Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
| ||
| Relator: | ANA MÓNICA MENDONÇA PAVÃO | ||
| Descritores: | ERRO MÉDICO RESPONSABILIDADE CIVIL INDEMNIZAÇÃO DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA PRESSUPOSTOS | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 09/10/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | O direito de regresso é um direito de crédito novo que nasce como consequência da extinção da relação creditícia anterior (no caso, aquela que a ora autora tinha perante os terceiros lesados), por via do pagamento da indemnização, pelo que é pressuposto do exercício do direito de regresso a satisfação da indemnização, não podendo aquele direito nascer antes do momento do pagamento do quantum indemnizatório. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO Clínica ......., Lda. intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Companhia de Seguros Fidelidade, SA., pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de €15.000,00, acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até à data do integral pagamento. Alegou, para tanto e em síntese, que em virtude do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º 27345/18.0T8LSB no Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 11 - do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi a ora autora condenada no pagamento solidário da quantia de €30.000,00 a J... e T… (autores nessa acção) em sede de responsabilidade civil a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência do erro de diagnóstico das malformações do feto e da omissão do dever de informação relativa à saúde do mesmo, por parte do médico, A..., que integra o corpo clínico da Clínica ….…. Mais alegou que, tendo a autora celebrado contrato de seguro de responsabilidade civil profissional com a ora Ré, a sua responsabilidade civil emergente de actos ou omissões imputáveis aos médicos ao seu serviço, no exercício da sua profissão e por causa desse exercício, à data dos factos que integram a causa de pedir no referido processo n.º 27345/18.0T8LSB, encontrava-se transferida para a R. Companhia de Seguros Fidelidade, S. A. E que, nessa acção judicial, requereu a intervenção acessória provocada da Companhia de Seguros Fidelidade, S. A., a qual foi admitida, não tendo a mesma deduzido oposição ao seu chamamento, nem tendo questionado o direito de regresso invocado pela ora Autora. Alegou ainda que, em face da sentença proferida a 22.10.2021, a ora Ré comunicou à ora autora (a 11.11.2021) que “não assumiria o pagamento de qualquer quantia aos autores do Processo n.º 27345/18.0T8LSB, uma vez que, nos termos da apólice em causa, só estariam garantidos os danos resultantes de lesões corporais causadas pelo profissional, pelo que a Clínica ......., Lda. não seria titular de qualquer direito de regresso”. Em virtude de tal comunicação, e na sequência de acordo firmado com os autores do processo n.º 27345/18.0T8LSB, a Autora pagou-lhes, em 28 de janeiro de 2022, a quantia de 15.000,00€. Regularmente citada, a ré apresentou contestação, impugnando a existência de direito de regresso do qual a autora se arroga, porquanto o contrato de seguro de responsabilidade civil profissional celebrado entre si e a autora não cobre a situação de facto provada no processo n.º 27345/18.0T8LSB, na medida em que apenas garante danos patrimoniais ou não patrimoniais resultantes exclusivamente de lesão corporal, em consequência de erro ou falta profissional não doloso imputável à segurada, o que não resultou da factualidade provada da sentença proferida no âmbito do já referido processo. No mais e quanto ao seu chamamento enquanto interveniente acessória no mencionado processo, alegou a ré que, sendo parte interveniente, não poderia alegar factos exteriores à relação material controvertida no mencionado processo, nem seria essa a sede própria para questionar o alegado direito de regresso da autora. Foi proferido saneador-sentença, com o seguinte dispositivo: «Nesta conformidade, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência: 1. Condeno a Companhia de Seguros Fidelidade, S. A a pagar à Clínica ......., Lda. a quantia de 13.500,00€ (treze mil e quinhentos euros), acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa supletiva legal de 4%, desde a data da citação até à data do integral pagamento. 2. Absolvo a Companhia de Seguros Fidelidade, S. A do demais peticionado contra si.» Inconformada com a sentença, veio a ré dela interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]: “1. Em ação de regresso do segurado sobre seguradora, tendo esta apresentado contestação e impugnado a matéria vertida nos arts. 1º, 3º a 9º, 12º a 13º, 16º, 17º, 20º, 22º e 26º da petição inicial, alegando nos arts. 14º, 15º, 16º, 18º, 19º, 20º e 23º da contestação e juntando os docs nºs 1 a 4 para sua prova, factualidade integradora do disposto no art.º 332º do Cód. Proc. Civ., não poderia o Tribunal considerar irrelevante tal matéria na factualidade não provada nem omiti-la da decisão de facto, abstendo-se de a conhecer considerando, em erro de julgamento, "porquanto a mesma não alegou quaisquer factos descritos nas alíneas a) e b) desse preceito." em violação ao disposto no art.º 607º nº 4 e 608º nº2 do Cód. Proc. Civ. 2. Não tendo a aqui A. recorrida, em sede de resposta a exceções submetida sob ref citius 35642933 em 11-04-2023, impugnado a factualidade vertida nos arts 3º, 6º, 7º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º e 22º da contestação da R. nem os respetivos documentos 1 a 4, sempre deveria o Tribunal a quo considerá-la confessada e inseri-la na matéria de facto dada como provada por relevante para a decisão da causa, em obediência ao disposto nos arts. 574º, nº 1; 595º, nº 1 al. b) e art.º 608º nº2 do Cód. Proc. Civ. 3. Na factualidade provada deve ser inserida a matéria constante dos arts 3º, 6º, 7º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º e 22º da contestação da R., tal como explicitados nas alíneas do nº 3 do ponto B) da fundamentação da recorrente, sob pena de violação do disposto nos arts. 574º nº1 e 608º, nº2 do Cód.Proc.Civ. 4. Com efeito, não tendo a aqui A. recorrida, naquela ação R., por negligência grave em sede de responsabilidade contratual, alegado e provado, nem dando a conhecer à seguradora ( ali interveniente acessória, aqui R. recorrente), qualquer facto que fosse suscetível de afastar a presunção de culpa da clínica emergente de responsabilidade contratual, não alegando nem dando a conhecer à então interveniente que procedimentos adotou, a adequação desses procedimentos, os atos que concretamente praticou e os meios que facultou ao médico A..., para evitar o erro de diagnóstico ( art.