Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
489/21.4T8TVD.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) A prova tem por função a demonstração da realidade dos factos (cfr. artigo 341.º do Código Civil), e para esse efeito, o que releva e é exigível, no âmbito da prova sujeita à livre apreciação do julgador, é que o juiz forme a sua convicção assente na certeza relativa do facto, devendo existir um alto grau de probabilidade da sua verificação.
II) A prova não visa obter a certeza absoluta de um facto histórico, mas sim, um grau de convicção que se reconduz à certeza relativa do facto, que se baste para ocorrer às necessidades da vida em sociedade.
III) A prova do pagamento de uma transferência bancária não tem, imperiosamente, que ser efetuada pela junção do comprovativo bancário da mesma, podendo a convicção advir ao Tribunal em face de outros meios de prova – documentais ou pessoais - que gerem um elevado patamar de convencimento no julgador, no sentido de que tal transferência teve efetivamente lugar.
IV) No exercício do direito de regresso da seguradora contra os corresponsáveis em relação à indemnização paga por aquela aos lesados, em conformidade com o previsto no artigo 27.º do D.L. n.º 291/2007, de 21 de agosto, cabe-lhe demonstrar os factos que, segundo a norma substantiva aplicável servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido, competindo ao demandado demonstrar, para eximir-se de tal obrigação, que a autora pagou mais do que o devido, ou, o que não era devido.
V) Considerando a data do último pagamento efetuado à lesada – 11-01-2018 – na data de interposição em juízo da presente ação – 18-03-2021 – não se encontrava decorrido o prazo prescricional de 3 anos (sendo que, entre 12-01-2018 – cfr. artigo 279.º, al. b) do CC – e 12-01-2020, decorreram 2 anos; entre esta data e 09-03-2020 decorreram 26 dias; e entre 02-06-2020 e 21-01-2021 decorreram mais 232 dias), atento que, por força do disposto nos artigos 7.º, n.ºs. 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, na Lei n.º 16/2020, de 29 de maio e no artigo 6.º-B, n.ºs. 3 e 4, aditados à Lei n.º 1-A/2020, pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, entre o período de 09-03-2020 e 02-06-2020 e desde 22-01-2021 – situação que se mantinha na data de instauração da ação - o prazo prescricional ficou suspenso, com o correspondente alargamento no prazo prescricional a considerar, do tempo de suspensão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
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1. FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., identificada nos autos, instaurou a ação declarativa, com processo comum, contra AF, também com os sinais dos autos, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 18.910,52, acrescida de juros vincendos desde a citação até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que:
- No exercício da sua atividade, e por força do contrato de seguro celebrado com o réu, titulado pela apólice n.º …, aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo quadriciclo de marca Ligier, modelo XT00 Max com a matrícula …-…-…, contrato de seguro que se encontrava em vigor à data do acidente em que o referido veículo esteve envolvido, em 09-07-2017, e que, não obstante das Condições Gerais da apólice não resultar excluída a responsabilidade civil da seguradora no caso de o veículo ser conduzido por pessoa sob influência de álcool, a ocorrência de tal situação confere à seguradora, o direito de regresso contra o condutor pelas importâncias despendidas em consequência do acidente;
- No dia 09-07-2017, pelas 20h30m, na Rua …, Campelos, Torres Vedras, Lisboa ocorreu um acidente de viação, tendo sido intervenientes o veículo seguro pela autora, e conduzido pelo réu, com a matrícula …-…-…, e o ciclomotor de matrícula …-…-…, propriedade de JO e por este conduzido, e que o réu circulava na rua em direção à rotunda de Casais do Rijo, e quando se aproximou da referida rotunda, não imobilizou a viatura que conduzia, avançou e invadiu faixa de rodagem da rotunda onde já se encontrava o veículo de matrícula …-…-…, que já tinha passado a primeira saída (com a Rua …), e que pretendia seguir em direção a Cabeça Gorda, dando-se a colisão entre os dois veículos, embate que se verificou entre a traseira do veículo …-…-…, com a parte frontal esquerda do veículo de matrícula …-…-…;
- Em consequência do embate, o veículo …-…-… caiu imediatamente na via por onde circulava, assim como o seu condutor, JO e a passageira RR, e nessa ocasião o R. conduzia com uma taxa de álcool no sangue (T.A.S.) de 0,91 g/l.;
- Em consequência do embate, o veículo … sofreu danos que se quantificaram em € 154,40, e o condutor e a passageira do veículo sofreram danos corporais tendo sido transportados para o Hospital de Torres Vedras, onde lhes foram prestados os respetivos cuidados e assistência médica, sendo que JO, ficou incapacitado para o exercício da sua profissão por um período de cerca de 90 (noventa) dias, onde teve necessidade de auxílio de terceira pessoa, tendo a A. pago a este a quantia de € 15.787,63 e pela assistência médica e medicamentosa, liquidou a quantia de € 2.860,00;
- Relativamente a RR, que também teve necessidade de cuidados médicos, despendeu a quantia de € 108,41.
