Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18591/15.0T8SNT.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: DECLARAÇÕES DE PARTE
VALORAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.–No que tange à função e valoração das declarações de parte existem três teses essenciais: (i) tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; (ii) tese do princípio de prova e (iii) tese da autossuficiência das declarações de parte.

II.–Para a primeira tese, as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária dos demais meios de prova, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes protagonizaram e tiveram conhecimento dos factos em discussão.

III.–A tese do princípio de prova defende que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.

IV.–Para a terceira tese, pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente.

V.–É infundada e incorreta a postura que degrada – prematuramente - o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte na sorte do litígio. O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório.

VI.–É expectável que as declarações de parte primem pela coerência e pela presença de detalhes oportunistas a seu favor (autojustificação) pelo que tais caraterísticas devem ser secundarizadas.

VII.–Na valoração das declarações de partes, assumem especial acutilância os seguintes parâmetros: contextualização espontânea do relato, em termos temporais, espaciais e até emocionais; existência de corroborações periféricas; produção inestruturada; descrição de cadeias de interações; reprodução de conversações; existência de correções espontâneas; segurança/assertividade e fundamentação; vividez e espontaneidade das declarações; reação da parte perante perguntas inesperadas; autenticidade

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Nuno Alexandre ... ... intenta ação declarativa de condenação contra Companhia de Seguros ..., Sa, peticionando a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 32.500, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação bem como os valores legais decorrentes do disposto nos Artigos 31º a 46º da LSO.

Fundamentando tal pretensão, alega que celebrou com a Ré um contrato de seguro incidente sobre um veículo Mercedes, o qual foi furtado, recusando-se a Ré a assumir o sinistro, invocando que o sinistro não ocorreu conforme participado.

Contestando, a Ré invoca diversa factualidade que apurou no âmbito do processo de averiguações, com base na qual mantém a sua posição de impugnação da ocorrência do sinistro. Conclui pela improcedência da ação.

Foi proferido despacho saneador, sendo indicado que os temas da prova da ação visam aferir se o facto participado à Ré como sinistro ocorreu como descrito e se encontra cobertura no âmbito do contrato de seguro celebrado, e qual a sua consequência (fls. 55).
Após julgamento, foi proferida sentença cujo dispositivo é o seguinte:
«O Tribunal julga a presente ação procedente por provada e, em consequência, CONDENA a Ré a pagar à Autora, a quantia de € 32.500,00 (Trinta e dois mil e quinhentos euros) acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento, mais ABSOLVENDO a Ré da instância quanto ao pedido de condenação por incumprimento do prazo de regularização do sinistro por incompetência do tribunal
*

Não se conformando com a decisão, dela apelou a Ré, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«1.-Em cumprimento do ónus que decorre para a Recorrente do disposto no art.º 640.º, n.º 1 do C.P.C., especifica a Recorrente que os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados são os pontos 2, 3, 4 e 6 dos factos provados, sendo que, em seu entender os mesmos deveriam ter sido dados como não provados, por ausência de prova por parte do Recorrido sobre os mesmos.
2.-Sendo a pretensão do Recorrido a de ser ressarcido pela Recorrente do prejuízo sofrido pelo alegado furto do veículo seguro por esta, e de acordo com as mais elementares regras de distribuição do ónus da prova, é dele o ónus da prova da ocorrência do furto, conforme do art.º 342 do C.C., e de ampla jurisprudência (a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.11.2012, disponível em www.dgsi.pt).
3.-A ação não poderá proceder se o Recorrido não lograr provar a efetiva ocorrência do furto, facto essencial que integra a causa de pedir e que fundamenta a procedência da pretensão do Autor.
4.-Entende a Recorrente que tal ónus não foi por aquele cumprido, pelo que mal andou o Tribunal recorrido ao dar como provado os factos acima impugnados (pontos 2, 3, 4 e 6 da matéria de facto provada), conforme se passará a demonstrar.

