Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL SALGADO | ||
Descritores: | PATRIMÓNIO CONJUGAL PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE COMPROPRIEDADE ACTO DE DISPOSIÇÃO DO CONSORTE APLICAÇÃO DO REGIME DAS DOAÇÕES DE BENS ALHEIOS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/12/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1.–O património conjugal é constituído pelos bens comuns do casal, afectado por lei ao escopo de servir de suporte económico à sociedade conjugal; tal comunhão patrimonial, também denominada de “mão comum”, e por outros concebida como “propriedade colectiva”, caracteriza–se e distingue-se da compropriedade, além do mais, pelo facto de o direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património comum, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário. 2.–Vigorando quanto à actos de disposição unilateral do património comum o disposto nos artigos 1682º e 1687º do Código Civil, e nas relações internas o princípio da indivisibilidade do património comum até à cessação dos efeitos do casamento e consequente partilha conforme ao disposto no artigo 1688º do Código Civil, tal não contende, nem comporta limitação à situação em que, o cônjuge desautorizado e lesado pelo acto disposição do consorte sobre o património comum, pretenda que o património comum seja restituído/restaurado pelos terceiros beneficiados. 3.–Justifica-se então a aplicação do estabelecido quanto às doações de bens alheios - artigos 956º, 1404º e 1408º, nº2 ,do Código Civil - na situação dos autos em que o cônjuge Réu, sem o conhecimento e consentimento do consorte Autor, dispôs dos fundos da conta bancária provida com ganhos comuns, em favor de terceiros e a título gratuito, portanto não dependente da eventual e imprevista partilha do património do casal, que se destina à mera liquidação da meação de cada um no património comum. 4.–A prática judiciária demonstra e a doutrina mais recente veicula, que dada a contitularidade de direitos existente na comunhão patrimonial conjugal, não existem razões de princípio para excluir a aplicação do regime de compropriedade e da comunhão, em certos segmentos até lacunosos, permitindo a sua aproximação a determinados aspectos do regime da compropriedade e da comunhão. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I.–RELATÓRIO 1.–Da Acção [1] J… veio propor acção com processo comum contra, F..., M..., L...,S...,R... e M…, pedindo que: a)-os réus M... e L…, sejam condenados a restituir-lhe o montante de €364.000,00 (trezentos e sessenta e quatro mil euros), ao qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento; b)-os réus S... e R... sejam condenados a restituir-lhe, o montante de €226.000,00 (duzentos e vinte e seis mil euros), ao qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento; c)-a ré M… seja condenada a restituir-lhe, o valor de € 211.050,00 (duzentos e onze mil e cinquenta euros), ao qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento; d)-a ré F… seja condenada a restituir-lhe o valor de € 270.495,00 (duzentos e setenta mil quatrocentos e noventa e cinco euros), ao qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento. Subsidiariamente, caso se entenda que a restituição deverá ser ao património comum, o autor pede que: a)-os réus M... e L…, sejam condenados a restituir àquele património comum o montante de €364.000,00 (trezentos e sessenta e quatro mil euros), ao qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento; b)-os réus S… e R..., sejam condenados a restituir àquele património comum, o montante de 226.000,00 (duzentos e vinte e seis mil euros), ao qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento; c)-a ré M... seja condenada a restituir àquele património comum o valor de € 211.050,00 (duzentos e onze mil e cinquenta euros), ao qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento; d)-a ré F... seja condenada a restituir àquele património comum o valor de €270.495,00 (duzentos e setenta mil quatrocentos e noventa e cinco euros), ao qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento. Alegou para tanto e em síntese que: que lhe coube um montante de 2.289.383,62 euros relativo a um prémio de euromilhões, montante esse que foi transferido em 20.12.2010 para conta bancária do Montepio Geral, da qual são titulares o autor e a ré F…, com quem era casado à data; parte daquele montante foi objeto de aplicação a prazo, permanecendo a outra parte disponível naquela conta à ordem; em 18 de março de 2016 a ré F... saiu do lar conjugal e foi viver com a ré M…, uma das suas três filhas de uma relação anterior e marido desta; após a separação o autor foi surpreendido com a informação de que a mencionada conta bancária teria um saldo de apenas 19.750 euros; após ter em sua posse os respetivos extratos bancários que, entretanto solicitou, apercebeu-se de que a ré F…, sem o conhecimento e consentimento do autor, procedeu a diversos levantamentos em numerário, emissão e levantamento de cheques, transferências e aplicação de avultados montantes noutras contas bancárias, desmobilizando, por vezes, depósitos e aplicações a prazo; a ré F… desviou para contas dos demais réus os montantes depositados na mencionada conta, os quais os receberam sabendo da sua proveniência. Citados os réus, estes vieram deduzir contestação/reconvenção, alegando, em síntese, que quem ganhou o prémio do “Euromilhões” foi a 1ª ré, que pagou com dinheiro do mesmo, inúmeras despesas das suas filhas, do autor e respetivos filhos, bem como adquiriu aquela que passaria a ser a casa de morada de família. Mais alegam que, a 1ª Ré doou diversos valores às suas filhas, aqui também rés, com o conhecimento e consentimento do autor com o autor, tendo-se, para o efeito, ambos dirigido à instituição bancária Montepio, em 30.05.2016 onde, na presença do gestor de conta, fizeram tal repartição, sendo que, nessa altura, foram entregues ao autor cerca de 20.000 euros; a casa de morada de família, adquirida com o dinheiro do prémio; foi vendida pelo valor de 220 mil euros, tendo sido o valor obtido com a venda dividido