrente para aceder à proposta de teor sexual do arguido. Mais, mesmo que entre ambos houvesse um relacionamento amoroso ou até se fossem casados, não é não quero.
IV - A recorrente foi importunada porque teve de se confrontar com uma abordagem de natureza sexual, para a prática de actos de extrema intimidade, sem qualquer solicitação e fora de um âmbito de adequação social. A primeira coisa que o arguido fez foi tentar agarrar ou tocar a recorrente, que a levou a rejeitar com não faças isso, não me toques, e insistiu dizendo que queria uma quequinha. É indiscutível que esta abordagem socialmente desajustada e desrespeitadora, que continuou com um queres que eu explique mais?, revela o sentido des-subjetivante, que apenas transformou a recorrente num objeto sexual, numa res, à mercê da satisfação do arguido, o que viola o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CR Portuguesa).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No Juízo de Instrução Criminal da Amadora, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi proferida decisão instrutória com a seguinte parte decisória:
● não pronunciar o Arguido A, pela prática dos factos que lhe são imputados na Acusação Pública de fls. 593 a 599, integradores de um crime de perseguição (p. e p. pelo artigo 154.º-A do CP), de um crime de importunação sexual (p. e p. pelo artigo 170.º do CP), na forma consumada, e de um crime de coação (p. e p. pelo artigo 154.º, n.ºs 1 e 2 do CP), na forma tentada;
● não pronunciar a Arguida P. pela prática dos factos que lhe são imputados no Requerimento de Abertura de Instrução do Assistente A, integradores de um crime de gravações e fotografias ilícitas (p. e p. pelo artigo 199.º, nº 1 do CP).
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Inconformada, a assistente P. interpôs recurso da não pronúncia do arguido A, concluindo do seguinte modo:
“ a - Por sentença de 02/04/2020, proferida nos presentes autos, do Juízo de Instrução Criminal de Amadora, foi prolatado despacho de não pronúncia do Arguido A, da acusação formulada pelo Ministério Público, pelos crimes de perseguição, coação e importunação sexual.
b - A Recorrente não quer acreditar que o crime de que foi vítima fique impune, está incrédula com tanta "cerimónia" em acusar e levar a julgamento um predador sexual. Bem dizia este, " ... que por ser filho de um juiz, nada me acontece ... ".
c - Este despacho de não pronúncia é uma violação do Estatuto da Vítima e desconsidera o próprio Art.º 67°-A, do CPP, " ... Vítima: A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime ... ".
d - Bem como da Directiva 2012/29/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que que estabeleceu normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à protecção das vítimas da criminalidade.
e - O Meritíssimo Juiz do TIC a quo extravasou, com este despacho de não pronúncia, a sua competência, denegando a Justiça à Assistente, pois além de averiguar a existência de indícios, sua função natural, resolveu também proceder ao julgamento.
f - Este processo voltou à fase de inquérito, por determinação do acórdão desse Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/03/2019, porque descortinou os crimes de " ... ocorrendo falta de inquérito relativamente ao denunciado crime de perseguição p.p. pelo artº 154º do Código Penal (que constitui igualmente contra-ordenação muito grave, nos termos do nº 4 do artº 290 do Código de Trabalho), e quanto ao crime de importunação sexual p.p. pelo artº 170º do Código Penal (que não depende de queixa e que está consubstanciado na gravação efectuada). Fica prejudicado o conhecimento da questão objecto do presente recurso por se entender que a existência de nulidade insanável prevista no artº 119º alínea d) do CPP impõe a remessa/devolução dos autos ao MP para que realize as diligência relativas aos referidos ilícitos de perseguição e importunação sexual, e para que seja dado cumprimento ao estatuído na Convenção de Istambul e no Anexo à Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro, Estatuto da Vítima ... ".
g - E voltando o processo à fase de inquérito, e face às provas e aos indícios, o Digno Ministério Público deduziu acusação contra o arguido A, pelos crimes de perseguição (p. e p. pelo Art.º 154.º-A do CP) e de um crime de importunação sexual (p. e p. pelo Art.º 170.º do CP), na forma consumada, e de um crime de coação (p. e p. pelo Art.º 154.º, n.ºs 1 e 2 do CP), na forma tentada.