Concluiu, referindo que tem direito ao reembolso por parte do réu do montante de € 18.910,52.
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2. O réu contestou, alegando, em síntese, que a A. não junta qualquer prova de pagamento com a data de 22 de agosto de 2020, pelo que, ocorreu o prazo de prescrição previsto nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do artigo 498º do Código Civil, encontrando-se o direito da A. prescrito.
Mais refere que o piso não estava em bom estado, e que o valor que a A. refere ter pago não resulta dos documentos juntos, e que após o acidente os sinistrados sempre se movimentaram bem circulando na rua e em espaços públicos pelos próprios pés, e que a causa do acidente não se deveu à condução sob o efeito do álcool, e que o motivo do descontrolo da condução do veículo, além, do mau estado do piso, foi derivado ao sol que bateu diretamente nos olhos do R. e o encandeou, pois o seu sentido de marcha coincidia com o pôr do sol, que conduzia em segurança, não fosse o sol que lhe bateu de repente nos olhos e o encadeou.
Conclui pedindo a sua absolvição dos pedidos.
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3. Notificada, a autora veio exercer o direito ao contraditório quanto à exceção invocada, alegando, em síntese, que a ação é tempestiva, atenta a legislação covid que determinou a suspensão dos prazos, e uma vez que os factos em causa configuram a prática de um crime, sendo o prazo de prescrição de cinco anos, e que só com o último pagamento é que a autora soube qual o montante total despendido com a regularização do sinistro, pelo que a exceção deverá ser julgada improcedente.
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4. Foi dispensada audiência prévia e proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
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5. Procedeu-se a julgamento com produção probatória, após o que, em 14-02-2023 foi proferida sentença condenando o réu no pagamento à autora da quantia de € 18.905,96, acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, vencidos e vincendos desde a citação – 14-04-2021 – até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.
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6. Não se conformando com a referida decisão, dela apela o réu, pugnando pela sua revogação e sua substituição por outra que o absolva do pedido, tendo formulado as seguintes conclusões:
“I. O presente recurso é tempestivo e tem por objeto a reapreciação da prova gravada pretendendo o recorrente impugnar a decisão sobre a matéria de facto e sobre a matéria de direito.
II. O recorrente não concorda com a sentença proferida que o condenou a pagar à recorrida a quantia total de € 18.905,96 (dezoito mil novecentos e cinco euros e noventa e seis cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal em vigor, vencidos e vincendos desde a data da citação, 14/04/2021, até integral pagamento.
III. Entende o recorrente, que tribunal a quo não podia concluir que à data da entrada da petição inicial, em 18/03/2021, ainda não haviam decorrido os 3 anos de prescrição, e que não se verifica a prescrição invocada pelo R..
IV. A prova documental e testemunhal produzida contraria os factos 15, 16 e 17 dados como provados na sentença ora recorrida.
V. Nenhum dos documentos juntos na petição inicial com os números 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 produz qualquer prova de pagamento, dos quais não se consegue concluir com toda a certeza, nem as datas, nem os montantes, nem o modo de pagamento efetivo.