entre o autor e a ré F…. Alega ainda a 1ª ré que, quando tomou a decisão de sair de casa em março de 2016, decidiu dividir o montante que ainda tinha na conta bancária onde foi depositado o prémio do euromilhões com o autor, tendo-se, para o efeito, ambos dirigido à instituição bancária Montepio, em 30.05.2016 onde, na presença do gestor de conta, fizeram tal repartição, sendo que, nessa altura, foram entregues ao autor cerca de 20.000 euros; a casa de morada de família, adquirida com o dinheiro do prémio; foi vendida pelo valor de 220 mil euros, tendo sido o valor obtido com a venda dividido entre o autor e a ré F…. Acrescenta ainda, a 1ª ré, ter sofrido coação, violência física e psíquica, exercida pelo autor, que a induziu em erro, manipulando-a, por forma a apropriar-se de quantias monetárias que pertenciam àquela ré, resultantes do prémio do euromilhões. Concluem que a presente ação deverá improceder, absolvendo-se os réus do pedido, devendo julgar-se procedente a reconvenção e, consequentemente, condenando-se o autor a restituir à ré F… os montantes com que se locupletou indevidamente à custa de bem próprio desta ré, num total de €478.332,52, com os respetivos juros legais. O autor na réplica, pugnou pela improcedência da reconvenção e concluiu conforme à pretensão da sua na petição inicial. * Seguidos os demais trâmites da instância, realizada a audiência de discussão e julgamento, proferiu-se sentença encerrando com o seguinte dispositivo: «Em face da argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas decide-se julgar a ação parcialmente procedente, por provada e a reconvenção improcedente, por não provada, decidindo-se: a) absolver da instância a ré F…; b) absolver o autor do pedido reconvencional; c) condenar os réus M… e L…, a restituir o montante de €364.000,00 (trezentos e sessenta e quatro mil euros), ao património comum do autor e da 1ª ré, ao qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento; d) condenar os réus os réus S… e R…., a restituir o montante de €226.000,00 (duzentos e vinte e seis mil euros), ao património comum do autor e da 1ª ré, qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento; e) condenar a ré M… a restituir o montante de € 211.050,00 (duzentos e onze mil e cinquenta euros) ao património comum do autor e da 1ª ré, ao qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento.» 2.–Do Recurso Inconformados, os Réus, M…, L…, R…, S… e M…, interpuseram recurso da sentença. As suas alegações culminam nas conclusões que se transcrevem: 1-A sentença aqui em crise ao condenar os aqui Recorrentes, filhas e genros da primeira Ré, a restituir ao património comum do Autor (aqui Recorrido) e da aludida primeira Ré as quantias de 364.000€ (trezentos e sessenta e quatro mil euros) de 226.000,00€ (duzentos e vinte e seis mil euros) e de 211.050,00€ (duzentos e onze mil e cinquenta cêntimos) violou os artigos 1682.° e 1687.° do Código Civil (abreviadamente designado por CC) por aplicar ao regime de alienação de bens comuns do casal os artigos 1404.°, 1408.°, n.as 1 e 2, 956.°, n.° 1 e 289.°, n.° 1, todos do CC. 2-A primeira Ré e o aqui Recorrido casaram em 28 de setembro do ano de 2009, sob o regime supletivo de comunhão de adquiridos. 3-Do prémio do "Euromilhões" coube ao aqui Recorrido o valor de 2.289.383,62€ (dois milhões duzentos e oitenta e nove mil trezentos e oitenta e três euros e sessenta e dois cêntimos). 4-A quantia de 2.289.383,62€ (dois milhões duzentos e oitenta e nove mil trezentos e oitenta e três euros e sessenta e dois cêntimos) no dia 20 de dezembro de 2010 foi transferida para uma conta domiciliada no Montepio Geral, com o número 3.././../.......-7 de que eram titulares a primeira Ré e o então marido, aqui Recorrido. 5-Como bem decidiu a sentença aqui em crise, o dito prémio do Euromilhões constitui, e nos termos da alínea b), do artigo 1724.° do CC, património comum do ex-casal. 6-Do prémio do Euromilhões a primeira Ré F...- transferiu, sem o consentimento do Recorrido, para a sua filha M... e o marido desta, aqui Recorrentes, o valor de 364.000,00€ (trezentos e sessenta e quatro mil euros). 7- Igualmente a primeira Ré F-..., do dito prémio do Euromilhões, transferiu, sem o consentimento do Recorrido, para a sua filha S... e o marido desta, aqui Recorridos, o valor de 226.000,00€ (duzentos e vinte e seis mil euros). 8-E, ainda, transferiu a primeira Ré, do prémio do Euromilhões, e sem o consentimento do Recorrido, para a sua outra filha M...s, aqui Recorrente, o valor de 211.050,00€ (duzentos e onze mil e cinquenta cêntimos). 9-Assim, a primeira Ré transferiu para as suas filhas e genros do prémio do Euromilhões, no valor de 2.289.383,62€ (dois milhões duzentos e oitenta e nove mil trezentos e oitenta e três euros e sessenta e dois cêntimos) que constitui um bem do património comum do casal, e sem o consentimento do aqui Recorrido, o montante total de 801.050,00€ (oitocentos e um mil e cinquenta euros) quantia esta que está bem distante do valor que corresponde a metade do prémio. 10-Apenas alguns meses depois da separação, ocorrida entre a primeira Ré F... e o aqui Recorrido aos 18 dias de março de 2016, é que este teve conhecimento das transferências bancárias efetuadas por aquela. 11-Por virtude de o dinheiro do Euromilhões constituir património comum do casal, então, o pedido principal formulado, pelo aqui Recorrido de restituição a este dos valores entregues pela primeira Ré F... aos aqui Recorrentes, improcedeu, bem como improcedeu o pedido da quantia que aquele considerava que a primeira Ré lhe deveria restituir. 12- Acontece que, e em face do peticionado subsidiariamente pelo aqui Recorrido, de restituição ao património comum do casal das quantias que haviam sido transferidas pela primeira Ré, para as filhas e genros da primeira Ré. sem o consentimento daquele, as filhas e genros da primeira Ré, aqui Recorrentes, foram condenados a restituir ao património comum do casal os valores de 364.000,00€ (trezentos e sessenta e quatro mil euros) 226.000,00€ (duzentos e vinte e seis mil euros) e 211.050,00€ (duzentos e onze mil e cinquenta cêntimos), 13-Porquanto o Tribunal a quo entendeu, e mal, que se aplica à disposição de bens comuns do casal, sem o consentimento de ambos os cônjuges, o regime da doação de bens alheios, consignado nos artigos 1404.