Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | RUI DA PONTE GOMES | ||
Descritores: | PROVIDÊNCIA CAUTELAR GARANTIA AUTÓNOMA | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/16/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I- Na garantia autónoma, o garante assegura ao beneficiário determinado resultado: o recebimento de certa quantia em dinheiro, e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que ocorram as circunstâncias de facto previstas contratualmente, regra geral o incumprimento ou cumprimento defeituoso da prestação a cargo do devedor principal, requerente da garantia, e independentemente das vicissitudes da relação causal/principal. II- A garantia bancária (autónoma) simples, tem por objecto a cobertura de certo risco, o risco de um incumprimento contratual com a eliminação da perda económica que por via dele o beneficiário teria que suportar. III- A garantia bancária autónoma e independente (“on – upon”, “first demand”, “auf erstes Anfordern” à primeira solicitação ou interpelação), também tem por objecto a cobertura de certo risco, designadamente o risco do incumprimento contratual do devedor, mas funciona em termos bastantes distintos daquela primeira; pois que, por um lado, o garante renuncia a opor ao beneficiário quaisquer excepções derivadas tanto da sua relação com o cliente e mandante, como da relação causal – relação entre o devedor principal e o beneficiário – e, ainda, isenta o beneficiário do ónus da prova dos pressupostos do seu crédito contra o banco. IV- Apesar da natureza automática da garantia on “first demand”, a sua automaticidade não é absoluta, assistindo-se, actualmente a um movimento da sua relatividade, através da admissibilidade do dever (sob pena de perder o direito de regresso contra o mandante) de oposição pelo garante ao beneficiário da excepção de fraude manifesta ou abuso evidente deste na execução da garantia. (LS) | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: I – Estado da Causa 1.1. - A sociedade TG, S.A. propôs, o presente procedimento cautelar inominado, contra a Cooperativa, CRL, e o Banco, S.A., pedindo que a primeira requerida se abstenha em prosseguir com o pedido de pagamento do montante de 41.542,15 €, por via do accionamento da garantia bancária, “on first demand”, que identifica, e na abstenção da segunda requerida no pagamento da referida importância em resultado do accionamento de tal garantia bancária. Alega, para tanto, que no dia 4 de Junho de 2003 celebrou com a requerida cooperativa (esta na qualidade de dona da obra) um contrato de empreitada no âmbito do qual lhe prestou uma garantia bancária, “on first demand”, como caução para assegurar o bom e atempado cumprimento das obrigações contratuais assumidas e até ao montante de 41.826,41€, garantia essa que foi emitida em 10 de Outubro de 2003, pelo Banco ora segundo requerido; em 17 de Setembro de 2008 a requerente foi informada pelo Banco requerido que a requerida Cooperativa accionara a garantia bancária solicitando o pagamento de 41.826,41€; a requerida Cooperativa não informou a requerente de que accionara a garantia, supondo-se que este accionamento terá tido origem na pretensão daquela em querer ser indemnizada, por a requerente, alegadamente, ser responsável por danos, que não o é, causados numa conduta de lixo subterrânea, aquando da execução de ancoragens realizadas no âmbito da mencionada empreitada; finalmente, o prazo da garantia bancária terminou em 24 de Junho de 2008. A requerida não foi ouvida por se entender que tal formalidade punha em risco sério o fim da peticionada providência. Por douta decisão cautelar de 6 de Outubro de 2008, decretou-se que a requerida, Cooperativa, se abstivesse de prosseguir com o pedido de pagamento do montante de 41.542.15 €, por via do accionamento da garantia bancária, “on first demand” nº125-02-0451208, emitida em 10 de Outubro de 2003 pelo Banco requerido, até trânsito em julgado da acção que a requerente irá intentar contra os ora requeridos; que o requerido Banco, S.A., se abstivesse de pagar à requerida Cooperativa o montante de 41.542,15 €, em virtude do accionamento da identificada garantia bancária até trânsito em julgado da acção que a requerente irá intentar contra os ora requeridos. 1.2. - È desta decisão cautelar de 6 de Outubro de 2008 que apela Cooperativa, CRL, porque: Estabelece o art. 227º do Decreto-lei 59/99 de 2-III, que, findo o prazo de garantia e por iniciativa do dono da obra ou a pedido do empreiteiro, terá que ter lugar a recepção definitiva dos trabalhos, o que na situação sub judicio ainda não aconteceu. Ora. Nos termos no nº1 da cláusula 6ª do contrato de empreitada, a garantia bancária oferecida serve para “…caução do cumprimento do contrato, nos termos acordados…”. Sendo o texto da garantia bancária claro quanto à inexistência de prazo, devem ser cumpridas todas as formalidades postuladas no Decreto-lei 59/99 de 2-III, designadamente, a recepção definitiva dos trabalhos. Assim. A extinção da vertente garantia não opera pelo decurso do prazo de 5 anos nem de modo automático. II – Os Factos 2.1. – A 1ª instância deu como provados os factos constantes na douta decisão cautelar impugnada, que aqui se dão por integralmente reproduzidos (art. 713º, nº6, do C. P. Civil). 