Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18073/22.3T8LSB.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
DESIGNAÇÃO DO ACOMPANHANTE
RESPEITO PELA VONTADE DO ACOMPANHADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Nos termos do art.º 143.º n.º 1 do Código Civil, “o acompanhante é escolhido pelo acompanhado (…) sendo designado judicialmente”.
II- Assim, na designação do acompanhante, o Tribunal deve cumprir este princípio de respeito pela vontade do acompanhado a não ser que essa escolha possa colocar em risco o seu bem-estar ou a sua recuperação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO

SC, residente na Rua …, veio, ao abrigo do disposto no artigo 138.º e seguintes do C. Civil e 891.º e seguintes do C. P. C., intentar acção especial de acompanhamento de maior, requerendo que seja decretado o acompanhamento, por anomalia psíquica, da beneficiária:
M, nascida a 31.03.1943, natural da freguesia de Alcântara, concelho de Lisboa, residente na …, em Lisboa, alegando, em síntese, o seguinte:
A Requerida, sua mãe, padece de anomalia psíquica, designadamente de declínio cognitivo, marcada surdez e perda de memória, que a impede, em absoluto, de reger a sua pessoa e bens.
Foi dispensada a publicidade da acção.
Tentada a citação da requerida, a mesma não foi possível, por a mesma não ter capacidade para a receber, como consta da certidão negativa de 29-07-2022.
Citado o Ministério Público, veio o mesmo apresentar contestação alegando, para o efeito, que face aos factos explanados e documentação junta, o Ministério Público não tem nada a opor a que seja suprido pelo Tribunal, o consentimento da beneficiária, nos termos do artigo 141.º n.º 2 do C. Civil, requerendo a realização das diligências que indica.
Foi realizado relatório social à requerida, conforme requerido pelo Ministério Público (12-09-2022), bem como exame pericial (25-10-2022).
Procedeu-se à audição da Requerida (20-12-2022).
Cumpridas as formalidades legais, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, por consequência, determinou que a Requerida:
A) beneficie do regime do maior acompanhado, aplicando-se a seu favor a medida de acompanhamento de representação geral, prevista no artigo 145.º n.º 2 alínea b) do C. Civil, restringindo o exercício dos direitos de pessoais previstos no artigo 147.º do Código Civil;
B) - Fixou como data a partir da qual se verificou a necessidade da medida de acompanhamento decretada: 1 de Janeiro de 2020;
C) – Nomeou acompanhante SC;
D) - Determinou que a medida de acompanhamento seja revista no prazo de 2 anos;
E) - Consignou que a beneficiária não celebrou testamento vital ou procuração para cuidados de saúde.
Inconformado com a decisão na parte em que nomeou acompanhante da beneficiária a sua filha SC, o MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
1- O presente recurso visa o concreto segmento da decisão em que se procedeu à nomeação de acompanhante da beneficiária, versando, simultaneamente, a reapreciação da matéria de facto e a matéria de Direito.
2 – No que concerne à matéria de facto, impugna-se expressamente o facto dado como assente na sentença sob o artigo 5º.
3 - Por seu turno, no que tange à matéria de Direito, considera-se que, na sequência da alteração da matéria de facto ora impugnada, devia ter sido nomeada como acompanhante, a filha mais velha da beneficiária, AC.
4 – Com efeito, o Tribunal a quo não atentou devidamente no teor do Relatório Social junto aos autos nem teve em consideração o teor das declarações prestadas pela beneficiária em sede de audição pessoal e directa da mesma, realizada presencialmente nos autos (vide declarações da beneficiária, prestadas em juízo na sua audição directa e pessoal realizada em 20/12/2022, constante do ficheiro de gravação n.º 20221220101118_20433711_2871115 da sessão do dia 20/12/2022, com enfoque no excerto entre o minuto 05:40 e 06:40.).
5 – Da conjugação de tais elementos, e, em particular, das declarações prestadas pela própria beneficiária, impunha-se decisão distinta quanto aos factos assentes na decisão recorrida.
6 - A sentença proferida nestes autos devia ter dado como provado os seguintes factos:
«5. A beneficiária tem presentemente três filhas ainda vivas: AC, RC e SC».
6. A beneficiária tem o apoio das três filhas nas diligências que necessita realizar, na gestão financeira e em companhia, sendo todas, bastante próximas de si.
7. Presentemente, encontra-se a viver em casa da sua filha AC, que aí criou um espaço com quarto, casa de banho e sala para que a sua mãe possa estar na casa de forma autónoma e privada.
8. A beneficiária sente mais afinidade pela sua filha AC, desejando ser esta, a pessoa responsável pelos seus assuntos.»
7 – Devendo, consequentemente, nesta parte e quanto aos apontados vícios existentes na sentença no que tange à matéria de facto expressamente indicada, ser revogada a matéria de facto ora impugnada e alterada em conformidade com o que supra se enunciou.
8 - Com a entrada em vigor do novo regime do maior acompanhado, o artigo 143.º, do Código Civil passou a ter nova redacção, consagrando, no seu n.º 1, o importante princípio do respeito pela vontade do acompanhado.
9 - Assim, no caso de o beneficiário manifestar vontade quanto à pessoa que deverá ser nomeada como sua acompanhante, essa vontade deverá, em princípio, ser respeitada, a menos que, em concreto, tal escolha possa colocar em risco o seu bem-estar e a sua recuperação.
10 - In casu, a beneficiária manifestou expressamente a sua vontade de que a sua filha AC era a pessoa com quem sentia mais afinidade e a que escolheria para tratar dos seus assuntos, revelando-se a mesma adequada à sua salvaguarda e ao seu bem-estar e decorrendo dos autos, que a beneficiária mantém ainda alguma capacidade de compreensão e de expressão de manifestação de vontade.
11 – Ao não ter respeitado a vontade expressamente manifestada pela beneficiária, o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 143.º, n.º 1 do Código Civil, motivo pelo qual, deve a decisão proferida ser revogada quanto a este concreto segmento, nomeando-se, consequentemente, como acompanhante da beneficiária, a sua filha AC.
12 - Assim se fazendo a devida e sã justiça.

