Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
248/05.1TBVPV.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: SUSPEIÇÃO
FUNCIONÁRIO DE JUSTIÇA
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - A circunstância de um funcionário judicial ser neto da autora poderá, quando muito, fundar incidente de suspeição do mesmo no que concerne à sua intervenção no processo na qualidade de funcionário (cfr. art.º 134.º do CPC), mas não constitui obstáculo à prestação de depoimento na qualidade de testemunha.
II – A aquisição, por usucapião, de uma servidão de passagem, com veículos a motor, através do prédio de outrem, pressupõe a demonstração de que durante um determinado período de tempo os titulares do prédio alegadamente dominante se serviram do prédio pretensamente serviente para passarem de carro entre a via pública e o seu prédio, de forma pública e pacífica, como se fossem titulares da correspondente servidão de passagem (artigos 1251.º, 1261.º, 1262.º, 1263.º alínea a), 1287.º e 1297.º do Código Civil).
III - Não existindo título de aquisição do direito nem registo do mesmo ou da mera posse, a posse que funda a usucapião deverá ter durado 15 anos, havendo boa fé, ou 20 anos, se a posse for de má fé (artigos 1294.º a 1296.º); no caso dos autos, uma vez que a posse não é titulada e nada se demonstrou em contrário, a posse tem-se de má fé (artigos 1260.º n.º 1 e n.º 2 do Código Civil).
IV – Uma vez que os autores gozavam da faculdade de passagem com a sua moto pelo prédio da autora, em termos de mera liberalidade, fruto de tolerância por parte da autora, a situação em causa não tinha a natureza de posse, mas de mera detenção (artigo 1253.º alíneas a) e b) do Código Civil).
V - Para que essa situação se transmudasse em posse era necessária a inversão do título da posse, ou seja, que os réus manifestassem expressamente à autora e aos outros titulares do direito incidente sobre o prédio alegadamente serviente o intuito de modificarem a natureza da sua actuação, que passaria a identificar-se com a titularidade de um direito real de servidão de passagem (artigos 1263.º alínea d) e 1265.º do Código Civil); por outro lado, era necessário que a servidão fosse aparente, que a posse fosse pacífica e durasse pelo menos 20 anos.
VI – Tendo-se provado que os réus derrubaram parte do muro divisório que existia entre o prédio da autora e o prédio dos réus, que os réus utilizam a rampa de acesso, localizada no prédio da autora, que liga a garagem existente no prédio da autora à via pública, para entrarem e saírem do prédio, inclusivamente com o seu veículo automóvel, de forma contínua e estacionam com frequência o seu veículo automóvel na rampa, impedindo o acesso à garagem existente no prédio da autora, que os réus abrem e mantêm aberto o portão de acesso à referida rampa e não permitem que a autora o feche, que em data não apurada de 1999 um neto da autora tentou fechar a cancela referida, para que os réus parassem com os comportamentos supra referidos, mas os réus impediram-no, tendo o neto da autora chamado a polícia, e que toda esta situação deixa a autora, pessoa idosa, perturbada, nervosa e ofendida, justifica-se a atribuição à autora, a título de indemnização por danos não patrimoniais, do montante fixado pela primeira instância, de € 1 000,00.
(JL)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 20.4.2005 Maria intentou, na comarca de Praia da Vitória, acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra José e mulher C....
