Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
136/21.4GALNH-A.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DA ACUSAÇÃO ANTES DA PRODUÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/29/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DECIDIDO
Sumário: I - De harmonia com a Doutrina e Jurisprudência maioritárias, na fase de saneamento do processo prevista no artigo 311.º do Cód. Proc. Penal, o juiz não pode, salvo em situações muito concretas e excecionais, alterar a qualificação jurídica constante da acusação pública ou particular.
II - Sendo que neste domínio, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, publicado no DR I.ª Série, de 19/07/2013, veio a fixar como orientação vinculativa, que: «a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP».
III - Nesta conformidade, tendo a Mm.ª Juíza de determinado Juízo de Competência Genérica, em momento posterior ao acima indicado e antes da realização do julgamento (entretanto já objeto de remarcação), entendido que a factualidade constante da acusação pública não integrava um, mas antes, dois crimes de dano, p.(s) e p.(s) pelo artigo 212.º, n.º 1, do Cód. Penal, e determinado a remessa dos autos ao respetivo Juízo Central Criminal, para julgamento, por o limite máximo do concurso, assim resultante, exceder a competência do tribunal singular, tal decisão não se mostra legalmente consentânea.
IV – Manterá a sua competência para a respetiva efetivação, apenas podendo proceder à mencionada alteração de qualificação quando a prova for produzida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – 1.) Relatório:
A Mm.ª Juíza do Juízo Central Criminal de Loures – (Juiz 2), veio suscitar o presente conflito negativo de competência, em razão da matéria, a opor o respetivo Tribunal ao Juízo de Competência Genérica da Lourinhã, ambos da Comarca de Lisboa Norte, tendo em vista determinar qual deles deverá realizar o julgamento dos autos acima identificados, em que, entre o mais, o Arguido AA se mostra acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de dano, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º1, do Cód. Penal.
Sobre as razões que justificam tal dissídio, colhe-se dos despachos abaixo melhor identificados a seguinte argumentação:
i) Despacho de .../.../2023, proferido pela Mm.ª Magistrada judicial do Juízo de Competência Genérica da Lourinhã:
“Compulsados os autos, com vista à preparação da audiência de julgamento agendada, constatou-se que o arguido AA se encontra acusado da prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º n.º 1 al. do Código Penal (CP).
Porém, da leitura dos factos constantes da acusação, retira-se a existência de duas condutas distintas do arguido susceptíveis de ser integradas no tipo de crime de dano, com dois ofendidos diferentes (com efeito, é imputado ao arguido o facto de ter partido uma parte do muro da ofendida BB e, ainda, uma parte do muro da habitação do ofendido CC).
Não, há, pois, dúvidas de que o Ministério Público quis acusar o arguido pela prática de factos praticados sobre ambos os muros, pertença de duas pessoas distintas e de cuja factualidade, constante da acusação, se extrai a qualidade de ofendidos, sendo até contabilizado o prejuízo de cada um deles.
O número de crimes de dano praticados determina-se pelo número de vezes que a conduta do agente preenche o mesmo tipo de crime – cfr. artigo 212.º n.º 1 e 30.º n.º 1 do CP.
Dúvidas não restam, pois, de que os factos constantes do despacho de acusação são susceptíveis de configurar a prática de dois crimes de dano, e não de apenas um como, certamente por lapso, o Ministério Público indicou no final do seu despacho acusatório.
Há, pois, que proceder à alteração da qualificação jurídica constante daquele despacho, rectificando o lapso, que é manifesto e resulta inequívoco do próprio texto da acusação – cfr. artigo 380.º n.º 1 alínea b) aplicável aos despachos do Ministério Público, por via do disposto no n.º 3 do mesmo artigo e no artigo 97.º n.º 3, todos do Código de Processo Penal (CPC) – passando o arguido a estar acusado da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real de dois crimes de dano, p. e p. pelo artigo 212.º n.º 1 do CP.