VI. A recorrida não faz prova do último pagamento efetuado.
VII. Resulta da prova testemunhal que a última consulta medicado lesado ocorreu em Dezembro de 2017.
VIII. Analisada devidamente toda a prova testemunhal produzida, dúvidas não restam que o início do prazo de prescrição, terá ocorrido em 20-01-2018, portanto, quando a ação deu entrada em 18-03-2021, já havia decorrido o prazo de prescrição.
IX. E, a prescrição é uma exceção perentória que importa a absolvição total do pedido formulado pela A. nos termos do disposto no artigo 576º, nº 3 e 579º do CPC, o que se requer a V. Exa. seja declarado.
Ainda que assim não se entenda, e por dever de patrocínio, sempre se dirá:
X. Entende o ora recorrente que decidiu mal o Tribunal quo pois não podem ser dados como provados os pontos 15, 16 e 17 da sentença, porquanto a recorrida não fez prova cabal das despesas médicas e medicamentosas efetivamente pagas, nem dos valores pagos a título de indemnização.
XI. Da prova testemunhal apenas resulta que todas as despesas advenientes do sinistro foram pagas pela seguradora, ora recorrida, mas não se conclui com certeza quanto, como, nem quando foram efetuados os pagamentos das despesas alegadas pela recorrida.
XII. Quantos aos danos não patrimoniais, cabia à recorrida alegar e fundamentar como concluiu atribuir ao lesado JO a quantia de 2.500,00€ pela hospitalização, 3.587,20€ pelo dano biológico, 5.799,90€ pelo dano moral e 3.900,53€ pelo período de incapacidade temporária, num total de 15.787,63€, o que não fez.
XIII. Não foi junta qualquer prova pela recorrida dos parâmetros necessários para concluir pela justeza do valor a atribuir pela hospitalização, dano biológico, dano moral e incapacidade temporária.
XIV. O quantum da indemnização por danos não patrimoniais deve visar propiciar adequada compensação quanto ao dano sofrido, com fixação equilibrada e ponderada, de acordo com critérios de equidade, tendo em conta os padrões jurisprudenciais atualizados.
XV. Da prova testemunhal produzida pelas testemunhas JO e RR, atentos os danos sofridos pelo lesado JO, comparando com os usos em casos semelhantes, a indemnização mostra-se completamente injustificada e desproporcional.
XVI. Por tudo o supra exposto, deve o recorrente ser absolvido do pedido formulado pela recorrida”.
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7. A recorrida contra-alegou concluindo pela improcedência da apelação.
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8. O recurso foi liminarmente admitido, por despacho proferido em 28-06-2021.
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9. Foram colhidos os vistos legais.
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2. Questões a decidir:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
Em face do exposto, identificam-se as seguintes questões a decidir:
I) Impugnação da decisão de facto:
A) Se os factos 15), 16) e 17) -dados como provados na sentença recorrida - devem ser dados como não provados?
II) Impugnação da decisão de direito:
B) Se a exceção de prescrição deveria ter sido julgada procedente?
C) Se a decisão recorrida - de condenação do réu no pagamento à autora da quantia de € 18.905,96, acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, vencidos e vincendos desde a citação – 14-04-2021 – até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado – deve ser revogada?
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3. Fundamentação de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. A A. tem objeto a atividade seguradora.
2. No exercício da sua atividade a A. celebrou com o R. um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que tinha como objeto seguro o veículo quadriciclo de marca Ligier, modelo XT00 Max com a matrícula …-…-…, titulado pela apólice n° …, cujas condições se encontram juntas aos autos e cujo teor se dá por reproduzido.
3. No dia 9 de julho de 2017 o contrato referido em 2. encontrava-se em vigor.
4. No dia 09 de julho de 2017, pelas 20h30m, na Rua …, Torres Vedras, Lisboa ocorreu um acidente de viação, onde foram intervenientes o veículo automóvel de matrícula …-…-…, conduzido pelo R., e o veículo ciclomotor de marca Peugeot, modelo Speed Flight, com a matrícula …-…-…, propriedade de JO e por este conduzido.