A A. alegou ser cabeça de casal da herança indivisa aberta por morte de seu marido E..., com quem foi casada no regime da comunhão geral de bens. Desta herança faz parte um prédio urbano composto de casa e dependência para garagem, com quintal, sito na Vila das Lajes e que melhor identifica, o qual está inscrito no registo predial em nome de E... e foi comprado por este em 11.7.1959, por escritura pública, a D.... O dito prédio confronta a sul com um prédio urbano pertencente aos RR., que se compõe de uma casa e um reduto. No prédio da dita herança, junto ao muro divisório entre este e o dos RR., existe uma rampa de acesso que liga a garagem existente naquele prédio à via pública, rampa essa que é encimada por um portão de carro e fechado com uma cancela, aí colocada pelo marido da A.. Após a morte do marido da A., que ocorreu em Agosto de 1986, os RR. pediram a esta que os deixasse arrumar, à noite, uma moto que lhes pertencia numa dependência do prédio daquela. A A. autorizou-os a tal, por favor e em nome das boas relações de vizinhança. Entretanto, em data não anterior a 1999, os RR. derrubaram parte do muro divisório entre ambos os prédios, cimentaram o chão nesse local e passaram a utilizar a rampa para entrarem e saírem do seu prédio, inclusivamente com o seu veículo automóvel. Estacionam frequentemente o referido veículo na rampa, impedindo o acesso à garagem do prédio da herança, abrem e mantêm aberto o aludido portão, não permitindo que a A. o feche. Quando chove ou quando os RR. lavam algo no seu prédio, as águas correm todas para o prédio da A. devido à ausência do muro divisório e ao declive provocado pelo cimento colocado pelos RR. Em 1998 ou 1999 o neto da A. chegou a ser ameaçado pelos RR., ao tentar fechar o aludido portão, tendo aquele de chamar a polícia. Com estes comportamentos os RR violam o direito de propriedade da A. e causam danos não patrimoniais à A., que é pessoa idosa e doente.
A A. terminou pedindo que:
a) Seja declarado que o prédio identificado no n.º 2 da petição inicial em que se inclui a parcela de terreno com 61,44 m2 constituída pela rampa mencionada em 5 da p.i., pertence à herança indivisa aberta por morte de E..., com quem a A. foi casada no regime de comunhão geral de bens;
b) Seja ordenado o cancelamento de qualquer eventual registo que do mesmo prédio haja sido feito a favor dos RR.;
c) Os RR. sejam condenados a deixarem de utilizar a rampa mencionada em 5, designadamente para passarem, estacionarem veículos automóveis e entrarem e saírem do prédio id. em 4, bem como a absterem-se da prática de quaisquer actos sobre o prédio descrito em 2, nomeadamente sobre a rampa mencionada, e a não perturbarem o exercício pela A. dos direitos que lhe assistem sobre o mesmo prédio;
d) Os RR. sejam condenados a reconstruírem o muro divisório entre os prédios identificados em 2 e 4;
e) Os RR. sejam condenados a pagarem à A. uma indemnização pelos danos não patrimoniais causados no montante de € 1000,00, a que deverão acrescer juros de mora à taxa legal, contados desde a citação.
Os RR. contestaram, por excepção e por impugnação, e deduziram reconvenção. Por excepção arguíram a falta de legitimidade da A., pedindo a sua absolvição da instância. Por impugnação, alegaram que os antepossuidores do prédio dos RR., com autorização da A. e do seu falecido marido, derrubaram parte do aludido muro divisório há mais de 20 anos. Tal deveu-se ao facto de os proprietários da casa ora pertencente aos RR. terem dificuldade em utilizar o reduto da casa, onde hoje está uma garagem, para a via pública, com veículos motorizados. Os RR. e os antepossuidores do seu prédio sempre tiveram acesso a pé e de veículos motorizados para a via pública, através da rampa referida na p.i., há mais de 20 anos. Os RR. negaram ainda os restantes factos alegados na p.i., concluindo pela sua absolvição do pedido. Em reconvenção, os RR. pediram que a A. seja condenada a reconhecer o direito de servidão de passagem a pé e de veículos com motor a favor do prédio urbano dos RR. identificado no n.º 2 da p.i. e através do local devidamente demarcado, e ainda a condenar a A. a deixar de perturbar o exercício normal da servidão de pé e de carro para o acesso do prédio dos RR. à Rua ....
A A. replicou, pugnando pela improcedência da excepção de ilegitimidade e pela improcedência do pedido reconvencional, concluindo como na p.i.
A convite do tribunal, a A. juntou aos autos documento comprovativo da inscrição do prédio identificado em 2 da p.i. a favor da A. e outros, por herança de E....
Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a excepção da falta de legitimidade da A. e foi admitido o pedido reconvencional.
Procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e controvertida.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento e a final o tribunal proferiu decisão sobre a matéria de facto.