°, 1408.°, n.°s 1 e 2, 956.°, n.° 1 e 289.°, n.° 1, todos do CC. 14-Contudo, o Tribunal a quo decidiu (e bem) que o pedido deduzido pelo aqui Recorrido contra a Ré F... apenas poderia ser atendido em sede de partilha de bens, subsequente ao divórcio, na medida em que configura uma verdadeira operação de liquidação e conferência do património comum do casal. 15- Pelo que a absolveu (e muito bem) a primeira Ré da instância, remetendo para a partilha de bens, efetuada extrajudicialmente, ou para o processo de inventário, a discussão da transferência para aquela da quantia de 270.495,00€ (duzentos e setenta mil quatrocentos e noventa e cinco euros) que constitui parte do património comum do casal. 16-Mal andou o Tribunal a quo ao decidir aplicar às transferências bancárias efetuadas pela primeira Ré F... para as suas filhas e genros, aqui Recorrentes, e sem o consentimento do Recorrido, um regime que não se aplica aos bens que fazem parte do património comum do casal. 17-O aresto aqui em crise para fundamentar a restituição ao património comum do casal dos valores em causa, invoca os artigos 1404.°, 1408.°, n.'s 1 e 2, 956.°, n.° 1 e 289.°, n.° 1, todos do CC, tratando-os como o regime da doação dos bens alheios. 18-Mas ao caso em apreço aplica-se o regime da alienação de móveis comuns do casal, vertido nos artigos 1682.° e 1687.° do CC, porquanto estamos, e como bem entendeu a sentença aqui em crise, perante um bem que integra o património comum do casal. 19-Na verdade, as regras relativas à alienação de coisa alheia apenas se aplicam à alienação de bens próprios do outro cônjuge, tal como dispõe o n.° 4, do artigo 1687.° do CC. 20-O dinheiro do Euromilhões constitui património comum do casal, pelo que nunca sena de aplicar às aludidas transferências de parte daquele montante, efetuadas pela primeira Ré, e sem o consentimento do aqui Recorrido, o regime de doação de bens alheios. 21-O artigo 1682.° do CC consigna um regime específico para as alienações de móveis comuns, sendo o dinheiro um bem móvel, tal como resulta do disposto no artigo 205.° do CC. 22-Nos termos do dito regime, e quando se verifiquem situações como a do caso em apreço, isto é, "quando um dos cônjuges, sem o consentimento do outro, alienar ou onerar, por negócio gratuito móveis comuns de que tem a administração, será o valor dos bens alheados (...) levado em conta na sua meação. — conforme vertido no n.° 4, do aludido artigo 1682.° do CC. — negrito nosso. 23-As transferências dos valores aqui em causa terão de ser colocadas e suscitadas em sede de uma eventual e futura partilha do património comum do casal, e nunca em sede de uma ação declarativa de condenação, como é o caso da presente ação. 24-Será nessa sede, a própria, que o ora Recorrido questionará as transferências efetuadas pela primeira Ré F..., sem o seu consentimento, aplicando-se, em consequência, as regras vertidas no artigo 1682° do CC. 25-E que implicará que o valor dos bens alienados, sem o consentimento do aqui Recorrido, venha a ser levado em conta na meação da sua ex-cônjuge, a primeira Ré F..., no momento da partilha de bens do dissolvido casal. 26-Como será passível de ser executada uma sentença que manda restituir os montantes transferidos "(...) ao património comum do autor e da 18 Ré(...)"? Como poderiam e deveriam os aqui Recorrentes cumprir com a sentença em apreço? 27-Ainda que assim não se entenda, o que apenas se concede por mero dever de patrocínio, sempre teria o aqui Recorrido, e tal como previsto no artigo 1687.° do CC, a possibilidade legal de suscitar a anulabilidade das transferências efetuadas pela primeira Ré F... aos aqui Recorrentes, sem o seu consentimento. 28-E essa anulabilidade nunca poderia ser aposta aos adquirentes de boa fé, os aqui Recorridos, tal como vertido no n.° 3, do artigo 1687.°. 29-E na presente ação em momento algum se mostrou alegado e provado que os aqui Recorrentes se encontravam de má fé. 30-Por tudo o exposto, a sentença aqui em crise ao condenar os aqui Recorrentes na restituição ao património comum do dissolvido casal das quantias de 364.000€ (trezentos e sessenta e quatro mil euros), bem como de 226.000,00€ (duzentos e vinte e seis mil euros) e de 211.050,00€ (duzentos e onze mil e cinquenta cêntimos) que lhes foram transferidas pela cônjuge mulher, e sem o consentimento do cônjuge marido, viola os artigos 1682.° e 1687.° do CC, por aplicar ao regime de alienação de bens comuns dos cônjuges os artigos 1404.°, 1408.°, n.°s 1 e 2, 956.°, n.° 1 e 289.°, n.° 1, todos do CC, pelo que deve ser revogada a decisão recorrida, por falta de fundamento legal, e absolvidos os Réus, aqui Recorrentes, da instância.» O Autor apresentou contra-alegações, refutando a argumentação dos recorrentes e pugnou pelo acerto e subsistência do julgado. * O recurso foi regularmente admitido com efeito devolutivo. Foram colhidos os vistos legais. * 3.– O Objecto do recurso Consabido que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões do recorrente, caberá decidir se, à disposição de bens comuns por um dos cônjuges em favor de terceiros a título gratuito , sem o consentimento do outro consorte é de aplicar o regime estabelecido para a doação de bens alheios (art. ºs 1404º, 1408º, nºs 1 e 2, 956º, nº 1 e 289º, nº 1 todos do Código Civil), devendo os terceiros beneficiários restitui-los ao património comum conjugal. O tema decisório suscita o debate dos seguintes tópicos recursivos:
II.– FUNDAMENTAÇÃO A.– Os Factos A matéria de facto que vem provada da primeira instância e não mereceu impugnação: 2.1.1.- A ré F... e o autor casaram em 28 de setembro de 2009, sob o regime supletivo de comunhão de adquiridos. 2.1.2.- A ré F… foi morar para a casa do autor em M..., juntamente com os dois filhos menores deste. 2.1.3.- Quando casaram a ré F… trabalhava enquanto cozinheira e o autor trabalhava enquanto pedreiro. 2.1.4.- O autor integrava uma sociedade de vinte apostadores que registou, em novembro de 2010, numa papelaria da…, concelho do F..., um boletim do euro milhões com uma combinação que venceu um prémio global de €45.787.672,44. 2.1.5.-Os diversos apostadores, direta ou indiretamente, incumbiam, semanalmente, a proprietária daquele estabelecimento comercial de preencher e entregar, em seu nome, um boletim de apostas do “Euromilhões”, com chave fixa constituída por certos números, na indicação dos quais não tinham qualquer intervenção. 2.1.6.- O autor pagava semanalmente o valor da aposta. 2.1.7.- Do prémio acima referido, coube ao autor um montante de € 2.289.383,62 €, o qual foi transferido no dia 20 de dezembro de 2010 para a conta bancária domiciliada no Montepio Geral, com o número 3.././../........-7, da qual eram titulares o autor e a então sua mulher, a ré F…. 2.1.8.- Parte daquele valor foi objeto de aplicação a prazo, permanecendo a outra parte disponível naquela conta à ordem para fazer face às despesas correntes, bem como a algumas despesas extraordinárias relacionadas essencialmente com a aquisição de uma nova moradia e compra do respetivo recheio. 2.1.9.- Efetivamente, no dia cinco de janeiro de 2011, o autor outorgou escritura exarada de folhas cinquenta e dois a folhas cinquenta e três verso, do livro de notas para escrituras diversas número duzentos e vinte e um –A do Extinto Cartório Notarial Privado de ECS..., através do qual adquiriu, pelo “preço de duzentos e setenta e cinco mil euros” , o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de M... ---- …….. Sobre tal moradia impenderam obras de arranjo de quintal, pintura completa da casa, compra e montagem de churrasqueira com armários e com telhado, construção de uma dispensa, construção de uma casa de banho, forragem da garagem com material específico para evitar humidade, e pintura, e compra e montagem de um sistema de alarme com vídeo vigilância. 2.1.11.- Para essa casa, que se encontrava despida de mobiliário e qualquer tipo de bens aquando da compra, foram comprados, sempre com o dinheiro do prémio, todo o mobiliário, eletrodomésticos, material de cozinha, loiças, iluminação, lençóis e edredons. 2.1.12.- Também foi utilizado o dinheiro do prémio para compra de bens decorativos e antiguidades, que eram pagas em dinheiro ou por cheques. 2.1.13.- O autor tem o terceiro ano de escolaridade, tem dificuldades em ler e apenas sabe escrever o seu nome. 2.1.14.- Em 25 de janeiro de 2011, a ré F…., efetuou um movimento na conta acima referida em 2.1.7., no valor de € 200.000,00 (duzentos mil euros) com a descrição “CHQ. COMP. LISBOA 5......9”, que destinou ….. 2.1.15.- Em 2.1.111.- Os movimentos bancários acima referidos em 2.1.14. a 2.1.16., 2.1.20., 2.1.21.,2.1.23., 2.1.25., 2.1.27. a 2.1.32, 2.1.34. a 2.1.36., 2.1.38. a 2.1.40., 2.1.43 a 2.1.50, 2.1.53.,2.1.54., 2.1.56., 2.1.57, 2.1.75., 2.1.84, 2.1.85., 2.1.88., 2.1.89, 2.1.92., 2.1.94, 2.1.96 a 2.1.102 , foram efetuados pela ré F… em benefício das suas filhas e genros, aqui corréus, sem o conhecimento e consentimento do autor. 2.1.112.- Os réus sabiam que as transferências a que se alude em 2.1.111 reportavam-se a dinheiro proveniente do prémio do euromilhões, sabendo ainda que o autor não tinha dado o seu consentimento àquelas movimentações. 2.1.113.- O autor e a 1ª Ré deixaram de trabalhar, passando a viver exclusivamente do montante do prémio do euromilhões. 2.1.114.- O autor e a 1ª ré efetuaram obras de remodelação da moradia acima referida em 2.1.2., utilizando para o efeito parte do dinheiro do prémio do euromilhões. 2.1.115.- A ré F..., no dia 18 de Março de 2016, deixou o lar conjugal, …, separando-se do autor para ir viver em casa da ré ..., uma das três filhas de uma relação anterior, e do marido, o réu L... 2.1.116.- Só alguns meses depois da separação do casal, após ter obtido todos os extratos bancários da conta, é que o autor teve conhecimento das transferências bancárias acima referidas em 2.1.11., efetuadas pela 1ª ré em beneficio dos aqui co-réus. 2.1.117. - O casamento entre o autor e a ré F... foi dissolvido por divórcio decretado por sentença transitada a 17-09-2019, tendo sido determinado que os efeitos do divórcio retroagem a 31-03-2016. B.–O Direito 1.-Sinopse Em vista a facilitar a aproximação ao mérito do recurso, destaca-se da factualidade provada relevante. O A. e a R. F…, na constância do matrimónio em regime de comunhão geral de adquiridos, obtiveram ganho do prémio do Euro milhões, parte do qual, depositaram na conta bancária da titularidade de ambos os cônjuges. Em data próxima da separação do casal, a R. F… transferiu/movimentou dessa conta, em favor e, benefício dos RR. (aqui apelantes), seus filhos e genros de anterior matrimónio/relação, os valores monetários constantes nos pontos 2.1.14. a 2.1.16., 2.1.20., 2.1.21.,2.1.23., 2.1.25., 2.1.27. a 2.1.32, 2.1.34. a 2.1.36., 2.1.38. a 2.1.40., 2.1.43 a 2.1.50, 2.1.53.,2.1.54., 2.1.56., 2.1.57, 2.1.75., 2.1.84, 2.1.85., 2.1.88., 2.1.89, 2.1.92., 2.1.94, 2.1.96 a 2.1.102. E, fê-lo, sem o conhecimento e consentimento do cônjuge, aqui A. Os RR. sabiam que os valores que a R. F… lhes prodigalizara eram provenientes do património comum do casal e, que o A. não tinha conhecimento, nem havia consentido em tal liberalidade. Para trás ficou o primevo dissídio, em torno da fonte e titularidade dos valores obtidos pelo prémio do Euro -milhões, em razão da sua classificação como bem próprio, (e qual dos consortes pertencia) ou, bem comum do casal, no que se assentou na sentença constituir bem comum e, a disposição pela Ré F... de tais quantias constituir acto de administração extraordinária. Por fim, provou-se a falta de conhecimento e consentimento no acto pelo A., e, o conhecimento dos RR. de tais circunstâncias. Em síntese útil da douta argumentação dos apelantes, que adiante se detalhará, a discordância com o julgado é a seguinte - a situação sub judice, respeitando à restituição de bens do património comum do casal, ao contrário do decidido, tem a sede própria nos artigos 1682º, nº1 e nº4 do Código Civil, e as sanções previstas no artigo 1687º do Código Civil, pelo que a matéria apenas poderá ser dirimida aquando da realização da partilha entre os ex-cônjuges. Posto isto, proferida a sentença não impugnada quanto aos enunciados pressupostos de facto e de direito, a única questão solvenda trazida à reapreciação deste tribunal, radica no apontado erro de interpretação e aplicação do direito na situação ajuizada, em que o Tribunal a quo terá incorrido, ao condenar os RR. ora apelantes, nesta acção impetrada pelo cônjuge “desautorizado”, a restituírem ao património comum do casal, os valores monetários que a (então) consorte e 1ªRé os beneficiou a título gratuito, provenientes dos fundos bancários comuns, sem o consentimento daquele, equiparando-se aos efeitos da doação de bens alheios (artigo 956º do CC) no regime legal da compropriedade (artigo 1408º, nº2 CC). 