º 16º, 19º, 20º e 23º da contestação), determinando com essas atitudes que se presumisse a sua culpa naquela ação e por via disso fosse condenada solidariamente a indemnizar os AA., estão verificados os pressupostos previstos no art.º 332º al. a) (a atitude da parte principal impediram a seguradora de fazer uso de alegações ou meios de prova que poderiam influir na decisão final) e al. b) (desconhecia a existência de alegações ou meios de prova suscetíveis de influir na decisão final e que o assistido não se socorreu deles por negligência grave). 4. Mais agiu com negligência grave na defesa a ali R., aqui A. recorrida, por não ter recorrido de decisão de direito que estabelecia um nexo causal entre factos e danos não imputáveis aos RR. (por terem conhecimento após o parto da falta de 3 dedos do seu filho, entraram em choque e foram invadidos por um sentimento de angústia, pânico e preocupação) fixando indemnização por danos não patrimoniais em violação ao disposto nos arts. 563º e 496º, nº 1 do Cód. Civ. (o mesmo sofrimento teria ocorrido mesmo que a obrigação de diagnóstico tivesse sido cumprida - art.º 14º da contestação) 5. A prova por confissão decorrente da ausência de impugnação em sede de resposta da A às exceções apresentada sob ref. citius 35642933 em 11-04-2023 da factualidade vertida nos arts. 3º, 6º, 7º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º e 22º da contestação impõe a improcedência da ação e a absolvição do pedido, o que se requer. 6. A factualidade constante da sentença da ação anterior proferida no processo 27345/18.0T8LSB, inserta no art.º 7º da contestação e constante do doc. nº6 junto pela A., omitida da decisão de facto, permitia ao Tribunal aferir da recorribilidade da decisão de direito por fixação de indevida/excessiva indemnização a qual se deveria limitar ao sentimento surpresa e revolta o que não constitui lesão corporal que provoque danos, tal como definida no contrato de seguro (doc. nº 2) e por isso não garantida. 7. Provado que a A. negligenciou gravemente a sua defesa na ação principal por sua própria inação, não lhe assiste direito de indemnização sobre a seguradora devendo a ação improceder na totalidade. 8. Mesmo que assim não se entendesse e se considerasse parcialmente procedente o pedido, fixando a sentença da ação principal o valor de indemnização de 30.000,00€, da responsabilidade solidária da R. aqui A, ao valor suportado pela A. sempre seria dedutível o valor de 3.000,00€ em virtude da franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis prevista no contrato de seguro junto pela A como doc. nº 2, só podendo a aqui R. ser condenada no valor de 12.000,00€, pois a franquia contratual sempre lhe seria integralmente imputável, sob pena de violação da lex contratus constante dos docs nº 1305461 e 2 juntos com a contestação.” Conclui a recorrente que deve o recurso ser julgado procedente. * A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso. * Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. * II. QUESTÕES A DECIDIR Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir das seguintes questões: - Impugnação da decisão sobre a matéria de facto; - Verificação dos pressupostos do direito de regresso invocado pela autora. * III. FUNDAMENTAÇÃO III.1. Factos Factos provados O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos [transcrição]: 1. No âmbito da ação judicial com o n.º 27345/18.0T8LSB, J... e T… peticionaram a condenação da aqui Autora e do médico A... no pagamento, da quantia de 60.000,00€, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e até efetivo pagamento, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência do erro de diagnóstico das malformações do feto e da omissão do dever de informação relativa à saúde do mesmo, por parte do médico A... que integra o corpo clínico da Autora. 2. No âmbito do processo n.º 27345/18.0T8LSB, a aqui Autora requereu a intervenção acessória provocada da Companhia de Seguros Fidelidade, S. A, a qual foi admitida. 3. A Companhia de Seguros Fidelidade, S. A., no âmbito do processo n.º 27345/18.0T8LSB, não se opôs ao seu chamamento e apresentou contestação, na qual aderiu à contestação apresentada nesse processo, pela ora Autora (ali Ré). 4. Nessa contestação, a ora Ré defendeu-se invocando inexistir qualquer direito indemnizatório devido aos Autores desse processo porquanto: i) a malformação congénita que o filho dos mesmos apresenta não decorre de qualquer conduta, ainda que eventualmente negligente; ii) nada seria possível fazer, antes ou depois do nascimento, para evitar a malformação congénita; iii) a malformação congénita não é de tal forma grave que justificasse a interrupção voluntária da gravidez; iv) os ali Autores sempre sofreriam a desilusão que naturalmente tiveram. 5. O médico A... realizou a J… três ecografias gestacionais previstas na Norma da Direção Geral de Saúde n.º 023/2011, no âmbito da vigilância de uma gravidez de baixo risco, nos dias 05.06.2015, 04.08.2015 e 22.10.2015. 6. Das ecografias supra mencionadas, o médico A... realizou e elaborou os relatórios das três ecografias realizadas. 7. Em todas as conclusões dos relatórios constava a menção de inexistência de malformações do feto. 8. No dia 29.12.2015, nasceu M…, filho de J… e T…, apresentando: a) Agenesia dos 2.º, 3.º, e 4.º dedos da mão direita; b) Hipoplasia dos 1.º e 5.º dedos da mão direita; c) Hipoplasia dos ossos de todo o membro superior direito; d) Hipoplasia do músculo grande peitoral; e) Alteração anatómica do ombro direito com limitação funcional do mesmo. 9. M… foi diagnosticado com Síndrome de Poland, sendo este uma malformação congénita que se caracteriza pela ausência total ou parcial do músculo peitoral maior, com grau variável de anomalias da mão do mesmo lado e que pode ter associadas outras malformações. 