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Estatui o artigo 16.º n.º 1 e 2 al. b) do Código de Processo Penal (CPP) que compete ao tribunal singular julgar os processos que por lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie, competindo-lhe, ainda, julgar os processos que respeitarem a crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão.
Por sua vez, prevê o artigo 14.º, n.º 2, al. b) do CPP que “compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de concurso de infrações, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime.”
Ora, a pena máxima aplicável ao concurso de crimes de que o arguido está acusado é de 6 anos de prisão, o que excede o limite máximo para julgamento perante tribunal singular – cfr. o disposto nos artigos 212.º n.º 1 do CP e 16.º n.º 2, alínea b) do CPP.
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É certo que o Ministério Público poderia, na acusação que deduziu, ter feito uma análise fundamentada das circunstâncias relativas à ilicitude, à culpa e à punibilidade da arguida, que justificassem a não aplicação de uma pena superior a 5 anos de prisão, recorrendo ao mecanismo previsto no artigo 16.º n.º 3 do CPP, caso em que o Tribunal singular seria competente.
Porém, analisada a acusação, constata-se que a mesma é absolutamente omissa quanto a tal juízo.
Por outro lado, não existe previsão legal que permita, nesta fase, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 16.º n.º 3 do CPP, uma vez que o conhecimento do concurso não foi superveniente, pois os factos imputados ao arguido já constavam da acusação, motivo pelo qual não se abrirá vista ao Ministério Público para esse efeito, o que se consigna.
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Conclui-se, assim, que nos termos do disposto nos artigos 16.º n.º 1 e 2.º al. b), 14.º n.º 2 al. b) e 19.º n.º 1 do CPP, 118.º n.º 1 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto e 86.º n.º 1 b) do DL 49/2014, de 27 de Março e mapa III anexo a tal diploma, é da competência do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Criminal de Loures, conhecer, apreciar e decidir dos presentes autos sendo, por conseguinte, este Juízo de Competência Genérica incompetente para a realização da audiência de julgamento que já se encontrava agendada, sob pena de nulidade insanável – cfr. artigo 19.º al. e) do CPP.
Com efeito, prosseguir com os presentes autos neste Juízo e realizar a audiência de julgamento, para, só no final, se proceder à alteração da qualificação jurídica ao abrigo do disposto no artigo 358.º n.º 3 do CPP, com a consequente declaração de incompetência, não acautelaria qualquer valor do processo penal e violaria os princípios da economia e da celeridade processual, com a prática de actos inúteis e o arrastamento do processo na sede errada.
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Face ao exposto, ao abrigo das disposições legais supra citadas, e ainda do disposto nos artigos 32.º n.º 1 e 33.º n.º 1 e 2 do CPP, declara-se a incompetência deste Juízo, em razão da matéria, para conhecer dos presentes autos e, uma vez que não há actos urgentes a praticar nesta fase, ordena-se a remessa do processo para o Tribunal Judicial de Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Criminal de Loures.
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Notifique e, após trânsito, proceda à remessa.
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Dá-se sem efeito a audiência de julgamento agendada para a presente data. Notifique e desconvoque pela via mais expedita.”
ii) Despacho de .../.../2023, proferido pela Exm.ª Juíza do Juízo Central Criminal de Loures – (Juiz 2):
“Conflito negativo de competência:
Foi distribuído ao presente Juízo os autos em epígrafe, após declaração de incompetência do Juízo de Competência Genérica da Lourinhã para a realização do julgamento.
A Mm. ª Juíza proferiu despacho em .../.../2023 (fls. 227 a 228 verso), aduzindo os seguintes argumentos: “… (porque acima já reproduzidos, não vamos renovar a sua transcrição, embora conste do original da decisão em epígrafe) …”.
Vejamos.
Ao arguido AA foi imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de dano simples, p. e p. pelo artigo 212.º n.º 1 do CP, cfr. fls. 85 a 86 verso.
