Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
539/24.2JELSB.L1-5
Relator: RUI COELHO
Descritores: FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CRIME DE TRÁFICO
TRANSPORTADORA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - O vício de falta de fundamentação implica que na decisão se omita, ou seja de todo ininteligível o raciocínio jurídico no qual assenta o acto decisório.
II - A falta de fundamentação determina um vício processual, em regra uma mera irregularidade a não ser quando exista expressa cominação de nulidade
III – O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada do art.º 410.º/2 al. a) do Código de Processo Penal, ocorre quando resulta que dos factos provados não constam elementos que são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Mais se impõe que tais elementos em falta pudessem e devessem ter sido indagados pelo Tribunal.
IV - O Tribunal de recurso só poderá alterar a decisão se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Caso não imponham essa decisão diversa, mas apenas a permitam, paralelamente àquela que foi a decisão da primeira instância, deverá ser esta última a prevalecer.
V - O crime de tráfico é um flagelo social com repercussões gravíssimas. A fim de garantir um lucro extremo para quem se encontra no topo da pirâmide de traficância, surge montada uma estrutura que nunca varia. Tal pirâmide cresce em número de indivíduos à medida que decresce em rendimentos garantidos mas ninguém nela intervém a título gratuito. Mesmo o elemento mais desfavorecido ganha, nem que seja o seu consumo diário.
VI - O transportador internacional é desprovido de autonomia, não escolhe, mas aceita o que lhe é proposto e tem sempre um ganho. Sem ele, seria muito mais difícil disseminar pelo globo um produto que tem produção regional. O transportador permite a transcontinentalidade do tráfico. E isso é merecedor da pena aplicada, tanto mais que não diminuem os números de viajantes detectados na fronteira portuguesa a transportar cocaína. Tendo Portugal uma responsabilidade acrescida nessa fronteira, porque é simultaneamente a fronteira comum de uma Europa unida, não pode ser demonstrada fragilidade no combate e sancionamento deste tipo de criminalidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Central Criminal de Lisboa – J7, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo:
« Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, decide o Coletivo de Juízes:
A) Condenar o arguido AA pela prática em autoria material de um crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
B) Condenar o arguido na pena acessória de expulsão do território nacional, pelo período de 5 (cinco) anos, e 6 (seis) meses, com respetiva interdição de entrada em Portugal. (…)»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Arguido formulando as seguintes conclusões:
«1. Por decisão do passado dia 20 de Maio foi o ora recorrente, AA, natural da ..., com nacionalidade guineense e portuguesa por aquisição (facto conhecido a posteriori), condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21º, nº1 do Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro com referência à tabela I- B, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória de expulsão, pelo período de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses, com respetiva interdição de entrada em Portugal.
Do pedido de reabertura da audiência – indeferido pelo d. p. recorrido
2. Após prolação do d. acórdão condenatório, aquando da recolha de amostra para inclusão na base de dados de perfis de ADN, manifestou o ora requerente a sua estranheza pela condenação em pena acessória de expulsão porque, como declarado nesse momento e pela primeira vez, tem nacionalidade portuguesa.
3. Com vista a esclarecer e confirmar um facto até então desconhecido diligenciou a ora signatária pela obtenção dos documentos de identificação do ora recorrente, à guarda do Estabelecimento Prisional.
4. Obtidos os mencionados - passaporte português e BI ... -, os quais, juntos então aos autos, atestam que o recorrente tem, para além de nacionalidade ..., nacionalidade portuguesa, foi requerida, em ........2025, com carácter de excepção, a reabertura da audiência com vista à rectificação do decidido.
5. Indeferido que foi o requerido porque esgotado o poder jurisdicional do tribunal, ainda assim, diligenciou a ora signatária pela obtenção, sob fotocópia, do assento de nascimento do ora recorrente, o qual tem averbada a data da obtenção da nacionalidade, no ano de 2013, documento igualmente junto aos autos, a 04.06.2025, para os efeitos tidos por convenientes.
6. Sndo uma realidade que apenas após prolação do d. acórdão condenatório foi suscitada a questão da nacionalidade do recorrente, também o é que a nacionalidade portuguesa, ainda que apenas conhecida a posteriori, impede, quer nos termos da lei ordinária – artigo 151.º, da Lei n.º 23/2007, a contrario -, quer em termos da nossa Lei Fundamental - Artigo 30.º, n.ºs 4 e 5 e 33.º, n.º 1, CRP- a aplicação de uma pena acessória de expulsão.
7. Neste contexto e ab initio, pese embora com conhecimento e junção de documentos após prolação do douto acórdão condenatório, pela importância de que se reveste, requer-se a apreciação da questão sub judice por esse Venerando Tribunal de recurso e a alteração do decidido neste particular.
Da decisão condenatória pelo crime imputado
8. Porque não se conforma com a douta decisão condenatória tem lugar o presente recurso que é de facto e de direito no que tange ao imputado crime, considerando o ora recorrente não terem sido atendidos todos os elementos e factos com relevo para a sua defesa.
9. Quanto aos factos provados, consideram-se como meramente presuntivos e conclusivos os elencados aos pontos ‘5’, ‘6’, ‘7’, ‘8’, ‘9’ e ‘10’, aqui dados por reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
10. Com efeito, e como no próprio acórdão recorrido se assume, objectivamente, os factos supra não passam de ‘presunções’, ainda que ‘assentes nas regras da experiência’, as quais, sem pretender coarctar ao julgador o direito que lhe assiste, não podem nem devem, por si só, sustentar toda e qualquer situação de transporte de produto estupefaciente, vulgo, de ‘correio de droga’ e a aplicação de uma pena cerceadora de um direito fundamental.
11. Como é sabido um ‘correio’ não é mais do que um mero e bastas vezes manipulado e explorado ‘instrumento’ de terceiro no comércio que é o trafico de estupefacientes.
12. Desta forma, ao julgador compete ir mais além do que o acusador no juízo a que se chega e apreciar, em concreto, todos os circunstancialismos que rodearam a prática do acto e personalidade do arguido.
13. In casu, o dado como provado e aqui por reproduzido, é contraditado pelas declarações do ora recorrente, quer em sede de primeiro interrogatório judicial - cfr cd áudio de fls-, quer em audiência de julgamento a 07.05.2025 - gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14 horas e 33 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 00 minutos
14. Sendo que, se as sobreditas declarações em que o recorrente nega conhecer o que transportava, não mereceram qualquer credibilidade pelo Tribunal, também não foi feita prova ou ouvida testemunha que atestasse o inverso, ou seja, que demonstrasse ter o recorrente conhecimento de que foi utilizado para transportar produto estupefaciente.