2.2. – Aceitamos os factos fixados (art. 712º do C. P. Civil). III – O Direito As doutas conclusões apresentadas pela apelante, Cooperativa, CRL, acima resumidas, impõem que se tenha de fazer uma reflexão, ainda que breve, sobre a natureza das garantias em geral e da garantia bancária, “on first demand” em particular. Como se refere no Acórdão do S.T.J. de 23 de Março de 1995 (C.J. STJ, ano III, T1, pp. 137 (e Acórdão do S.T.J. de 1 de Junho de 2000, CJ STJ, ano VIII, T 2, pp. 85 – cuja lição aqui se segue de perto) a distinção da garantia simples (fiança) e da garantia autónoma deve-se a R. Stammler, autor que distinguia, de um lado, os contratos de garantia acessórios de uma obrigação principal; de outro, os contratos de garantia que encontravam fundamento na autonomia da vontade e prescindiam daquela relação com qualquer outra relação jurídica, gerando para o promitente ou garante uma obrigação totalmente autónoma. No primeiro caso (garantia simples ou fiança), o fiador compromete-se a pagar a dívida, de outrem o devedor principal. O seu (do garante) compromisso é acessório do devedor principal (art. 627º, nº1 do C. Civil). No caso de garantia autónoma, o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia. Ele assegura ao beneficiário determinado resultado: o recebimento de certa quantia em dinheiro, e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que ocorram as circunstâncias de facto previstas contratualmente, regra geral o incumprimento ou cumprimento defeituoso da prestação a cargo do devedor principal, requerente da garantia, e independentemente das vicissitudes da relação causal/principal. Porém. Como bem salientam Almeida e Costa Monteiro (“Garantias Bancárias”, C.J., ano XI, T5, pp.19), o contrato de garantia, assim caracterizado, “…não eliminava todos os riscos inerentes à actividade comercial: a descoberto ficava ainda o risco de ter de se provar a ocorrência dos pressupostos que condicionam o direito do beneficiário – o que poderia atrasar consideravelmente o pagamento da soma estipulada…”. Aparece, assim, para neutralizar este último inconveniente___ com o apoio dos próprios bancos, interessados em não se envolver em disputas deste tipo, nem assumir o ingrato papel de «árbitro» ___ a cláusula de pagamento à primeira solicitação (auf erstes Anfordern). Consegue-se deste modo uma segurança total: não só a garantia se desliga (porque autónoma) da relação principal (entre beneficiário e o devedor), como igualmente se elimina o risco de litigância sobre a ocorrência ou não dos pressupostos que legitimam o pedido de pagamento feito pelo beneficiário. E, ainda segundo aqueles citados autores, “…perante uma garantia de pagamento à primeira solicitação, o garante … está obrigado a satisfaze-la de imediato, bastando para tal que o beneficiário o tenha solicitado nos termos previamente acordados. E o devedor que, depois de reembolsar o garante da importância por este paga ao beneficiário, que tem o ónus de intentar procedimento judicial para reaver a referida importância, caso o credor/beneficiário tenha agido sem fundamento… “ (Vide ainda, no mesmo sentido, Acórdão do S.T.J. de 23 de Março de 1995, acima citado, Ferrer Correia, “Notas para o Estudo do Contrato de Garantia Bancária, Revista Direito e Economia, ano VIII, 1982, pp. 252 e 253). Em suma e para concluir, no que ora importa, dois tipos de garantias bancárias são possíveis: - uma, a garantia bancária (autónoma) simples, que tem por objecto a cobertura de certo risco, o risco de um incumprimento contratual com a eliminação da perda económica que por via dele o beneficiário teria que suportar; nesta hipótese, como refere F. Correia, (ob. cit., pp. 251), “…é pressuposto da obrigação de pagar do dador de garantia que o acontecimento previsto – o não cumprimento das obrigações contratuais do fornecedor, do empreiteiro, do vendedor... – se tenha verificado; Por outra via, tratando-se, como se trata, de um facto constitutivo do direito do beneficiário, face aos princípios gerais do regime probatório material, o beneficiário terá em princípio de o provar…“; Saliente-se, no entanto, que mesmo na garantia simples a garantia não deixa de ser autónoma, no sentido de que não pode o garante invocar contra o beneficiário excepções fundadas na relação causal - daí a sua autonomia em contraponto à acessoriedade própria da fiança); O que o garante pode___ na hipótese de garantia simples___ é exigir do beneficiário a prova dos pressupostos que condiciona a exigibilidade/pagamento da garantia, por exemplo a prova do incumprimento da prestação por parte do devedor principal, a prova do seu cumprimento defeituoso, a junção de documentos eventualmente previstos, etc., etc... .