Tal crime admite em abstrata pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.
Nos termos do disposto no artigo 311.º n.º 1 do CPP, “Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Por despacho proferido a fls. 129 e 129 verso foi recebida a acusação pública nos exatos moldes em que havia sido deduzida, o que se cita: “Recebo a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra AA, pelos factos e com a qualificação jurídica constante da acusação, que se dá por reproduzida e para onde se remete ao abrigo do disposto no artigo 311.º-A n.º 2 alínea a) do Código de Processo Penal (CPP).”
Entende-se que no momento em que foi efetuado o saneamento e recebida a acusação, o Tribunal Singular aceitou o processo tal como havia sido definido pela dedução da acusação por parte do Ministério Público, sendo certo que, ainda que se entenda que se poderia proceder à alteração da qualificação jurídica da acusação aquando do saneamento (1. Neste sentido, veja-se a anotação ao artigo 311.º efetuada pelo autor António Latas, págs. 43 a 44 do Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022), a verdade é que tal não foi efetuado no aludido momento, pelo que apenas tal poderá ocorrer após a produção de prova efetuada em julgamento, nos termos previstos no artigo 358.º n.º 3 do CPP.
Ao receber-se a acusação nos precisos termos fácticos e jurídicos, designar-se julgamento e posteriormente efetuar-se alteração da qualificação jurídica sem qualquer produção de prova, coloca em causa o princípio do acusatório previsto no artigo 32.º n.º 5 da CRP, sendo um dos seus corolários o princípio da vinculação temática que baliza as regras processuais penais.
Para o efeito, socorremo-nos do AUJ n.º 11/2013, DR 138 SÉRIE I de 2013-07-19, o qual fixou a seguinte jurisprudência: “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artº 358º nºs 1 e 3 do CPP.”
No douto aresto foi discutida a questão sobre se era possível efetuar-se a alteração da qualificação jurídica antes de se iniciar a produção de prova, tendo-se concluído o seguinte:
“(…), recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz-se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo-se exclusivamente por critérios de legalidade e de objectividade. (sublinhado nosso).
Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correcção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos.
Por último, saliente-se que a tese do acórdão recorrido conduz a uma solução, a nosso ver, inadmissível, pois a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público seria mero exercício anódino. O juiz, previamente ao julgamento do mérito, passaria a poder ingerir-se em competências alheias, estruturando substancialmente a acusação, elegendo e impondo aos sujeitos do processo a qualificação correcta, que nenhum previamente (na fase própria) contestara.
Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que actuar no momento processual que lhe compete. E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto.” (sublinhado nosso).
Acerca do artigo 338.º do CPP e com interesse para os autos é explicitado por Luís Lemos Triunfante (2. Vide págs. 400 e 401 do cit. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022) que “O tribunal não pode conhecer nesta sede sobre a alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação e, em consequência, apreciar em concreto a questão da competência do tribunal (…) ou a questão da legitimidade do MP. (…)
Depois de recebida a acusação ou proferido despacho de pronúncia, com a prolação do despacho respetivo a designar dia para a audiência, e antes de ser proferida sentença, atividade a levar a cabo só após ter sido realizada a audiência de discussão e julgamento, não se pode conhecer do mérito da ação. Somente é permitido o conhecimento de questões prévias ou incidentais que sejam suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa.
Assim, é ilegal o acórdão proferido no início da audiência, em que o tribunal coletivo, para chegar à conclusão expendida no mesmo, teve de fazer uma apreciação de fundo, ou seja, apreciação do mérito quanto às questões relacionadas com a matéria de facto contida na pronúncia e com a incriminação aí imputada aos arguidos sem previamente realizar a audiência.”