*

SC, notificada das alegações do Ministério Público apresentou requerimento com o seguinte teor:
 “1. Defende o Digno Ministério Público que a Acompanhante a nomear à Requerida M deve ser AC, a filha mais velha da Requerida, e irmã da Requerente.
2. Na audição da Requerida, a mesma manifestou este desejo, informando que já há algum tempo que reside com esta sua filha.
3. A Requerente confirma que a Requerida reside, efetivamente, com a sua filha mais velha, identificada em 1.
4. A Requerente não se opõe a que a Acompanhante a nomear à Requerida M seja AC, o que de resto é a vontade da Requerida.
Termos em que se requer que seja alterada a Douta decisão proferida em 13/03/2023, sendo designada, como acompanhante da Requerida M, a sua filha mais velha, a saber, AC”

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II- OS FACTOS

Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. M nasceu no dia 31 de Março de 1943 e é filha de J e de R.
2. Sofre, desde 2020, de demência sem outra especificação que se caracteriza por grave compromisso cognitivo e que lhe condiciona alterações graves ao nível do entendimento e compreensão, sendo que a autonomia da beneficiária se encontra muito afectada.
3. As consequências da patologia de que a beneficiária padece são muito significativas, sendo que o funcionamento social e autonomia se encontram seriamente prejudicados, tratando-se de anomalia psíquica actual, incapacitante, progressiva, crónica e irreversível.
4. Por via do referido em 2), a beneficiária encontra-se cognitivamente deteriorada, com especial relevo ao nível da memória, função cerebral cognitiva essencial para o enquadramento e gestão de todo o tipo de situação da pessoa, quer ao nível pessoal, quer ao nível social e familiar, tem dificuldades ao nível da memória recente, embora reconheça o dinheiro, não consegue efectuar cálculos simples, desconhecendo o valor dos bens essenciais; apresenta ausência de juízo crítico e da capacidade de autodeterminação em relação à doença de que padece e às consequências da mesma, encontrando-se a memória muito prejudicada, assim como o raciocínio abstracto.
5. A pessoa mais próxima da beneficiária é a sua filha SC.
6. A beneficiária aufere pensão de reforma no valor mensal de €370.
7. A beneficiária não outorgou testamento vital, nem procuração respeitante a cuidados de saúde.
8. A doença de que padece a beneficiária impõe seguimento médico regular em consultas de neurologia e medicina geral e familiar ou, de outras especialidades que se revelem necessárias, bem como o cumprimento da medicação em curso ou outra que se venha a revelar necessária.

III- O DIREITO

Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, nos termos do art.º 635.º n.º 3 a 5 e 639.º n.º 1 e 2, as questões que importa apreciar são as seguintes:

1- Reapreciação da decisão quanto à matéria de facto
2- Qual a pessoa que deve ser nomeada acompanhante da Beneficiária.