2.– A natureza jurídica do património comum do casal; actos de disposição Perspectiva-se um tema base que sempre mereceu larga reflexão na doutrina e na jurisprudência, e que exige atenção na casuística de situações geradas pela complexidade da vida actual, e da evolução do paradigma dos poderes e deveres de cada cônjuge relativamente à gestão e disposição do património conjugal,[2] as quais nem sempre surgem com resposta clara no ordenamento jurídico. O património conjugal é constituído pelos bens comuns do casal, afectado por lei ao escopo de servir de suporte económico à sociedade conjugal. Daí que, são actos de administração ordinária, que cada cônjuge pode praticar por si só, aqueles que provenham às necessidades ordinárias e quotidianas da família; enquanto já corresponderão a actos de administração extraordinária, aqueles que “comportem decisões de fundo”, susceptíveis de impedir ou condicionar a direcção conjunta da família. No que respeita à administração de bens integrados no património comum do casal, decorre do disposto no artigo 1678.º, nº3 do Código Civil, que a legitimidade de cada um dos cônjuges na prática dos actos de administração ordinária, e a exigência do consentimento de ambos os cônjuges para “os restantes actos de administração”, denominados pela doutrina como actos de administração extraordinária.[3] Sendo que tal comunhão patrimonial, também dsignada de “mão comum”, se caracteriza e distingue da compropriedade, além do mais, pelo facto de o direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património comum, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário. Com apelo à doutrina. A comunhão patrimonial entre cônjuges corresponderá a uma “comunhão de direitos” - «instituto vasto que ‘engloba todos os casos em que um direito patrimonial (real ou de outro tipo) pertence em contitularidade a dois ou mais sujeitos», não sendo os membros da comunhão individualmente considerados titulares de direitos específicos sobre cada um dos bens que integram o património global e, por isso, não podem dispor desses bens nem onerá-los, salvo quando o possam fazer na qualidade de administradores, sendo exemplo a denominada “ comunhão de mão comum”, o património comum dos cônjuges.[4] A comunhão patrimonial conjugal, também concebida por outros como “propriedade colectiva”, distingue-se da comunhão de direitos, uma figura mais ampla do que a compropriedade, em virtude do direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos que constituem o património, mas sobre este concebido com um todo unitário, salientando-se - «Não há compropriedade (…)nos casos em que os direitos dos consortes recaem, não sobre uma coisa susceptível de propriedade, mas sobre uma universalidade (herança com dois ou mais co-herdeiros, património comum dos cônjuges.»[5] Os actos de disposição da Ré F... não consentidos pelo marido aqui o A. e sobre os quais incide o pedido (subsidiário) de restituição ao património comum, tem por objecto as transferências e movimentações (assinaladas na matéria de facto) dos fundos existentes na conta bancária da titularidade de ambos os cônjuges. Nas contas bancárias de depósito solidárias qualquer um dos titulares tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral, questão que não se confunde com aquela outra, que é a da titularidade dos fundos da conta. Provado então que, a conta bancária da qual saíram as quantias que a Ré F... beneficiou os RR. a título gratuito, foi provida com o ganho/proveito comum do casal, os fundos integram o património comum, não pertencendo àquela qualquer quota ideal do saldo, mas sim o direito a uma fração ideal sobre o conjunto do património comum, como é o direito à meação do património do casal, a ser efetivado mediante partilha do mesmo. Em face da definição legal e conceptual indicadas do património comum do casal, o Tribunal a quo, concluiu e bem, que as transferências/movimentações levadas a cabo pela Ré F... em favor dos RR., constituem actos de administração extraordinária do património comum do casal, através de uma (injustificada) variação negativa do mesmo, exorbitando, portanto, as finalidades próprias da mera administração e, a afectação e finalidade intrínsecas à comunhão patrimonial, que de resto, não são, em princípio, as doações de valores consideráveis a favor de terceiros. 3.–A indivisibilidade da comunhão patrimonial conjugal; a compropriedade É pacífico que, um dos aspectos específicos do regime da propriedade coletiva da comunhão conjugal compreende a impossibilidade de cada cônjuges poder dispor da sua meação, e também estar vedado pedirem a partilha dos bens que a compõem antes da dissolução( pelas formas legais) do casamento, ou de se decretar a separação judicial de pessoas e bens entre os cônjuges (artigo 1689º, nº1 do CC).