Por fim, importa trazer à colação o Ac. da Relação de Évora de 07/04/2015 (proc. 47/12.4ZRFAR-A.E1), disponível in www.dgsi.pt, que resolveu um conflito negativo de competência com semelhança à situação em causa nos presentes autos, transcrevendo-se os seguintes pontos do douto aresto: “A questão a decidir não pode deixar de apreciar da legalidade da decisão do tribunal coletivo que operou a requalificação jurídica dos factos vertidos na acusação em sede de audiência de julgamento, mas antes da produção da prova indicada pela acusação e pela defesa, pois está aí a génese deste conflito negativo de competência.
Tal tema não é novo e foi objeto de decisões contraditórias por banda dos tribunais superiores, resolvida pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 11/2013 (…)
Não vemos razão para divergir desta decisão do STJ, pois que, nesta Relação de Évora, sempre perfilhamos esse entendimento, nomeadamente no acórdão de 26 de Fevereiro de 2008, proferido no âmbito do recurso n.º 2736/07 – 1, publicado in www.dgsi.pt/jtre, mencionado no referido aresto, cujo sumário é o seguinte:
“1 – Proferido despacho a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, não pode, depois, o juiz proferir outro despacho a rejeitá-la, pois o seu poder de cognição ficou esgotado com a prolação do despacho de recebimento.
2 – Depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença, após realização da audiência de discussão e julgamento, o juiz não pode conhecer do mérito da acusação, mas tão-só de questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa - artigos 338.º, n.º 1 e 368.º, n.º 1, ambos do CPP.
3 - O art.º 338.º n.º1 do CPP apenas permite o conhecimento de questões prévias ou incidentais que sejam suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa - que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc.) ou adjectiva (incompetência do tribunal, desistência de queixa, ilegitimidade, etc.), acerca das quais não tenha havido decisão e de que possa desde logo conhecer.
4 - Fixado o tipo legal de crime, no despacho que recebeu a acusação, qualquer convolação ou alteração da qualificação jurídica só poderá ter lugar se vierem a ser apurados factos posteriores a esse momento que a ela conduzam. E tais factos, como é óbvio, só em julgamento se poderão apurar, após a produção de prova, com observância do princípio do contraditório.Como o Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve oportunidade de salientar, os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objeto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado (cf., v.g., Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 130/98, in www.tribunalconstitucional.pt).
Um processo penal como o nosso, de estrutura basicamente acusatória integrado por um princípio de investigação, admite, porém, que sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética (cf. art. 283.º do Código de Processo Penal), nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos.
Esta matéria encontra-se regulada nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal (CPP), que distinguem entre “alteração substancial” e “alteração não substancial” dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo, assim, apelo à definição constante do artigo 1.º, alínea f), do CPP, segundo a qual se considera alteração substancial dos factos “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis."
O n.º 3 do artigo 358.º do CPP, aditado pela Lei n.º 59/98, veio tornar aplicável o mecanismo previsto para a alteração não substancial dos factos “quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”
Por conseguinte, fora do circunstancialismo previsto nos aludidos artigos 358.º e 359.º do CPP não podem alterar-se os factos ou a qualificação jurídica descrita na acusação ou na pronúncia, se a houver.
Por outro lado, esta alteração do objeto do processo não pode ser decretada sem audição dos demais sujeitos processuais. Ela está sujeita a prévia comunicação e deve ocorrer em audiência de julgamento (veja-se a situação descrita no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 518/98 que levou à prolação do Assento n.º 3/2000)
O tribunal coletivo, ao proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, que já havia sido recebida e cuja qualificação não foi impugnada, em sede de contestação, pelos visados, convoca prova documental junta em sede de julgamento, cujo teor se desconhece, pois a deliberação é inócua a esse respeito, não mencionando o tipo de prova que considerou e o que de relevante se retira dela em termos factuais que levem à alteração da qualificação jurídica que operou.
Por isso que a alteração da qualificação jurídica operada pelo tribunal coletivo, antes da produção na audiência de discussão e julgamento da prova arrolada pela acusação e pela defesa, é manifestamente ilegal e afronta o acórdão de uniformização de jurisprudência supra referido. (sublinhado nosso).