15. Por outro lado, quanto aos factos provados acima referenciados entende o recorrente não dispor o Tribunal recorrido de matéria probatória para a conclusão a que se chega, pelo que se contraditam.
16. Efectivamente, no caso sub judice, o arguido foi detido com produto estupefaciente, que se provou ser cocaína, porém, não resultou provada a prática de uma conduta ilícita típica de quem se dedica ao tráfico de estupefacientes, nem que soubesse de que tipo de produto se tratava, qualidade e em que quantidade – ou seja, não ficou demonstrado o elemento subjectivo do tipo – ponto 5 dos factos provados.
17. De igual modo, não ficou provada fosse obter algum ganho ou a utilização dos telemóveis para quaisquer contactos relacionados com o sobredito transporte atendendo a que não foram os mesmos objecto de perícia a fim de apurar quais os contactos efectuados, pelo arguido ou para este, para quem ou por quem, quando e onde, mero facto conclusivo - pontos 6 e 7 dos factos provados.
18. É igualmente um facto genérico e conclusivo que a quantia apreendida, documentos ou objectos apreendidos se destinavam ou eram fruto de uma ‘actividade’, igualmente não demonstrada – ponto 8 dos factos provados.
19. Ficou por demonstrar que o arguido agiu de forma, ‘livre’, ‘voluntária’ e ‘consciente’ no que tange a transportar produto estupefaciente – quanto ao conhecimento do que é cocaína e da ilicitude da sua comercialização é de conhecimento comum – ponto 9 dos factos provados.
20. Facto conclusivo é também o de que o ora recorrente só se encontrasse em Portugal para transportar cocaína, - ponto 10 dos factos provados - o que decorre dos demais factos conclusivos – acrescendo que a ligação a Portugal advém da nacionalidade adquirida – facto conhecido a posteriori.
21. Entende o ora recorrente que a decisão recorrida carece de apreciação crítica da prova.
22. Com o rigor que se impõe, quanto ao ilícito em causa apenas poderá ser dado como provado que “(…) dissimuladas no interior das duas malas de porão de cor que transportava, com as etiquetas ns.º 0047 TP 036496 e 0047 TP 036497 apostas, nas estruturas das mesmas: um total de 2 (duas) embalagens, contendo cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 3996,100 gramas (cfr. exame toxicológico de fls.70, cujo teor aqui se considera reproduzido) – no mais considera-se a insuficiência do inquérito e prova produzida em audiência de julgamento.
23. Não obstante, para a decisão em crise formou-se a convicção doTribunal nos depoimentos testemunhais, Relatórios de exame pericial de; prova documental (autos de notícia de fls.); autos de apreensão de fls; reportagem fotográfica de fls.; CRC e Relatório Social.
24. Pese embora a fundamentação em sede de motivação da decisão, fazendo jus aos termos do próprio acórdão recorrido de que “os testemunhos não se contam, pesam-se”, na apreciação crítica da prova, o d. pretório recorrido errou em não dar credibilidade às declarações do ora recorrente, tanto mais que o próprio em sede de inquérito identificou quem lhe formulou o pedido de transporte, de onde o conhecia e contacto telefónico, bem como em juízo.
25. Não especifica suficientemente o d. pretório recorrido em que medida os depoimentos testemunhais são fidedignos e aptos a contraditar as declarações do ora recorrente, que indicou quem o abordou, onde e como, bem como, o motivo porque acedeu ao transporte solicitado por pessoa conhecida do seu bairro, na ..., pelo que carece o acórdão recorrido de devida fundamentação - artigos 379º, nº 1, al. s a), por força do artigo 374º, nº 2, e 375º, do CPP.
26. Da leitura da motivação não se extrai a sustentação documental ou investigatória que permitisse chegar à conclusão do vertido aos pontos 5 a 10 dos factos provados.
27. Bem ainda ao concluir que “(…) à luz das regras da experiência comum o objetivo do arguido era obter de forma fácil avultados lucros. Relativamente aos objetos apreendidos é patente em face da conjugação de todos os meios de prova que os telemóveis que estavam na posse do arguido eram utilizados na atividade de tráfico de estupefacientes. Mutatis mutandis também o dinheiro apreendido era parte do lucro que iria obter com o transporte do produto estupefaciente.
Et pour cause,
28. Do texto do d. acórdão recorrido não se retira qual o percurso lógico-dedutivo, conducente à conclusão a que chegou o d. pretório, impondo-se relembrar que cada caso é um caso.
29. Pelo retro exposto, é de se considerar a existência dos vícios constantes do artigo 410.º, nº 2, al. a) do CPP, bem como, erro de julgamento na análise crítica da prova no seu todo, e ainda, deficiente fundamentação, sendo que a decisão recorrida foi além do que a prova produzida permitiria.
30. Provado que estava o elemento objectivo do tipo, impunha-se a prova do elemento subjectivo, o que se considera não ter sido feito pelo que deveria, por via dessa falha, ter o ora recorrido sido absolvido.
31.Por outro lado, e sem prescindir, ainda que ao douto Pretório também não se suscitassem dúvidas razoáveis passíveis da aplicação do princípio in dubio pro reo, deveria a medida da pena ter sido inferior.
32. Quanto à fundamentação de direito, qualificação e medida da pena, importa salientar que no ilícito em apreço exige-se um dolo específico relativamente à proveniência da coisa: é necessário que o agente saiba efectivamente que a coisa detida provém de um facto ilícito típico, pelo que a simples admissão dessa possibilidade, a título de dolo eventual, não é suficiente para o preenchimento do tipo subjectivo…”
33. Com base no estudo ‘Correios de droga detidos em Portugal: trajetórias de vida e significados do crime – Joana Santos’ “(…) O recrutamento de “mulas” pode incluir fraude, coação ou tratar-se de um recrutamento a pessoas que estão sob pressão financeira incomum e/ou de pessoas que têm de tomar decisões precipitadas (Caulkins et al., 2009; Fleetwood, 2010, 2011; Heaven, 2009; Subdury, 2005). Nos casos em que existe fraude, são referidas por exemplo situações em que as “mulas”, são enganados não tendo conhecimento que estão a transportar estupefacientes, constituindo-se como vítimas involuntárias (Green, 1991; Marshall & Moreton, 2011; - sublinhado nosso
34. Sem deixar de atender à gravidade do ilícito em causa, o que realística e estatisticamente resulta descrita no estudo supra é a diferenciação entre o narcotraficante autor e real detentor do domínio do facto e o denominado ‘correio’ e ainda os diversos tipos psicológicos e sociais de ‘correios’ e os meios utilizados para obtenção dos mesmos.