I–Da prova da ocorrência do furto exclusivamente por via das declarações de parte do Autor
5.-Conforme se disse, por via do presente recurso pretende-se impugnar a resposta de “provado” dada aos pontos 2, 3, 4 e 6 da matéria de facto que aqui nos escusamos de reproduzir.
6.-A pretensão do A. procedeu integralmente por via da prova dos factos acima expostos e ora impugnados [“(…) A versão do Autor, sustentada unicamente pelas suas declarações de parte, onde deu conta do modo como estacionou o veículo e como o mesmo desapareceu no dia seguinte, achando que foi vítima de furto, do qual fez queixa nas autoridades policiais e a participação de seguro, o que encontrou suporte nos poucos documentos por si juntos aos autos.” ], sendo que tais factos foram dados como provado com base unicamente nas
declarações de parte do Recorrido.
7.-Cientes de que o Tribunal recorrido goza de liberdade de apreciação das declarações de parte, crê-se ser evidente que não poderia o mesmo dar como provado o furto, nem os factos instrumentais com ele relacionados (por exemplo, a hora e o local do alegado estacionamento do veículo, a apresentação de queixa às autoridades ou o não aparecimento do mesmo até à presente data) exclusivamente com base nas declarações de parte do Recorrido.
8.-Não se pode olvidar o evidente facto de o Recorrido ser parte na causa e, como tal, ter interesse no desfecho da mesma, designadamente na procedência do pedido por si formulado, pelo que não poderão as respetivas declarações ser colocadas ao mesmo nível das declarações de testemunhas desinteressadas no desfecho da ação.
9.-Assim, aquela liberdade de apreciação das declarações de parte que a lei atribui ao julgador deverá ser temperada com uma necessária dose de ponderação acerca de interesse da parte da causa, impedindo que qualquer facto - seja ele qual for mas ainda menos factos essenciais que integram a causa de pedir -, seja provado única e exclusivamente com base em tais declarações.
10.-Tanto mais, quando se trate de factos que, pela sua natureza, permitem a respetiva prova por outra via: recorde-se que estamos a falar do furto de um veículo que o Recorrido alega ter estacionado em determinado lugar, em determinado dia e hora, e que alega ter o mesmo desaparecido, nunca mais tendo sido localizado.
11.-Sendo certo que se afasta o encargo diabólico de o Recorrido apresentar prova, seja ela testemunhal ou documental, do momento concreto do desaparecimento do veículo - não sendo expectável, pela natureza das coisas, que tal facto tivesse sido presenciado por terceiros -, já o mesmo não se poderá dizer quanto aos factos instrumentais alegados, e que o Tribunal recorrido entendeu provados apenas por via das declarações de parte do Autor.
12.-Com base em que prova é que o Tribunal recorrido deu como provado que (i) no dia 06.04.2015, pelas 20h00, o Autor estacionou o veículo automóvel de matrícula 18-PF-59, em Casal de Cambra, perto da sua residência, (ii) que no dia seguinte, 07.04.2015, pelas 09h30, o Autor ao deslocar-se ao veículo para seguir para o trabalho, verificou que o mesmo não se encontrava no local onde o deixou na noite do dia anterior, (iii) que após procura e sem encontrar o veículo, apresentou queixa do seu desaparecimento junto da Polícia de Segurança Pública e (iv) que o veículo automóvel não foi localizado até à presente data?
13.-A resposta é simples: com base, única e exclusivamente, nas declarações de parte do Autor, pois nenhuma testemunha ou documento foram apresentados por forma a corroborar tais declarações, escassez probatória que, aliás, o Tribunal reconhece, o que ainda mais censurável torna a sua decisão.
14.-Tendo em conta a natureza do risco aqui em análise - furto do bem seguro -, o mínimo que se exigia ao Recorrido era a prova, por outra via que não apenas as suas declarações na qualidade de parte interessada, de que estacionou o veículo no dia, hora e local alegados, que deu pela sua falta no dia e hora também por si alegados e que nunca mais teve qualquer notícia sobre o paradeiro do veículo.
15.-No limite, e ainda dentro das fronteiras aceitáveis dos encargos probatórios impostos às partes, cabia ao Recorrido a prova de que fazia uso do veículo que afirmou ter adquirido para seu uso pessoal.
16.-Pela natureza das coisas, é evidente que todos estes factos poderiam – e deveriam - ter sido corroborados por via de prova testemunhal pois, ainda que o Tribunal recorrido tivesse tido por credíveis as declarações de parte do Autor, a verdade é que as mesmas não poderão ser tidas como um meio de prova, muito menos quando desacompanhadas de qualquer meio de prova que as corrobore.
17.-Donde, as declarações da parte interessada na procedência da causa, sem que tenham sido corroboradas por qualquer outro meio de prova, não poderão valer como prova de factos favoráveis a tal procedência, impondo-se, por isso, que os factos em causa não pudessem ter sido dados como provados, como determina inúmera jurisprudência da qual citamos, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.11.2014, disponível em www.dgsi.pt, onde se sumaria que “As declarações de parte (art.
466 do CPC) ou o depoimento de um interessado na procedência da causa não podem valer como prova de factos favoráveis a essa procedência se não tiverem o mínimo de corroboração por um qualquer outro elemento de prova”.
18.-Com efeito, pode ali ler-se que “Como já se defendeu no acórdão do TRP de 26/06/2014, 97564/13.8YIPPRT.P1, não publicado, é certo que atualmente já se admite o “testemunho” de parte, a que se chama declarações de parte (art. 466 do CPC) e a lei diz que o juiz aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão. Mas a apreciação desta prova faz-se segundo as regras normais da formação da convicção do juiz. Ora, em relação a factos que são favoráveis à procedência da ação, o juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento desse mesmo depoente, interessado na procedência da ação, deponha ele como “testemunha” ou preste declarações como parte, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas.
(...)
Ou seja, é necessária a corroboração de algum outro elemento de prova. A prova dos factos favoráveis aos depoentes não se pode basear apenas na simples declaração dos mesmos.” (sublinhado nosso).
19.-No mesmo sentido, vai o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.09.2014, também disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler que “As declarações de parte [artigo 466o do novo CPC] – que divergem do depoimento de parte – devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação.
Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.”, lendo-se adiante que “inexistindo outros meios de prova que minimamente corroborem a versão da parte, o mesmo não deve ser valorado, sob pena de se desvirtuar na totalidade o ónus probatório e que as ações se decidam apenas com as declarações das próprias partes.”
20.-Acresce que, no que respeita ao ponto 4 ainda há que tal ponto da matéria de facto, comporta em si dois factos distintos: (i) que o Autor apresentou queixa à PSP pelo desaparecimento do seu veículo e (ii) que a PSP o notificou da possibilidade de deduzir pedido de indemnização civil.
21.-À míngua de demais prova produzida pelo Autor a este respeito, o fundamento de tal resposta assentou nas declarações de parte prestadas pelo Autor, ora Recorrido, mas alude ainda o Tribunal recorrido ao documento de folhas 10 (doc. 02 junto à p.i.) por reporte, apenas e só, ao último segmento do facto (que a PSP notificou o Autor da possibilidade de deduzir pedido de indemnização civil).
22.-Ora, salvo o devido respeito, parece-nos por demais evidente que não resulta do documento de folhas 10 a apresentação de queixa às autoridades, o qual se traduz, apenas e só, num mero termo de notificação.
23.-Saliente-se que tal documento também não se pode ter como apto à prova de que, na sequência de tal queixa, foi o Recorrido notificado da possibilidade de deduzir pedido de indemnização civil no fim do inquérito porquanto, de tal documento, não resulta qualquer evidência sobre a participação efetuada às autoridades pelo Recorrido, nem tão pouco sobre os factos participados (o Recorrido omitiu a junção do auto de ocorrência levantado aquando de tal alegada participação).
24.-Face ao exposto, incorreu o Tribunal recorrido numa manifesta violação das regras relativas à distribuição do ónus da prova, bem como do art..º 466.º do C.P.C.
25.-Ora, a impossibilidade de se poder dar como provado que o Recorrido apresentou queixa do furto às autoridades releva na medida em que, nos termos das Condições Especiais da apólice junta aos autos, em concreto da Cláusula 4.ª da cobertura facultativa de furto ou roubo, a Recorrente só está obrigada ao pagamento da indemnização decorridos 60 dias
sobre a data da participação às autoridades competentes.
26.-Atendendo a que tal participação não se pode dar como provada, não se poderá considerar a Recorrente constituída na obrigação de indemnizar o Recorrido, motivo pelo qual, e também por esta via, mal andou o Tribunal recorrido ao condenar a Recorrente.
27.-Porque mais nenhuma prova foi produzida a este respeito, não poderia o Tribunal recorrido ter considerado provado que (i) no dia 06.04.2015, pelas 20h00, o Autor estacionou o veículo automóvel de matrícula 18- PF-59, em Casal de Cambra, perto da sua residência, (ii) no dia seguinte, 07.04.2015, pelas 09h30, o Autor ao deslocar-se ao veículo para seguir para o trabalho, verificou que o mesmo não se encontrava no local onde o deixou na noite do dia anterior, (iii) após procura e sem encontrar o veículo, apresentou queixa do seu desaparecimento junto da Polícia de Segurança Pública, que o notificou da possibilidade de no fim do inquérito, deduzir pedido de indemnização civil e que (iv) o veículo automóvel não foi localizado até à presente data, requerendo-se que se dê como não provados tais factos, o que implica que, não se provando o furto, facto que integra o núcleo essencial da causa de pedir do Recorrido, seja a Recorrente absolvida do pedido.
Sem conceder,