[6] A interpenetração patrimonial ao longo da via conjugal poderá exigir a reintegração de bens/valores para impedir situações de enriquecimento injustificado a neutralizar após a dissolução do casamente e aquando da partilha. Outra das vertentes próprias e relevantes da comunhão patrimonial conjugal, que a distingue do regime legal instituído para a compropriedade, traduz-se na circunstância de o direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário, e não de um direito correspondente a uma fracção (½) desse conjunto patrimonial, susceptível de ser alienada, i.e, as duas realidades não se apresentam como “completamente díspares entre si”, antes constituem “simples espécies de um único género- a contitularidade de direitos.” [7] Noutra abordagem doutrinal da matéria - «A perspetiva do património coletivo considera a situação de contitularidade. Os bens comuns constituem um património coletivo na medida em que cada um dos cônjuges é contitular de um direito sobre a massa dos bens comuns, como um todo, não sendo contitular de um direito não sobre cada uma das coisas nela integradas. Cada um dos cônjuges é titular do direito a metade do mesmo (direito de meação), direito de que não podem dispor antes da dissolução do casamento, da separação de pessoas e bens ou da separação judicial de bens.(….) e que tem muitas similitudes com a que existe na situação de indivisão hereditária.»[8] Ou seja, cada um dos consortes não têm qualquer fracção de direito que lhes corresponda individualmente e de que, como tal, possam dispor, como, de forma individual, não podem dispor em face do património comum por acto inter vivos, traduzindo-se num património autónomo, sem quotas, enquanto na compropriedade, esta é uma comunhão por quotas.[9] 4.– A disposição não consentida de bens do património comum; a restituição ao património comum Feitas as breves considerações em torno do enquadramento normativo e doutrinário da temática em equação, retiramos o que segue. Não parece haver controvérsia quanto à comunhão, e, portanto, também a comunhão patrimonial de “mão comum”, corresponder a uma figura mais ampla do que a compropriedade. Pacífico se afigura ainda que, a indivisibilidade originária do património comum do casal apenas finda com a cessação do casamento em que assenta, por via da partilha desse património, que mais não é que uma operação de liquidação de património, de harmonia com as regras aplicáveis ao regime de bens vigente, e sujeita à conferência do que cada um deles deve (artigo 1689º, nº1 do CC). Aqui chegados e, no que importa à economia do caso concreto judicando. Estamos em crer, salvo o devido respeito, que a solução jurídica preconizada pelo Tribunal a quo não infirmou ou afastou esses postulados legais e específicos das relações patrimoniais/comunhão entre cônjuges, corroborando-se que a compropriedade não se confunde com a comunhão do património conjugal. O que se cuida de saber, é qual a resposta do ordenamento jurídico para a situação, em que um dos cônjuges actuou em violação dos limites legais estabelecidos para a administração e alienação gratuita dos bens que integram o património comum, que o outro cônjuge não consentiu, nem aceita, pretendendo restaurar o património comum à situação anterior. Partindo da tese dos recorrentes e dos efeitos interpretativos que veiculam quanto ao disposto nos artigos 1682º e 1687º do Código Civil, [10] o cônjuge afectado(aqui Autor) pelo acto desconforme do consorte (aqui Ré F...), que queira reestabelecer a comunhão patrimonial, designadamente reclamando do terceiro beneficiado pela disposição gratuita indevida, rectius, teria que seguir o tortuoso e aleatório percurso. Primeiro, desencadear a cessação do casamento (ou separação judicial de pessoas e bens) para alcançar os efeitos estabelecidos no artigo 1688º do CC, i.e, pôr fim às relações pessoais e patrimoniais inerentes ao vínculo conjugal, sujeitando-se a não atingir tal desiderato, v.g o divórcio não ser procedente. Segundo, alcançado a dissolução do casamento, promover a partilha do património que foi do casal. Finalmente, e, nesse exclusivo tempo e sede, não contando com a restituição espontânea pelo ex-cônjuge do que alienou indevidamente da massa patrimonial comum, reclamar do terceiro beneficiado a restituição. Abrindo-se então, a sub questão, de o diferendo não ser decidido na partilha/inventário e quedar-se para resolução em outra e autónoma discussão judicial. Por último, acerca da aventada dificuldade dos recorrentes no cumprimento da sentença- restituição ao património comum- sempre seria, afinal igual à que se verificaria se procrastinassem a questão para a partilha de bens do casal, pois por efeito da anulação do acto de disposição não consentido, a devolução do assim percebido pelos ora recorrentes sempre se faria por imputação ao património comum. A narrativa deste quadro hipotético surpreende face à perfeição do sistema jurídico, e, não aparenta ter suporte legal, pelo que, s.d.r., não se acompanha os apelantes. Ao que se extrai da interpretação do disposto no artigo 1687.º, n.ºs 1 e nº2 do Código Civil ( os elementos literal, sistemático e teleológico a tal conduzem), qualquer dos cônjuges(ou os seus herdeiros) pode exercer o direito de proteger bens próprios ou comuns perante o outro consorte que dispôs/onerou unilateralmente, à margem dos limites estabelecidos( nos artigos 1682, nº1 e nº3, 1682ºA, 1682ºB e 1683 do CC) e sem o seu consentimento, pedindo a anulação do respectivo negócio, no prazo de seis meses subsequentes à data em que teve conhecimento do acto, mas nunca depois de três anos sobre a sua celebração. Resultou assente e os recorrentes não questionam, que as quantias monetárias de que beneficiaram sem causa, a título gratuito em resultado das movimentações/transferências da conta bancária que a Ré F... empreendeu, ocorreram na constância do matrimónio e sem o consentimento do Autor, decidido ainda pela 1ªinstância (e aceite pelos apelantes) que corresponderam a actos de administração extraordinária do património comum,( ultrapassado o diferendo de que os valores constituíam património comum nos termos do artigo 1724 b) do CC) e, como tal tem que ser restituídos àquela massa patrimonial e ainda não partilhada, dando procedência ao pedido (subsidiário) do Autor. Quanto à Ré F..., ora ex-cônjuge do A, e a reconvenção da mesma, decidiu o Tribunal a quo, absolvê-la da instância, quanto a distintos valores reclamados, posto que entre cônjuges, a questão há-de colocar-se, aí sim, aquando da partilha de bens