35. Na remota hipótese do conhecimento ou animus, que em bom rigor o recorrente teria feito, não fosse a detenção, seria, eventualmente, auxiliar materialmente um terceiro – cuja existência, na verdade, se desconhece.
36. Porque o recorrente não tinha o domínio do facto, em termos de venda directa e terceiro com vista à obtenção de avultadas quantias económicas ou sequer o transporte, apenas lhe poderia ser assacada uma conduta ilícita privilegiada ou a título de cumplicidade.
37. No caso dos autos, porque não se apurou que visasse o lucro e a distribuição a terceiros, mediante a venda, o douto acórdão recorrido excede o nível intransponível da culpa do agente.
38. Sob pena de inconstitucionalidade material por violação do artigo 32.º, n.º 2 da CRP, por via da aplicação do princípio insíto no artigo 127.º do Código Penal, não pode uma decisão condenatória suprir as falhas ou insuficiência das investigação.
39. No que se reporta às penas aplicadas, entende-se a pena aplicada excessiva e desproporcionada em violação dos artigos 40.º, n. º1°, 71.º, nºs 1 e 2, alíneas a), b), c), d) e e), e 77.º, n.°1, do Código Penal e princípios político-criminais e sociais da necessidade e proporcionalidade das penas, pugnando-se pela redução para um quantum inferior, próximo do mínimo legal aplicável passível de eventual suspensão na execução.
Da pena acessória de expulsão do território nacional
40. Em conformidade com o retro exposto ab initio a título prévio, para que se remete, o ora recorrente obteve em 2013 a nacionalidade portuguesa.
41. A pena acessória de expulsão é aplicável a estrangeiros, e, ainda assim, com as limitações decorrentes da lei 23/2007, de 04 de Julho.
42. Embora conhecida após prolação do d. ac. condenatório a aquisição da nacionalidade, como nacional, não pode o recorrente sofrer a pena acessória de expulsão, competindo a revogação do decidido. Dos bens declarados perdidos a favor do Estado
43. Entendeu o Tribunal recorrido dar como perdidos a favor do Estado os documentos, telemóveis e quantia monetária na posse do ora recorrente.
44. Como se deixou dito, dos autos não se extrai prova da utilização dos referidos telemóveis, relacionáveis com a prática do ilícito imputado, competindo serem devolvidos ao ora recorrente porque bens pessoais.
45. Igualmente não se provou a origem ilícita da quantia que detinha, tanto mais que também não foi possível concluir viesse o ora recorrente »
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo que deve ser negando o provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da correção da sentença nos termos previstos no artigo 380º n.º 1 al.a) e n.º 2 do CPP devendo ser esta expurgada da condenação na pena acessória de expulsão do território nacional; mas, no mais, que a sentença não merece reparo, considerando a matéria de facto provada a qual tem sustentação na prova realizada devidamente identificada, tendo o seu conteúdo sido descrito na fundamentação da decisão recorrida como se impunha, não resultando do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto; nada havendo igualmente a alterar quanto à escolha da pena aplicada.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer reiterando os termos das motivações.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- da não admissão da reabertura da audiência;
- da nulidade do acórdão por falta de fundamentação;
- da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão recorrida (art.º 410.º/2 al. a) do Código de Processo Penal);
- do erro de julgamento dos factos provados 5 a 10 (art.º 412.º/3 do Código de Processo Penal);
- do não preenchimento do tipo por falta do elemento subjectivo;
- da medida da pena;
- da inaplicabilidade da pena acessória de expulsão do território nacional;
- do perdimento dos bens apreendidos.
DO ACORDÃO RECORRIDO
Do acórdão recorrido consta a seguinte matéria de facto provada:
« 1. No dia ... de ... de 2022, pelas ..., o arguido desembarcou no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, procedente de ..., no voo ..., com destino a esta cidade.
2. Ao apresentar-se na Sala de Controlo de Passageiros e Bagagens da Delegação Aduaneira do Aeroporto, o arguido optou por se dirigir ao corredor verde/ “nada a declarar”, transportando consigo duas malas de porão, que continham no interior cocaína.
3. Após ter sido sujeito a revisão de bagagem, foram detetadas, dissimuladas no interior das duas malas de porão de cor que transportava, com as etiquetas ns.º ... e ... apostas, nas estruturas das mesmas: um total de 2 (duas) embalagens, contendo cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 3996,100 gramas (cfr. exame toxicológico de fls.70, cujo teor aqui se considera reproduzido).
4. Nessas circunstâncias, foi ainda apreendido ao arguido: 01 (um) telemóvel da marca ... de cor preta, com os IMEI: .../52 e IMEI: .../52; 01 (um) telemóvel da marca ... de cor preta, sem cartão SIM;
-01 (um) telemóvel da marca ..., ... ... de cor preta, com os IMEI .../08 e IMEI .../08, com o pln de acesso ...e o número n.° ...;
-1 (um) cartão de embarque em nome de ..., com referência ao voo ..., proveniente de ......) e destino Lisboa;
-1 (um) cartão bancário de débito “...” com o número ...;
-a quantia monetária de 60,00€ (sessenta euros) em notas emitidas pelo Banco Central Europeu;
- 2 etiquetas de bagagem em nome do arguido.
5. O arguido conhecia perfeitamente a natureza e as características estupefacientes do produto que transportava e que lhe foi apreendido.
6. Produto esse que aceitara transportar por, para tanto, lhe ter sido prometida quantia não apurada.
7. Os telemóveis apreendidos foram utilizados pelo arguido nos contactos que estabeleceu para concretizar o transporte da cocaína apreendida.
8. Os documentos, quantia monetária e objetos apreendidos ao arguido e acima indicados destinavam-se a ser utilizados na atividade de tráfico de estupefaciente e eram fruto da mesma.
9. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a detenção, o transporte e a comercialização de cocaína eram proibidos e punidos por lei.
10. Acresce que, o arguido é natural da ..., residindo no país da sua naturalidade e trabalhando na ..., não possuindo quaisquer ligações familiares e/ou profissionais em Portugal, só se encontrando em Portugal para transportar a cocaína.
Das condições pessoais do arguido:
11. AA, é natural da ... é à data dos factos residia na ... em ....
12. Não tem atualmente familiares em território nacional, tendo emigrado de Portugal e se estabelecido na ... a partir de 2004.
13. Na ... alega que se encontrava há cerca de dois meses a residir num apartamento de tipologia T3, partilhando a habitação com sete indivíduos, partilhando o quarto, mas sem qualquer contrato de arrendamento.
