Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
41/24.2JBLSB-A.L1-5
Relator: MARIA JOSÉ MACHADO
Descritores: METADADOS
DADOS DE TRÁFEGO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I – O artigo 6.º, n.º2 da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, introduzido pela Lei n.º 18/2024, de 5 de Fevereiro, ressalva do regime de conservação aí previsto, a conservação dos dados pelas entidades previstas no artigo 4.º, n.º1, nos termos definidos contratualmente com o cliente para efeitos emergentes das respectivas relações jurídicas comerciais, onde se inclui os dados para facturação previstos na Lei n.º 41/2004, de 18/08, ou por força de disposição legal especial.
II – Os dados de tráfego para efeitos de facturação que as empresas fornecedoras de serviços electrónicos podem armazenar durante seis meses constituem, em si mesmos, um meio de prova válida e legal a que o Ministério Público pode recorrer para efeitos de investigação, nomeadamente quando está em causa um crime grave e essa prova seja indispensável para a descoberta da verdade. Tais dados não estão sujeitos ao regime de conservação previsto no n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 34/2008, assim como o não estão os dados de tráfego e localização que são conservados por força de disposição legal especial, como é a lei do cibercrime, para que possam ser transmitidos para efeitos de investigação.
III - Não existe obstáculo legal a que, estando em causa a investigação de um crime grave e sendo tais dados indispensáveis para a descoberta da verdade, como é o caso dos autos, não possa ser requerida, pelo Ministério Público, ao juiz de instrução, a sua transmissão pela empresa fornecedora dos serviços electrónicos em causa, nos termos do artigo 9.º da Lei n.º 34/2008, desde que esses dados de tráfego sejam apenas aqueles que a empresa pode conservar durante seis meses para efeitos de facturação e sem necessidade de tais dados terem sido objecto de conservação, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 34/2008.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo de inquérito, supra identificado, foi proferido, a ... de ... de 2024, o seguinte despacho: (transcrição)
«Req. ref. ..., ponto IV:
Foi publicada em Diário da República a Lei número 18/2024, de 5 de fevereiro, a qual procede à alteração da Lei número 32/2008, de 17 de julho, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
Regula-se o acesso a "metadados" referentes a comunicações eletrónicas para fins de investigação criminal, sendo que, como se referiu no ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-3-2017, proc. número 1585/16.5PBCSC-A.L1-5, in unvw.dgsi.pt "O regime dos artigos 187º a 189º, do CPP, aplica-se aos "dados sobre a localização celular", obtidos em tempo real e intercepção das comunicações entre presentes, enquanto o consagrado na Lei n.º 32/2008, de 17/07, tem como âmbito de aplicação os dados que concernem a comunicações relativas ao passado, ou seja, arquivadas."
A Lei número 18/2024, de 5 de fevereiro surge na sequência do Acórdão número 800/2023, de 4 de dezembro do Tribunal Constitucional em que se declarou a inconstitucionalidade do artigo 2º do Decreto número 91/XV da Assembleia da República na parte em que se previa a conservação indiscriminada, por parte das operadoras de comunicações, dos dados de tráfego e de localização pelo período de três meses, para fins de investigação criminal.
Actualmente, e de acordo com a norma decorrente do número 2 do artigo 6º da Lei número 32/2008, com as alterações introduzidas pelo novo diploma, os dados de tráfego e localização apenas podem ser objeto de conservação mediante autorização judicial, por parte de uma formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça.
Donde decorre que, não tendo havido tal autorização, tais dados, ainda que conservados por qualquer outra razão, não podem ser transmitidos (artigo 9º do mesmo diploma).
D.N., cumprindo as formalidades legais.
Notifique e devolva os autos ao Ministério Público.»
2. O Ministério Público interpôs recurso desse despacho, extraindo da sua motivação de recurso as seguintes conclusões: (transcrição)
1. No âmbito dos presentes autos, investiga-se a prática de um crime de roubo agravado, na forma tentada, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 2 al. b) ex vi art.º 204.º, n.º 2 al. a) e art 202 al. b), todos do Código Penal.
2. No decorrer da presente investigação, mais concretamente, por despacho datado de ........2024, o Ministério Público requereu ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, por existirem suspeitas que AA, BB e CC possam ser co-autores do supramencionado ilícito, que fosse determinado, nos termos do art.º 187.º, n.º 1, al. a), e n.º 4, alínea a), e 189.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, a remessa das listagens dos n.ºs de telefone utilizados por aqueles, relativamente ao período temporal compreendido entre 00h00 do dia ........2024 e a resposta ao ofício a remeter, com indicação expressa da localização celular assumida e respectivas as antenas BTS's accionadas, com o intuito de recolher elementos probatórios que sustentassem as suspeitas já coligidas nos autos, vide ref.ª ....