II.–Reapreciação da prova gravada - Da prova produzida pela Recorrente e desconsiderada pelo Tribunal recorrido
28.-A falta de prova, por parte do Recorrido, do facto essencial consubstanciado no furto do veículo, faz falecer, desde logo, a sua pretensão, mas não se pode deixar de assinalar a incorreta avaliação probatória que o Tribunal recorrido fez da prova produzida pela Recorrente e, consequentemente, do erro de julgamento da matéria de facto em que incorreu ao não dar como provados os factos por si alegados em sede de contestação.
29.-Para fundamentar a sua convicção de que o furto não teria ocorrido de forma inesperada, alegou a Recorrente, em suma, que (i) o Recorrido faltou à verdade quando declarou trabalhar numa gráfica, tendo a Recorrente apurado que a entidade onde o Recorrido declarou trabalhar se dedica ao comércio de automóveis, (ii) o Recorrido se encontra ligado ao comércio de automóveis o que se concluiu do facto de o seu número de telemóvel surgir associado a inúmeros anúncios de venda de carros,
(iii) o Recorrido não fez prova do alegado custo de aquisição do veículo seguro nem do sujeito a quem o adquiriu, (iv) a ligação do Recorrido ao comércio automóvel decorre, também, do elevado número de apólices de que o mesmo já foi tomador e que (vii) apresentou as chaves do veículo seguro com uma etiqueta com o modelo do mesmo, o que foge à normalidade.
30.-Entende a Recorrente que produziu prova documental e testemunhal bastante para que tais factos fossem dados como provados e, consequentemente, considerados na decisão final.
31.-Não pode a Recorrente concordar com a fundamentação da sentença a qual, salvo melhor opinião, incorre na adoção de uma visão absolutamente limitadora que não se coaduna com o propósito maior de ter em conta todos os factos relevantes para a boa decisão da causa.
32.-Ainda que se tenha presente que o facto essencial em discussão é a ocorrência do furto, também os factos alegados pela Recorrente são relevantes na medida em que pretendem estender a visão do Tribunal a um alcance muito maior do que a mera do que a simples alegação do desaparecimento de um veículo.
33.-A convicção do Tribunal não pode deixar de ser adquirida com base na apreciação conjugada e crítica de toda a prova produzida nos autos, à luz das regras da experiência comum e de acordo com juízos de normalidade, bem assim, como na posição processual manifestada pelas partes.
34.-Nenhum ato de vontade surge do nada, e todos assentam em motivações, interesses ou desejos; as ações humanas têm, regra geral, um encadeamento lógico e padronizado, obedecendo a intenções e visando a prossecução de determinados objetivos e integrando-se num quadro social de comportamentos que está padronizado.
35.-E crê a Recorrente que é neste quadro que cumprirá aquilatar da validade epistémica das versões dos factos trazidas a juízo: estamos perante versões diversas dos factos e, sendo ambas válidas do ponto de vista formal, cumpriria validar a hipótese que se apresenta como a mais provável atendendo à conjugação da prova produzida com as regras de corroboração da experiência (sintomas da verdade).
36.-Quando se adquire uma viatura automóvel há sempre um interesse a satisfazer e que justifica o dispêndio de uma quantia em dinheiro, o que faz com que, neste tipo de negócios o comprador assuma determinadas cautelas, mormente quanto à prova do pagamento do preço e na identificação do vendedor.
37.-Ora, veio o Recorrido alegar que é tomador do contrato de seguro relativo a uma viatura automóvel, o qual abrange a cobertura de furto ou roubo do bem seguro, e que esse bem foi, efetivamente, furtado.
38.-Do ponto de vista formal, certo é que tanto bastaria para que a ação judicial tivesse provimento (o que no caso em apreço nem sequer ocorre tendo em conta o que se deixou exposto no capítulo anterior), mas caberá ao Tribunal fazer uma análise crítica da prova, e da própria posição processual assumida pelas partes e perceber em que contexto o bem teria sido adquirido, pois não se bastará a atividade probatória com a verificação da existência de indícios meramente formais.
39.-Na verdade, um dos elementos que usualmente é reconhecido como indiciador da existência de simulação é exatamente a preponderância dos argumentos de ordem formal: o recurso a documentos registais (documento único automóvel), a celebração de contrato de seguro, pagamento do prémio.
40.-Todavia, considerados isoladamente, não são mais do que documentos figurativos que visam infirmar a inexistência de qualquer ato de posse.
41.-Por seu turno, no que concerne aos elementos recolhidos pela Recorrente durante a averiguação, os quais o Tribunal entendeu desconsiderar apenas e só porque “faltam premissas essenciais” para a conclusão de que o Recorrido obteria uma vantagem patrimonial com a participação e regularização do furto, note-se que não se pode esperar uma prova direta e imediata dos mesmos, porquanto este tipo de condutas são propositadamente dissimuladas tendo em vista criar uma aparência de verdade.
42.-Mas os elementos de prova devidamente conjugados são abundantes e não suscitam dúvidas sobre a existência daquele benefício – estamos, conforme se verá, perante uma hipótese clara, coerente, provável e demonstrada.
43.-Donde, cumpre proceder à reapreciação da prova gravada com base na qual, entende a Recorrente, deveriam ter sido dados como provados os factos por si alegados e, consequentemente, ponderados na decisão final.
44.-Ainda que o Recorrido não tenha apresentado qualquer prova testemunhal, prestou declarações de parte, decorrendo das mesmas que não identificou cabalmente o vendedor do veículo, nem concretizou a quantia exata que despendeu ou o modo de pagamento, conforme o declarado entre os minutos 00:02:22 e 00:04:45 do seu depoimento, e ainda entre os minutos 00:12:39 e 00:13:16 (depoimento prestado na sessão de 29.09.2016 e transcrito no corpo das alegações), omissões que não se coadunam com as mais elementares regras da experiência comum.
45.-Tendo em conta que a aquisição de um veículo é um ato de relevo na vida económica das pessoas em geral, que importa o dispêndio de quantias avultadas, que no caso em concreto o Recorrido declarou que se tratava de um veículo que há muito queria adquirir e com determinadas características, não é credível que o mesmo não disponha de qualquer documento comprovativo da aquisição, nem que não consiga confirmar, com exatidão, as formas de pagamento e os montantes envolvidos.
46.-Neste sentido vão também as declarações da testemunha da Recorrente Luís Filipe Rafael (LR), prestadas no dia 04.11.2016, entre os minutos 00:08:53 e 00:12:01 (depoimento transcrito no corpo das alegações).
47.-Face a tais depoimento, deveria o Tribunal recorrido ter concluído que o Recorrido não fez prova do alegado custo de aquisição do veículo seguro nem do sujeito a quem o adquiriu, omissão que ocorreu não só em sede de averiguação, mas que se manteve em sede judicial e que não se coaduna com as mais elementares regras da experiência comum.
48.-Também em relação aos demais factos alegados pela Recorrente, as testemunhas por si arroladas relataram detalhadamente os elementos recolhidos durante a averiguação, depoimento esse que, no entender da Recorrente, deveria ter levado à prova dos factos alegados em sede de contestação e acima elencados.
49.-Assim, atente-se no depoimento da testemunha Luís Filipe Rafael (LR), em relação aos factos relacionados, por um lado, com a atividade profissional do Recorrido e com a ligação do mesmo ao comércio automóvel, e, por outro, à sobrevalorização do veículo, nomeadamente entre os minutos 00:12:47 e 00:15:31, 00:23:58 e 00:26:09, e 00:29:44 e 00:32:03.
50.-Acresce que os anúncios de venda de veículos a que a testemunha se referiu encontram-se junto aos autos como doc. 05 da contestação e, do confronto entre esse documento e o doc. 06 da mesma peça processual (declarações escritas do Recorrido ao averiguador da Recorrente), constata-se a referida identidade do contacto telefónico, pelo que, quer a prova testemunhal, quer a prova documental, apontam no mesmo sentido: o de que o Recorrente procede ao comércio de automóveis, ao contrário do que declarou em sede judicial.
51.-Note-se que a Declaração Aduaneira do Veículo (a referida DAV) também se encontra junta à contestação como doc.07, motivo pelo qual, do confronto entre o valor de aquisição aí constante com o valor do capital seguro resultante da apólice,
52.-A questão de o Recorrido surgir como tomador em inúmeras apólices do ramo automóvel foi também objeto de depoimento da referida testemunha entre os minutos 00:33:36 e 00:34:51, de acordo com o excerto acima transcrito, situação que confirmou a ligação do Recorrido ao ramo automóvel.
53.-Conforme decorre do senso comum, o normal é que, uma pessoa que não se encontre ligada ao ramo automóvel, tenha um número de apólices baixo e com um período de duração longo, correspondente ao número de veículos que vá possuindo ao longo da vida.
54.-Alguém que se apresente como tomador de um número elevado de apólices de curta duração, e conforme a testemunha explicou – não sendo, sublinhe-se, um ato ilícito e, como tal, não havendo qualquer motivo para a sua omissão -, a conclusão óbvia é a de que não mantém tais veículos na sua posse por muito tempo, sintomático de quem se encontra ligado à compra e venda destes bens.
55.-Acresce que a forma como o Recorrido apresentou as chaves do veículo, etiquetadas, foi cabalmente explicada pela testemunha da Recorrente Luís Filipe Rafael, conforme depoimento prestado entre os minutos 00:15:59 e 00:18:29 (transcrito no corpo das alegações).
56.-Assim, cremos que mal andou o Tribunal recorrido ao não valorar tal depoimento por forma a considerar como provados os factos descritos pela testemunha em causa a qual respondeu ativa e justificadamente a tudo a que lhe foi questionado e sempre de forma espontânea, imediata, aberta e livre, com um elevado grau de convencimento.
57.-Não obstante a livre apreciação da prova de que goza o julgador, a convicção da Recorrente é a de que, conforme acima se referiu, deverá o julgador adotar uma visão dos factos que não se baste com a mera aparência de verdade, tantas vezes conseguida através de manobras documentais, e atentar em detalhes que, ainda que numa primeira abordagem se possa situar distantes do âmago da questão a discutir, apontam para que o facto essencial
– no caso, o furto do veículo -, seja absolutamente duvidoso.