1- No que tange à matéria de facto, o Ministério Público impugna expressamente o facto dado como assente na sentença sob o artigo 5º e conclui que a sentença proferida nestes autos deveria ter dado como provados os seguintes factos:
«5. A beneficiária tem presentemente três filhas ainda vivas: AC, RC e SC».
6. A beneficiária tem o apoio das três filhas nas diligências que necessita realizar, na gestão financeira e em companhia, sendo todas, bastante próximas de si.
7. Presentemente, encontra-se a viver em casa da sua filha AC, que aí criou um espaço com quarto, casa de banho e sala para que a sua mãe possa estar na casa de forma autónoma e privada.
8. A beneficiária sente mais afinidade pela sua filha AC, desejando ser esta, a pessoa responsável pelos seus assuntos
Vejamos:
Deu a sentença recorrida como provado no ponto 5.º, o seguinte:” A pessoa mais próxima da beneficiária é a sua filha SC.” Da motivação constante da sentença recorrida, depreende-se que o Tribunal fundamentou a sua convicção, quanto a esta matéria, no teor do relatório social junto aos autos, em 12-09-2022. Neste relatório, na verdade, consta que a filha SC foi escolhida pela Sra. D. M e irmãs para tratar dos assuntos financeiros e de saúde da mãe, na actualidade.
Porém, do mesmo relatório também resulta que “todas as filhas são bastante próximas da mãe”.
Contudo, em Dezembro de 2022, quando a Beneficiária foi ouvida pela Senhora Juíza, já esta afirmou que se encontrava a viver na casa da sua filha mais velha AC e que, por isso, escolhia essa filha para lhe prestar o apoio de que necessitava.
Na análise do relatório social cremos extrair-se facto diverso daquele que veio a ser plasmado no ponto 5.º dos factos provados. Ou seja, não se nos afigura que esteja provado que a pessoa mais próxima da beneficiária seja a filha SC, dado que no relatório social se refere mesmo que todas as filhas são bastante próximas da mãe.
Nestas circunstâncias, o facto de a Beneficiária ter ido viver com a filha AC, não significa menos proximidade com as outras filhas, mas estará ligado tal facto a razões de outra natureza, designadamente de ordem material e de logística.
Assim, procede a pretensão do Ministério Público, retirando-se do elenco dos factos provados a referida matéria e passando o ponto 5.º da matéria provada a ter o seguinte teor:
5. A beneficiária tem presentemente três filhas: AC, RC e SC.
Do teor do relatório social, bem como das declarações prestadas pela Beneficiária, resulta ainda provado o seguinte:
6. As três filhas supra identificadas são bastante próximas da mãe, apoiando-a nas diligências que esta necessita realizar na sua organização doméstica e financeira.
7. Presentemente, encontra-se a viver em casa da sua filha AC, que aí criou um espaço com quarto, casa de banho e sala para que a sua mãe possa estar na casa de forma autónoma e privada.
8. A Beneficiária declarou ser sua vontade que seja a sua filha AC a ser responsável por tratar dos seus assuntos.

2- Uma vez alterada a matéria de facto, importa agora reapreciar a questão de saber se, em face dessa factualidade, se deve manter a nomeação da acompanhante SC.
Como está provado e resulta das declarações da Beneficiária, esta encontra-se a viver em casa da sua filha AC que criou mesmo um espaço na sua casa com quarto, casa de banho e sala para que a sua mãe aí possa estar, de forma autónoma e privada. Neste contexto, compreende-se que a Beneficiária tenha manifestado a sua vontade no sentido de ser a filha AC a tratar dos assuntos que digam respeito à mãe e que esta tenha dificuldade em tratar. Por questões práticas e de proximidade é a filha com quem a Requerida vive quem apresenta melhores condições de, em cada momento, prestar esse necessário apoio à sua mãe.
Ora, nos termos do art.º 143.º n.º 1 do Código Civil, “o acompanhante é escolhido pelo acompanhado (…) sendo designado judicialmente”. Quer isto dizer que na designação do acompanhante, o Tribunal deve cumprir este princípio de respeito pela vontade do acompanhado. Tem razão o Ministério Público ao referir que “no caso de o beneficiário manifestar vontade quanto à pessoa que deverá ser nomeada como sua acompanhante, essa vontade deverá, em princípio, ser respeitada, a menos que, em concreto, tal escolha possa colocar em risco o seu bem-estar e a sua recuperação”.
Não se verifica qualquer risco, antes pelo contrário, conforme se apurou das diligências realizadas, pois a filha AC demonstra ter as condições necessárias para o encargo, proporcionando à beneficiária, sua mãe, condições de conforto e afecto.
Assim, nestas condições, deveria ter sido respeitada a vontade da beneficiária, nomeando-se acompanhante a referida AC e não a filha SC, como consta da sentença recorrida. E tal não envolve, no caso que nos ocupa, qualquer desconsideração em relação às outras filhas, pois que se provou, felizmente, serem igualmente próximas e dedicadas à sua mãe. Nestas circunstâncias, releva prioritariamente a vontade manifestada pela Beneficiária, sem que tenha de justificar as razões da sua escolha.
Procedem, assim, as conclusões do Ministério Público.
Deve, pois, a decisão proferida ser alterada na parte em que nomeou acompanhante à Requerida, devendo ser nomeada a sua filha AC, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, dado que a própria Requerente veio associar-se à posição do Ministério Público, concordando com a mesma.

IV-DECISÃO

Face ao exposto, acordamos nesta 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, por consequência, alterar a decisão recorrida na parte em que designa a acompanhante da Beneficiária M, designando-se para o efeito AC.
Sem custas, pois, o processo encontra-se isento das mesmas (art.º 4.º n.º 2 h) do RCP).

Lisboa, 15 de Junho de 2023
Maria de Deus Correia
Nuno Ribeiro
Octávia Viegas