5. No referido dia e hora, o R. circulava na Rua …, em direção à rotunda de Casais do Rijo, no entanto quando se aproximou da referida rotunda, não imobilizou a viatura que conduzia, tendo avançado com o veículo e invadido a faixa de rodagem da rotunda onde já se encontrava a circular o veículo de matrícula …-…-…, que já tinha passado a primeira saída (com a Rua …), e que pretendia seguir em direção a Cabeça Gorda.
6. Em consequência do referido em 5. o veículo de matrícula …-…-… embateu com a sua parte frontal esquerda na traseira do veículo com a matrícula …-…-….
7. Em consequência do embate, o veículo de matrícula …-…-… caiu imediatamente na via por onde circulava, assim como o seu condutor, JO e a passageira RR.
8. No dia e hora referidos em 4. era de dia, existia boa luminosidade e estava bom tempo, e o piso era em asfalto betuminoso e estava seco.
9. Os condutores dos veículos, o R. AF e JO submetidos ao teste de pesquisa de álcool no sangue e o R. AF acusou uma taxa de álcool de 0,91g/l.
10. Em consequência do embate o veículo de matrícula …-…-… sofreu vários danos, tendo sido necessário proceder à substituição de várias peças, como amortecedor, rolamentos e óleo da caixa, cuja reparação teve o custo de € 149,92, quantia que foi paga pela A. em 25/10/2017.
11. Em consequência do embate JO e RR sofreram danos corporais, tendo sido assistidos no Hospital de Torres Vedras, para onde forma transportados de ambulância, onde lhes foram prestados os respetivos cuidados e assistência médica.
12. Em consequência do embate JO fraturou os ossos da perna esquerda, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica.
13. Em consequência das lesões sofridas JO esteve incapacitado para o exercício da atividade a que se dedicava, agricultura de subsistência, durante cerca de 6 meses, tendo necessitado do auxílio de terceira pessoa para o exercício das atividades da vida diária, como vestir-se e fazer a higiene.
14. Em consequência das lesões sofridas, e no primeiro mês após o acidente, JO necessitou de ajuda permanente de terceira pessoa, que foi prestada por RR, sua companheira, que permaneceu esse mês sem trabalhar, a fim de prestar essa assistência, pois não conseguia deslocar-se sozinho.
15. A A. pagou as seguintes quantias a JO a título de indemnização: pela hospitalização - € 2.500,00, pelo dano biológico - € 3.587,20, pelo dano moral - € 5.799,90 e pelo período de incapacidade temporária - € 3.900,53, no total de € 15.787,63 (quinze mil setecentos e oitenta e sete euros e sessenta e três cêntimos), quantia que foi paga, mediante transferência bancária, no dia 20 de janeiro de 2018.
16. Pela assistência prestada a JO, e ajuda de terceira pessoa pelo período de 30 dias, a A. liquidou a quantia total de € 2.860,00 (dois mil oitocentos e sessenta euros), relativa a despesas médicas e medicamentosas, despesas de transporte, auxílio de terceira pessoa, quantias essas pagas, respetivamente, em:
- 25/08/2017 no valor de € 88,15 - a título de despesas hospitalares e médicas;
- 30/09/2017 no valor de € 104,72 - a título de despesas de transporte;
- 10/10/2017 no valor de € 638,78 - auxílio de terceira pessoa pelo período de 30 dias;
- 14/11/2017 no valor de € 154,40 - a título de despesas hospitalares;
- 07/12/2017 no valor de € 6,00 - a título de despesas hospitalares;
- 06/07/2018 no valor de € 1.809,95 - a título de despesas hospitalares;
- 14/08/2018 no valor de € 31,00 - a título de despesas hospitalares;
- 22/08/2020 no valor de € 27,00 - a título de despesas hospitalares.
17. Em consequência do embate RR teve necessidade de cuidados médicos, uma vez que sofreu escoriações e teve que ser suturada no cotovelo esquerdo, tendo a A. pago a quantia total de € 108,41 (cento e oito euros e quarenta e um cêntimos), ao Centro Hospitalar Oeste, para pagamento de despesas hospitalares e despesas médicas, em 07/12/2017, o valor de € 100,41, e 11/01/2018, o valor de € 8,00.
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. Aquando do acidente o piso encontrava-se em bom estado de conservação.