h - Com prova feita e consolidada - depoimento inicial da testemunha AD, depoimento consistente da Assistente, com fotografias, e uma gravação áudio, que captou uma parte importante da agressão e coação sexual.
i - Nos termos do Art.º 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), " ... consideram­-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança ... ".
j - E seguindo Carlos Pinto de Abreu, " ...indícios são os factos conhecidos e aceites de onde se extrai, por inferência lógica ou pelas regras da experiência ou através de leis científicas, a verificação de um facto histórico e que é comum identificar-se por "prova indiciária" ou, também dita, "prova lógica".
k - O Arguido requereu a abertura de instrução, num requerimento depreciativo para o Ministério e para a Assistente, repleto de inverdades, injúrias e deturpação dos factos, distorcendo a Lei de forma patente e maldosa.
l - Ora, perante os indícios carreados para os autos, sufragados por esse Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e pelo inquérito do Ministério Público, caberia ao Tribunal de Instrução validar a sua formalidade e capacidade de serem arguidos numa audiência de julgamento.
m - E nessa apreciação, o JIC recorrido não pode apreciar as provas com a aplicação do princípio in dubio pro reo, bastando que a força das provas, apreciadas e analisadas em audiência de julgamento, sejam capazes de levar a uma condenação.
n - Ao TIC não se exige a certeza, a certeza processual para além de toda a dúvida razoável, que só se obtém em sede de audiência de julgamento, conforme o Art.º 301.°, n.º 1, do CPP, ou, conforme as sábias palavras do Prof. Germano Marques da Silva - " ... Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação ... ".
o - Ora, o Meritíssimo Juiz do JIC recorrido entendeu, de forma estranha e enviesada, com todo o respeito, arrasar desde já com a acusação, denegando Justiça, não permitiu o contraditório das testemunhas, do depoimento do Arguido, caso este entendesse falar, da análise das provas por peritos, caso necessário, aderindo às teses da defesa de forma total.
p - Há indícios no inquérito que se podem modificar num julgamento, numa audiência pública e solene, com juramento e advertências para o falso testemunho. Há o princípio da oralidade, o confronto, o contraditório, o sanar imediato de dúvidas ou a confirmação de certezas.
q - Tudo isto foi varrido, no despacho recorrido, que sem mais procedeu a uma análise das provas e depoimentos, sem ter ouvido as testemunhas, quase exaustiva para denegrir/negar todas as conclusões do TRL e do MP, e lançar um labéu de mentirosos sobre a Assistente e a testemunha AD.
r - O Meritíssimo Juiz do JIC recorrido não explorou todos os conhecimentos dos intervenientes, dos acontecimentos, das instalações, nem esclareceu as dúvidas que levanta, como suporte da sua decisão, baseando-se apenas em presunções, sempre em benefício do arguido.
s - Inclusive, baseando-se nos testemunhos dos colegas de trabalho, que não foram sujeitos a contraditório, que não foram confrontados com o acesso às instalações, e, mais grave, nunca prestaram juramento, por isso presumir que falaram verdade é excesso de presunção.
t - No seu "julgamento", o Meritíssimo Juiz do JIC recorrido desvaloriza o depoimento da Assistente, ora dizendo ter falta de memória, impressões vagas, sentimentos confusos, ou pelo contrário, já tem memória a mais, não convincente pelos pormenores, etc.
u - Permitindo-se entrar dentro do direito laboral, sem ter meios de prova ou qualquer conhecimento do que realmente aconteceu com os processos disciplinares, levantados contra a Assistente.
v - Quanto à gravação áudio, prova quase inédita nestes processos, o despacho de não pronúncia recorrido alarga-se em considerações e, mais uma vez, em presunções do que não está contido, denegando factos e valor probatório. O facto de o arguido referir que fechou as instalações, que estão sozinhos, que quer dar umas berlaitadas, ali no local do trabalho, de dizer" ... se isto se sabe, estou feito ... ", nada disto é suficiente como prova de coação sexual, pois são pessoas adultas ...
w - Quando, na verdade, esta prova é fundamental, pois seguindo o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12/04/2020, " ... Em matéria de "crimes sexuais" as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais ... ".