14. Está inserido laboralmente na ..., trabalhando na apanha de produtos agrícolas, que dada a sazonalidade da atividade colmatava com trabalhos na área da construção civil, mas ambos de caracter informal sem qualquer vinculo contratual.
15. Auferia cerca de 3500 euros mensais.
16. Esse montante possibilitava o pagamento do quarto partilhado no valor de 500 euros mensais e o envio de 500 euros para a ..., para ajudar economicamente a sua companheira e os seus 4 filhos, respetivamente de 15, 14, 8 e 6 anos de idade, fruto do relacionamento que dura há cerca de 15 anos e que permanecem a residir no seu país de origem.
17. Ao nível de habilitações literárias, AA frequentou em território nacional tendo adquirido o 4.º ano de escolaridade aquando residia num bairro do concelho de ....
18. AA é o filho mais novo de uma fratria de quatro irmãos germanos, sendo o seu progenitor o único elemento que contribuía para a economia domestica através dos rendimentos que auferia na construção civil.
19. Não são conhecidas problemáticas aditivas quer ao nível de produtos estupefacientes ou álcool.
20. Ao nível de perspetivas futuras, AA veiculou que, logo que a sua situação jurídico-penal lho permita pretende regressar para a ... e dedicarse à comercialização de ouro como forma de obtenção de meios de subsistência.
21. O arguido regista os seguintes antecedentes criminais:
No âmbito do processo n.º 116717, por decisão proferida 24 de abril de 2017, transitada em julgado em 24.04.2017, relativa a factos praticados em 11.12.2016, foi o arguido condenado pela prática de dois crimes de tráfico de estupefaciente agravados na pena de 3 anos de prisão.»
FUNDAMENTAÇÃO
- da não admissão da reabertura da audiência;
Já após ter sido publicado o acórdão condenatório, veio o Arguido pedir a reabertura da audiência porquanto não teve o Tribunal em consideração a nacionalidade portuguesa que, por si, seri bastante para impedir que tivesse sido decidida a sua expulsão.
O Tribunal a quo indeferiu tal pretensão porquanto se esgotara o seu poder jurisdicional.
Não merece reparo a decisão proferida. Mais do que propiciar uma reapreciação da questão pelo Tribunal de primeira instância, a questão coloca-se em sede de recurso para ser analisada pelo Tribunal de recurso. Depois de proferida a decisão final, e não se colocando qualquer questão de reparação dos meros erros, lapsos, obscuridades ou ambiguidades cuja eliminação não importe modificação essencial, nos termos do art.º 380.º do Código de Processo Penal, é vedada ao Tribunal de primeira instância nova intervenção sobre a questão de fundo, restando-lhe apenas poder para a gestão e decisão das questões processuais subsequentes.
Como tal, nada há a reparar, cabendo agora ao Tribunal da Relação conhecer e pronunciar-se sobre tal problemática.
- da nulidade do acórdão por falta de fundamentação;
Defende o Recorrente que o acórdão padece de vício de falta de fundamentação. Entende que do texto do acórdão não se retira qual o percurso lógico-dedutivo, conducente à conclusão alcançada. Vista a argumentação, percebe-se que tal observação se reporta à decisão de facto.
Ora, o vício de falta de fundamentação implica que na decisão se omita, ou seja de todo ininteligível o raciocínio jurídico no qual assenta o acto decisório. A falta de fundamentação determina um vício processual. Em regra será uma mera irregularidade, a não ser quando exista expressa cominação de nulidade, como ocorre com os despachos que aplicam medidas de coação e com as sentenças – art.º 194.º/6 e 379.º/1 al. a), conjugado com o art.º 374.º/2, todos do Código de Processo Penal (cfr. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 08.10.2024, Desembargador Manuel José Ramos da Fonseca, ECLI:PT:TRL:2024:515.22.0GCTVD.L1.5.FA ).
Veja-se, então, a fundamentação aduzida no acórdão. Relatou o Tribunal a quo que « Assim, no caso em apreço, a convicção do Tribunal, quanto à matéria de facto provada, formou-se com base nos seguintes meios de prova, analisados criticamente, à luz das regras da experiência comum, da lógica, da razão e da livre convicção do julgador:
- Declarações do arguido AA. O arguido disse desconhecer que trazia consigo produto estupefaciente, e explicou que as malas lhe foram entregues já com o produto no seu interior. Pediu para as mesmas serem abertas e viu que tinham roupa. Referiu que foi um conhecido, depois disse que era um amigo (mas que não se recorda do nome, e depois, mais tarde recordou-se que era BB) que lhe pediu para trazer roupa africana nova para Portugal a troco de € 200,00. Exibidas fotografias de fls. 11, 12 e 13 disse que a roupa nova estava misturada com a roupa velha. Quanto aos telemóveis disse que um era para arranjar, o outro tinha o contato do sócio e o outro estava danificado. Disse que um dos telemóveis tinha o contacto da pessoa a quem ia entregar as malas no aeroporto. Disse que ficava 2 dias em Portugal na casa do tio na .... Referiu que na ... tem a mulher e os filhos e em Portugal já não contacta com o tio por se ter aborrecido com o mesmo. Aquando das últimas declarações o arguido pediu desculpa pelo delito que praticou e confirmou referir-se ao crime de tráfico de estupefaciente que está a ser julgado no âmbito dos presentes autos.
- Depoimento da testemunha CC. Referiu ser inspetora da PJ, a exercer funções na ... e conhecer o arguido do exercício das suas funções. Relatou que realizou as buscas ao arguido na sequência do mesmo ter sido detetado pela autoridade tributária no aeroporto. Disse que o mesmo foi conduzido à PJ onde verificaram que o produto estupefaciente estava na estrutura do fundo da mala.
- Depoimento da testemunha DD. Referiu ser inspetor da PJ, a exercer funções na ... e conhecer o arguido do exercício das suas funções. Disse que fez a pesagem rápida do produto estupefaciente e não observou nada de anormal por parte do arguido quando confrontado com o produto estupefaciente.
- Depoimento da testemunha EE. Referiu ser inspetora tributária e aduaneira, a exercer funções no ...e conhecer o arguido do exercício das suas funções. Disse que o arguido viajava num voo oriundo da ... e foi selecionado para revisão de bagagem. Nessa sequência foi detetada qualquer coisa no interior da mala, pelo que a mesma foi aberta e tinha cocaína. Disse que as malas foram abertas na presença do arguido e o mesmo não teve qualquer reação, tendo ficado calado.
- Depoimento da testemunha FF. Referiu ser inspetor tributário e aduaneiro, a exercer funções no ... e conhecer o arguido do exercício das suas funções. Relatou o que sucedeu corroborando o depoimento da testemunha anterior.