e na sede própria (com a autoridade do caso julgado que se consolidar nos presentes autos) e por aplicação do princípio da indissociabilidade do património conjugal que emerge do disposto no artigo 1688º do Código Civil. Em adverso ao que argumentam os apelantes, o enquadramento sancionatório específico previsto no artigo 1687º do Código Civil aplicável na relação interna dos esposados (e seus herdeiros), não excluiu, nem contende, com as relações emergentes entre o cônjuge defraudado e os terceiros que, beneficiaram gratuitamente do património comum do casal, mediante acto de disposição unilateral ilegítimo pelo outro consorte. Neste domínio, justifica-se, por conseguinte, o funcionamento do regime sancionatório da compropriedade respeitante à alienação/doação de bens alheios (artigo 956º CC) prevenido no artigo 1408, nº2 do Código Civil, aplicável com as devidas adaptações e por extensão à comunhão conjugal, enquanto comunhão patrimonial, por força do disposto no artigo 1404º do Código Civil. Prevenindo alguma margem de dúvida , ditada pela especificidade da comunhão patrimonial conjugal e a circunstância de o legislador consignar o regime de anulabilidade (e não nulidade) dos actos de disposição dos cônjuges contrários ao regime de bens, conforme o disposto nos n.ºs 1 a 3 do art.º 1687.º do Código Civil, caso então que, não restaria outra hipótese ao consorte lesado, senão demandar o terceiro beneficiado no prazo curto –seis meses –após conhecimento do acto de disposição. Sublinhe-se que, todavia, o pedido (subsidiário) do A. dirigido aos recorrentes e ao qual a sentença deu procedência, não diz respeito a um qualquer bem ou coisa certa do património conjugal, mas, outrossim, que os RR. restituam /restaurem o património comum, na medida em que a Ré F... esvaziou aquele património comum, sem o seu consentimento; património que somente com a partilha subsequente ao divórcio se irá concretizar em bens certos e determinados, mas isso é questão do exclusivo interesse individual de cada um dos ex-cônjuges.[11] Por outro lado, seguindo a hipótese do raciocínio dos apelantes, também no caso em juízo, de acordo com os factos provados, o A. demandou os RR. (13.07.2017) dentro dos referidos seis meses, sendo certo que não foi arguida a caducidade da acção. [12] Acerca do argumento residual dos apelantes - a boa fé na aquisição dos valores - e a exclusão da anulação dos actos de disposição da Ré F... por aplicação do disposto no artigo 1687º, nº3 do Código Civil. Acontece que, ficou provado que todos os RR. apelantes sabiam que o dinheiro prodigalizado pela Ré F... o fora sem o conhecimento e consentimento do A. De resto, no contexto factual dos autos, em que as partes envolvidas são familiares directos, filhos e cônjuges da 1ª Ré e, sobretudo sabendo os recorrentes que a fonte/origem do dinheiro de grande vulto, proveniente do prémio do euro milhões, na constância do matrimónio do A e Ré, o juízo do homem médio determinaria que duvidassem da liberdade da Ré para dele dispor por mote próprio e exclusivo. Prosseguindo os passos da linha argumentativa dos apelantes, a questão das transferências bancárias terá que ser colocada em sede de uma eventual e futura partilha do património comum do casal e nunca em sede de uma acção declarativa de condenação, como é o caso do presente acção. Interrogamo-nos, mas, então o que muda? A única resposta que divisamos é a da eternização e alea na efectiva restituição ao património comum dos valores bancários indevidamente alienados, do exclusivo e natural interesse dos terceiros beneficiários, que não se compagina com o regime legal dos direitos e deveres dos cônjuges em relação ao património comum, e de modo expressivo, bole com os princípios gerais do direito, mormente o da proibição do enriquecimento sem causa à custa alheia, da equidade e da justiça material. Não menos relevante, no caso dos autos, e a admitir-se tal quadro processual e temporal indeterminado, a natureza volátil e de fácil dissipação dos bens desintegrados, sem a sequela dos bens imóveis, anuncia o insucesso da respectiva restituição ao património comum do casal. Para concluirmos que, a aplicação na sentença recorrida dos efeitos estabelecidos nas disposições conjugadas dos artigos 956º, 1404º e 1408º, nº2 do Código Civil, se mostra acertada e consentânea à solução do caso sub judice, pelas razões que se sintetizam: - A aplicação do prevenido no artigo 1682º do Código Civil diz respeito à definição do vício que afecta tal acto de disposição, e em consequência dessa “ilegitimidade conjugal”, passível de anulabilidade a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento ou dos seus herdeiros (artigo 1687.º CC). - A aplicação (avisada) e o funcionamento, com as devidas adaptações, de certos aspectos do regime da compropriedade à situação de comunhão patrimonial conjugal, enquanto forma específica de “comunhão”, não excluída por norma própria, está contemplada no artigo 1484º do Código Civil, sob a epígrafe “Aplicação ds regras de compropriedade a outras formas de comunhão”. - Não se descortina inidoneidade da forma processual eleita pelo Autor, que em tempo oportuno implicasse a absolvição da instância dos RR apelantes, não ocorrendo impossibilidade substantiva, quanto à realização da sua pretensão de restituição ao património comum; - Vigorando nas relações internas entre os cônjuges quanto à disposição unilateral dos bens do património comum, o princípio da indivisibilidade do património comum e até à cessação do casamento e consequente partilha, [13] semelhante limitação não ocorre, na situação em que o cônjuge desautorizado e lesado pelo acto do consorte sobre o património comum, pretenda, desde logo, que o património comum seja restituído/restaurado pelos terceiros adquirentes da alienação não consentida. - Apesar da fixação da data da cessação da coabitação para a produção dos efeitos patrimoniais do divórcio, os bens comuns conservam esta sua característica até à efectivação da partilha, em ordem à fixação da meação de cada um.