Na verdade, nada impõe ou justifica que, antes de iniciada a audiência de discussão e julgamento, o tribunal faça, ou tenha de fazer, a apreciação da validade de quaisquer provas de índole documental, posto que juntas em fase de julgamento com a contestação dos arguidos.
Deste modo, entende-se que o Juízo de Competência Genérica da Lourinhã, não obstante os doutos fundamentos esgrimidos, não se poderia declarar, salvo melhor opinião, incompetente em razão da matéria no momento em que o fez, isto é, após o saneamento e recebimento da acusação e antes da realização da produção de prova em sede de audiência de julgamento.
Como tal, afigura-se-nos que o Juízo de Competência Genérica da Lourinhã é o competente em razão da matéria para realizar o julgamento dos autos.
Pelo exposto, declara-se o Juízo Central Criminal de Loures do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, incompetente em razão da matéria, configurando-se, assim, um conflito negativo de competência, nos termos do artigo 34.º n.º 1 do CPP, a dirimir pelo Exmo. Sr. Presidente da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do preceituado nos artigos 12.º n.º 5 a), 35.º n.º 1 e 36.º n.º 1, todos do CPP e 76.º n.º 2 da LOSJ.”
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I - 2.) Instruído o conflito e cumprido o disposto no art.º 36.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, apenas o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto se pronunciou, emitindo parecer (que fisicamente não consta do presente translado), no sentido de que “deve ser reconhecida a competência para julgar o caso ao juízo de Competência Genérica da Lourinhã. Se, findo o julgamento, porventura fosse caso de se aplicar pena de prisão superior a 5 anos, seria então nesse momento que deveriam os autos ser remetidos a tribunal colectivo – mas não antes.”
II - Apreciando:
II – 1.) Preceitua o art.º 34.º, do Cód. Proc. Penal, que:
1. Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido.
2. O conflito cessa logo que um dos tribunais se declarar, mesmo oficiosamente, incompetente ou competente, segundo o caso.
Dito por outras palavras, aquele “consiste na divergência entre dois ou mais tribunais em relação ao conhecimento de um feito jurídico-criminal, e surge quando mais do que um tribunal da mesma espécie (v.g. tribunal judicial) ou de espécie diversa (v.g. tribunal judicial e tribunal não judicial) se reconhecem ou não se reconhecem competentes para investigar e apurar a existência de um crime cuja prática é atribuída ao mesmo arguido.
Se todos os tribunais em oposição se arrogam competentes estamos perante conflito positivo; se declinam a competência ocorre conflito negativo.” (Neste sentido, cfr. a decisão singular datada 25/02/2022, no processo n.º 5193/20.8T8CBRR-A.L1, do Tribunal da Relação de Coimbra, disponível em www.dgsi.pt/jtrc).
No caso em apreço, é inequívoca a sua existência, mais concretamente, na segunda das modalidades apontadas.
Qualquer dos Tribunais aqui referenciados nega a sua competência material para a realização do aludido julgamento (atribuindo-a, o de Competência Genérica da Lourinhã ao Juízo Central Criminal de Loures), sendo que as respetivas decisões, ao que tudo indica, transitaram em julgado.
Da nossa parte, no que concerne à sucessão processual considerada relevante para a decisão do presente incidente, não haverá que fazer qualquer reparo ou acrescento à que se mostra exarada no despacho proferido por aquela segunda Mm.ª Juíza.
Sendo que, em termos práticos, a questão fundamental que no caso haverá que apreciar, acabar por se dirigir não tanto para um problema de competência, em sentido estrito, mas para a discussão da possibilidade de na apontada fase processual a Mm.ª Magistrada do Tribunal da Lourinhã ter suscitado a questão da alteração de qualificação jurídica que sustenta a sua incompetência.