3. No entanto, por despacho datado de ........2024, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal alegando que, por força da entrada em vigor da Lei 18/2024 de 05.02, e consequente alteração legislativa efectuada na Lei 32/2008 de 17.07, a obtenção e o acesso, para efeitos de investigação criminal, das listagens telefónicas, independentemente do período de preservação das mesmas, encontra-se, invariavelmente, dependente de um pedido prévio de preservação por parte do Ministério Público e posterior autorização judicial, por parte de uma formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, pelo que, não tendo sido aquela preservação solicitada, não obstante os dados pretendidos serem referentes a comunicações a período de preservação inferior a 6 (seis) meses, e por conseguinte, não ter sido autorizada judicialmente a sua preservação, nos termos do art.º 6.º da Lei 32/2008 de 17.07, indeferiu o supramencionado requerimento.
4. Ora, o Ministério Público não concorda com o entendimento sufragado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, uma vez que, salvo melhor entendimento, o mesmo efectuou uma interpretação errónea do disposto na Lei 18/2024 de 05.02, que alterou a Lei 32/2008 de 17.07, confundindo regimes jurídicos totalmente díspares, coarctando, desta forma, de forma totalmente injustificada, o princípio ínsito no art.º 125.º do Código Processo Penal, ou seja, que todos os elementos probatórios são admissíveis, desde que não sejam proibidos por lei, uma vez que, o que se pretendia era a obtenção de listagens telefónicas relativas ao período temporal compreendido entre 00h00 do dia ........2024 e a resposta ao ofício a remeter, ou seja, através da base de dados das empresas fornecedoras de serviços de telecomunicações, a qual se encontra prevista no art.º 6 da Lei 41/2004 de 18.08, considerando que, por um lado, ainda não decorreu o prazo de 6 (seis) meses daquela data, e por outro, que a informação encontra-se disponível, por defeito, para efeitos, entre o mais, de facturação, nos termos do art.º 6.º da Lei 41/2004 de 18.08.
5. Em nosso entendimento, a alteração legislativa introduzida pela Lei 18/2024 de 05.02 à Lei 32/2008 de 17.07 teve origem no acórdão do Tribunal Constitucional 268/2022 de 03.06, tendo o legislador alterado o regime anteriormente previsto, apenas e tão-só, com o intuito de legitimar a utilização dos dados preservados pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas pelo período de um ano, circunstância ou possibilidade que, na sequência do supramencionado aresto encontrava-se inviabilizada, no entanto, nem a referida decisão judicial nem a alteração legislativa introduzida efectuam qualquer menção ou referência a que a utilização, pela investigação criminal, das listagens telefónicas que se encontram preservadas, no âmbito da actividade levada a cabo pelas operadoras de telecomunicações, viola qualquer preceito constitucional, e por conseguinte, se encontra vedada a sua obtenção e utilização, sem que para tal seja necessário os formalismos impostos pela referida alteração legislativa à Lei 32/2008 de 17.07.
6. No entendimento sufragado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, não obstante os dados de trafego de determinada comunicação estarem disponíveis para efeitos de facturação, e por conseguinte, estarem acessíveis por fazerem parte da actividade comercial das operadoras de telecomunicações, e não tão-só para efeitos de investigação de determinada tipologia de crime, como era o caso da preservação imposta pela Lei 32/2008 de 17.07, o acesso a tal informação pela investigação criminal encontra-se vedada, independentemente, do período a que se referem, a não ser que seja cumprido o formalismo imposto pela Lei 18/2024 de 05.02.
7. Ora, em nosso entendimento, a interpretação efectuada pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, não só, não tem qualquer respaldo na letra da Lei, como também contraria, frontalmente, não só o previsto na Lei 18/2024 de 05.02, mas também o princípio ínsito no art.º 125.º do Código Processo Penal.
8. De salientar que não pode olvidar-se que a Lei 32/2008 de 17.07, transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, instituindo um regime especial de preservação alargada de dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, para efeitos de investigação criminal, com o intuito de detectar e reprimir crimes graves, no entanto, paralelamente a este regime de excepção, existe um regime geral de preservação de dados de tráfego e de localização, que se encontra previsto na Lei 41/2004 de 18.08, o qual, em nosso entendimento, pode, caso estejam preenchidos os pressupostos legais para o efeito, nos termos do art.º 187.º e art.º 189.º, ambos do Código Processo Penal, ser acessíveis, por despacho do Juiz de Instrução, ou seja, sem estar dependente de pedido e autorização judicial prévia de preservação por parte das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, constituída pelos presidentes das secções e por um juiz designado pelo Conselho Superior da Magistratura, de entre os mais antigos destas secções.