58.-Donde, requer-se a reapreciação da prova gravada, em concreto dos excertos acima indicados, entendendo a Recorrente que deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:
 (i)-O Autor não prestou qualquer informação concreta quanto à aquisição do veículo de matrícula 18-PF-59;
(ii)-O Autor desenvolve atividade ligada ao ramo automóvel, através da compra e venda de veículos;
(iii)-O Autor consta como tomador de elevado número de apólices (cerca de 20);
(iv)-O Autor apresentou as chaves do veículo seguro com uma etiqueta com o modelo do mesmo;
(v)-O veículo encontrava-se seguro por valor superior ao seu valor de mercado.

59.-A ponderação de tais factos pelo Tribunal recorrido conduziria a uma decisão de direito distinta daquela que ora se contesta.
60.-Desde logo, e conforme acima se alegou, o furto não poderia ter sido dado como provado com base nas meras declarações de parte do Recorrido.
61.-Por outro lado, todos os restantes factos cuja inserção no elenco dos factos provados aqui se requer, apontam no sentido de que a participação de tal evento teve por base uma intenção do Recorrente de obtenção de uma mais-valia económica por conta do recebimento de uma indemnização superior ao valor do bem.
62.-Não há nenhum documento que permita sustentar que o Recorrido tenha sequer adquirido a viatura – o registo é uma mera presunção de que o bem pertence a alguém, sendo comum que este tipo de presunção seja usada de forma fraudulenta para criar a aparência de verdade.
63.-Repita-se que o furto, em face da ausência de provas físicas (o que é perfeitamente concebível) é de difícil demonstração. Todavia, atendendo àquilo que se expôs, nem por presunção judicial se poderia alcançar esse resultado.
64.-A alteração que se requer à resposta dada à matéria de facto impõe que o furto – facto constitutivo do direito do Recorrido – não se possa considerar como provado o que, por sua vez, redunda, na não verificação do risco assumido pela Recorrente, na qualidade de seguradora.
65.-Como tal, não se pode considerar a Recorrente constituída na obrigação de indemnizar o Recorrido, motivo pelo qual deverá ser revogada a decisão recorrida e substituída por decisão que absolva a Recorrente do pedido.
Pelo exposto, e no que demais for doutamente suprido, a sentença recorrida deverá ser alterada nos termos acima peticionados, dando-se provimento ao presente recurso para que, dessa forma, se faça Justiça.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

QUESTÕES A DECIDIR.

Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir são:
i. Impugnação da decisão de facto;
ii. Reapreciação de mérito.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:

«1.-O Autor era tomador do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado com a Ré, por intermédio de mediador de seguros sito em Guimarães, titulado pela apólice n.º 3651686, tendo transferido o risco de furto quanto ao veículo Mercedes-Benz, Classe C Station Diesel, modelo C 220 CDI Avantgarde, com a matrícula 18-PF-59, no valor de € 28.272,45 euros, e extras no valor de € 4.300,00 euros, no valor global de € 32.572,45 euros, cf. condições gerais juntas como Doc.1 da CT (fls.17-v) e condições particulares juntas como Doc.2 (fls.38) que aqui se dá por reproduzido e condições gerais (fls.71) nas quais consta, para além do mais, na parte relevante para o caso concreto:
“(...) Furto ou Roubo
Cláusula 1.ª – Definições
Furto ou roubo: O desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentados ou consumados). (…)
Cláusula 3.ª – Exclusões
Para além das exclusões previstas nas cláusulas 5ª e 40ª das Condições Gerais, não ficam garantidas ao abrigo da presente Condição Especial as seguintes situações: (…)
d) Danos causados em extras, tal como definido na cláusula 38.ª, incluindo o teto de abrir, quando os mesmos não forem devidamente valorizados e identificados nas Condições Particulares.”.
2.-No dia 06.04.2015,pelas 20h00, o Autor estacionou o veículo automóvel de matrícula 18-PF-59, em Casal de Cambra, perto da sua residência.
3.-No dia seguinte, 07.04.2015, pelas 09h30, o Autor ao deslocar-se ao veículo para seguir para o trabalho, verificou que o mesmo não se encontrava no local onde o deixou na noite do dia anterior.
4.-Após procura e sem encontrar o veículo, apresentou queixa do seu desaparecimento junto da Polícia de Segurança Pública, que o notificou da possibilidade de no fim do inquérito, deduzir pedido de indemnização civil, cf. Doc. 2 (fls.10) que aqui se dá por reproduzido.
5.-Em 07.04.2015, o Autor participou o desaparecimento do veículo à Ré Seguradora, cf. Doc.1 (fls.9) que aqui se dá por reproduzido, para ativação da cobertura de furto ou roubo.
6.-O veículo automóvel não foi localizado até à presente data.
7.-A Autora declinou a responsabilidade na assunção do sinistro, alegando que o mesmo não decorreu como participado. »

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Impugnação da decisão de facto.

A apelante pretende que a resposta de provado dada aos pontos 2 a 4 e 6 passe a não provado.
Enfatiza a apelante que o tribunal a quo deu como provados tais factos apenas com base nas declarações de parte do autor, não tendo sido apresentado nenhum documento ou testemunha de forma a corroborar as declarações de parte do autor. O autor nem fez prova do uso do veículo. Invoca em abono da sua posição jurisprudência que afirma que as declarações de parte não podem valer como prova de factos favoráveis à procedência da pretensão se não tiverem o mínimo de corroboração por um qualquer outro meio de prova. Mais sustenta que o documento junto aos autos a fls. 10 não faz prova da participação às autoridades do furto, tratando-se de um mero termo de notificação.
Conclui que ocorreu violação das regras de distribuição do ónus da prova, devendo tal factualidade ser dada como não provada.

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção nestes termos:

«A formação da convicção do julgador assentou no conjunto de meios de prova produzidos em audiência, conjugada com a prova documental constante dos autos.
No julgamento apresentaram-se duas versões dos factos:
A versão do Autor, sustentada unicamente pelas suas declarações de parte, onde deu conta do modo como estacionou o veículo e como o mesmo desapareceu no dia seguinte, achando que foi vítima de furto, do qual fez queixa nas autoridades policiais e a participação de seguro, o que encontrou suporte nos poucos documentos por si juntos aos autos; e
A versão da Ré, sustentada pelos depoimentos de Luís Rafael, averiguador contratado para a verificação do sinistro e Ricardo ..., coordenador de investigação 'criminal' da Ré, os quais deram conta que o veículo desaparecido tinha sido importado por um valor inferior em cerca de metade do segurado, o que se afigurou estranho dado o Autor à data dos factos trabalhar num 'Stand' de compra e venda de automóveis (Sarfield) e ter afirmado que o adquiriu por este último preço, o que segundo os mesmos não é consentâneo com a experiência comum, em que se procura a maior poupança.
Deram ainda conta que o Autor afirmou ter adquirido o veículo a crédito, mas o mesmo não apresentou qualquer documentação, sendo que o veículo não tinha qualquer espécie de reserva de propriedade, atual ou extinta, o que indicou não corresponder o declarado à verdade.
Mais alegaram que o Autor figurou como tomador em cerca de 20 apólices, o que pese embora seja vulgar no ramo automóvel, indiciou que o mesmo tem experiência no modo como se processa a regularização de sinistros, razão pela qual consideraram que o sinistro não decorreu como o declarado.
A testemunha Cidália Nascimento, gestora de sinistros, deu conta de que na sequência da participação foi dado início ao processo, tendo posteriormente sido enviada uma carta a declinar a responsabilidade ainda dentro do prazo dos 60 dias.
Procurando apreciar a prova produzida, cumpre salientar que ultimamente têm vindo a juízo inúmeras causas em que do lado da defesa é suscitada a questão da ligação do segurado ao ramo automóvel.
Tal asserção visa lançar a ideia de conduta preordenada da parte do segurado na participação do sinistro, o que conduziria à verificação de um ilícito civil que obstaria à regularização do sinistro.
Pese embora a averiguação de ilícito civil seja legítimo para a Ré seguradora, que em outros ordenamentos jurídicos goza até de meios mais reforçados para esse investigação, o certo é que a mesma para ser válida dever responder a quatro questões fundamentais: Quem, Quando, Como e Porquê.
A resposta a estas quatro questões deve ser corroborada em meios de prova objetivos, sem os quais não é possível retirar, ainda que por intermédio de presunção judicial, a ilação de que o sinistro não decorreu como participado.
No caso concreto teremos assim:
Quem: O Autor.
Quando: No dia relatado como sendo o do furto.
Como: Não apurado.
Porquê: Para auferir uma vantagem patrimonial de € 16.654,40 euros, correspondente à diferença entre o valor do veículo automóvel importado, apurado em face da declaração aduaneira de veículo € 16.686,90 (fls.49) e fatura de aquisição do veículo (Rechnung 2014260 de fls.50) e o valor declarado de € 32.500,00 euros num mediador de Guimarães (fls.38), com o modus operandi aprendido no tráfico jurídico do sector da venda automóvel.
Contudo, faltam aqui premissas essenciais para essa conclusão.
A primeira é a de saber porque preço é que o Autor efetivamente adquiriu o veículo, pois sem esse dado não é legítimo concluiu que o mesmo adquiriu a baixo preço, não sendo legítimo concluir que os sócios da Sarfield, sem mais, façam preços mais baratos aos seus empregados, não constando o nome do Autor entre o dos sócios da sociedade, cf. certidão do registo comercial (fls.66-v).
Acresce que mesmo a baixo preço, com a alegada subtração do veículo, o Autor sempre teria o prejuízo de € 16.686,90 euros, pelo que o facto não é isento de prejuízos para o Autor.
A circunstância de não haver reserva de propriedade é quase irrelevante no momento atual da nossa democracia financeira, em que a falta de confiança nos bancos leva a economia paralela a crescer a números significativos, sendo frequentes o pagamento de bens de serviços de valores elevados em dinheiro, com entradas parcelares em caixa, para não alertar as entidades bancárias.
Também a abertura de uma empresa com o objeto social de importação de veículos – A Route 69, Lda – com a mesma morada da Sarfield, Lda, pode ou não ser indiciadora de alguma fidúcia, pois é frequente o subarrendamento de espaços no sector automóvel, com nichos de mercado para certos tipos de veículo, havendo sedes com mais de quatro empresas registradas: uma para táxis, outra para veículos comerciais, outra ainda para utilitários e finalmente outra para veículos de 'luxo' em segunda mão.
Logo, não se pode, sem mais dados, lançar uma presunção de desconformidade da participação, tanto mais que é sobre a própria Ré seguradora que incide essa mesma presunção (art. 799.º do Cód.Civil), pelo que se à mesma assistiam dúvidas, as quais se parecem quase situar no plano criminal, então deveria a mesma ter lançado mão da respetiva participação criminal, sobrestando-se de forma fundamentada a regularização do sinistro até lá.
A investigação criminal permitiria assim o acesso a dados bancários dos vários envolvidos, os quais se mostrariam aqui assim essenciais para 'dar o salto' entre as premissas iniciais apuradas pela Ré e a premissa final que agora é requerida ao tribunal que tome, e para a qual não existem dados, mas apenas suspeitas circunstanciais, que até poderão fazer sentido como início de um pensamento, mas que de forma objetiva, manifestamente não se podem impor como pensamento final, sancionado por sentença.
Deste modo, não há porque não dar credibilidade à versão do Autor, que inclusive respondeu sempre a todas as questões suscitadas, mesmo as mais incómodas, sem nunca fugir às mesmas, pelo que talvez se o mesmo tivesse sido confrontado com as desconfianças em sede instrutória e talvez a convicção da Ré pudesse ter saído alterada, razão pela qual demos como provados os factos descritos em 1.1)

Apreciando.

Nos termos do Artigo 466.3. do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
No segmento em que não constituem confissão, as declarações de parte são – na definição legal – livremente apreciadas.
Esta liberdade de valoração, todavia, nada nos diz sobre os concretos parâmetros de valoração das declarações de parte nem sobre a função da mesma como meio de prova no processo.

Assim, a doutrina e a jurisprudência vêm assumindo várias posições no que tange à função e valoração das declarações de partes que são aglutináveis em três teses essenciais:
i.-Tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos;
ii.-Tese do princípio de prova;
iii.-Tese da autossuficiência das declarações de parte.

No âmbito da primeira tese, insere-se Lebre de Freitas para quem «A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.»[3] Ou seja, para este autor as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária. Paulo Pimenta afirma que «Face ao sistema probatório instituído, o mais provável é que a prova por declarações de parte tenha uma natureza essencialmente supletiva(…)».[4]
A razão de ser do surgimento desta figura processual (designadamente alicerçada nas assimetrias probatórias no exercício do direito à prova) estriba, em primeira linha, esta tese, bem como o facto de as declarações poderem ser requeridas até ao início das alegações orais, o que inculca que se visa colmatar falhas ao nível da produção da prova designadamente testemunhal.
Nesta linha de raciocínio, enfatiza-se a maior fragilidade deste meio de prova na demonstração dos factos, imputando-se às declarações de parte um valor autónomo e suficiente quanto a factualidade essencial que, segundo os articulados, apenas teve lugar entre as partes, sem a presença de terceiros intervenientes.[5]
A tese do princípio de prova defende que as declarações de parte não são  suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.

Na doutrina, Carolina Henriques Martins, Declarações de Parte, Universidade de Coimbra, 2015, p. 58, pronuncia-se assim:
«É que não é material e probatoriamente irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objeto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objetivo sobre a sua versão dos factos que, inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado.
Além disso, como já referimos, também não se pode esquecer o caráter necessário e essencialmente supletivo destas declarações que, na maior parte dos casos, servirá para combater uma fraca ou inexistente prestação probatória.
Caso se considere útil a audição da parte nesta sede quando coexistem outros meios de prova, propomos a sua apreciação como um princípio de prova, equivalente ao mencionado argomenti di prova italiano, que não deixará de auxiliar na persuasão do juiz, mas que apenas o fará em correlação com a restante prova já produzida contribuindo para a sua (des)credibilização, e apenas nesta medida.
Estas são as coordenadas fundamentais para a consideração das declarações de parte no nosso esquema probatório.»
Na jurisprudência, esta tese tem sido – provavelmente –a que tem sido mais publicitada.