II – 2.) Como é sabido, este é um domínio em que se não se verifica uma unicidade total de entendimentos ao nível Doutrinal e Jurisprudencial.
Desde logo, por referência ao momento do despacho de saneamento previsto no art.º 311.º - em qualquer caso, aqui já ultrapassado -, o Prof. Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal (Universidade Católica Editora, 3.ª Ed., pág.ªs 796/7), não deixa de categoricamente afastar tal possibilidade, que estende a “qualquer momento entre aquele e a audiência de julgamento”, pois que, “a solução da imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento judicial dos autos é a única consentânea com a proibição da sindicância do uso pelo Ministério Público da faculdade do art.º 16.º, n.º3”, que no seu entendimento, poderia ser defraudada pelo tribunal.
“Com efeito, se o juiz singular pudesse no despacho de recebimento e saneamento dos autos sindicar a qualificação jurídica feita na acusação do MP, ele poderia desse modo subverter o juízo do MP de determinação concreta da competência do tribunal singular, qualificando os factos mais gravemente e, em consequência, determinar a competência do tribunal colectivo. Por isso, o legislador consagrou a regra da irrecorribilidade do despacho de recebimento da acusação/pronúncia e designação de data para audiência (artigo 313.º, n.º 4). Por isso também, o legislador reservou explicitamente para a audiência de julgamento a discussão sobre as várias soluções de direito aplicáveis ao caso, “independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação e da pronúncia” (art.º 339.º, n.º 4). Em síntese, o legislador quis que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação (publica ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia, fosse discutida na audiência de julgamento e só nesse momento (…) podendo então os sujeitos processuais proceder a essa discussão jurídica sem quaisquer restrições ou vinculações à qualificação feita em momento anterior”.
Posição que não deixa de encontrar respaldo no mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, publicado no DR I.ª Série, de 19/07/2013, que fixou como Doutrina, que: «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP».
Já para o Comentário Judiciário do Código de Processo Penal (Almedina, Tomo IV, pág.ªs 43/4), haveria que distinguir as situações em que essa qualificação jurídica é pressuposto de decisão de saneamento, seja por via de uma nulidade a conhecer (v.g. incompetência do tribunal) seja por questão prévia que obste ao julgamento do mérito da causa (v.g. prescrição, amnistia), daquelas outras em que tal condicionalismo não se verifica.
No primeiro caso, o juiz “pode (e deve) qualificá-los diferentemente da acusação ou pronúncia, de acordo com o seu entendimento”. Já no segundo, não lhe caberia fazer essa alteração, “pois o legislador não lhe atribui o poder/dever de qualificar juridicamente os factos da acusação no despacho de saneamento”.
Sendo que esta última solução merece o aplauso expresso do respetivo Autor, não só porque a qualificação jurídica dos factos é da responsabilidade da entidade acusadora (MP ou assistente), “pelo que se o juiz nada tiver a decidir com base em diferente qualificação jurídica, deve o processo prosseguir para audiência de julgamento com a qualificação jurídica da acusação, sem prejuízo do disposto nos art.ºs 339.º/4 e 358.º/3 (…), como também, a mera qualificação antecipada dos factos no despacho de saneamento poderia constituir factor multiplicador de incertezas no caso de ser outro o tribunal (singular ou coletivo a realizar a audiência de julgamento.”
II – 3.) As considerações acima expostas assumem um valor sobretudo metodológico.
Como já dissemos, na situação que temos presente, aquele momento de saneamento previsto no art.º 311.º do Cód. Proc. Penal, já havia sido ultrapassado, sem que se tivesse, a esse propósito, operado qualquer reparo: “Recebo a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra AA, pelos factos e com a qualificação jurídica constante da acusação, que se dá por reproduzida (...)”.
No entretanto, interpôs-se também uma alteração das datas designadas para julgamento.