x - Complementada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13/01/2016, quando estabelece " … 1 - O bem jurídico protegido (no crime de coacção) é a liberdade de decidir e de actuar: liberdade de decisão (formação) e de realização da vontade. Numa perspectiva estrutural poder-se-á dizer que a liberdade pessoal se analisa em dois âmbitos essenciais: a liberdade de decisão e de acção e a liberdade de movimento ... "
y - Assim, este despacho de não pronúncia, prolatado pelo Juízo de Instrução Criminal da Amadora, deve ser revogado por contrário ao espírito do Art.º 308.º, do CPP, pois extravasou a competência dada por este artigo, considerando insuficientes os indícios já analisados e validados por esse Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Ministério Público, denegando Justiça à Assistente e não permitindo o julgamento público de um predador sexual”.
O Ministério Público e o arguido apresentaram respostas ao recurso sustentando a improcedência do recurso, mas sem formular conclusões.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e dispensados os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
In casu, a recorrente invoca um único argumento: o despacho recorrido deve ser revogado por contrário ao espírito do Art.º 308.º, do CPP, pois extravasou a competência dada por este artigo, considerando insuficientes os indícios já analisados e validados por esse Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Ministério Público.
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III – Fundamentação
É proferido despacho de pronúncia se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, considerando-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – artigos 308.º, n.º 1 e 2 e 283.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
Indícios não são prova. Os elementos recolhidos ao longo do inquérito ou da instrução são meramente indiciários, não se pode falar em prova, esta exclusivamente reservada para o julgamento. Os juízos de prova só ocorrem com pleno contraditório, imediação, oralidade em audiência de julgamento. É aí, onde todos os princípios do processo penal são honrados e cumpridos, que operam os juízos de prova, com sujeição à imediação e oralidade de todos os depoimentos das testemunhas, declarações das partes e esclarecimento dos peritos (com o contraditório das instâncias), com o contraditório e confronto das partes e das testemunhas aos resultados periciais e teor dos documentos, podendo o exercício do contraditório implicar audição de nova prova testemunhal e documental – cfr. acórdão da Relação do Porto, de 29.01.2020, processo n.º 437/17.6T9FLG.P1.
Como se refere no acórdão do Relação do Porto de 07.12.2016, processo n.º 866/14.7PDVNG.P1, a avaliação dos elementos de prova com vista ao despacho de pronúncia, e que conduzem aos juízos de indícios, é feita de forma indirecta, sem imediação, sem oralidade, sem concentração e sem contraditório, e, por isso, não conduz ao mesmo grau de certeza dos juízos probatórios que se adquirem em julgamento.
Não obstante, o juízo indiciário a estabelecer na fase de instrução, como no termo da fase de inquérito, no que respeita à apreciação do material probatório e ao grau de convicção, há-de ser equivalente ao de julgamento, que não se compadece com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida. O juízo suficiente há- -de corresponder ao juízo probatório que em julgamento levaria à condenação, com o quadro probatório, no tempo e nas circunstâncias que determinam o despacho de pronúncia – cfr. acórdão da Relação de Évora de 16.10.2002, processo n.º 76/08.2MAPTM.E1, que cita Carlos Adérito Teixeira, Revista do CEJ, nº1 – 2004, pp 160 e 161. Vd em sentido idêntico J. Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo penal Português in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coord. F. Palma, Almedina-20 171 e 172, 180 e 181; Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora-2003 pp. 90-4 e Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-1968) pp.38 e 39.
Por isso é que não tem razão a recorrente quando refere que o juiz de instrução quis fazer o julgamento. Primeiro, porque o juiz de instrução não pode, por não ter ao seu dispor os tais princípios do processo penal, que só são honrados e cumpridos em julgamento e que permite operar os juízos de prova. O juiz de instrução, dentro dos limites da sua intervenção (sem oralidade, sem imediação e sem contraditório), tem, todavia, que proceder à apreciação dos elementos dos autos e procurar um grau de convicção semelhante ao julgamento, embora para atingir os juízos indiciários próprios desta fase processual (e não a prova). E é nesta perspectiva que, na dúvida razoável, o juiz de instrução pode e deve recorrer ao in dubio pro reo, princípio fundamental do direito penal e, como tal, não pode deixar de estar presente na decisão indiciária (própria da fase instrutória) sobre a matéria de facto.