2. Na aproximação da rotunda existia sinalização vertical B1.
3. A A. enviou ao R. cartas, em 10 de maio de 2018 e 17 de abril de 2020, imputando-lhe a exclusiva responsabilidade da produção do sinistro e interpelando-o para reembolsar as despesas que a A. teve de suportar.
4. O motivo do descontrolo do veículo de matrícula …-…-… deveu-se ao mau estado do piso e ao sol que embateu diretamente nos olhos do R. e o encadeou.
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4. Fundamentação de Direito:
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I) Impugnação da decisão de facto:
Nas conclusões recursórias (cfr., em particular, pontos I. e IV. a XI.), a apelante conclui que os pontos 15, 16 e 17 da sentença recorrida – dados por provados nesta – não podem ser dados como provados.
A recorrente pretende, assim, colocar em crise a matéria de facto selecionada pelo Tribunal recorrido.
Prescreve o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No que toca à especificação dos meios probatórios, “quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efetivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Pº nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, rel. ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no artigo 639.º, n.º 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, rel. MANUEL BARGADO).
A cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso»), não funciona automaticamente, devendo o Tribunal, se se patentear a falta de indicação das passagens exatas da gravação, a convidar o recorrente a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (cfr. Ac. do STJ de 26-05-2015, P.º n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do artigo 640.º (de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exatidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
De todo o modo, ao invés, a apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um ato inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Ora, no presente caso, consta das alegações do apelante, quer os concretos pontos de facto a que se dirige a sua impugnação, bem como, a decisão que, em concreto, deveria ser proferida, em alternativa à tomada, constando, igualmente, indicados os meios de prova que, em seu entender, justificam uma tal decisão.
No caso, sobre os pontos referenciados, o impugnante não deixou de concretizar as respetivas motivações impugnatórias, observando os ónus impugnatórios contidos no artigo 640.º do CPC.
Cumpre, pois, apreciar os pontos objeto da impugnação de facto.
*
A) Se os factos 15), 16) e 17) -dados como provados na sentença recorrida - devem ser dados como não provados?
Especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que “o recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, rel. MARIA JOÃO MATOS).
O artigo 607.º, n.º 4, do CPC impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
“A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS).
Lebre de Freitas (A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil, 3.ª ed., p. 315) refere, a este respeito, que: “No novo código, a sentença engloba a decisão de facto, e já não apenas a decisão de direito. Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art. 607, n.º 4, 1.ª parte, e 5) ”.
Conforme se sublinhou no já citado Acórdão do STJ de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS): “Sendo os temas da prova enunciados de maneira sucinta, ainda que pressuponham ampla matéria de facto, a exigência de fundamentação desta justifica-se, de modo mais acentuado, porquanto não acontece, como no passado, quando a análise da peça processual onde se respondia aos quesitos permitia, em regra, saber de modo discriminado (os quesitos eram enumerados) o que tinha ficado provado e não provado e a fundamentação, que sempre se reputou não ter que ser exaustiva, mas devendo dar a conhecer os meios de prova em que acentuou a convicção quanto à prova submetida a julgamento”.
Por seu turno, refere Francisco Manuel Lucas de Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, pp. 350-351) que: “A estatuição do citado nº4 do art- 607º (1º- segmento) é, contudo, meramente indicadora ou programática, não obrigando o tribunal a descrever de modo exaustivo o iter lógico-racional da apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e a razão da sua eficácia em termos de resultado probatório. Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio. Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança […].Não impõe, contudo, a lei que a fundamentação das conclusões fácticas decisórias seja indicada separadamente por cada um dos factos, isolada e autonomamente considerado (podendo sê-lo por conjuntos ou blocos de factos sobre os quais a testemunha se haja pronunciado)”.
Conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020 (Pº 258/18.9T8PNF-A.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA): “Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção); Havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova formulados, densificados pelos respetivos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) –v. arts 410º, do CPC e 341º e seguintes, do Código Civil e, ainda, artigo 5º, daquele diploma legal”.
Nesta linha é, pois, crucial que seja feita a indicação e especificação dos factos provados e não provados e a indicação dos fundamentos por que o Tribunal formou a sua convicção acerca de cada facto que estava em apreciação e julgamento, de acordo com os temas da prova fixados.