10. J… e T... entraram em choque e foram invadidos por um sentimento de angústia, pânico e preocupação, dúvidas e inseguranças quando receberam a notícia que o filho padecia das malformações supra descritas, uma vez que não estavam preparados. 11. Ficaram abalados, surpreendidos, preocupados, perguntando-se que outras malformações poderia ter M…, não detetadas durante a gravidez e que implicações e impacto teriam na vida e normal desenvolvimento do mesmo. 12. Sofreram com o nervosismo, tristeza e confusão do outro filho de T…, quando este foi confrontado com a situação de diferença de M…. 13. Sentiram revolta pelo facto de considerarem que o direito à informação verdadeira sobre o estado de saúde de M… lhes tinha sido negado, bem como lhes tinha sido coartada a possibilidade de, pelo menos, equacionar o prosseguimento da gravidez de J... perante a existência de uma malformação congénita incurável. 14. Se o médico A... tivesse efetuado a devida avaliação aos membros do feto e aos seus três segmentos, teria certamente identificado a Agenesia dos 2.º, 3.º, e 4.º dedos da mão direita pelo menos, na ecografia morfológica. 15. Aquando da ecografia morfológica, o médico A... não expressou quaisquer dúvidas, nem propôs a realização de qualquer outra ecografia. 16. Por sentença datada de 22.10.2021, proferida pelo Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 11, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, transitada em julgado, foi aquela ação julgada parcialmente procedente, pelos fundamentos de facto e de direito aí aduzidos e que aqui se deixam integralmente reproduzidos, e, em consequência, foram a ora Autora e o médico A... condenados a pagar, solidariamente, a J... e T…, a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros), acrescida de juros de mora vencidos desde a presente data e até integral pagamento. 17. A Autora na qualidade de tomadora do seguro e pessoa segura, e a Ré Companhia de Seguros Fidelidade, S.A., na qualidade de seguradora, celebraram entre si um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, titulado pela apólice n.º RC9253353, tendo por objeto a garantia da responsabilidade que, ao abrigo da lei civil, seja imputada àquela por erro ou faltas profissionais cometidas no exercício da sua atividade, até ao limite de €1.000.000,00 por sinistro, com uma franquia de 10% sujeito às condições particulares, especiais e gerais que se encontram juntas aos autos como documento n.ºs 1 e 2 da contestação, cujo teor aqui se deixa integralmente reproduzido. 18. À data dos factos supra mencionados, que foram objeto da ação judicial com o n.º 27345/18.0T8LS, a Autora tinha transferido para a Ré sua responsabilidade civil profissional, por força da apólice supra identificada e nas condições ali acordadas. 19. No artigo 1.º das Condições Gerais do referido contrato de seguro consta que “Para efeitos do presente contrato de seguro, entende-se por: (…) Erro ou Falta Profissional O erro, omissão ou acto negligente cometido pelo Segurado no exercício da sua actividade profissional expressamente referida nas Condições Particulares ou nas Condições Especiais da apólice”; “lesão corporal” por “ofensa que afecte a saúde física ou a sanidade mental, provocando um dano”. 20. Das condições particulares do contrato de seguro supra mencionado resulta que a sua cobertura base é que se encontra regulada nos termos da “condição especial 304 – Outras profissões de saúde e condição especial 300 – Médico”. 21. No artigo 2.º da Condição Especial n.º 300 consta que “De harmonia com o disposto nas Condições Gerais, Especiais e Particulares, o Segurador garante o pagamento das indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, a título de responsabilidade civil, por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesão corporal decorrente de erro ou falta profissional cometida no exercício da sua actividade profissional de Médico”. 22. A Ré comunicou à aqui Autora, a 11.11.2021, que não assumiria o pagamento de qualquer quantia aos Autores do Processo n.º 27345/18.0T8LSB, uma vez que, nos termos da apólice em causa, só estariam garantidos os danos resultantes de lesões corporais causadas pelo profissional, pelo que a Clínica ......., Lda., não seria titular, no caso em apreço, de qualquer direito de regresso sobre a aqui Ré. 23. Por acordo celebrado com os Autores do processo n.º 27345/18.0T8LSB, a 28 de janeiro de 2022, a Autora pagou-lhes a quantia de 15.000,00€, por conta da indemnização sentenciada no âmbito daquele processo. Matéria de facto não provada O tribunal de 1ª instância consignou que: “Com interesse para a decisão da causa, inexistem factos não provados. * Consigna-se que não foi considerada a matéria meramente conclusiva e de cariz normativo e os factos desprovidos de interesse e relevância para a decisão da causa.” * III.2. Mérito do recurso III.2.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto Nos termos do disposto no art.º 662º/1 do Cód. Proc. Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Dispõe, por sua vez, o art.º 640º/1 do Cód. Proc. Civil que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: “a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” Resultando do corpo das alegações de recurso e respectivas conclusões que a recorrente deu mínimo cumprimento aos ónus impostos pelo art.º 640º do CPC, importa apreciar a impugnação da matéria de facto, analisando cada um dos factos postos em crise. Alega a apelante que “Foi indevidamente omitida da factualidade provada e não provada a factualidade vertida nos artigos 3º, 6º,14º,15º,16º,18º,19º, 20º e 22º da contestação e documentos juntos como docs nº 3 e 4 (relatórios periciais) para sua prova e que relevaria para a decisão da causa. Mais resultaria tal prova dos documentos juntos pela R como docs nº 1 e 2 e bem assim da sentença junta como doc nº 6 pelo A.” No mais, tece um conjunto de considerações de carácter conclusivo, remetendo para o alegado designadamente nos arts. 16, 19 e 20 da contestação, concluindo que a A., na sua resposta às excepções, não se pronunciou sobre tal matéria, que por isso deverá integrar a matéria de facto dada como provada. Depreende-se da alegação recursória no seu conjunto que a apelante pretende que seja dado como provado o alegado nos mencionados arts 3º, 6º,14º,15º,16º,18º,19º, 20º e 22º da contestação. Ora, como refere a apelada, a matéria descrita no artigo 3.