Sem preocupações de exaustividade, respigamos as seguintes decisões:
§ «(…)é certo que atualmente já se admite o “testemunho” de parte, a que se chama declarações de parte (art. 466 do CPC) e a lei diz que o juiz aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão. Mas a apreciação desta prova faz-se segundo as regras normais da formação da convicção do juiz. Ora, em relação a factos que são favoráveis à procedência da ação, o juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento desse mesmo depoente, interessado na procedência da ação, deponha ele como “testemunha” ou preste declarações como parte, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas.»[6]
§ «As declarações de parte [artigo 466º do novo CPC] – que divergem do depoimento de parte – devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.»[7]
§ «As declarações de parte que não constituam confissão só devem ser valoradas, favoravelmente à parte que as produziu, se obtiverem suficiente confirmação noutros meios de prova produzidos e/ou constantes dos autos.»[8]
§ «Mas a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias. (…) Neste enquadramento, será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir a declaração favorável que desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie.»[9]
§ «As declarações de parte constituem princípio e prova e serão apreciadas livremente pelo tribunal, salvo se as mesmas constituírem confissão, devendo ser valoradas com especial cuidado.»[10]
§ «Em relação a factos que são favoráveis à procedência da ação, o juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento desse mesmo depoente, interessado na procedência da ação, se não houve um mínimo de corroboração de outras provas.»[11]
Teixeira de Sousa critica esta posição que atribui às declarações de parte o mero valor de princípio de prova. Nas suas palavras,
«Se o princípio de prova é o menor grau de prova admissível e se se atribui esse valor às declarações de parte, então o que não teria nenhum valor probatório em si mesmo (nem sequer como mera justificação) passa a poder ter algum valor probatório, ainda que o menor na escala dos valores probatórios. Mais em concreto: se se atribui às declarações de parte relevância como princípio de prova, isso significa que estas declarações, apesar de não serem suficientes para formar a convicção do juiz nem sobre a verdade, nem sobre a plausibilidade ou verosimilhança do facto, ainda assim podem ser utilizadas para corroborar outros resultados probatórios. A conclusão não deixa de ser a mesma, se se pretender defender (…) que as declarações de parte só podem relevar como princípio de prova.
À medida que se baixa nos graus de prova, mais fácil se torna atribuir relevância probatória a um certo meio de prova. Lembre-se o que sucede em sede de procedimentos cautelares. É exatamente com o intuito de facilitar a prova de um facto que o art. 368.º, n.º 1, CPC aceita, no âmbito destes procedimentos, a mera justificação como o grau de prova suficiente.
Assim, em vez de atribuir às declarações de parte o valor de princípio de prova, melhor solução parece ser o de atribuir a estas declarações o grau normal dos meios de prova, que é o de prova stricto sensu ou, nas providências cautelares, o de mera justificação. Isto significa que, de acordo com o critério da livre apreciação da prova, o tribunal tem de formar uma prudente convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando (cf. art. 607.º, n.º 5 1.ª parte, CPC).
Abaixo desta relevância probatória e da convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto, as declarações de parte não devem ter nenhuma relevância probatória, nem mesmo para corroborarem outros meios de prova. Esta é, aliás, a melhor forma de combater a natural tendência das partes para só deporem sobre factos que lhes são favoráveis.»[12]
Para a terceira tese, pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente.
Assim, Catarina Gomes Pedra, A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo Civil. Em Busca da Verdade Material no Processo, Escola de Direito, Universidade do Minho, 2014, p. 145, afirma que:
«Não se duvida que, atento o manifesto interesse que a parte tem no desfecho da lide e a forte tradição da máxima nemo debet esse testis in propria causa, a valoração das suas declarações deva revestir-se de especiais cautelas, num juízo dirigido, em concreto, à sua credibilidade. Ademais, a subsistência do regime consagrado no artigo 361º do Código Civil e a não previsão da valoração da pro se declaratio obtida na prova por declarações de parte são suscetíveis de gerar a convicção de que se trata, afinal, de um meio de prova complementar. Porém, não pode esquecer-se que a limitação do valor probatório das declarações das partes, como, de resto, a sua compreensão no contexto de um meio de prova subsidiário, pode consubstanciar, em determinadas situações, uma violação do princípio da igualdade de armas previsto no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Digno de referência é ainda o que se propõe sobre a questão nos Princípios de Processo Civil Transnacional desenvolvidos pelo ALI e o UNIDROIT. O Ponto 16.6 dos referidos Princípios estabelece que “[T] the court should make free evaluation of the evidence and attach no unjustified significance to evidence according to its type or source”, o que significa que não deve ser atribuído um valor legal especial, negativo ou positivo, às provas relevantes, como são, por exemplo, as declarações daqueles com interesse na decisão da causa, mormente as partes.»

Com maior abertura ao protagonismo das declarações de partes, Mariana Fidalgo, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, p. 80, afirma claramente que:                   
«(…) ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objeto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova.»
Por nós, entendemos que a posição mais correta radica na tese mais ampla e permissiva sobre a potencialidade e centralidade das declarações de parte na formação da convicção do juiz (iii).

Consoante já afirmámos no nosso Prova Testemunhal, repudiamos o pré-juízo de desconfiança e de desvalorização das declarações de parte[13], sendo infundada e incorreta a postura que degrada – prematuramente - o valor probatório  das declarações de parte.

Em primeiro lugar, a prova testemunhal, a prova pericial e a prova por inspeção estão também sujeitas à livre apreciação do tribunal (Arts. 389, 391 e 396 do Código Civil), sem que se questione que o juiz possa considerar um facto provado só com base numa dessas provas singulares, no limite, só com base num depoimento.

Em segundo lugar, desde há muito que se enfatiza que o interesse da testemunha na causa não é fundamento de inabilidade, devendo apenas ser ponderado como um dos fatores a ter em conta na valoração do testemunho. Assim, «Nada impede assim que o juiz forme a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha interessada (até inclusivamente com base nesse depoimento) desde que, ponderando o mesmo com a sua experiência e bom senso, conclua pela credibilidade da testemunha.»[14] Ou seja, o interesse da parte (que presta declarações) na sorte do litígio não é uma realidade substancialmente distinta da testemunha interessada: a novidade é relativa e não absoluta, a diferença é de grau apenas.

Elizabeth Fernandez enfatiza pertinentemente que «se as partes podem passar a declarar a seu pedido o que viram, ouviram, sentiram, cheiraram, tocaram, conversaram, disseram, em suma, o que testemunharam, e porque o testemunharam não faz qualquer sentido conferir a estas declarações proferidas por pessoas que materialmente são testemunhas só porque são partes, um valor diverso do daqueles factos que foram testemunhados por quem é material e formalmente testemunha.»[15] Com efeito, amiúde se não na maioria dos casos, quem tem melhor razão de ciência do que a própria parte?

Em terceiro lugar, o texto do Artigo 466º não degradou o valor probatório das declarações de parte, nem pretendeu vincar o seu caráter subsidiário e/ou meramente integrativo e complementar de outros meios de prova. Se esse fosse o desiderato do legislador, o mesmo teria adotado uma formulação diversa à semelhança, por exemplo, do que se prevê no § 445 do Código de Processo Civil Alemão.[16]

Em quarto lugar, o julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório.[17] Dito de outra forma, tal equivaleria a raciocinar assim: não acredito na parte porque é parte, procurando nas declarações da mesma detalhes que corroborem a falta de objetividade da parte sempre no intuito de confirmar tal ponto de partida. A credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas, sob pena de esvaziarmos a utilidade e potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos, novamente, a raciocínios típicos da prova legal de que foi exemplo o brocardo testis unis, testis nullus (uma só testemunha, nenhuma testemunha).

Antes do julgamento, a parte relatou por múltiplas vezes a sua versão dos factos ao respetivo mandatário tendo em vista a articulação dos factos pelo mandatário no processo. Em conformidade, é expectável que as declarações da parte primem pela coerência, tanto mais que a parte pode mesmo ter-se preparado para prestar declarações. Assim, o funcionamento da coerência como parâmetro de credibilização das declarações de parte deve ser secundarizado.

Também é expectável que a parte, durante as suas declarações, incorra na afirmação de detalhes oportunistas em seu favor.[18] A parte, à semelhança da testemunha, tem uma estratégia de autoapresentação, pretendendo dar a melhor imagem de si própria, pelo que não deixará passar o ensejo de enxertar no relato detalhes que favoreçam a posição que sustenta, com maior ou menor convicção e verdade, no processo. Daí que este parâmetro deva ser também relativizado na avaliação das declarações da parte.