[14] Finalmente, a prática judiciária demonstra e a doutrina mais recente veicula, que dada a contitularidade de direitos existente na comunhão patrimonial conjugal, não existem razões de princípio para excluir a aplicação do regime de compropriedade e da comunhão, em certos segmentos até lacunosos, permitindo a sua aproximação a determinados aspectos do regime da compropriedade e da comunhão.[15] Em face do que se explicitou, soçobram as alegações/conclusões dos apelantes, concluindo-se que a sentença fez adequada aplicação do direito no caso, acompanhando-se o sentido da interpretação dos dispositivos legais subjacentes. II.–DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, e em consequência, decidem manter o julgado de primeira instância. As custas do recurso são a cargo dos recorrentes que nele decaíram. Lisboa, 12 de Outubro de 2021 ISABEL SALGADO CONCEIÇÃO SAAVEDRA CRISTINA COELHO [1]Com aproveitamento do Relatório da sentença recorrida. [2]Os quais se estendem para além da cessação do casamento e até que se realize a partilha, e que, até são convocados em situação de inexistência do vínculo legal do casamento, como é o caso da união de facto. [3]Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 1972, pag.289.Na explicitação/densificação da distinção entre uns e outros, Castro Mendes define a administração extraordinária e de actos de disposição, como “aqueles com que se diminui o património, ou se altera anormalmente a composição deste”, quanto à forma (por modo não correspondente à função normal desse património, como a doação), e quanto ao objecto (por incidir sobre elementos estáveis do património, cuja utilização não pressupõe a sua alienação)”, in Direito Civil, Teoria Geral, Volume II, edição da AAFDL, 1979, pág. 84 e 91. [4]Cfr. A. Santos Justo in Direitos Reais, 3.ª edição, Coimbra Editora, páginas 303 e 304. [5]Cf. Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 1972, páginas 315 e 316.; na mesma linha, também Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 349. [6]Inter alia Pereira Coelho in Curso de Direito da Família, pág. 425 e Leite de Campos in Lições de Direito da Família, 2ª ed., pág. 398. [7]Cf. entre outros Pires de Lima e A. Varela in obra já citada pág. 350.; e Elsa Sequeira in Da contitularidade de direitos no Direito Civil – Contributo para a sua análise morfológica, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, pp. 401-406, apud, Rita Lobo Xavier DIVÓRCIO, O REGIME DE BENS E A PARTILHA DO PATRIMÓNIO CONJUGAL, in Jornadas de III JORNADAS DE DIREITO DA FAMÍLIA E DAS CRIANÇAS diálogo teórico-prático – e-book OA e CEJ. [8]Cfr. Rita Lobo Xavier in publicação já citada. [9]Daí que, como é pacífico na doutrina e jurisprudência, conclui que não podem ser arrestados bens incluídos no património comum do casal. que explica, como se viu na nota anterior, que o direito à meação do ex-cônjuge seja suscetível de penhora, mas os concretos bens não sejam suscetíveis de apreensão por arresto. [10]Aos actos dos cônjuges não se aplica o regime geral da nulidade e anulabilidade, mas sim o Os n.ºs 1 a 3 do art.º 1687.º do Código Civil, pressupõem negócios não feridos de nulidade, ou seja, respeitam a negócios cujo vício é a omissão de um determinado consentimento-cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra Editora, 1976, pág. 471) regime especial de invalidade regulado no art.º 1687.º do Código Civil. Devem ser remetidas para os meios comuns as questões incidentais que não possam ser decididas em sede de inventário sem redução das garantias das partes e de “forma sumária”, com a simplicidade da prova a produzir, a facilidade da decisão a proferir e da questão a apreciar. [11]Observe-se que, os terceiros (legatários, donatários e credores) são chamados ao processo só porque interessa à afinação da partilha dirimir certas questões que também lhes dizem respeito, mas a falta do inventário não os prejudica. - Cfr, Simões Pereira in Processo de Inventário e Partilhas. [12]Provado que, o Autor apenas teve conhecimento dos factos “alguns meses” de depois da separação do casal que de acordo com a sentença de divórcio se fixou em 31.03.2016.) [13]O que determinou na sentença recorrida a absolvição da instância da Ré F e do A. da reconvenção (prevalência do regime substantivo dos efeitos patrimoniais do casamento), e sem prejuízo do uso antecipado da acção de anulação do negócio prevista no artigo 1682º CC). [14]Sendo que o património comum conjugal do A e Ré F não foi ainda, de acordo com o que consta dos autos, objecto de partilha. [15]Cfr. Rita Lobo Xavier no e-book já citado, discorrendo «os bens comuns constituem uma massa patrimonial separada, com uma relativa autonomia, numa situação de indivisão, mesmo após o divórcio. Trata-se de uma contitularidade de direitos de propriedade que não incide diretamente sobre cada uma das coisas integradas no património comum e que tem muitas similitudes com a que existe na situação de indivisão hereditária. Do meu ponto de vista, o regime aplicável a tal situação dependerá do problema que, em concreto, se colocar13. Por exemplo, quando se indaga o regime aplicável ao exercício dos poderes de administração e ao uso dos bens comuns, tendo em conta a situação concreta dos cônjuges, não me parece adequada a aplicação das disposições relativas à administração da herança e que, grosso modo, apontam para que a administração ordinária caiba ao cônjuge mais velho, a título de cabeça de casal, nos restantes casos, só podendo ser exercidos os direitos por ambos (artigos 2080.º e ss. e artigo 2091.º, todos do CC). Penso, por exemplo, que deve ter-se em consideração o disposto no artigo 1404.º do CC (aplicação das regras da compropriedade a outras formas de comunhão) e, nessa medida, nos termos do artigo 1406.º do CC, “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comuneiros é lícito servir-se dela, contanto que não a empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”. Aliás, a doutrina mais recente tem salientado não existirem objeções de princípio à aproximação de certos aspetos do regime da compropriedade e da comunhão, ambas situações de contitularidade de direitos. |