O Tribunal atendeu, ainda, ao nível da prova pré-constituída já constante dos autos, que confirmam a ocorrência de parte daqueles factos:
Pericial:
- Relatório de exame pericial de toxicologia de fls.70.
- Auto de notícia e detenção de fls. 2 a 5 e 6 a 10;
− Autos de apreensão de fls. 21 e 22;
− Documentos de fls. 16 e 23 a 26;
− Reportagem fotográfica de fls. 11 a 15 e 18.
Em sede das condições de vida do arguido, teve-se ainda em conta o certificado de registo criminal e o relatório social.
Os meios de prova referidos foram todos conjugados e confrontados, procurando-se encontrar os pontos de confluência e coerência dos mesmos.
O arguido afirmou desconhecer que transportava produto estupefaciente no interior das malas que tinha na sua posse e trazia para Portugal, dando quanto a esse facto explicações contraditórias, incoerentes e inverosímeis. Com efeito, as suas declarações, à luz das regras da experiência comum e da restante prova produzida não convenceram o Tribunal e os argumentos por si aduzidos mostram-se desprovidos de sentido lógico e coerente. Ademais, o arguido nas últimas declarações assumiu a prática dos factos em apreço pedindo desculpa pela prática dos mesmos.
Destarte, e sem necessidade de tecer mais considerações inexistem quaisquer dúvidas para o Tribunal que o arguido tinha conhecimento da existência do produto estupefaciente no interior das malas.
Assim, relativamente aos factos provados nos n.ºs 1 a 4 o Tribunal alicerçou a sua convicção no depoimento das testemunhas inquiridas conjugado com o relatório pericial e com os documentos juntos aos autos.
Os factos relativos aos n.ºs 5 a 8, resultaram provados por presunção judicial, resultante da aplicação das regras de experiência comum aos factos conhecidos que são os descritos nos pontos n.ºs 1 a 4.
Já relativamente aos factos descritos nos n.ºs 12 a 22 o Tribunal alicerçou a sua convicção no relatório social e no certificado do registo criminal.
Assim, apreciando crítica e conjugadamente, à luz das regras da experiência comum, os depoimentos isentos, coerentes e lógicos das testemunhas inquiridas e as últimas declarações do arguido, de modo consentâneo e coerente com os elementos periciais e documentais constantes dos autos, a elevada quantidade de cocaína apreendida que o arguido transportava, quantidade que iria proporcionar a distribuição a um n.º elevado de consumidores, levaram o Tribunal a concluir, sem qualquer margem para dúvidas, que o arguido conhecia as características do produto estupefaciente que tinha e lhe foi apreendido - designadamente a sua natureza estupefaciente - sabendo-o totalmente nocivo à saúde mental e física das pessoas, e nocivo à sociedade, pela erosão de valores e criminalidade que associa.
Acresce referir que à luz das regras da experiência comum o objetivo do arguido era obter de forma fácil avultados lucros.
Relativamente aos objetos apreendidos é patente em face da conjugação de todos os meios de prova que os telemóveis que estavam na posse do arguido eram utilizados na atividade de tráfico de estupefacientes. Mutatis mutandis também o dinheiro apreendido era parte do lucro que iria obter com o transporte do produto estupefaciente.
A prova do dolo do arguido fez-se a partir da análise do conjunto da prova produzida e com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, em face da atuação desenvolvida pelo arguido e das circunstâncias em que a mesma teve lugar.
O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Da conjugação destes elementos de prova resultaram, inequivocamente, demonstrados os factos suprarreferidos. ».
Ora, não se vislumbra falta de fundamentação ou fundamentação deficiente no que toca à demonstração do raciocínio judiciário realizado para alcançar a decisão produzida. O Recorrente não concorda com a análise feita, com as conclusões alcançadas. Pois bem, essa é uma matéria para apreciação em sede de valoração do erro de julgamento. Quanto ao vício, formal, de falta de fundamentação, não se vislumbra qualquer fundamento para a pretensão recursiva, posto que da fundamentação acima recursiva se consegue reconstruir o processo valorativo da prova que permitiu a resposta proferida.
- da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão recorrida (art.º 410.º/2 al. a) do Código de Processo Penal);
De igual forma se diga que não se alcança o apontado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ao qual alude o art.º 410.º/2 al. a) do Código de Processo Penal. Tal vício ocorre quando resulta que dos factos provados não constam elementos que são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Mais se impõe, em termos de razoabilidade processual, que tais elementos em falta pudessem e devessem ter sido oportunamente indagados pelo Tribunal recorrido.
Assim, o vício em apreço é um resultado do Tribunal não se ter pronunciado sobre todos os factos que deveria ter apreciado, ou seja, factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa.
O Recorrente não aponta factos que tivessem ficado por conhecer, sobre os quais o Tribunal não se tivesse pronunciado. Compulsada a factualidade, esta permite o juízo sobre o crime imputado.
A única questão que sobra prende-se com a matéria da expulsão e da nacionalidade do Arguido a qual não é necessariamente da matéria de facto, posto que respeita a um dos elementos de identificação do Arguido. Como tal, adiante, apreciaremos a matéria sobre outro enquadramento.
Não estamos, pois, perante um caso de insuficiência da matéria de facto para a decisão.
- do erro de julgamento dos factos provados 5 a 10 (art.º 412.º/3 do Código de Processo Penal);
Pretende o Recorrente que se reconheça ter ocorrido um erro de julgamento relativamente aos factos 5 a 10. Assenta a sua diferente leitura na prova produzida, nomeadamente nas suas próprias declarações que entende não poderem ser afastadas na medida em que nenhuma outra testemunha se pronunciou em contrário. Mais considera esses factos como meramente presuntivos e conclusivos neles não devendo assentar a decisão.
Vejamos, então.
Pode o Tribunal da Relação de Lisboa ser chamado a pronunciar-se no âmbito de uma impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, caso em que a apreciação versará a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
Neste caso, o recurso não corresponde a um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição das gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída, mas sim um mero remédio correctivo para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida. Tais erros emergirão como resultado de uma deficiente apreciação da prova e terão sempre de corresponder aos concretos pontos de facto identificados no recurso.
Tanto assim é que são reconhecidas limitações ao “segundo” julgamento que ao Tribunal de recurso assiste, com base na prova documentada [vd. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 26.10.2021, Desembargador Manuel Advínculo Sequeira, ECLI:PT:TRL:2021:510.19.6S5LSB.L1.5.DD «Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado.
- As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanas e nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento.
- Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade pelo que só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.
- Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.»]