Aqui chegados, cumpre apreciar se há ou não indícios suficientes para pronunciar o arguido.
O tribunal a quo dividiu os factos imputados ao arguido nos seguintes quatro quadros:
- Há um primeiro quadro geral descrito pela Acusação que dá conta de uma abordagem, praticamente diária, do Arguido à Ofendida, «através de contactos físicos, dirigindo-lhe insinuações sexuais e propostas de encontros com objectivos de cariz sexual»; de um regular recurso a «piadas obscenas»; de que o Arguido, «nessas circunstâncias, apalpava e tentava apalpar o corpo da ofendida»; que a «abraçava de rompante e tentava abraçar a ofendida», tentando inclusivamente e sempre que possível, «beijá-la na boca» - cf., por tudo, artigos 3.º a 7.º da Acusação Pública.
- Um segundo em que se alude à perseguição promovida no seio profissional, em face da recusa da Ofendida em aceder aos intentos do Arguido, consubstanciada, nomeadamente, em «inúmeras e sucessivas queixas à chefia direta da denunciante». Isto, sendo certo que o Arguido diria que as coisas ficariam bem caso esta consentisse em manter relações de cópula consigo – cf., por tudo, artigos 10.º a 13.º da Acusação Pública.
- Num terceiro momento, o Arguido é acusado de ter abordado a Ofendida, tanto de forma oral como física, constrangendo-a a manter um envolvimento sexual consigo, momento esse cujo registo sonoro foi feito pela Assistente, sem o conhecimento, tampouco consentimento, do Arguido – cf., por tudo, artigos 15.º a 22.º da Acusação Pública.
- Por fim, acusa-se ainda o Arguido, já no ano de 2018, ter começado a «fazer esperas», às horas de entrada e saída e junto da escola do filho da Ofendida, «fazendo gestos como cortar o pescoço, em manobra de intimidação e dessa forma causa[ndo] medo para que a mesma desistisse do presente processo» – cf. artigo 23.º da Acusação Pública.
Ora, relativamente aos primeiro, segundo e quarto quadros, é evidente que inexistem indícios suficientes para pronunciar o arguido. Apenas temos a versão da assistente (ora recorrente) a afirmar a existência destes factos. O arguido nega em absoluto. A testemunha AD, que já foi advogado da recorrente, não tem conhecimento directo dos factos, limitando-se a reproduzir o que lhe foi dito pela assistente. As restantes testemunhas inquiridas (colegas de trabalho) nada viram ou sabiam. Não há, pois, como pronunciar o arguido, que, como supra dissemos, beneficia do in dubio pro reo.
Restam os factos do quadro 3, alguns dos quais foram gravados pela assistente e que, talvez por isso, levou o arguido admiti-los como reais (pelo menos na parte confirmada pela gravação), sustentando que se tratou de uma conversa entre adultos e que surge porque e quando há um contexto.
O tribunal a quo refere o seguinte quanto ao que resulta da gravação: A gravação inicia-se espelhando aquilo que parece tratar-se uma abordagem do Arguido no sentido de manter uma relação de maior intimidade (inclusivamente física) com a Assistente a que esta responde «não faças isso, não me toques». As intenções deste são claras: propor a manutenção de relações sexuais entre ambos. Isso diz mal esta lhe pergunta «o que é que tu queres», respondendo diretamente: «uma quequinha». Aliás, este foi de tal forma claro que inclusivamente manifesta a sua surpresa (questionando surpreendido: «queres que eu explique mais?») perante a insistência da Ofendida em desenvolver a conversa e perguntar, recorrentemente, «mas o que é que tu queres?».
Comete o crime de importunação sexual, entre outras situações, quem importunar outra pessoa formulando proposta de teor sexual – art.º 170.º, n.º 1, do Código Penal.