- outra, a garantia bancária autónoma e independente (“on – upon”, “first demand”, “auf erstes Anfordern” à primeira solicitação ou interpelação), que também tem por objecto a cobertura de certo risco, designadamente o risco do incumprimento contratual do devedor, funciona em termos bastantes distintos daquela primeira; nesta hipótese, por um lado, o garante renuncia a opor ao beneficiário quaisquer excepções derivadas tanto da sua relação com o cliente e mandante, como da relação causal – relação entre o devedor principal e o beneficiário – e, ainda, isenta o beneficiário do ónus da prova dos pressupostos do seu crédito contra o banco. A “... simples afirmação por este feita de que o facto se produziu (de que a outra parte não cumpriu o contrato, por que por isso foi por ele rescindido unilateralmente) bastaria para colocar o banco na situação de ter de efectuar o pagamento pedido sem mais indagações…“ (F. Correia, ob. cit., pp. 251; no mesmo sentido e sobre a matéria das garantias bancárias autónomas, M. Cordeiro, “Manual de Direito Bancário”, 1998, pp. 604 e segs... (em particular a jurisprudência referida a fls. 608), J. Calvão da Silva, “ Direito Bancário”, 2001, pág. 383 e seguintes). Apesar da natureza automática da garantia on “first demand”, a sua automaticidade não é absoluta, assistindo-se, actualmente a um movimento da sua relatividade, através da admissibilidade do dever (sob pena de perder o direito de regresso contra o mandante) de oposição pelo garante ao beneficiário da excepção de fraude manifesta ou abuso evidente deste na execução da garantia, desde que o garante tenha em seu poder prova líquida e inequívoca dessa fraude ou abuso, ou sejam estes um facto notório, assim como da admissibilidade da instauração pelo mandante de providências cautelares, urgentes e provisórias, em sede judicial, destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou do abuso evidente do beneficiário (Francisco Cortez, "A Garantia Bancária Autónoma", in, R.OA, Ano 52º, II, Julho, 1992, pp. 513 a 609). Ora. Não restam dúvidas do accionamento da garantia bancária destes autos, independentemente da sua relação subjacente, excepto se lhe forem opostas factualidade atinente a fraude manifesta ou do abuso evidente do beneficiário que não é o caso. Dúvidas colocam-se é quanto ao prazo e validade de accionamento. Se repararmos na cláusula contratual a este tópico concernente (Cláusula 6ª, nº1, do Contrato de Empreitada), aí se consigna que “…A Segunda Outorgante entregará à Primeira Outorgante uma garantia bancária no valor de 5% (cinco por cento) do valor da empreitada, para caução do cumprimento do contrato nos termos acordados. Esta garantia é irrevogável e accionável ao primeiro pedido, “first demand”, e de pagamento à vista “at sight…” (Sublinhado nosso). Ou seja. Na primeira parte deste clausulado, estipula-se o valor da garantia e o fim a que se destina. Já na segunda parte, refere-se o modo de accionamento e o prazo de validade de pagamento in casu, à vista. Como é sabido uma ordem de pagamento a vista, é aquela que é válida para o dia apresentação de um título de crédito ao Banco mesmo que nele esteja indicada uma data futura. Apresentado o título, seja em que dia for, tem de ser logo pago. È esta a situação prevista. Quer isto dizer que por via do accionamento da garantia bancária “on first demand”, o garante (instituição de crédito) tem de proceder de imediato e sem quaisquer dúvidas ao pagamento da referida importância. Em suma não concordando com a argumentação da apelante, designadamente, que estabelece o art. 227º do Decreto-lei 59/99 de 2-III, que, findo o prazo de garantia e por iniciativa do dono da obra ou a pedido do empreiteiro, terá que ter lugar a recepção definitiva dos trabalhos, o que na situação sub judicio ainda não aconteceu. Ora. Nos termos no nº1 da cláusula 6ª do contrato de empreitada, a garantia bancária oferecida serve para “…caução do cumprimento do contrato, nos termos acordados…”. Sendo o texto da garantia bancária claro quanto à inexistência de prazo, devem ser cumpridas todas as formalidades postuladas no Decreto-lei 59/99 de 2-III, designadamente, a recepção definitiva dos trabalhos. Assim. A extinção da vertente garantia não opera pelo decurso do prazo de 5 anos nem de modo automático em termos práticos temos e ainda que com outra argumentação, temos de lhe dar razão, ou seja, que deve ser permitida continuação do processo de accionamento da garantia. IV – Em consequência, decidimos: a) – Julgar procedente a apelação da Cooperativa, CRL e revogar a douta decisão cautelar de 6 de Outubro de 2008, decretando-se improcedente o vertente procedimento cautelar inominado; b) – Condenar a apelada nas custas. Lisboa, 16 der Abril de 2009. Juiz Relator – (Rui da PONTE GOMES) 1º Juiz Adjunto – (CARLOS Melo MARINHO) 2º Juiz Adjunto – (José CAETANO DUARTE |