Por tudo isto, perante esta forma de impugnação, cumpre ao Tribunal da Relação de Lisboa analisar os factos questionados, verificar se têm suporte na fundamentação da decisão recorrida e avaliar e comparar a prova indicada na dita fundamentação, testando a sua consistência e coerência. Apenas no caso de tal sustentação soçobrar perante este exame deverá o Tribunal considerar que outra decisão deveria ter sido tomada pelo Tribunal recorrido e, consequentemente, intervir na respectiva correcção [cfr. Acs. STJ de 14.03.2007, Conselheiro Santos Cabral - ECLI:PT:STJ:2007:07P21.5C; de 23.05.2007, Conselheiro Henriques Gaspar - ECLI:PT:STJ:2007:07P1498.95; de 29.10.2008, Conselheiro Souto de Moura - ECLI:PT:STJ:2008:07P1016.19; e de 20.11.2008, Conselheiro Santos Carvalho - ECLI:PT:STJ:2008:08P3269.6B].
Consequentemente, o recurso de impugnação ampla merece especiais imposições fixadas na lei, a saber, no art.º 412.º/3 do Código de Processo Penal: «a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.»
Impõe-se, então, ao Recorrente que indique os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados bem como os meios de prova e respectiva interpretação, avaliação, que imponham decisão diversa daquela produzida em primeira instância.
Caso o Recorrente entenda existirem provas que devam ser renovadas terá que os indicar especificadamente e expor as razões que justifiquem que a dita renovação evitará o reenvio do processo tal como resulta do art.º 430.º do Código de Processo Penal.
Neste domínio da indicação da prova produzida, caso tenha sido sujeita a gravação, exige-se ao Recorrente a referência ao que tiver sido consignado na acta, devendo o recorrente apontar as passagens das gravações em que fundamenta a sua pretensão recursiva. Não lhe bastará remeter para a totalidade de um ou de vários depoimentos, mas sim indicar as concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas no Tribunal da Relação de Lisboa (art.º 412.º/4 e 6 do Código de Processo Penal) – cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 3/2012, in DR, 1.ª de 18.04 2012 «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Aqui chegados, cumpre expressar a conclusão que se impõe no que toca à impugnação ampla e sua apreciação. O Tribunal de recurso só poderá alterar a decisão se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Caso tais provas não imponham essa decisão diversa, mas apenas a permitam, paralelamente àquela que foi a decisão da primeira instância, deverá ser esta última a prevalecer, não havendo lugar a qualquer correcção da decisão recorrida, desde que se mostre devidamente fundamentada e, face às regras da experiência comum, couber dentro de uma das possíveis soluções (vd., Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.2021, Desembargador Jorge Gonçalves - ECLI:PT:TRL:2021:477.20.8PDAMD.L1.5.A4).
Perante o princípio da livre apreciação da prova tal como consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal, permite ao julgador recorrer às regras da experiência e sua convicção do julgador, desde que logre justifica-la permitindo a respectiva compreensão e sindicância, não será a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, que irá sobrepor-se à convicção do Tribunal. Caso contrário, nunca seria possível alcançar uma decisão final. Alcançamos, então, a evidente conclusão de que o Tribunal de recurso apenas poderá intervir de forma correctiva perante a invocação fundamentada de um erro de apreciação da prova, que venha a concluir ter existido.
Perante tudo isto, é certo que os factos questionados não decorrem de prova directa, tanto mais que se reportam às convicções, conhecimentos e intenções do Arguido. Caso assim não fosse, ficaria o Tribunal limitado ao que o Arguido expressasse, exteriorizasse, impedido de concluir para além do que fosse admitido.
Nada obsta ao recurso da figura da prova indirecta para obter uma resposta quanto à matéria de facto levada à apreciação do Tribunal. Com efeito, «Sabido é que o tribunal a quo pode prevalecer-se da prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou, pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admissível pelo nosso ordenamento jurídico.
A prova indirecta ou indiciária reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência (sendo estas “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentemente do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.
A eficácia probatória da prova indiciária está dependente da verificação de quatro requisitos, a saber: a prova dos indícios; concorrência de uma pluralidade de indícios; raciocínio dedutivo entre os indícios provados e os factos que deles se inferem, devendo existir um nexo preciso, directo, coerente, lógico e racional.
Se o tribunal recorre à prova indiciária, tem de dar a conhecer o seu raciocínio dedutivo e, sendo este omitido, impede a instância de recurso de sindicar se efectuou (ou não) uma apreciação objectiva da prova produzida, em conformidade com as regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.» [ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 24/09/2019, Desembargador Artur Vargues, ECLI:PT:TRL:2019:294.17.2JGLSB.L1.5.7B] – (negrito nosso).
Como este mesmo Desembargador acrescenta, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/09/2023, [ECLI:PT:TRE:2023:147.21.0PCSTB.E1.1E], «De acordo com o artigo 349º, do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”, admitindo-se as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, como se extrai do artigo 351º do mesmo.
E é perfeitamente possível o recurso à prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou o tribunal a quo, pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admitida no nosso ordenamento jurídico também no âmbito do processo penal – cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. nº 03P3375; 07/01/2004, Proc. nº 03P3213; 09/02/2005, Proc. nº 04P4721; 04/12/2008, Proc. nº 08P3456; 12/03/2009, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt e também o Ac. do Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 127º, do CPP, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal –assim também o Acórdão deste mesmo Tribunal nº 521/2018, de 17/10/2018, que pode ser lido no respectivo sítio.
A prova indirecta reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, da lógica, do raciocínio indutivo e inferência, extrair uma ilação quanto ao tema da prova.»
No mesmo sentido encontramos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2006, Conselheiro Santos Carvalho, [ECLI:PT:STJ:2006:06P4096.3A] «As normas dos artigos 126° e 127° do CPP podem ser interpretadas de modo a permitir que possam ser provados factos sem que exista uma prova directa deles. Basta a prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo.
Essa interpretação não ofende quaisquer princípios constitucionais, como o da legalidade, ou das garantias de defesa, ou da presunção de inocência e do contraditório, consagrados no art.º 32.°, n.º 1, 2, 5 e 8 da Constituição da República Portuguesa, desde que haja uma fundamentação crítica dos meios de prova e um grau de recurso em matéria de facto para efectivo controlo da decisão.»
Ou seja, não há que temer a prova indirecta. Existem regras para a sua utilização e não produz decisões arbitrárias ou incoerentes. Tem um substracto objectivo e é fruto de um processo indicável. «A prova indirecta (ou indiciária) não é um “minus” relativamente à prova directa. Pelo contrário, pois se é certo que na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.» - ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 16/11/2010, Desembargadora Alda Tomé Casimiro
ECLI:PT:TRL:2010:3607.05.6TASNT.L1.5.D3.