Em 23.3.2009 foi proferida sentença em que se formulou o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto:
I - Julga-se a presente acção parcialmente provada e procedente e, em consequência:
a) Declara-se que o prédio urbano composto de casa de dois pisos e uma dependência com garagem, com superfície coberta de 187 m2 e quintal de 297 m2, sito na Rua ..., vila das Lages, confrontado a norte com M..., a sul com B..., a nascente com E... e a poente com a Rua ..., descrito sob o n.º .... a fls. ... do Livro ..., na Conservatória do Registo Predial da Praia da Vitória e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ... em que se inclui a parcela de terreno com 61,44 m2 constituída por uma rampa de acesso que liga a garagem existente nesse prédio à via pública (Rua ...), com cerca de 19.20 m de comprimento e 3,20 metros de largura - pertence ao património comum indiviso do dissolvido casal constituído pela Autora e pelo seu falecido marido E... e à herança deixada pelo seu óbito;
b) Ordena-se o cancelamento de qualquer registo que do mesmo prédio haja sido feito a favor dos Réus;
c) Condena-se os Réus José e C... a deixarem de utilizar a rampa referida na alínea a), para passarem e/ou estacionarem veículos automóveis e a motor, e a restituí-la à Autora, bem como a não perturbarem o exercício pela Autora dos direitos que lhe assistem sobre tal prédio;
c) [por lapso, há duas alíneas c)] Condena-se os Réus José e C... a reconstruirem a parte do muro divisório entre os dois prédios, que derrubaram;
d) Condena-se os Réus José e C... a pagarem à Autora Maria a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais por ela sofridos em consequência da ocupação ilegítima, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde a data da citação (28.04.2005) até efectivo e integral pagamento.
II - Julga-se a reconvenção parcialmente provada e procedente e, em consequência:
a) Declara-se constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a pé, para acesso à via pública (Rua ...), através da rampa existente no prédio referido em I), a) para o rés-do-chão da casa de habitação do prédio urbano dos Réus, descrito sob o n.º ... da freguesia das Lages, na Conservatória do Registo Predial da Praia da Vitória, inscrito na matriz respectiva sob o artigo ... e condena-se a Autora/Reconvinda Maria a não perturbar o seu normal e correspondente exercício por parte dos Réus/Reconvintes;
b) Absolve-se a Autora/Reconvinda Maria do restante pedido reconvencional.
As custas da acção serão suportadas por Autora e Réus, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 1/5 para a Autora e 4/5 para os Réus -art. 446º do Código de Processo Civil.
As custas da reconvenção serão suportadas pelos Réus/Reconvinte e pela Autora/Reconvinda, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 3/5 para os primeiros e 2/5 para a segunda - art. 446º do Código de Processo Civil.”
Os RR. apelaram da sentença, tendo apresentado alegações em que formularam as seguintes conclusões:
A) A interposição do presente recurso assenta sobretudo, como se referiu em dois pontos:
- Discordância quanto à aplicação do direito;
- Apreciação incorrecta dos efeitos julgados provados dado que, entendem os RR, essa factualidade justificava plenamente uma decisão em moldes diversos da douta sentença.
B) Tendo em conta a matéria julgada provada nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 27, 28, 29 e 30 da douta sentença, impõe-se uma solução diversa em fase de interpretação dos mesmos dado que:
- Provaram os RR, que compraram o seu prédio urbano, identificado em nº.4 da p.i. em 4/3/1988 a B... e esposa H....
- E que a partir daquela data, quer os antepossuidores do prédio urbano dos RR utilizam a rampa existente entre o prédio dos RR e o prédio da A, a fim de terem acesso de pé do seu prédio para a via pública e vice-versa;
- E os RR desde 1988, que têm acesso de carro para a via pública e vice-versa para a garagem do seu prédio urbano;
- E isto de forma pública, pacífica, sem oposição de quem quer que seja ininterruptamente na convicção de exercerem um direito de servidão;
- Resultou também provado que a A. sempre teve e tem boa relação de amizade com os RR e seus filhos, convivendo com frequência, não sofreu qualquer medo ou receio pelo facto dos RR passarem na rampa, de pé e de carro;
- A principal testemunha da A., foi o seu neto, Sr. F..., funcionário da Secretaria Judicial do Tribunal da Praia da Vitória, pelo que o seu depoimento não podia ser levado em consideração pelo tribunal "a quo" por gerar à A. uma relação preveligiada do processo;
C) O tribunal "a quo" andou mal, pois em face de tais factos, não deveria ter julgado acção parcialmente procedente e provada e a reconvenção parcialmente procedente e provada, mas a acção improcedente por não provada, e a reconvenção totalmente procedente por provada, com todas as consequências legais;
D) Resultou, pois, indevidamente aplicados o disposto nos artigos 1311 e 1316 do Código Civil e 498 nº 4 do Código do Proc. Civil por total carência de substracto fáctico;
E) Nos termos do disposto no artigo 668 nº.1 al. c) do CPC é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, ora tal verifica-se não só pela incorrecta apreciação dos efeitos dos factos julgados provados que levaria de "per si” a uma decisão favorável aos RR.