º da contestação da ora recorrente consta da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida; e a demais matéria, alegada nos artigos 6.º, 14.º, 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 20.º e 22.º daquele articulado, não integra factos, mas meros juízos conclusivos em sede de matéria de direito. Os artigos da contestação em apreço têm o seguinte teor: “3. Nos termos do mesmo contrato de seguro facultativo a responsabilidade civil profissional emergente do exercício da profissão de médica e de outras profissões de saúde garantia um capital máximo de 1.000.000,00€ por período seguro com uma franquia, a cargo do segurado, de 10% dos prejuízos indemnizáveis (doc. nº 1); 6. Ademais, nos termos do mesmo contrato, sempre lhe caberia suportar a franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis, in casu 10% de 30.000,00€, ou seja, o valor de 3.000,00€. 14. A ali interveniente nem sequer tinha legitimidade para recorrer duma decisão de direito, face aos factos provados, considerando juridicamente não tutelados por lei: - os danos não patrimoniais dos AA (por terem conhecimento da falta de 3 dedos do seu filho após o parto, entraram em choque e foram invadidos por um sentimento de angústia, pânico e preocupação (cfr. n.º 52 do ponto 2.1. dos factos provados) o que sempre teria provavelmente ocorrido mesmo que a obrigação de diagnóstico tivesse sido cumprida, pelo que inexistia nexo causal entre o facto e o dano, devendo ser afastado o direito à indemnização (art.º 563º do Cód. Civ.). - os danos não patrimoniais, também por isso, não seriam merecedores da tutela do direito (496, nº 1 do Cód. Civ), - e até, na fixação da indemnização, não foram respeitados os critérios previstos no art.º 494º do Cód. Civ. - sendo a indemnização excessiva face aos danos que, ainda que a teoria do tribunal fosse mantida, deveriam ser indemnizáveis, já que nessa ponderação em sede de sentença o Tribunal ponderou os factos vertidos nos pontos 55 a 59, considerando-os também resultado da conduta do 2º R, não o podendo fazer face aos factos provados nos pontos 48,76,81 e 82 da matéria de facto provada. 15. No máximo, o Tribunal só poderia fixar indemnização pela perturbação causada com a surpresa da falta (agenesia) de 3 dedos da mão direita e pela revolta com a falta de informação (pontos 48; 14 al. a); 73 e 76; e já não por todas as má formações detectadas à nascença, uma vez que essas não eram detectáveis nem expectáveis que o fossem em ecografia (pontos 81 e 82 da sentença, tal como evidenciam os Relatórios periciais ali juntos e que se junta como doc. nº 3 v. resposta EEE) e HHH) e doc. nº4. 16. A então R. não só não recorreu, nem da fixação do montante indemnizatório, como na sua contestação no processo 27345/18.0T8LSB, a Clínica ......., Lda, negligentemente não alegou, nem deu a conhecer à seguradora, qualquer facto que fosse susceptível de afastar a presunção de culpa da clínica, nomeadamente, não alegando nem dando a conhecer à então interveniente que procedimentos adoptou, a adequação desses procedimentos e os actos que concretamente praticou e meios que facultou ao médico A..., para evitar o erro de diagnóstico (v. contestação da ali R. no doc. junto pela aqui A.). 17. Pelo que o Tribunal condenou a Clínica …… por culpa presumida na execução deficiente de um serviço por erro de diagnóstico: "No que respeita à 1.ª R., não vem provado se os procedimentos recomendados foram (ou não) respeitados no caso dos autos, nem que tenha ocorrido qualquer facto que, apesar de a 1.ª R. ter actuado em conformidade com as boas práticas e com toda a diligência e cuidado, pudesse justifica o erro na avaliação em causa, designadamente força maior, facto do lesado ou qualquer outro facto explicativo. E, desta forma, provada a ilicitude pelo desrespeito da obrigação contratada, deve aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual, pelo que, nos termos do art.º 799.º, n.º 1, do CC, a culpa da 1.ª R. presume-se "e" Caberia à 1.ª R. ilidir essa presunção (cfr. art.º 344.º, n.º 1, do CC), demonstrando que procedimentos adoptou, a adequação desses procedimentos e os actos que concretamente praticou para evitar o erro de diagnóstico, o que não fez". (v. decisão judicial já junta) 18. A ali R., ora A., nem logrou provar se o médico A..., 2º R., era imagiologista i.é se estava legalmente habilitado a usar tecnologias de imagem para realização de diagnósticos ( al. a) dos factos não provados), o que lhe cabia fazer. 19. A ali interveniente acessória, desconhecendo a verdade dos factos por de pessoais não se tratarem, e atenta a posição da R. vertida na sua contestação, de nenhum outro facto sabia que pudesse alegar na dita acção para coadjuvar a sua defesa. 20. Por evidente falta de alegação não se podiam provar factos que ilidissem a presunção de culpa da ali R, aqui A.. 22. Termos em que, a ora A. foi gravemente negligente na sua defesa em sede de responsabilidade civil contratual e nem recorreu de decisão legalmente inadequada por estabelecer um nexo causal entre factos e danos que não ocorreram por acto imputável aos RR.” Afigura-se-nos evidente que, à excepção do art.º 3º, cuja matéria já se mostra incluída no ponto 17 dos factos provados da sentença sob recurso, os demais artigos transcritos não encerram verdadeiros factos, mas apenas matéria conclusiva e de direito, sendo que o tribunal recorrido consignou expressamente que “não foi considerada a matéria meramente conclusiva e de cariz normativo e os factos desprovidos de interesse e relevância para a decisão da causa.” Como é sabido, aquilo que deve constar da fundamentação de facto de uma sentença não são juízos valorativos, conclusivos ou de direito, mas verdadeiros enunciados de facto, no sentido de factos jurídicos ou juridicamente relevantes atinentes sobretudo, ainda que não em exclusivo a ocorrências da vida real, assim como ao estado, à qualidade ou à situação real das pessoas ou das coisas (vide Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 406-407, e RLJ, Ano 122, nº 3784, p. 219,). Segundo Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, 4ª ed., 1985, p. 209, juridicamente relevantes são os factos que constituem “ocorrências da vida real, isto é, os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos humanos (…) vistos à luz das normas e critérios do direito”. O art.