Assim ocorre na decisão recorrida. Compreende-se como, dos dados objectivos da posse da droga, do peso, do modo de acondicionamento, da natureza do próprio tráfico, que o Arguido tinha que saber o que transportava. Nenhum traficante colocaria quatro quilos de cocaína em poder e à disposição de uma pessoa não avisada, sob pena de poder perder tal activo em qualquer passo do percurso. A única forma de garantir que a droga circulará de A a B sem desvios nem descaminhos é estar o transportador ciente da importância da sua carga. Carga, aliás, que não passará despercebida atento o seu volume e peso.
Como tal, o raciocínio dedutivo enunciado pelo Tribunal a quo não é aleatório nem arbitrário, mas sim devidamente sustentado e explicado. O Tribunal decidiu com base nas provas disponíveis, e nenhuma outra se exigia produzir. Mesmo no que toca à condição pessoal do Arguido, tendo o Tribunal promovido, admitido e valorado o relatório social o qual é sempre realizado com entrevista do visado.
Assim, o acórdão não merece qualquer reparo.
Deixamos, como já referido, a matéria da nacionalidade do Arguido para o fim da decisão.
- do não preenchimento do tipo por falta do elemento subjectivo;
Esta é uma questão que, não merecendo alteração a matéria de facto provada, claudica por falta de argumento que a sustente. A pretensão recursiva assenta na procedência do já anteriormente apreciado. Caso decidisse o Tribunal de recurso dar por não provados os factos 5 a 10, então poderíamos encontrar fundamento para o ora em apreço. Não foi o caso, pelo que igualmente improcede esta parte do recurso.
- da medida da pena;
Na determinação da medida da pena há que atender ao critério estabelecido no art.º 71.º do Código Penal, segundo o qual «1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.»
Para proceder à determinação do quantum concreto dessa punição, em primeiro lugar, há que atender à culpa. Sendo o juízo de culpa uma ponderação valorativa do processo de formação da vontade do arguido, tendo como critério aquilo que uma pessoa (enquanto homem médio com características pessoais similares à condição do agente) colocada na posição daquele faria perante a mesma situação, não poderemos deixar de a considerar elevada no caso que nos ocupa.
No fundo, o juízo de culpa releva, necessariamente, da intuição do julgador, sendo este assessorado pelas regras da experiência que lhe permitem proceder à valoração nos termos descritos. E no caso vertente, o arguido deliberadamente violou normas que punem actos de conhecida gravidade, socialmente perniciosos.
Encontrado o vector que limita o máximo concreto da pena aplicável, será ainda de ponderar: o grau de ilicitude dos factos e suas repercussões; a intensidade do dolo; as condições pessoais do arguido, suas habilitações literárias e situação económica; a sua conduta anterior e posterior ao facto – cfr. Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 14.09.2006, Relator Juiz Conselheiro Santos Carvalho [ECLI:PT:STJ:2006:06P2681.A0] - «I - Numa concepção moderna, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto… alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada…” (Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra Editora, p. 570).
II - “É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica” (mesma obra, pág. seguinte).
III - A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes.
IV - “Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassáve1 de todas e quaisquer considerações preventivas…” (ainda a mesma obra, p. 575). “Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado” (p. 558).».
Entramos aqui nas chamadas razões de prevenção especial, aquelas dirigidas ao infractor, e as razões de prevenção geral, dirigidas à comunidade.
As primeiras traduzem-se em duas vertentes, caracterizadas como positiva e negativa. A positiva respeitando às expectativas de ressocialização do condenado, e a negativa resultando da necessidade de prevenção da reincidência.
As segundas traduzem a necessidade de apaziguamento da comunidade em geral, eliminando sentimentos de impunidade, e reforçando a mensagem de que existem consequências para a prática de condutas que são criminosas e, desta forma, assegurando ao cidadão comum que o Estado e as suas leis estão activamente a promover a segurança e a paz social.
Seguindo estas indicações, fixou o Tribunal recorrido a pena de 5 anos e 6 meses
Estando tal pena no primeiro quarto do intervalo da pena abstracta não se vislumbra qualquer problema de proporcionalidade, necessidade ou adequação.
O crime de tráfico é um flagelo social com repercussões gravíssimas. A fim de garantir um lucro extremos para quem se encontra no topo da pirâmide de traficância, surge montada uma estrutura que nunca varia. Tal pirâmide cresce em número de indivíduos à medida que decresce em rendimentos garantidos mas ninguém nela intervém a título gratuito. Mesmo o elemento mais desfavorecido ganha, nem que seja o seu consumo diário.
O transportador internacional é desprovido de autonomia, não escolhe, mas aceita o que lhe é proposto. Tem sempre um ganho, ainda que aqueles que acima de si estão tentem reduzi-lo na proporção inversa à necessidade que o transportador tenha. Certo é que, sem ele, seria muito mais difícil disseminar pelo globo um produto que tem produção regional. O transportador, como o Arguido, permite a transcontinentalidade do tráfico. E isso é merecedor da pena aplicada, tanto mais que não diminuem os números de viajantes detectados na fronteira portuguesa a transportar cocaína. Tendo Portugal uma responsabilidade acrescida nessa fronteira, porque é simultaneamente a fronteira comum de uma Europa unida, não pode ser demonstrada fragilidade no combate e sancionamento deste tipo de criminalidade.
Assim se decide manter a inalterada a pena aplicada.
- da inaplicabilidade da pena acessória de expulsão do território nacional;
Decidiu o Tribunal a quo: «No caso sub judice, não se verificando nenhum dos limites à expulsão consagrados no artigo 135.º do mesmo diploma, e sopesando os factos que resultaram provados ressalta particularmente à saciedade que:
i) O arguido é natural da ..., e que à data dos factos residia na ..., não possuindo quaisquer ligações familiares e/ou profissionais a Portugal;
ii) Deu entrada em solo nacional e visou o transporte intercontinental de cocaína; iii) Caso permaneça em território nacional, existe fundado receio de que o arguido continue a dedicar-se a prática criminosa similar à que lhe vale a presente condenação, constituindo ameaça suficientemente grave à ordem pública;
iv) Pelo presente acórdão, o arguido vai condenada na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
Por conseguinte, aquilatados os termos sendo a expulsão uma pena acessória e, mormente, privativa da liberdade pessoal, a sua aplicação resulta, no caso em apreço, plenamente necessária e proporcional às finalidades concretas que se elevam, numa ponderação de interesses de quem praticou os factos e da proteção da sociedade afetada.