Conforme referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436), para que um facto – sujeito a livre apreciação do julgador - se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.
Essa certeza subjetiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
Importa considerar que, em termos substanciais, a impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância, procurando-se que a Relação reaprecie e repondere os elementos probatórios produzidos, averiguando se a decisão da primeira instância relativa aos pontos de facto impugnados se mostra conforme às regras e princípios do direito probatório, impondo-se se proceda à apreciação não só da valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios, da sua consistência e coerência, à luz das regras da normalidade e da experiência da vida, mas também da sua valia extrínseca, ou seja, da sua consistência e compatibilidade com os demais elementos.
Como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 127): “Consistindo o processo jurisdicional num conjunto não arbitrário de actos jurídicos ordenados em função de determinados fins, as partes devem deduzir os meios necessários para fazer valer os seus direitos na altura/fase própria, sob pena de sofrerem as consequências da sua inactividade, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, poderes, faculdades, deveres, cominações e preclusões”.
Assim, ressalvadas as modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido que, de motu proprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova sujeitos a livre apreciação e valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova.
Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar, desde logo, o que o recorrente - no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto - indicou nas respetivas alegações e cujo âmbito tem a função de delimitar o objeto do recurso.
De facto, a função da Relação não é a de realizar um novo julgamento de facto: “Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017, Processo 1426/15.0T8BGC-A.G1, relator ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA).
Neste sentido, “não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de quaisquer factos e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental e pericial que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância na apreciação dessas provas. O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este. Em caso de dúvida sobre o sentido da decisão, face às provas que lhe são apresentadas, a 2ª instância deve fazer prevalecer a decisão da 1ª instância, em homenagem à livre convicção e liberdade de julgamento. A garantia do duplo grau de jurisdição em caso algum pode subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto e, por isso, o objecto do recurso não pode ser nem a liberdade de apreciação das provas, nem a convicção que presidiu à matéria de facto, mas esta própria decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2011, Processo 334/07.3TBASL.E1, relatora MARIA ALEXANDRA A. MOURA SANTOS).
É que, na verdade, como escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 234): “… existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador. O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiamo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos”.
Em suma: Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que a prova pessoal produzida se pronuncie sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida.
Aplicando estas considerações à impugnação de facto em questão, importa referir que contesta o recorrente o julgamento efetuado pelo Tribunal recorrido acerca dos factos dados como provados nos pontos 15), 16) e 17), matéria que entende deveria transitar para os factos não provados.
Nos referidos pontos, o Tribunal recorrido considerou provada a seguinte factualidade referente a pagamentos de valores aos lesados no acidente dos autos:
“15. A A. pagou as seguintes quantias a JO a título de indemnização: pela hospitalização - € 2.500,00, pelo dano biológico - € 3.587,20, pelo dano moral - € 5.799,90 e pelo período de incapacidade temporária - € 3.900,53, no total de € 15.787,63 (quinze mil setecentos e oitenta e sete euros e sessenta e três cêntimos), quantia que foi paga, mediante transferência bancária, no dia 20 de janeiro de 2018.
16. Pela assistência prestada a JO, e ajuda de terceira pessoa pelo período de 30 dias, a A. liquidou a quantia total de € 2.860,00 (dois mil oitocentos e sessenta euros), relativa a despesas médicas e medicamentosas, despesas de transporte, auxílio de terceira pessoa, quantias essas pagas, respetivamente, em:
- 25/08/2017 no valor de € 88,15 - a título de despesas hospitalares e médicas;
- 30/09/2017 no valor de € 104,72 - a título de despesas de transporte;
- 10/10/2017 no valor de € 638,78 - auxílio de terceira pessoa pelo período de 30 dias;
- 14/11/2017 no valor de € 154,40 - a título de despesas hospitalares;
- 07/12/2017 no valor de € 6,00 - a título de despesas hospitalares;
- 06/07/2018 no valor de € 1.809,95 - a título de despesas hospitalares;
- 14/08/2018 no valor de € 31,00 - a título de despesas hospitalares;
- 22/08/2020 no valor de € 27,00 - a título de despesas hospitalares.