º 607º/4 do Cód. Proc. Civil determina que o juiz declara na fundamentação da sentença apenas “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados”, o que significa que deve ser expurgada toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, incluindo juízos de valor ou conclusivos – cf. Ac. do STJ de 23/05/2012, Sampaio Gomes (“[n]ão porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum»”), acessível em www.dgsi.pt. Voltando ao caso dos autos, é indubitável que os artigos da contestação que a apelante pretende que sejam dados como provados, não enunciam factos, mas meros juízos conclusivos em que se sustenta a tese apresentada pela ré na presente acção, matéria que apenas pode relevar em sede de apreciação jurídica. Aliás, de toda a alegação recursória resulta a incapacidade da apelante em destrinçar matéria de facto e de direito, denotando o inconformismo face à decisão recorrida no seu todo. Pelo exposto, improcede totalmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. * III.2.2. Apreciação jurídica Na presente acção pretende a autora/ora apelada Clínica ......., Lda a condenação da ré/ora apelante Companhia de Seguros Fidelidade, SA. no pagamento da quantia de €15.000,00, acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até à data do integral pagamento, quantia que pagou a J… e T…, no âmbito de acordo celebrado na sequência da sentença proferida no processo n.º 27345/18.0T8LSB no Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 11, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, já transitada em julgado, que condenou a ora autora/ali ré e A... (ali co-réu), solidariamente, a pagarem aos referidos J… e T… quantia de €30.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por estes em consequência do erro de diagnóstico das malformações do feto e da omissão do dever de informação relativa à saúde do mesmo. A autora sustenta o direito de regresso invocado no contrato de seguro de responsabilidade civil profissional que celebrou com a ora ré, por força do qual, à data dos factos objecto daquela acção (processo n.º 27345/18.0T8LSB), a sua responsabilidade civil emergente de actos ou omissões imputáveis aos médicos ao seu serviço, no exercício da sua profissão e por causa desse exercício, se encontrava transferida para a ré, Companhia de Seguros Fidelidade, S.A. Mais argumenta que a Ré, tendo sido admitida a intervir como parte acessória naquela outra acção judicial, não se opôs ao chamamento, nem questionou o direito de regresso ali invocado pela ora Autora. E quando interpelada para proceder ao pagamento da indemnização, comunicou à Autora que não assumiria o pagamento de qualquer quantia devida no âmbito do Processo n.º 27345/18.0T8LSB, uma vez que, nos termos da apólice em causa, só estariam garantidos os danos resultantes de lesões corporais causadas pelo profissional, pelo que, a Clínica ......., Lda., não seria titular, no caso em apreço, de qualquer direito de regresso. A sentença sob recurso decidiu julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência: 1) condenar a Companhia de Seguros Fidelidade, S. A a pagar à Clínica ......., Lda. a quantia de 13.500,00€ (treze mil e quinhentos euros), acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa supletiva legal de 4%, desde a data da citação até à data do integral pagamento; 2) e absolver a Companhia de Seguros Fidelidade,S. A do demais peticionado. A ré/recorrente esgrime que a ora recorrida, aqui autora e ré no P. n.º 27345/18.0T8LSB, não logrou alegar e provar qualquer facto susceptível de afastar a presunção de culpa da clínica emergente de responsabilidade contratual (não alegando os procedimentos adoptados e os meios facultados ao médico A... para evitar o erro de diagnóstico), levando a que se presumisse a sua culpa naquela acção, pelo que, conclui, se mostram verificados os pressupostos previstos no art.º 332º a) e b) do CPC. Mais alega que a ora A. agiu com negligência grave na defesa apresentada enquanto ré no P. 27345/18.0T8LSB, por não ter recorrido da decisão de direito. Apreciando. A questão essencial a decidir consiste em saber se estão verificados os pressupostos do direito de regresso invocado pela A., pretendendo esta obter o pagamento por parte da ré seguradora da quantia que pagou na sequência da sua condenação no mencionado processo n.º 27345/18.0T8LSB. Antes de mais, importa assinalar que em tal acção a ali ré/ora autora, requereu a intervenção acessória provocada da ora ré Fidelidade, Companhia de Seguros, S.A. - com quem celebrou contrato de seguro de responsabilidade civil emergente de actos ou omissões imputáveis aos médicos ao seu serviço, no exercício da profissão e por causa desse exercício -, intervenção que foi admitida. A interveniente Fidelidade apresentou contestação naquela acção, defendendo que não assistia aos ali autores qualquer direito indemnizatório, uma vez que: - a malformação congénita que o filho dos AA apresenta não decorre de qualquer conduta, ainda que eventualmente negligente, do médico 2.º R.; - nada seria possível fazer, antes ou depois do nascimento, para evitar a malformação congénita; - a malformação congénita não é de tal forma grave que justificasse a interrupção voluntária da gravidez; - os AA sempre sofreriam a desilusão que naturalmente tiveram. Note-se que a questão da responsabilidade civil perante J... e T... (autores na referida acção), pelos danos não patrimoniais por estes sofridos em consequência do erro de diagnóstico das malformações do feto e da omissão do dever de informação relativa à saúde do mesmo, foi a questão apreciada e decidida no processo n.º 27345/18.0T8LSB, cuja sentença transitou em julgado, pelo que aqui não cabe reapreciar tal questão. No que concerne à intervenção da ora ré na referida acção, pronunciou-se a sentença recorrida da seguinte forma: “Comecemos por referir que em face da admissão da intervenção como parte acessória, na ação judicial n.