9. Pelo exposto, conclui-se, necessariamente, que, em nosso entendimento, não assiste qualquer razão ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, uma vez que, a obtenção de listagens telefónicas, nos termos da Lei 41/2004 de 18.08, referentes, necessariamente, a períodos de preservação igual ou inferior a 6 (seis) meses, não está dependente de pedido de preservação prévio por parte do Ministério Público e posterior autorização judicial pelas secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, constituída pelos presidentes das secções e por um juiz designado pelo Conselho Superior da Magistratura, de entre os mais antigos destas secções
3. O recurso foi admitido por despacho de ........2024, a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo, e não foi ordenado o cumprimento do n.º 6 do artigo 411.º do Código de Processo Penal por não haver ainda arguido constituído.
4. Neste tribunal, após visto do Ministério Público, foram os autos à conferência, após vistos legais, para o recurso aí ser julgado, cumprindo agora decidir.
II – Fundamentação
1. Do objecto do recurso:
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação nas quais sintetiza as razões do pedido (art.º 412º, nº1 do Código de Processo Penal).
Nas conclusões formuladas pelo recorrente, que condensam as razões da sua impugnação, é suscitada a questão de saber se pode ser autorizado pelo Juiz de instrução a transmissão de dados de tráfego que não foram objecto de conservação nos termos do artigo 6.º, n.º2 da Lei n.º 32/2008, na redacção dada pela Lei n.º 18/2024, de 5 de Fevereiro.
3. Apreciação
Está em causa um pedido formulado pelo Ministério Público de transmissão dos seguintes dados pela operadora de telecomunicações ...:
«listagens de chamadas e mensagens recebidas e efectuadas bem como o registo de todo o acesso à internet efectuado, com indicação expressa da localização celular assumida e respectivas antenas BTS`s, accionadas pelos n.º... utilizados pelo suspeito AA e pelo n.º ... utilizado pelo suspeito BB no período compreendido a partir das 00H00 do dia ........2024 até à data da resposta ao pedido»
O Sr. Juiz de instrução indeferiu tal pedido por considerar, no essencial, que, se trata de acesso a dados de tráfego e de localização que só podiam ser transmitidos se tivesse sido solicitada a sua conservação mediante autorização judicial por parte de uma formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 6º da Lei n.º 32/2008, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 18/2014, de 5/02.
O recorrente defende que os dados em causa estão sujeitos ao regime de preservação durante seis meses, previsto na Lei n.º 41/2004, de 18/08, sendo acessíveis por despacho do juiz de instrução, nos termos dos artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal e não se tratar de um meio prova que não está proibida por lei.
Vejamos:
Está em causa a transmissão de dados de tráfego armazenados numa operadora de comunicações, relativamente a dois suspeitos e a uma vítima, no âmbito de uma investigação pela prática de um crime de roubo agravado, consumado e não tentado como, certamente por lapso, se refere na 1ª conclusão da motivação.
A Lei n.º32/2008, de 17 de Julho, que regula a conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta dos serviços de comunicações electrónicas, com a finalidade exclusiva de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes estabelece no seu artigo 4.º, n.º1 a categoria de dados a conservar pelos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicação, os chamados metadados, que abrangem dados de diferente natureza categorizados na jurisprudência constitucional como dados de base e dados de tráfego, incluindo nestes os de localização.
Para todo esse tipo de dados previsto no n.º1 do artigo 4.º, estabelecia a lei, na sua versão originária, o período de conservação de um ano a contar da data da conclusão da comunicação (artigo 6.º) e a possibilidade da sua transmissão mediante despacho fundamentado do juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público ou da autoridade de policia criminal competente, se houvesse razões para crer quanto à sua indispensabilidade para a descoberta da verdade ou que a prova seria de outra forma impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves (artigo 9.º).
O Tribunal Constitucional, mediante o acórdão n.º 268/2022, de 19 de abril, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral:
a) da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;
b) da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.
Na sequência dessa decisão, a Assembleia da República aprovou o Decreto n.º 91/XV, de 26 de Outubro de 2023, visando a alteração da Lei n.º 32/2008 cuja conformidade constitucional de algumas das suas normas foi submetida à apreciação do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização preventiva, pelo senhor Presidente da República.