Os apelantes terminaram pedindo que a sentença recorrida seja revogada e consequentemente os RR. sejam absolvidos do pedido e a A. seja condenada no pedido reconvencional, conforme consta da reconvenção.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões a apreciar neste recurso são as seguintes: se deve manter-se a sentença recorrida no que concerne ao petitório formulado pelos AA.; se deve conceder-se integral procedência ao pedido reconvencional.
Primeira questão (pedido dos AA.)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de Facto
1. A Autora foi casada com E..., no regime da comunhão geral de bens até ao falecimento deste, em 13 de Agosto de 1986;
2. Encontra-se inscrito a favor da Autora e de outros e descrito sob o n.º ..., a fls. ... do Livro ..., na Conservatória do Registo Predial da Praia da Vitória, um prédio urbano composto de casa de dois pisos e uma dependência com garagem, com superfície coberta de 18"7 m2 e quintal de 297 m2, sito na Rua ..., vila das Lages, confrontado a norte com M..., a sul com B..., a nascente com E... e a poente com a Rua ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...;
3. Anteriormente o prédio descrito em 2 encontrava-se inscrito na Conservatória da Praia da Vitória a favor de E...;
4. E... adquiriu o prédio, por compra, a D...;
5. Encontra-se inscrito a favor dos Réus e descrito sob o n.º ... da freguesia das Lages, na Conservatória do Registo Predial da Praia da Vitória, um prédio urbano, que se compõe de casa de rés-do-chão e 1º andar, com reduto de 147,95 m2, sito na Rua ..., vila das Lages, confrontando a norte e nascente com E..., a sul com G... e outra e a poente com a Rua ..., inscrito na matriz respectiva sob o artigo ...;
6. O prédio referido em 2 confronta a sul com o prédio referido em 5;
7. No prédio identificado em 2, junto ao muro divisório entre este e o prédio identificado em 5, existe uma rampa de acesso, que liga a garagem existente naquele prédio à via pública (Rua ...), com cerca de 19,20m de comprimento e 3,20 m de largura, totalizando uma área de 61,44 m2;
8. A rampa referida em 7 é encimada por um portão de carro com a mesma largura e fechado por uma cancela em ferro, aí colocada pela falecido marido da Autora;
9. Entre os prédios referidos em 2 e 5 existe um muro divisório, feito de blocos, com 60 a 70 cm de altura;
10. Uma parte desse muro foi derrubada, existindo acesso do prédio identificado em 5 para o prédio identificado em 2;
11. O local onde foi retirado o muro referido em 10, encontra-se cimentado, ficando com um declive, descendente em direcção ao prédio descrito em 2;
12. Os Réus utilizam a rampa descrita em 7 para entrarem e saírem do prédio identificado em 5, inclusivamente com o seu veículo automóvel, de forma contínua;
13. O prédio identificado em 5 encontrava-se antes inscrito na Conservatória do Registo Predial da Praia da Vitória a favor de B... e mulher H...;
14. Os Réus adquiriram o prédio identificado em 5, por compra a B... e mulher H...;
15. Após a morte do marido da Autora, os Réus pediram a esta que os deixasse arrumar, à noite, uma moto que lhes pertencia, numa dependência do prédio referido em 2, por não terem onde a guardar;
16. A Autora autorizou-os a tal;
17. Durante alguns anos, os Réus guardaram, à noite, a sua moto no prédio referido em 2;
18. O descrito em 10 ocorreu em data não determinada mas não anterior a 1999 e foi executado pelos Réus, os quais retiraram cerca de 7 a 8 metros de muro;
19. Os Réus estacionam frequentemente o seu veículo automóvel na rampa referida em 7, impedindo o acesso à garagem existente no prédio identificado em 2;
20. Tal como o fazem familiares dos Réus e outras pessoas que visitam a sua casa;
21. Os Réus abrem e mantêm aberto o portão de acesso à referida rampa e não permitem que a Autora o feche;