17. Em consequência do embate RR teve necessidade de cuidados médicos, uma vez que sofreu escoriações e teve que ser suturada no cotovelo esquerdo, tendo a A. pago a quantia total de € 108,41 (cento e oito euros e quarenta e um cêntimos), ao Centro Hospitalar Oeste, para pagamento de despesas hospitalares e despesas médicas, em 07/12/2017, o valor de € 100,41, e 11/01/2018, o valor de € 8,00.”.
Entende a recorrente que tal matéria não resultou demonstrada, convocando, para o efeito e em suma, a seguinte argumentação:
- Que “a recorrida não juntou prova de que fez uma transferência para a Hospital CUF em 22/08/2020 como alega no art. 1.° da p. i., nem tal é credível atenta a data do acidente e a data da última consulta do lesado no hospital em Dezembro de 2017” (ponto 8 da alegação);
- Que os documentos juntos com a petição inicial (n.ºs. 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13) não provam o pagamento “constituindo estes meras faturas, cartas elaboradas pela autora, prints de computador designados de "modificar liquidação", e dos quais não se consegue concluir com toda a certeza, nem as datas, nem os montantes, nem o modo de pagamento efetivo”, considerando que “os pagamentos em geral quando efetuados por via bancária, provam-se através dos comprovativos de transferência bancária, cheques, comprovativos de depósitos, etc.” e que, no caso, não tendo os pagamentos sido efetuados em numerário, deveria juntar os comprovativos dos pagamentos, o que não fez (cfr. pontos 9 a 11 e 20 a 24 da alegação);
- Que o acidente ocorreu a 09-07-2017, o lesado teve a última consulta em Dezembro de 2017 – convocando, nesse sentido, nos termos que extratou, os depoimentos de JO e RR – e que o pagamento foi efetuado em final de Janeiro de 2018 (citando o depoimento de RR) ou 20-01-2018 (citando o depoimento de JLC), não resultando da prova produzida que o último pagamento ocorreu a 22-08-2020 (cfr. pontos 12 a 16 da alegação);
- Que cabia à recorrida “alegar e fundamentar como concluiu atribuir ao lesado JO a quantia de 2.500,00€ pela hospitalização, 3.587,20€ pelo dano biológico, 5.799,90€ pelo dano moral e 3.900,53€ pelo período de incapacidade temporária, num total de 15.787,63€, o que não fez” e que a indemnização no valor de 15.799,90€ mostra-se injustificada e desproporcional relativamente aos danos ocorridos no lesado” (cfr. pontos 27 e 31 da alegação).
Conforme resulta da motivação expressa na decisão recorrida, o Tribunal de 1.ª instância evidenciou ter formado positiva convicção sobre os aludidos factos provados n.ºs. 15, 16 e 17, nos seguintes termos:
“Quanto aos factos vertidos nos pontos (…) 17. (parte), resultaram da conjugação dos depoimentos das testemunhas JO e RR.
A testemunha JO foi interveniente no acidente em causa nos autos, era o condutor do ciclomotor EQ, referiu que danos corporais sofreu em consequência do acidente, que foi assistido no Hospital de Torres Vedras, foi submetido a intervenção cirúrgica, e por quanto tempo ficou incapacitado para trabalhar na atividade que praticava, agricultura de subsistência, e teve necessidade do auxílio de terceira pessoa para o exercício de algumas atividades da vida diária, e que no primeiro mês após o acidente a sua companheira ficou em casa para lhe prestar esse auxílio.
Mais referiu que a sua companheira, RR, que se deslocava no veículo consigo, também sofreu danos corporais.
A testemunha RR, companheira de JO, como já referido, que se fazia transportar no ciclomotor como passageira, referiu que lesões sofreu em consequência do acidente, e que assistência lhe foi prestada, e que lesões sofreu a testemunha JO, condutor do ciclomotor, que foi submetido a intervenção cirúrgica, e que ficou bastante tempo incapacitado.