º 27345/18.0T8LSB, a ora Ré, ali chamada, apenas passou a deter a posição processual de auxiliar da parte, da ali Ré, cabendo-lhe tão somente auxiliar a parte no sentido de evitar a condenação, vendo os seus direitos limitados subordinados aos direitos da parte assistida, como aliás, claramente se extrai do artigo 328.º do CPC. Na verdade, na intervenção acessória o chamado não é titular da relação jurídica existente entre as partes primitivas, sendo pacífico que toda a sua intervenção na ação é balizada pelas questões aí discutidas que tenham relevo ou repercussão na putativa ação de regresso (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.05.2016, proc. n.º 1848/15.7T8GMR-A.G1, disponível em www.dgsi.pt [como os demais Acórdãos que se citem]). Mais, atendendo à sua posição processual, o chamado não poderá sequer alegar na discussão fundamentos atinentes ao direito de regresso que extravasem a causa de pedir e o pedido da ação para a qual foi chamado. Assim sendo, nunca poderia contestar a existência do direito de regresso invocado, porquanto o mesmo não é objeto da ação onde se discute a relação material controvertida das partes primitivas, na qual foi admitida a intervenção acessória. Na verdade, a sentença aí proferida não define a situação jurídica do assistente, não sendo contra este formulado qualquer juízo de absolvição ou condenação. Não será despiciendo referir ainda que a decisão que admitiu a intervenção acessória, não conhece da existência do direito de regresso, limitando-se a avaliar da viabilidade da existência desse direito. A admissibilidade de se chamar um terceiro ao litígio tem como sua ratio a celeridade e economia processual, eliminando a necessidade para o assistido de ter de instaurar uma outra ação em que tenha de fazer prova não só dos requisitos legais de indemnizar, como também da sua atuação processual diligente no sentido de tudo ter feito para evitar a sua condenação (cfr. artigos 330.º e 331.º do Código de Processo Civil). Nestes termos, estando o chamado vinculado ao que foi decidido quanto aos pressupostos do direito de indemnização (cfr. artigo 332.º do Código de Processo Civil), por exclusão, tudo o mais que contenda com esse direito de regresso não está coberto pelo caso julgado, carecendo de invocação e demonstração pelo autor na ação de regresso. Pelas razões expostas, não colhe o argumento avançado pela Autora no sentido de que a sua titularidade do direito de regresso sobre a ora Ré, emerge da ausência de impugnação desse direito de regresso pela Ré, no âmbito daquela outra ação judicial, ou do convencimento gerado no Juiz dessa outra ação quanto à da viabilidade da ação de regresso.” Subscrevemos o entendimento do tribunal recorrido acerca dos efeitos da intervenção acessória da ora ré no P. 27345/18.0T8LSB, no âmbito do qual esta não tinha a qualidade de parte principal, quer porque não era ali titular da relação jurídica objecto da lide, quer porque não fez valer qualquer pretensão própria, sendo o seu estatuto o de parte acessória, tendo a posição de auxiliar de uma das partes, no caso da ré naquele processo (cf. art.º 328º do CPC). Embora o assistente tenha interesse em que o desfecho da causa seja favorável a uma das partes, o certo é que o titular do interesse directo é a própria parte. Por outro lado, o assistente tem os mesmos direitos e está vinculado aos mesmos deveres da parte assistida (v. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2ª edição, vol. I, pág. 402). Donde, a ora ré – chamada a intervir naquela outra acção – está vinculada ao que foi decidido quanto aos pressupostos do direito de indemnização. Porém, quanto ao mais atinente ao direito de regresso objecto da presente acção, não está abrangido pelo caso julgado, tal como resulta do disposto no art.º 332º do CPC (com a epígrafe “valor da sentença quanto ao assistente”): “A sentença proferida na causa constitui caso julgado em relação ao assistente, que é obrigado a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a decisão judicial tenha estabelecido, exceto: a) Se alegar e provar, na causa posterior, que o estado do processo no momento da sua intervenção ou a atitude da parte principal o impediram de fazer uso de alegações ou meios de prova que poderiam influir na decisão final; b) Se mostrar que desconhecia a existência de alegações ou meios de prova suscetíveis de influir na decisão final e que o assistido não se socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave.” Como enunciado na sentença recorrida, a questão central a decidir consiste em apreciar se a responsabilidade civil profissional da autora/recorrida emergente da conduta do médico A..., que integrava o seu corpo clínico e que provocou os danos não patrimoniais cuja indemnização a autora foi condenada judicialmente a pagar, se encontrava transferida para a Ré. A ré seguradora procura alijar a sua responsabilidade, alegando que a situação em causa não está abrangida pelo âmbito de cobertura da respectiva apólice de seguro. O tribunal a quo entendeu que os danos não patrimoniais que se provaram estão cobertos pela apólice de seguro, que titula o contrato de seguro celebrado entre a ora A. e a ora R. (cf. facto provado 17) – cf. art.º 2º das condições especiais nº 300 - apresentando a seguinte fundamentação: «Resulta do artigo 2.º das condições especiais referentes ao n.º 300 que “de harmonia com o disposto nas Condições Gerais, Especiais e Particulares, o Segurador garante o pagamento das indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, a título de responsabilidade civil, por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesão corporal decorrente de erro ou falta profissional cometida no exercício da sua actividade profissional de Médico.” Por sua vez, o artigo 1.