22. Os familiares da Autora que a visitam e pretendem arrumar os respectivos carros na rampa ou na garagem do prédio daquela, encontram frequentemente o carro dos Réus estacionado na aludida rampa, barrando-lhes a entrada, tendo de ir chamar os Réus para que retirem o veículo;
23. Quando chove ou quando os Réus usam a mangueira para lavar algo no seu prédio, identificado em 5, as águas correm todas para o prédio da Autora, identificado em 2, devido à ausência do muro divisório e ao declive mencionado;
24. Em data não concretamente determinada, mas situada por volta do ano de 1998, um neto da Autora tentou fechar a cancela referida em 8, amarrando-a com uma corrente, para que os Réus parassem com os comportamentos supra descritos;
25. Os Réus impediram-no de fechar a cancela, tendo o neto da Autora chamado a polícia;
26. A Autora é uma pessoa de idade avançada e desde que ficou viúva, viveu períodos de tempo, sozinha, ficando perturbada, nervosa e ofendida com os comportamentos dos Réus supra descritos;
27. No reduto do prédio identificado em 5 existe hoje uma garagem;
28. Os Réus e, antes deles, B... e mulher H..., há mais de 20 anos, que têm acesso a pé, da via pública para o prédio identificado 5 e vice-versa;
29. O chão da rampa (referida em 7) é constituído em parte por asfalto e em parte por cimento e o chão junto ao prédio dos Réus está cimentado;
30. O marido da Autora fez valas, a fim de captar as águas que vinham do reduto da casa dos Réus - captação esta que era feita através de um buraco no muro, junto ao solo existente nesse reduto - para armazenamento num poço, no reduto da casa identificada 2.
O Direito
Antes de mais, há que realçar que os apelantes, conforme decorre da conclusão A) das suas alegações, não pôem em causa a matéria de facto apurada pelo tribunal, mas tão só a apreciação que dela foi feita na sentença recorrida face ao direito e a conclusão a que se chegou em termos decisórios. Daí que apareça como incongruente o reparo que no recurso se faz à circunstância de o tribunal ter levado em consideração o depoimento da testemunha F..., neto da A. e funcionário do tribunal a quo. Por um lado, os RR. nada opuseram à inquirição da testemunha na altura própria, que era o final do interrogatório preliminar (artigos 636.º e 637.º do CPC). Por outro lado, a circunstância de a testemunha ser funcionário do tribunal não a impedia de depor na qualidade de testemunha (cfr. art.º 617.º do CPC). A aludida relação de parentesco da testemunha com a A. poderia, quando muito, fundar incidente de suspeição da mesma no que concerne à sua intervenção no processo na qualidade de funcionário (cfr. art.º 134.º do CPC), o que, contudo, não ocorreu e de todo o modo não constituiria obstáculo à prestação do aludido depoimento.
Constata-se ainda que nas suas alegações e conclusões os apelantes escrevem também que “ficou provado que desde 1988 que os RR. têm acesso de carro para a via pública e vice-versa para a garagem do seu prédio urbano”, “e isto de forma pública, pacífica, sem oposição de quem quer que seja ininterruptamente na convicção de exercerem um direito de servidão”. Os apelantes também escrevem, no recurso, que “resultou também provado que a A. sempre teve e tem boa relação de amizade com os RR e seus filhos, convivendo com frequência, não sofreu qualquer medo ou receio pelo facto dos RR passarem na rampa, de pé e de carro”.
Ora, esses factos não foram dados como provados na decisão sobre a matéria de facto, nem na sentença. Acresce que, como se disse, os apelantes não impugnaram a decisão sobre a matéria de facto. Para esse efeito teriam de indicar em concreto os pontos de facto sobre os quais incidia a sua discordância, o sentido em que no seu entender deveria ser a respectiva decisão e quais os concretos meios de prova que suportavam o seu entendimento, tudo nos termos previstos nos artigos 712.º n.º 1 alínea a) e 690.º-A do CPC (na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24.8., diploma que não é aplicável a estes autos – art.º 11º nº 1 do Dec.-Lei n.º 303/2007).