Em sentido oposto, assumem especial acutilância outros parâmetros, a começar pela contextualização espontânea do relato, em termos temporais, espaciais e até emocionais. Note-se que o atual Código de Processo Civil preconiza que os articulados sejam minimalistas, centrando-se nos factos essenciais. Desta circunstância deriva que os factos instrumentais, cerne da contextualização do relato, não foram necessariamente trabalhados entre a parte e o mandatário para efeitos processuais. Um relato autêntico/espontâneo que faça uma contextualização pormenorizada e plausível colhe credibilidade acrescida por contraposição a um relato seco, estereotipado/cristalizado ou com recurso a generalizações.

Um segundo parâmetro particularmente relevante é o da existência de corroborações periféricas que confirmem o teor das declarações da parte. As corroborações periféricas consistem no facto das declarações da parte serem confirmadas por outros dados que, indiretamente, demonstram a veracidade da declaração.[19] Esses dados podem provir de outros depoimentos realizados sobre a mesma factualidade e que sejam confluentes com a declaração em causa. Podem também emergir de factos que ocorreram ao mesmo tempo (ou mesmo com antecedência) que o facto principal, nomeadamente de circunstâncias que acompanham ou são inerentes à ocorrência do facto principal. Abarcam-se aqui sobretudo os factos-bases ou indícios de presunções judiciais.

As declarações da parte podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo concatenar - congruentemente - outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de julgamento.[20]

Existem outros parâmetros, normalmente aplicáveis à prova testemunhal, que podem desempenhar um papel essencial na valoração das declarações da parte. Reportamo-nos designadamente à produção inestruturada, à quantidade de detalhes, à descrição de cadeias de interações, à reprodução de conversações, às correções espontâneas[21], à segurança/assertividade e fundamentação[22], à vividez e espontaneidade das declarações[23], à reação da parte perante perguntas inesperadas, à autenticidade do testemunho. São também aqui pertinentes os sistemas de deteção da mentira pela linguagem não verbal e a avaliação dos indicadores paraverbais da mentira.[24]

Inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações da partes e a prova testemunhal, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada segundo os parâmetros explicitados. Em caso de colisão, o julgador deve recorrer a tais critérios sopesando a valia relativa de cada meio de prova, determinando no seu prudente critério qual o que deverá prevalecer e por que razões deve ocorrer tal primazia.

Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade.

Sintetizando, diremos que: (i) no que excede a confissão, as declarações de parte integram um testemunho de parte; (ii) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (iii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente.
Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.

Ora, no caso em apreço – apesar de pugnarmos pela tese mais permissiva à relevância das declarações de parte - cremos que as declarações de parte destes autos constituem um exemplo acabado de declarações que não merecem credibilidade.

Senão vejamos.

As respostas dadas pelo autor primaram por ser secas e sucintas, relatando os factos de forma muito cronológica e só com os traços essenciais. Afirma não se recordar dos km que o veículo tinha quando foi adquirido. Afirma que pagou € 5.000 de sinal mas não sabe precisar se por cheque ou transferência, mostrando-se evasivo. Não foi claro na indicação de qual a atividade profissional que exerce, ao ponto do juiz afirmar em certo ponto que também não tinha percebido afinal qual a atividade que o autor exercia. Com efeito, começou por afirmar que trabalhava por conta própria como administrativo, referindo depois que prestava serviços de documentação para entrega a empresa de contabilidade. Mais adiante afirmou que constituiu uma empresa denominada Route 69, cujo CAE engloba o rent-a-car, visando constituir-se como prestador de serviços da Uber.

Verbalizou ainda o seguinte:

§ Fez um crédito pessoal de € 15.000 para aquisição da viatura;
§ Sempre teve o sonho de ter um Mercedes, tendo procurado um com caixa automática, estofos em pele e GPS;
§ Relatou que estacionou o veículo um dia na rua junto a onde reside e no dia seguinte o veículo já lá não estava;
§ Trabalhada para uma empresa do ramo imobiliário e gráfica denominada Sarfild, sita na Estrada do Marquês, 339, a qual já encerrou;
§ Tal empresa não tinha a ver com o comércio automóvel;
§ Fez uma revisão no veículo e substituição de pneus uma semana antes do mesmo ter desaparecido;
§ Comprou o veículo a uma empresa de Odivelas, que já não existe, tendo tratado o assunto com Paulo Osório.

A testemunha Luís Filipe Rafael é perito-averiguador da ..., tendo já 13 anos de experiência. Prestou um depoimento bastante circunstanciado, claro e assertivo, relatando as diligências que fez no âmbito da averiguação que foi encarregue. Precisou que era mais um caso de furto de veículo mas que, a partir do encontro que teve com o autor, foram-se avolumando indícios no sentido de que o furto não teria ocorrido bem como de que as declarações do autor não eram verdadeiras. A averiguação neste tipo de casos visa, designadamente, apurar o histórico do veículo. Encontrou-se com o autor num centro comercial na zona de Odivelas.

Verbalizou ainda o seguinte:

§ No encontro que manteve com o autor, este disse-lhe que comprou o veículo na Excelent Car por € 32.000, recorrendo a um crédito pessoal, tendo o stand já fechado;
§ Todavia, o DUC do veículo não tinha averbado reserva de propriedade, o que é comum nos casos em que os veículos são adquiridos com recurso a crédito;
§ Pediu ao autor a fatura da aquisição e este disse-lhe que não a tinha;
§ Pesquisou na internet e não encontrou referências à Excelent Car;
§ O autor disse-lhe que trabalhava numa gráfica denominado Sarfild;
§ A testemunha pesquisou e descobriu que tal sociedade se dedica ao comércio de importação e exportação de veículos, tendo um stand com a denominação Trendcar;
§ A testemunha foi mesmo à Conservatória para saber se existiam outras sociedades com a designação de Sarfild;
§ O autor apresentou as chaves do veículo à testemunha etiquetadas com agrafos, o que é um procedimento invulgar para proprietários privados e, pelo contrário, comum para oficinas e stands de venda de veículos;
§ Perante a intenção da testemunha levar de imediato as chaves, o autor mostrou-se desconforto e atrapalhação, questionando a testemunha “E se o veículo aparecer?”;
§ O autor disse à testemunha que já tinha visto na internet que a ... não ia pagar porque era esse o procedimento da ... neste tipo de casos;
§ Finda a reunião com o autor, apercebeu-se que foi seguido por duas pessoas que estavam sentadas numa mesa próxima durante a reunião;
§ O número de telemóvel dado pelo autor à testemunha para contactos constitui um número utilizado pela Sarfildcar e Tradecar, sitas na Estrada da Granja do Marquês, as quais vendem veículos
§ Chegaram a telefonar anonimamente para o autor pedindo informações sobre um concreto veículo que estava em exposição, prestando o autor tais informações;
§ O veículo foi adquirido por cerca de € 16.000 e foi declarado o valor de aquisição de € 32.000, valor mais elevado que o valor real do veículo;
§ O autor, trabalhando no segmento automóvel, podia ter importado diretamente o veículo não fazendo sentido que o fosse adquirir por valor superior ao da importação quando podia adquiri-lo por valor inferior;
§ Consultou uma base de dados das seguradoras, na qual constam os contratos de seguro celebrados, verificando-se que o autor tem um histórico de, pelo menos, vinte contratos de curta duração (2/3 meses), situação comum para quem se dedica ao comércio automóvel;
§ Foram fazer diligências no local, designadamente junto de um café, não tendo havido ninguém que tivesse memória daquele Mercedes;
§ Deste conjunto de fatores, infere a testemunha que no que tange à informação prestada pelo autor “não bate a bota com a perdigota”.
A testemunha Ricardo ... é coordenador de investigação da ..., tendo acompanhado a intervenção feita pela testemunha anterior e feito diligências ela própria. Verbalizou ainda o seguinte:
§ O número de telemóvel dado pelo autor está associado, na Internet, a stand de venda de veículos;
§ Levou as chaves do veículo à Mercedes para leitura, sendo que aquelas chaves não permitem qualquer leitura, ao contrário de outras mais atuais. Na Mercedes, havia apenas registo de um pedido de diagnóstico daquele veículo, tendo como morada de referência a Estrada da Granja do Marquês, nº1;
§ Foi também à conservatória confirmar que apenas existe uma sociedade Sarfild;
§ O senhor do café junto ao local onde supostamente despareceu o veículo não tinha qualquer conhecimento do mesmo;
§ Consultou uma base de dados das seguradoras, na qual constam os contratos de seguro celebrados, verificando-se que o autor tem um histórico de, pelo menos, vinte contrato de curta duração (2/3 meses), situação comum para quem se dedica ao comércio automóvel;
§ O autor tem uma empresa que compra carros usados lá fora para importação;
§ Deste conjunto de fatores infere a testemunha que o autor visou ter um ganho financeiro enorme porquanto ninguém vai aumentar o valor do carro para pagar um prémio de seguro maior.