Através do acórdão n.º 800/2023, de 4 de dezembro de 2023, o Tribunal Constitucional pronunciou-se novamente no sentido da desconformidade constitucional da norma respeitante à conservação de dados de tráfego e de localização, em face do direito à reserva da vida privada e da proteção dos dados pessoais, por só ter sido alterado quanto a tais dados o prazo de conservação e se manter incólume o potencial âmbito subjectivo da norma, isto é, continuar a ser geral e indiferenciada, e não selectiva, por não se dirigir de forma directa, objectiva e não discriminatória a pessoas que tenham uma relação com os objectivos da acção penal, antes atingindo (ou melhor dizendo continuar a atingir) sujeitos relativamente aos quais não há qualquer suspeita de actividade criminosa.
Na sequência, foi publicada, em 5 de Fevereiro de 2024, a Lei n.º18/2024, que na nova redacção dada ao artigo 6.º manteve, no seu n.º 1, o período de conservação de um ano, a contar da data da conclusão da comunicação, apenas quanto aos seguintes tipos de dados previstos no n.º1 do artigo 4.º: (i) dados relativos à identificação civil dos assinantes ou utilizadores de serviços de comunicações publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações; (ii) demais dados de base; e (iii) endereços de protocolo IP atribuídos à fonte de uma ligação.
Quanto aos dados de tráfego e de localização estabeleceu, nos nºs 2, 3 e 4 do mesmo artigo, que tais dados apenas podem ser objecto de conservação mediante pedido de autorização judicial, efectuado pelo Ministério Público, o qual tem carácter urgente e deve ser decidido no prazo máximo de 72 horas, devendo a submissão do pedido ser de imediato comunicada aos fornecedores de serviços de comunicações, os quais não poderão eliminar os dados em causa até decisão final sobre a sua conservação, de forma a salvaguardar a utilidade de tal pedido.
De acordo com o n.º 7 do mesmo artigo, o pedido de autorização judicial para a conservação de dados de tráfego e de localização, deve ser efectuado junto do Supremo Tribunal de Justiça competindo a sua apreciação a uma formação de juízes junto das Secções Criminais, constituída pelos presidentes dessas secções e por um juiz designado pelo Conselho Superior da Magistratura, de entre os mais antigos destas secções.
A decisão judicial de conservação de dados de tráfego e de localização fixa o prazo de conservação dos mesmos e deve limitar-se ao estritamente necessário para prossecução da finalidade prevista no n.º1 do artigo 3.º (sua necessidade para a investigação, deteção e repressão de crimes graves) e deve cessar assim que se confirme a desnecessidade de conservação (n.º 5 do artigo 6.º).
Em matéria de transmissão de dados, a Lei n.º 18/2008 mantém o regime anterior previsto no artigo 9º - de que ela é permitida para os dados referentes às categorias previstas no artigo 4.º e é necessariamente autorizada por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves. Exclui, porém, no seu n.º2, a possibilidade de a autorização poder ser requerida pela autoridade de polícia criminal competente e passa a prever, no n.º 7, que o titular dos dados transmitidos é notificado da decisão que autoriza a sua transmissão, no prazo de 10 dias, não obstante, durante a fase de inquérito, o juiz de instrução pode protelar essa notificação, a pedido do Ministério Público, caso esta comporte riscos para a investigação, dificulte a descoberta da verdade ou crie perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou liberdade de pessoas devidamente identificadas (n.º 8).
Prevê-se ainda, no novo n.º 9 do mesmo artigo 9.º, que a transmissão de dados a autoridades de outros Estados apenas pode ocorrer no âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria penal se esses Estados assegurarem o mesmo nível de proteção de dados pessoais vigente no território da União Europeia.
Sendo este o actual quadro legal da conservação e transmissão dos dados, que têm por finalidade exclusiva a investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, temos, por outro lado, a Lei n.º41/2004 de 18/08, que regula a protecção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações, que permite às empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações electrónicas, o armazenamento de dados de tráfego, designadamente os previstos no n.º2 do seu artigo 6.º, pelo período durante o qual a factura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado, que é de seis meses, nos termos do artigo 10.º, n.º1 da Lei n.º 23/96, de 26/07, na redacção dada pela Lei n.º 12/2008, de 26/02 e a Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15/09) que permite, no seu artigo 12.º, a preservação expedita de dados armazenados num sistema informático, incluindo dados de tráfego, em relação aos quais haja receio de que possam perder-se, alterar-se ou deixar de estar disponíveis, por parte da autoridade judiciária competente, diplomas que a Lei n.º 32/2008 não revogou e sobre os quais não incidiu qualquer declaração de inconstitucionalidade.