Assim, reitera-se, a matéria de facto a levar em consideração para apreciar o recurso é a supra enunciada, fixada pelo tribunal a quo.
Ora, dela resulta que a A. beneficia de inscrição, no registo predial, da titularidade, conjuntamente com outros, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária e testamentária de seu falecido marido E..., da propriedade do prédio identificado em 2. Conforme resulta da inscrição, a titularidade adveio-lhe por herança do seu marido, para além da meação adveniente do seu matrimónio, no regime de comunhão geral de bens, com aquele, que por sua vez adquiriu o imóvel por escritura de compra e venda (art.º 1732.º do Código Civil). A A. beneficia, assim, da presunção de titularidade prevista no art.º 7.º do Código do Registo Predial.
De resto, os RR. não questionam a titularidade do aludido direito real por parte da A..
O que os RR. invocam é que adquiriram, por usucapião, uma servidão de passagem, a pé e com veículos a motor, através do prédio da A., o que justificaria os actos de perturbação da posse e da propriedade referidos em 12, 18, 19, 20, 21, 22 e 25 da matéria de facto.
Ora, “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas” (art.º 1305.º do Código Civil).
A servidão de passagem poderá constituir uma das possíveis restrições ao direito de propriedade incidente sobre imóveis.
Com efeito, “servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.” – art.º 1543.º do Código Civil.
Podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor” – art.º 1544.º do citado diploma.
As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família – n.º 1 do art.º 1547.º do Código Civil.
Nos termos do art.º 1550.º do Código Civil,
1. Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.
2. De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio.”
A servidão de passagem também se pode fazer por logradouros de prédios urbanos, conforme decorre do art.º 1551.º do Cód. Civil.
A servidão exprime uma limitação ao direito de propriedade do prédio que com ela é onerado (prédio serviente), em favor do prédio que dela beneficia (prédio dominante).
Para se poder considerar a forma de aquisição originária do direito de propriedade, ou de qualquer direito real por via da usucapião, é necessário – não estando em causa forma de aquisição derivada ou presunção registral – avaliar se existem actos de posse e se a actuação do possuidor preenche os requisitos legais, de modo a que se possa afirmar a aquisição do direito real, in casu, do direito real menor que a servidão de passagem é (cfr. artigos 1251.º, 1252.º, 1257.º n.º 1, 1290.º, 1294.º a 1297.º do Código Civil).
Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 1548.º do Código Civil, “as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião.” No mesmo sentido estipula o art.º 1293.º, alínea a), do C. Civil. O n.º 2 do artigo 1548.º explicita que “consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes.”
Do supra exposto resulta que é longo o caminho a percorrer para se lograr o reconhecimento de direito de servidão de passagem sobre um determinado prédio, por usucapião.
Pretendendo os RR. lograr o reconhecimento da aquisição do aludido direito de passagem por usucapião, deveriam demonstrar que durante um determinado período de tempo se serviram do prédio da A. para passarem de carro entre a via pública e o seu prédio, de forma pública e pacífica, como se fossem titulares da correspondente servidão de passagem (artigos 1251.º, 1261.º, 1262.º, 1263.º alínea a), 1287.º e 1297.º do Código Civil). Não existindo título de aquisição do direito nem registo do mesmo ou da mera posse, a posse que funda a usucapião deverá ter durado 15 anos, havendo boa fé, ou 20 anos, se a posse for de má fé (artigos 1294.º a 1296.º). No caso dos autos, uma vez que a posse não é titulada e nada se demonstrou em contrário, a posse tem-se de má fé (artigos 1260.º n.º 1 e n.º 2 do Código Civil).
Ora, provou-se que após a morte do marido da A., a qual ocorreu em 1986, os RR. pediram à A. que os deixasse arrumar, à noite, uma moto que lhes pertencia, numa dependência do prédio referido em 2, por não terem onde a guardar. A A. autorizou-os a tal e durante alguns anos os RR. guardaram, à noite, a sua moto no prédio da A.. Poderá então dizer-se que a partir desse momento os RR. passaram a gozar da faculdade de passagem com a moto pelo prédio da A., para o efeito indicado. Tratava-se, porém, de uma situação de mera liberalidade, fruto de tolerância por parte da A., a qual não tinha a natureza de posse, mas de mera detenção (artigo 1253.º alíneas a) e b) do Código Civil).