Ilícito criminal criado pela Lei n.º 83/2015, de 05.08, em cumprimento da Convenção de Istambul, nomeadamente o seu art.º 40.º, que determina a adopção de medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para assegurar que qualquer tipo de comportamento indesejado de natureza sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o intuito ou o efeito de violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo, seja passível de sanções penais ou outras sanções legais.
Para Paulo Pinto de Albuquerque, no termo propostas estão incluídas “palavras ou sons exprimidos e comunicados pelo agente, tais como piadas, questões, considerações, exprimidas oralmente ou por escrito, bem como expressões ou comunicações do agente que não envolvam palavras ou sons, como por exemplo, expressões faciais, movimentos com as mãos ou símbolos.” – CP Anotado, 2015, pag. 642
Ora, uma pessoa (neste caso um homem) que aborda fisicamente uma mulher, só assim se compreende o não faças isso, não me toques, e que diz que quer uma quequinha, só pode ser entendido, no mínimo, como proposta de teor sexual.
Proposta sexual que foi rejeitada: não faças isso não me toques.
Não é não, independentemente da conversa entre ambos mantida, que em momento algum revela assentimento da recorrente para aceder à proposta de teor sexual do arguido. Mais, mesmo que entre ambos houvesse um relacionamento amoroso ou até se fossem casados, não é não quero.
Nas palavras de Dias Pereira, a prática do crime de importunação sexual “ofende a liberdade sexual, a liberdade de não ser importunado por terceiros, sem solicitação, fora de um âmbito de adequação social, para uma prática de extrema intimidade e que tem, na maior parte das vezes, um sentido des-subjetivante, apenas transformando a pessoa, normalmente uma mulher, num objeto, numa res, à mercê de uma observação do único sujeito da relação, o que viola o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP).” – citado por Mafalda Santos Costa, A Nova Incriminação da Importunação Sexual – Retorno ao Direito Penal dos Bons Costumes?, 2016, Universidade Católica, Porto.
O arguido e a recorrente estavam no local de trabalho de ambos, sítio onde as pessoas exercem dignamente a sua profissão, da qual depende o seu sustento, não sendo, por conseguinte, um espaço apropriado para este tipo de iniciativas de natureza sexual, sobretudo quando não reciprocamente queridas. É completamente desajustado proceder a actos de assédio sexual no local de trabalho, porque os trabalhadores têm deveres laborais a cumprir e, bem assim, porque as reacções de repúdio têm que ser comedidas e discretas de modo a evitar que a notícia se espalhe entre os colegas e surjam comentários desagradáveis, fragilizando e expondo muito mais a vítima.
O arguido é bem claro. Tentou fisicamente e continuou verbalmente de modo absolutamente explícito. A recorrente recusou desde o primeiro momento a proposta de cariz sexual. E isto é que relevante e não se a conversa continuou amena ou se se despediram cordialmente.
A recorrente foi ofendida na sua liberdade sexual, que foi manifesta e claramente importunada pelo arguido. A recorrente foi importunada porque teve que se confrontar com uma abordagem de natureza sexual, para a prática de actos de extrema intimidade, sem qualquer solicitação e fora de um âmbito de adequação social. A primeira coisa que o arguido fez foi tentar agarrar ou tocar a recorrente, que a levou a rejeitar com não faças isso, não me toques, e insistiu dizendo que queria uma quequinha. É indiscutível que esta abordagem socialmente desajustada e desrespeitadora, que continuou com um queres que eu explique mais?, revela o tal sentido des-subjetivante, que apenas transformou a recorrente num objeto sexual, numa res, à mercê da satisfação do arguido, o que viola o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CR Portuguesa).
Face ao exposto, há indícios suficientes para sujeitar o arguido a julgamento pelo crime de importunação sexual, pelos factos que surgem na gravação (cuja legalidade já foi apreciada em acórdão desta Relação já proferido nos autos).
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar a sua substituição por outra que pronuncie o arguido pelos factos reproduzidos na gravação (realizada pela assistente) para julgamento do arguido, em processo comum com intervenção do tribunal singular, pela prática, como autor material, de um crime de importunação sexual (art.º 170.º, do Código Penal).
Sem custas.

Lisboa, 12 de Janeiro de 2021
Paulo Barreto
Alda Tomé Casimiro