º das condições gerais do contrato de seguro celebrado entre as partes define erro ou falta profissional como sendo o “erro, omissão ou acto negligente cometido pelo segurado no exercício da sua actividade profissional expressamente referida nas condições particulares ou nas condições especiais da apólice” e define lesão corporal como sendo a “ofensa que afecte a saúde física ou a sanidade mental, provocando um dano” (sublinhado nosso). Conjugando as mencionadas cláusulas contratuais temos que, no caso em apreço, a Ré seguradora tem como sua obrigação garantir o pagamento das indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao segurado, a título de responsabilidade civil, por danos não patrimoniais resultantes de ofensa à sanidade mental decorrente de erro, omissão ou ato negligente cometido pelo segurado no exercício da sua atividade profissional. Da factualidade provada resulta que o médico A..., enquanto integrava o corpo clínico da Autora, realizou a J … três ecografias gestacionais, previstas na Norma da Direção Geral de Saúde n.º 023/2011, no âmbito da vigilância de uma gravidez de baixo risco, nos dias 05.06.2015, 04.08.2015 e 22.10.2015 e se tivesse efetuado a devida avaliação aos membros do feto e aos seus três segmentos, teria identificado a Agenesia dos 2.º, 3.º, e 4.º dedos da mão direita, pelo menos, na ecografia morfológica. Contudo, aquando da realização dessa ecografia morfológica, o médico A... não expressou quaisquer dúvidas, nem propôs a realização de qualquer outra ecografia. Mais resultou assente que, por força deste erro de avaliação por parte do médico, J… e T…, entraram em choque e foram invadidos por um sentimento de angústia, pânico e preocupação, dúvidas e inseguranças quando receberam a notícia que o filho padecia das malformações supra descritas; que ficaram abalados, surpreendidos, preocupados, perguntando-se que outras malformações poderia ter M…, não detetadas durante a gravidez e que implicações e impacto teriam na vida e normal desenvolvimento do mesmo; que sofreram com o nervosismo, tristeza e confusão do outro filho de T…, quando este foi confrontado com a situação de diferença de M…; e sentiram revolta pelo facto de considerarem que o direito à informação verdadeira sobre o estado de saúde de M… lhes tinha sido negado, bem como lhes tinha sido coartada a possibilidade de, pelo menos, equacionar o prosseguimento da gravidez de J… perante a existência de uma malformação congénita incurável. Aqui chegados, cumpre apreciar se o choque, a angústia, o pânico, a preocupação, o abalo, as dúvidas e inseguranças e revolta tidas e havidas por J… e T… são suscetíveis de integrar o conceito de ofensa à sanidade mental vertida nas condições do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional. Vejamos. O conceito de saúde é um conceito em constante ampliação atendendo às mudanças sociais e científicas, não sendo um conceito estanque. Contudo, diz-nos o preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde que “a saúde é um estado de completo bem- estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade” (também neste sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.10.2012, proc. n.º 6628/04.2TVLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt). Longo foi o caminho percorrido tanto pela comunidade médico-científica, como pela sociedade, para o reconhecimento e incorporação do bem-estar psíquico e emocional no conceito complexo do que é considerado como saúde. A dificuldade de delimitação e densificação do conceito de saúde mental ou sanidade mental preza-se, na sua essência, pelo facto dos danos produzidos a este nível não revelarem, na mais das vezes, no corpo da vítima – ao contrário do que ocorre aquando do dano físico “que será sempre marcado por um traço tangível” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado). O acima aludido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, numa profunda e detalhada análise ao dano de saúde mental, faz referência à jurisprudência europeia que reconhece a existência de danos psíquicos nas mais variadas situações, como por exemplo, o “estado de angústia motivado por morte de animal doméstico (…) as consequências psíquicas do luto, do sofrimento psíquico (…)”. Concluiu o Tribunal, perentoriamente, que o dano psíquico pode “enquadrar-se precisamente num caso de stress”. E se assim o é, não temos quaisquer dúvidas em concluir, de igual forma, que o choque, pânico, angústia, preocupação, dúvidas, inseguranças e revolta sentidos por J… e T…, no circunstancialismo descritos nos autos, consubstanciam danos patrimoniais que encerram em si mesmo uma lesão na sua saúde mental. Nas palavras de Armando Braga “a lesão à saúde constitui prova, por si só, da existência do dano”, in A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual, Almedina, 2005. A existência de sintomas físicos ou patologias psiquiátricas tornariam, naturalmente, mais evidente, a lesão na saúde mental. Contudo, perfilhamos igualmente a posição do Supremo Tribunal de Justiça exemplarmente sustentada no citado aresto que, na insuficiência de prova de patologias ou sintomas físicos, bastará a prova de que os sentimentos e emoções sejam idóneas à produção de lesões significativas na saúde mental, o que se verifica, sem qualquer margem para dúvidas, no caso vertente. A dificuldade da determinação e avaliação do dano psíquico reside na “elevada complexidade técnica, pois que a lesão na grande maioria dos casos esconde-se na mente da vítima, daí naturais dificuldades da respectiva prova e, consequentemente, do tribunal em identificar o nexo causal entre o dano psíquico e o evento lesivo” (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado). Mas dificuldades estas que não colhem no âmbito dos presentes autos em virtude da factualidade provada. Nestes termos, é inegável que o quadro factual permite, sem margem para qualquer dúvida, concluir que o erro de avaliação do médico A... causou uma efetiva lesão corporal em J… e T…, que se traduz nos danos não patrimoniais em que a Autora foi condenada judicialmente a pagar e que efetivamente pagou, no âmbito de acordo de pagamento celebrado com os lesados. Em face do exposto é meramente consequencial concluir que estes danos se encontram cobertos pela apólice de seguro invocada nos autos, mais precisamente, pelo artigo 2.º das condições especiais n.