Termos em que o Tribunal decide sujeitar o arguido à aplicação da pena acessória de expulsão, pelo período de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses, com respetiva interdição de entrada em Portugal. »
A questão que se coloca ultrapassa a definição dos factos provados nos presentes autos, e assente em algo prévio, a identificação do Arguido submetido a julgamento.
Com efeito, mesmo para aplicação da pena acessória de expulsão, o Tribunal não precisa de ter um “facto provado” que defina a nacionalidade do sujeito processual. Porque tal circunstância é oficiosamente conhecida pelo Tribunal a partir dos elementos de identificação do Arguido.
No acórdão recorrido, o Arguido surge sempre identificado como tendo nacionalidade guineense. Não está errado. Mas está incompleto.
Compulsados os autos, verifica-se que a fls. 75 dos autos, a comunicação da Polícia Judiciária ao DIAP no fim da investigação, identifica o Arguido como cidadão português (07.01.2025). Porém, aquando da elaboração da acusação tal elemento de identificação foi inexplicavelmente omitido e, a partir daí, não foi tida em consideração a condição de dupla nacionalidade do Arguido.
Porém, ela já estava consagrada no processo, pela sua identificação.
Os documentos apresentados pelo Arguido, agora no recurso, apenas vêm reforçar um dado já disponível no processo.
Como tal, é manifesto que ao Arguido não pode ser aplicada a pena acessória de expulsão, pois que tem nacionalidade portuguesa.
Tal constatação, porém, em nada interfere com a demais factualidade provada quanto às condições pessoais do Arguido pois, como vimos, estas estão devidamente fundamentadas na prova produzida.
Assim, impõe-se revogar a condenação do Arguido no que à pena acessória de expulsão respeita.
- do perdimento dos bens apreendidos.
Defende o Recorrente que não poderia o acórdão ter dado como perdidos a favor do Estado os documentos, telemóveis e quantia monetária na sua posse. Entende que não se extrai da prova a utilização dos referidos telemóveis na prática do crime pelo qual vai condenado, assim como não se provou a origem ilícita da quantia que detinha.
Veja-se a argumentação do acórdão recorrido: «De acordo com o artigo 36.º, n.ºs 1 e 2 tem ainda que ser declarado perdido a favor do Estado as quantias que foram apreendidas e outros bens que devem ser declarados perdidos a favor do Estado.
Com efeito, como se disse, o artigo 36.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, estatui que “toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de uma infração prevista no presente diploma, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado”, e bem assim “os objetos, direitos e vantagens que, através da infração tiverem sido diretamente adquiridas pelos agentes, para si ou para outrem”, norma que tem aplicação “aos direitos, objetos ou vantagens obtidos mediante transação ou troca com os direitos, objetos ou vantagens diretamente conseguidos por meio da infração” (n.º 3), compreendendo neste art.º 36.º, “nomeadamente, os móveis, imóveis, aeronaves, barcos, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna” (n.º 4).
E se as “recompensas, objetos, direitos ou vantagens a que se refere o artigo anterior tiverem sido transformados ou convertidos em outros bens, são estes perdidos a favor do Estado em substituição daqueles” (art.º 37.º, n.º 1), enquanto que se tiverem sido misturados com bens licitamente adquiridos, “são estes perdidos a favor do Estado até ao valor estimado daqueles que foram misturados” (art.º 37.º, n.º 2).
Por fim, continuando a expor o regime resultante da lei da droga (Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), deve acentuar-se que “o disposto nos art.ºs 35.º a 37.º é também aplicável aos juros, lucros e outros benefícios obtidos com os bens neles referidos” (art.º 38.º).
Ou seja, resulta de modo claro que só poderá existir a declaração de perdimento dos bens ou quantias obtidos em resultado da atividade de tráfico (para além daqueles, claro está, dos abrangidos pelo art.º 35.º e que se destinassem ou estivessem destinados a servir à prática do crime).
Nos termos do artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, de 11.01 “Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito”.
Vigora nesta norma uma presunção de que os bens e valores apreendidos no âmbito de um processo de tráfico de droga, sendo o arguido condenado, são uma vantagem resultante da atividade criminosa.
Esta presunção é uma presunção “juris tantum “, não absoluta, que pode ser ilidida por prova em contrário – art.º 9.º da citada Lei, que se propôs estabelecer medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira.
Aquela presunção cessa ante a comprovação de que não é “producta sceleris“.
Relativamente à quantia em dinheiro que foi apreendida à arguida será a mesma declarada perdida a favor do Estado, uma vez que é produto da prática pelo arguido dos factos ilícitos acima referidos. »
Não se alcança a fundamentação para concluir como o fez o Tribunal a quo. Em causa estão os telemóveis e o dinheiro apreendidos. Da factualidade provada apenas se retira que ao Arguido foi apreendida a quantia monetária de € 60,00, nada sendo mencionado quanto à sua proveniência.
Por isso é desprovida de fundamento a conclusão do Tribunal a quo que os €60,00 são produto da prática pelo Arguido do crime de tráfico.
Não se provando a origem do dito dinheiro como resultante da prática do tráfico, restará, sim, a presunção que o Tribunal aponta. Mas nada se provou, igualmente quanto aos rendimentos do Arguido. Ora, aquela presunção exige que o dinheiro apreendido represente uma incongruência na relação entre o seu valor no património do arguido e aquele que compatível com o seu rendimento lícito. Só que não há factos que permitam alcançar tal conclusão.
Assim, há que corrigir a decisão recorrida, eliminando o segmento correspondente à perda do dinheiro apreendido.
Já no que toca aos telemóveis, não há como escapar ao facto provado 7, ou seja, que mesmos foram utilizados pelo arguido nos contactos que estabeleceu para concretizar o transporte da cocaína apreendida.
Considerando o art.º 35.º/1 do Decreto-Lei 15/93, de 22.01 «São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma». Como tal, impõe-se a declaração da sua perda, tal como decidido.

DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar o recurso parcialmente procedente e, consequentemente:
I – Revogar o trecho decisório «B)Condenar o arguido na pena acessória de expulsão do território nacional, pelo período de 5 (cinco) anos, e 6 (seis) meses, com respetiva interdição de entrada em Portugal»;
II – Revogar a declaração de perda a favor do estado do dinheiro apreendido e o trecho decisório «E) O dinheiro apreendido ao arguido reverte para as entidades referidas no artigo 39.º da DL n.º 15/93, de 22.1, na proporção aí indicada»;
III – Manter tudo o mais decidido.
Sem custas.

Lisboa, 09.Setembro.2025
Rui Coelho
Ana Cristina Cardoso
Manuel Advínculo Sequeira