O motivo pelo qual as trazemos à colação, é que não se ignora que no contexto indicado, alguma Doutrina e Jurisprudência, que temos por minoritária, não deixou de apontar algumas objeções que no fundo se entroncam com a posição assumida pela Mm.ª Juíza do Tribunal da Lourinhã.
Assim, por exemplo, o Doutor Nuno Brandão, num artigo publicado na Católica Law Revue, apoiando a posição assumida pelo acórdão da Rel. de Guimarães de 14/09/2020, 715/19.0PCBRG.G1 (mas no mesmo sentido, cfr. acórdão da Rel. do Porto de 20/11/2013, no processo n.º 438/12.0SLPRT.P1), de admitir a alteração da qualificação jurídica dos factos aquando do saneamento do processo na fase do art.º 311.º do CPP, não deixou de ilustrar a bondade dessa solução “que poderia servir várias ordens de interesses, todos eles juridicamente reconhecidos”, designadamente, por motivos relacionados com a definição da competência.
Com efeito, “essa função saneadora marcará a requalificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia quando ela seja imprescindível, por exemplo, para assegurar que a causa é julgada pelo tribunal competente, para evitar o avanço de um procedimento que seja legalmente inadmissível (por prescrição do procedimento, caso julgado, ilegitimidade do Ministério Público, etc.) ou para aferir a legalidade de provas cuja admissibilidade esteja dependente da natureza do crime imputado ou da gravidade da pena aplicável. Neste tipo de situações, uma pronta requalificação jurídica dos factos poderá impedir que o processo avance para a realização de atos processuais que mais tarde serão inevitavelmente qualificados como inválidos, assim se prevenindo a prática de atos que terão tanto de ilegais como de inúteis. Com isso, será salvaguardado o princípio da economia processual e favorecer-se-á a celeridade processual.”
Mas também no já referido Acórdão do Supremo Tribunal n.º 11/2013, contra a Doutrina que fez vencimento - a de que a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova - o Exm.º Sr. Conselheiro Manuel Braz havia feito anotar na sua declaração de voto, que: “num tal caso, o juiz do tribunal singular, apercebendo-se do erro no início da audiência, deve, ao abrigo do artigo 338.º, declarar a incompetência material do tribunal, em função da correcta qualificação jurídica dos factos, remetendo o processo para o tribunal colectivo. Prosseguir com a audiência, para, no final, se declarar o tribunal incompetente, não acautelaria qualquer valor do processo penal e violaria os princípios da economia e da celeridade processual, com a prática de actos inúteis e o arrastamento do processo na sede errada.
Seja como for, no caso, ultrapassou-se aquela fase do saneamento do processo sem que tivesse sido aposta qualquer objeção à qualificação jurídica constante da acusação. A posição sustentada pelo Doutor Nuno Brandão traduz um entendimento minoritário e a posição do Exm.º Senhor Conselheiro Manuel Braz está derrogada pelo sentido da própria Doutrina fixada.
Donde, ainda que não sejam totalmente desvaliosas as razões mencionadas pela Exm.ª Magistrada do Juízo de Competência Genérica da Lourinhã no seu despacho de requalificação jurídica, a verdade é que numa perspetiva legal, à luz da Doutrina dominante e Jurisprudência fixada, não o poderia ter feito na fase ou momento em que o fez.
Nesta conformidade:
III – Decisão:
Nos termos e com os fundamentos indicados, decide-se dirimir o presente conflito, atribuindo a competência para a realização do julgamento nos presentes autos (com a qualificação jurídica constante da acusação proferida pelo Ministério Público), pelo menos até à produção da respetiva prova, ao Juízo de Competência Genérica da Lourinhã.
Sem tributação.
Cumpra-se o disposto no art.º 36.º, n.º 3, do CPP
Elaborado em computador. Revisto nos termos do art.º 94.º, n.º 2, do mesmo Diploma.

Lisboa, 29 de Janeiro de 2024
Luís Gominho