O artigo 6.º, n.º 2 da Lei n.º 32/2008, introduzido pela Lei n.º 18/2024, ressalva, aliás, do regime de conservação aí previsto, a conservação dos dados pelas entidades previstas no artigo 4.º, n.º 1, nos termos definidos contratualmente com o cliente para efeitos emergentes das respectivas relações jurídicas comerciais, onde precisamente se inclui os dados para facturação previstos na Lei n.º 41/2004, ou por força de disposição legal especial.
Se existem essas excepções quanto à conservação de dados de tráfego e se a própria Lei 32/2008 faz essa ressalva, temos de considerar que os dados de tráfego cuja conservação é exigida nos termos previstos no artigo 6.º, n.º 2 daquela lei, para a qual é competente a formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, que podem depois ser transmitidos para efeitos de investigação, respeitam a outros dados de tráfego que não aqueles que são guardados durante seis meses para efeitos de facturação, pelas empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações electrónicas, ou que importa guardar para além desse prazo, por terem uma relevância indispensável para a investigação.
Por um lado, não faz qualquer sentido que, relativamente a dados de tráfego que as empresas fornecedoras de serviços electrónicos conservam durante seis meses para efeitos de facturação, esses mesmos dados tenham também de ser conservados nos termos do artigo 6.º n.º 2 da Lei 34/2008, até por prazo inferior, através da intervenção de juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, para que tais dados possam ser transmitidos para efeitos de investigação, uma vez verificados os pressupostos do artigo 9.º, n.º1 da mesma lei, como parece ser entendimento do Sr. Juiz a quo, pois tal redundaria numa inutilidade e num desperdício de recursos.
Por outro lado, essa só pode ser a interpretação a dar à ressalva que é feita no n.º2 do artigo 6.º da Lei n.º 34/2008, tanto mais que o artigo 9.º respeitante à transmissão dos dados referentes às categorias previstas no artigo 4.º, que abrange, como já referimos dados de base e dados de tráfego, incluindo nestes dados os de localização, não ressalva que essa transmissão só possa ser efectuada relativamente aos dados de tráfego se estes foram objecto de conservação nos termos do n.º2 do artigo 6.º.
Os dados de tráfego para efeitos de facturação que as empresas fornecedoras de serviços electrónicos podem armazenar durante seis meses constituem, em si mesmos, um meio de prova válida e legal a que o Ministério Público pode recorrer para efeitos de investigação, nomeadamente quando está em causa um crime grave e essa prova seja indispensável para a descoberta da verdade. Tais dados, como resulta do que se deixou exposto, não estão sujeitos ao regime de conservação previsto no n.º2 do artigo 6.º da Lei n.º 34/2008, assim como o não estão os dados de tráfego e localização que são conservados por força de disposição legal especial, como é a lei do cibercrime, para que possam ser transmitidos para efeitos de investigação.
Não vimos, por isso, obstáculo legal a que, estando em causa a investigação de um crime grave e sendo tais dados indispensáveis para a descoberta da verdade, como é o caso dos autos, não possa ser requerida, pelo Ministério Público, ao juiz de instrução, a sua transmissão pela empresa fornecedora dos serviços electrónicos em causa, nos termos do artigo 9.º da Lei n.º 34/2008, desde que esses dados de tráfego sejam apenas aqueles que a empresa pode conservar durante seis meses para efeitos de facturação, ainda que tais dados não tenham sido objecto de conservação nos termos previstos no n.º2 do artigo 6.º da Lei n.º 34/2008.
Termos em que, não pode deixar de proceder o recurso devendo o despacho recorrido ser substituído por outro em que o Senhor juiz de instrução autorize a transmissão dos dados de tráfegos armazenados pela empresa ... para efeitos de facturação, relativamente aos números de telefone dos sujeitos e da vítima que foram indicados no requerimento do Ministério Público e em que ordene o cumprimento do disposto no n.º7 do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008.
III - Decisão
Pelo exposto, acordam, os Juízes, na 5ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso do Ministério Público, nos termos acima definidos, e, em consequência, em revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro a autorizar a transmissão dos dados de tráfegos armazenados pela empresa ... para efeitos de facturação, relativamente aos números de telefone dos sujeitos e da vítima que foram indicados no requerimento do Ministério Público, sem esquecer o cumprimento do disposto no n.º7 do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008.
Sem custas.

Lisboa, 4 de Junho de 2024
(Texto integralmente processado e revisto pela relatora – art.º 94.º, n. º 2 do C.P.P.)
Maria José Costa Machado
Ester Pacheco dos Santos
Carlos Espírito Santo