Ora, os documentos juntos a fls.:
41 v (declaração preenchida e subscrita pelo autor)
42 (registo automóvel do qual resulta que o veículo foi registado em nome de Leandro Barbosa, em 26.11.2014, Estrada Granja do Marquês, nº1, sendo registado no mesmo dia em nome do autor)
fls. 46-47 (print da internet onde constam vários anúncios para venda de veículos sendo indicado como telefone de contacto o indicado pelo autor na sua declaração escrita)
fls. 49-50 (documentos de importação do veículo, donde resulta que o mesmo teve um preço de € 10.750, acrescendo € 5.936,90 de imposto)
fls. 52-53 (fotografias das chaves do veículo etiquetadas com o Cartão de cidadão do autor)
fls. 66-69 (registo comercial da Sarfilcar – Comércio de automóveis unipessoal, Lda., do qual resulta que o objeto social de tal sociedade é o comércio de automóveis, importação e exportação, tendo sede na Estrada da Granja do Marquês, 1)
corroboram os depoimentos prestados pelas testemunhas referidas, infirmando- do mesmo passo – as declarações prestadas pelo autor.
As declarações prestadas pelo autor não se encontram minimamente corroboradas por outros elementos de prova. O autor não junta aos autos sequer fatura de aquisição do veículo, contrato de crédito, recibo de sinal, comprovativo da revisão e substituição de pneus, tudo atos que afirma que ocorreram e que deixam rasto documental. A não documentação de atos dotados de uma alta ou frequente documentação, conduzindo a um absoluto ou notável défice documental, gera a presunção da inexistência dos atos (indício indocumentatio; cf. o nosso Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, 3ª edição, p. 242). Do mesmo passo, o autor não logrou demonstrar atos de posse do veiculo, designadamente de manutenção com a junção de comprovativos, o que aciona o indício cura na sua vertente negativa (cf. o nosso Prova por Presunção no Direito Civil, 2017 3ª edição, p. 250).
As declarações prestadas pelo autor pautaram-se pelo contextualização pobre, por serem sinópticas e, por vezes, expressamente evasivas, tudo caraterísticas mais próximas de um depoimento inverídico do que de um depoimento genuíno – cf. o nosso Prova Testemunhal, Almedina, 2013, pp. 114, 308-310. O autor pretendeu fazer passar-se por mais um particular cujo sonho era ter um Mercedes, havendo prova inequívoca que o autor se dedica ao comércio desse tipo de veículos e conhece bem esse mercado.
O conjunto de indícios recolhido é compatível com uma atuação preordenada do autor no sentido de obter um benefício financeiro com a celebração de um contrato de seguro dando um valor ao veículo que, manifestamente, era superior ao valor real do mesmo.
Por todo este conjunto de razões, entendemos que as declarações de parte do autor não merecem crédito, sendo apenas tais declarações que sustentaram a prova dos factos 2 a 4 e 6. O documento junto pelo autor a fls. 10 não integra a participação do furto à autoridade policial, mostrando-se incompleto, contendo apenas a notificação do Artigo 75º do CPP.
Assim, justifica-se que os factos provados sob 2 a 4 e 6 passem a não provados, o que se determina.
Sucumbindo a prova de tais factos, não está demonstrado o sinistro, razão necessária e suficiente da improcedência da ação.

DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, passando a ação a ser julgada improcedente.
Custas pelo autor.


Lisboa, 26.4.2017

                                  
(Luís Filipe Pires de Sousa)
(Carla Câmara)                                   
(Maria do Rosário Morgado)


[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433,de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3]A Ação Declarativa Comum, À Luz do Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 2013, p. 278.
[4]Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 357.
[5]Acórdão do TCAS de 15.12.2016, Paulo ... Gouveia, 13325/16.
[6]Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.11.2014, Pedro Martins, 1878/11, posição reiterada no Acórdão da mesma Relação de 17.12.2014, Pedro Martins, 2952/12.
[7]Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.6.2014, António José Ramos, 216/11, posição reiterada no Acórdão da mesma Relação de 30.6.2014, António Ramos, 46/13, www.colectaneadejurisprudencia.com.
[8]Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17.12.2014, Pinto dos Santos, 8181/11.
[9]Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.3.2015, Eusébio Almeida, 1002/10. No mesmo sentido e com a mesma verbalização, cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.6.2016, Manuel Fernandes, 2050/14. e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.10.2016, Ondina Alves, 640/13.
[10]Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6.10.2016, Tomé Ramião, 1457/15.
[11]Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7.6.2016, Pedro Brighton, 427/13.
[12]Texto de 20.1.2017, acessível em  https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia-536.html#links
[13]Elizabeth Fernandez, “Nemo Debet Esse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, p. 23,  pergunta pertinentemente se «a aferição da credibilidade da prova é tarefa que possa ser detetada previamente, em geral e abstrato?».
[14]Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.3.2012, Deolinda Varão, 6584/09.
[15]Op. cit., p. 36.
[16]Na tradução de Emílio Eiranova Encinas e Miguel Lourido Miguez, Código Procesal Civil Alemán, Marcial Pons, 2001, dispõe tal norma que: «I Una parte que no há llevado a cabo por completo la prueba que le compete com otros medios probatorios o no ha alegado otros medios de prueba puede aducir la prueba solicitando que se interrogue al contrario sobre los hechos que deben ser probados. II La solicitud no se tendrá en cuenta si se refiere a hechos de los que el tribunal considera demostrado lo contrario
[17]O viés confirmatório é um erro da raciocínio indutivo nos termos do qual o sujeito tende a procurar informação que confirme a sua hipótese/interpretação inicial, descurando a indagação de informação que seja revel a tal hipótese.
[18]Na explicação de Nieva Fenoll, La Valoración de la Prueba, Marcial Pons, 2010, p. 229, “Trata-se de manifestações sobre o caráter ou a intencionalidade de uma das partes, ou então justificações das próprias atuações – ou da pessoa que se pretende beneficiar – que vão além do que foi perguntado ao declarante. O declarante manifesta-as, não tanto para infundir credibilidade na sua declaração, mas sim para que os factos que relata se interpretem a favor de quem deseja beneficiar.”
[19]Nieva Fenoll, La Valoración de la Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2010, p. 226.
[20]Sobre os factos-base de presunções judiciais e sua dinamização por nexos lógicos ou máximas de experiência, cfr. o nosso Prova Por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2017, pp. 33 a 68.
[21]Cf., mais desenvolvidamente, o nosso Prova Testemunhal, Almedina, 2013, pp. 300-302.
[22]Cf., mais desenvolvidamente, o nosso Prova Testemunhal, pp. 308-309.
[23]Cf., mais desenvolvidamente, o nosso Prova Testemunhal, pp. 136-138.
[24]Cf., mais desenvolvidamente, o nosso Prova Testemunhal, pp. 89-115.