º 300, pelo que, resultando demonstrado que se encontrava efetivamente transferida para a Ré a responsabilidade civil da Autora quanto aos mesmos, assiste à Autora o direito de agora exigir da Ré o reembolso das quantias que pagou a título de indemnização aos lesados.» Concordamos inteiramente. Com efeito, perante a factualidade provada, não podemos deixar de considerar que os danos sofridos por J… e T… (autores na referida acção 27345/18.0T8LSB), foram consequência directa da actuação do médico A... (erro de avaliação), que efectuou três ecografias gestacionais no âmbito de uma gravidez de baixo risco e não detectou nenhuma malformação do feto. Pelo que o abalo, choque, preocupação e pânico sofridos pelos pais da criança nascida em 29/12/2015 com as malformações descritas no facto provado 8 (a) Agenesia dos 2.º, 3.º, e 4.º dedos da mão direita; b) Hipoplasia dos 1.º e 5.º dedos da mão direita; c) Hipoplasia dos ossos de todo o membro superior direito; d) Hipoplasia do músculo grande peitoral; e) Alteração anatómica do ombro direito com limitação funcional do mesmo), integram o conceito de ofensa à sanidade mental a que se reporta o contrato de seguro celebrado (cf. factos provados 18 a 21) e, como tal, estamos perante danos não patrimoniais, que pela sua gravidade, são dignos de tutela (cf. art.º 496º do C. Civil), tal como foi entendido na sentença proferida no processo n.º 27345/18.0T8LSB – cf. doc. junto em 28/11/22, ref. citius 34309554 (aderindo-se à fundamentação ali apresentada, onde se pode ler: «Tal ocorre, manifestamente, no caso dos autos, pois que se provou que o erro de avaliação ou diagnóstico foi causa do sofrimento experimentado pelo AA. após o nascimento do seu filho. Nem se diga que os danos morais teriam sempre ocorrido, porque o filho dos AA. sempre nasceria com malformações, porque, como já se referiu antes, os danos aqui em consideração não respeitam ao sofrimento experimentado pelos AA. por terem um filho portador de malformações, mas antes pelo facto de terem sido surpreendidos por essa informação num momento de grande fragilidade emocional (logo após o parto) e quando haviam sido convencidos de que esse quadro não se verificaria, sem, portanto, lhes ter sido dada qualquer oportunidade de se prepararem.») Do todo o exposto, é forçoso concluir que o dano em apreço está abrangido pela apólice do seguro em causa (cf. art.º 2º das condições especiais nº 300), sendo a ré responsável pelo pagamento da quantia de €15 000 já paga pela ora autora e reclamada na presente acção, no âmbito do direito de regresso, e uma vez que, face ao que se deixou escrito, não resulta comprovada qualquer actuação negligentemente grave da A., por inacção, no processo 27345/18.0T8LSB. Resta analisar a questão da franquia, sustentando a apelante que sendo de €30.000,00 o valor da indemnização fixada na sobredita acção, em virtude da franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis prevista no contrato de seguro e da responsabilidade da autora, só poderia a ré ser condenada no valor de €12.000,00. Na resposta ao recurso, aduziu a recorrida que a franquia prevista no contrato de seguro, no valor de 10%, reporta-se ao valor da indemnização (€15.000,00) que, por acordo, a Clínica … pagou aos AA do P. 27345/18.0T8LSB, já que é esse o valor correspondente ao efectivo prejuízo sofrido pela ora recorrida com a perda da respectiva demanda. Vejamos. Neste conspecto, escreveu-se na sentença recorrida que: «Em sede de contestação, a Ré alegou que, ainda que se considere que a Autora detém direito de regresso sobre esta, nos termos do contrato de seguro a responsabilidade civil profissional emergente do exercício da profissão de médica e de outras profissões de saúde garantia um capital máximo de 1.000.000,00€ por período seguro com uma franquia, a cargo do segurado, de 10% dos prejuízos indemnizáveis, o que resultou provado. Ou seja, nos termos do aludido contrato, sempre caberia à ora Autora suportar a franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis, in casu, 10% de 15.000,00€ que perfazeria o montante de 1.500,00€ a título de franquia. Nestes termos e pelo exposto, deverá a Ré ser condenada a pagar à Autora a quantia paga a título e indemnização, depois de deduzido o valor de €1.500,00 da franquia acordada.» Como é sabido, a franquia, no contrato de seguro, é o valor em percentagem que, aplicado ao montante da indemnização, representa a parte que fica a cargo do segurado. A franquia consiste, pois, numa dedução ao montante indemnizatório, num desconto que tem de incidir sobre quem recebe a indemnização (e que, sendo muitas vezes o próprio segurado, pode também ser um terceiro, lesado pelo sinistro). A franquia tem como escopo (e como seu essencial fundamento) o estímulo à prudência do segurado e a eliminação da responsabilidade do segurador em pequenos sinistros, obstando aos custos administrativos inerentes (v. acórdão de 7/1/2016, P. 371/11.3TAFAR.E1., João Amaro, www.dgsi.pt). No seguro em causa nos autos vigorava uma franquia no valor de 10% da indemnização, a suportar pelo segurado (cf. facto provado 17). Não obstante a ora autora ter sido condenada no processo n.º 27345/18.0T8LSB no pagamento de indemnização no montante de €30.000, o certo é que apenas liquidou €15.000 por conta da indemnização sentenciada, em face do acordo celebrado com os autores naquele processo (cf. facto provado 23), pelo que deverá ser este (€15.000) e não aquele (€30.000) o montante a considerar para efeitos do cálculo do valor da franquia, equivalente a 10%. (cf. facto provado 17). Na verdade, o direito de regresso é um direito de crédito novo que nasce como consequência da extinção da relação creditícia anterior (no caso, aquela que a ora autora tinha perante os terceiros lesados), por via do pagamento da indemnização, pelo que é pressuposto do exercício do direito de regresso a satisfação da indemnização, não podendo aquele direito nascer antes do momento do pagamento do quantum indemnizatório. Assim, bem andou o tribunal a quo ao considerar como valor da indemnização o montante de €15.000 (pago pela ora autora), sobre o qual deve ser deduzido o valor da franquia (equivalente a 10% daquele montante), da responsabilidade da autora/segurada. Em síntese conclusiva, tendo improcedido na totalidade a impugnação da matéria de facto e não merecendo censura a análise jurídica da sentença, impõe-se a sua confirmação. * IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida. Custas pela apelante (artigo 527º do CPC). Registe e notifique. * Lisboa, 10 de Setembro de 2024 Ana Mónica Mendonça Pavão Cristina Coelho Ana Rodrigues da Silva |