Para que essa situação se transmudasse em posse era necessária a inversão do título da posse, ou seja, que os RR. manifestassem expressamente à A. e aos outros titulares do direito incidente sobre o prédio indicado em 5 o intuito de modificarem a natureza da sua actuação, que passaria a identificar-se com a titularidade de um direito real de servidão de passagem (artigos 1263.º alínea d) e 1265.º do Código Civil). Por outro lado, como se disse, era necessário que a servidão fosse aparente, que a posse fosse pacífica e durasse pelo menos 20 anos.
Ora, a este respeito provou-se que em data não determinada, mas não anterior a 1999, os RR. derrubaram parte do muro divisório que existia entre o prédio da A. e o prédio dos RR. (n.ºs 10 e 18 da matéria de facto). Mais se provou que os RR. utilizam a rampa de acesso, localizada no prédio da A., que liga a garagem existente no prédio da A. à via pública, para entrarem e saírem do prédio, inclusivamente com o seu veículo automóvel, de forma contínua e estacionam com frequência o seu veículo automóvel na rampa, impedindo o acesso à garagem existente no prédio da A. (n.ºs 2 e 19, 20 e 22). Por outro lado os RR. abrem e mantêm aberto o portão de acesso à referida rampa e não permitem que a A. o feche; em data não apurada de 1999, um neto da A. tentou fechar a cancela referida, para que os RR. parassem com os comportamentos supra referidos, mas os RR. impediram-no, tendo o neto da A chamado a polícia (nºs 21,24 e 25). Toda esta situação deixa a A. nervosa e ofendida (n.º 26 da matéria de facto).
Não se provou que a remoção de parte do muro foi feita há mais de 20 anos, pelos anteriores proprietários do prédio dos RR., com autorização da A. e do seu falecido marido, para facilitar a utilização do reduto da casa com veículos motorizados (resposta negativa aos quesitos 20.º e 22.º). Também não se deu como provado que os RR. utilizam a dita rampa para entrarem e saírem com o seu automóvel sem a oposição de quem quer que seja e na convicção de exercerem um direito próprio (resposta negativa aos quesitos 26.º e 27.º).
Apenas se deu como provado que os Réus e, antes deles, B... e mulher H..., há mais de 20 anos que têm acesso a pé, da via pública para o seu prédio, pelo prédio da A..
Ou seja, conforme se concluiu na sentença recorrida, os RR. não lograram terem adquirido posse da servidão de passagem de automóveis sobre o prédio da A. e muito menos terem exercido essa posse pelo tempo necessário à usucapião.
Ou seja, as condutas praticadas pelos RR. não têm justificação legal, pelo que constituem violação ilícita e culposa do direito real da A.. Nos termos previstos nos artigos 483.º, 562.º, 563.º e 566.º n.º 1 do Código Civil, os RR. devem reparar os danos causados, repondo a situação que existiria se não tivesse ocorrido o dano. Desde logo, deverão reconstruir o muro que destruíram. Por outro lado, os RR. deverão compensar a A. pelo sofrimento psicológico que lhe provocaram, patenteado no n.º 26 da matéria de facto, o qual assume suficiente gravidade para o efeito (art.º 496.º n.º 1 do Código Civil).
A idade avançada da A. e o demais circunstancialismo provado justificam o montante atribuído pelo tribunal a quo, de € 1 000,00.
A sentença recorrida merece, pois, ser confirmada, no que concerne à pretensão da A..
Segunda questão (se deve conceder-se integral procedência ao pedido reconvencional)
Como reverso da solução achada na análise da primeira questão, cabe concluir que também nesta parte a apelação improcede. Com efeito, os RR. não conseguiram demonstrar terem adquirido, por usucapião, a invocada servidão de passagem com veículos a motor sobre o prédio da A., em benefício do prédio dos RR..
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a sentença recorrida.
As custas da apelação são a cargo dos apelantes.
Lisboa, 17.6.2010
Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves
Ana Paula Boularot