Mais referiu que quando JO foi para casa, após alta, a testemunha ficou um mês em casa (já que trabalhava), para lhe prestar auxílio, e que aquele esteve até dezembro incapacitado para o exercício da atividade que exercia, agricultura de subsistência.
Quanto aos factos vertidos nos pontos (…) 15., 16. e 17. (parte), resultaram da conjugação dos depoimentos das testemunhas JO, RR e da testemunha JLC.
A testemunha JO referiu que em consequência do acidente o ciclomotor em que seguia sofreu danos, e foi deslocado para a oficina de ÁS, onde foi reparado, referiu que a A. pagou todas as despesas decorrentes do acidente, tendo ainda recebido uma indemnização de valor superior a € 15.000,00, o que também foi afirmado pela testemunha RR, companheira de JO, que referiu que a A. pagou todas as despesas decorrentes do acidente, incluindo a reparação do ciclomotor, e bem ainda uma indemnização ao seu companheiro JO, que terá sido paga em finais de janeiro ou início de fevereiro do ano seguinte ao do acidente, tendo ainda referido que a A. também procedeu ao pagamento das despesas médicas decorrentes das lesões que sofreu (a testemunha Rosália Maria).
A testemunha JLC referiu que a A. assumiu a responsabilidade pela reparação dos danos causados pelos sinistro em causa nos autos, por ter aceite que a responsabilidade na produção do acidente era do R., cujo veículo estava seguro na A., e procedeu a vários pagamentos nesse âmbito, referindo que os pagamentos resultam da documentação interna da A..
A testemunha referiu quais os montantes que foram pagos a JO a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais no total de € 15.787,63, tendo especificado cada uma das parcelas que totalizaram aquele montante, bem como referido os valores pagos pela A. a título de despesas diversas, referentes ao acidente em causa nos autos.
O tribunal baseou-se ainda na análise da documentação junta aos autos relativa aos pagamentos efetuados, em conjugação com o depoimento da testemunha JLC.
(…)
As testemunhas AF e RR, depuseram sobre os factos em que tiveram intervenção direta, mereceram a credibilidade do tribunal, os depoimentos ocorreram de forma isenta, sem hesitações, foi demonstrado pelos depoentes a sua razão de ciência, o primeiro conduzia o veículo interveniente no acidente e a segunda também circulava no referido veículo, como passageira, e ambos sofreram danos corporais em consequência do mesmo, os seus depoimentos foram essencialmente coincidentes e ocorreram de forma espontânea. A testemunha NP, militar da GNR, relatou os factos que constatou no exercício das suas funções quando se deslocou ao local do acidente, o tribunal não teve razões para deles duvidar.
Quanto à testemunha JLC, também mereceu credibilidade, a testemunha depôs sobre os factos de que teve conhecimento no exercício das suas funções por conta da A., tendo sido coincidente com os elementos documentais que constam dos autos.
O tribunal, como já referido, baseou-se também na análise dos documentos juntos aos autos, tudo conjugado com os depoimentos das testemunhas acima referidos.”.
Verifica-se, em face desta motivação e da reapreciação da prova produzida, que não merecem qualquer censura as conclusões alcançadas pelo Tribunal recorrido.
Efetivamente, tendo este Tribunal de recurso procedido à audição da gravação dos depoimentos testemunhais prestados nas duas sessões da audiência de julgamento realizada e conjugados tais meios de prova com os documentos carreados para os autos, em juízo de reponderação, não se encontra motivo que justifique a alteração factual nos termos pretendidos pela recorrente.
De facto, conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-05-2016 (P.º nº 1393/08.7YXLSB.L1-7, relatora MARIA AMÉLIA RIBEIRO): “É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum”.
“Importará averiguar se o tribunal “a quo” incorreu, de facto, num erro ostensivo na apreciação da prova, numa apreciação totalmente arbitrária das provas produzidas em audiência de julgamento, ignorando ou afrontando directamente as mais elementares regras da experiência, em termos de se poder dizer que existe uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04-02-2014, Processo n.º 982/10.4TVLSB.L1-1, relator RUI VOUGA).
Ora, esta demonstração, não a logrou efectuar a ora apelante.
Efetivamente, os referidos meios de prova testemunhais arrolados pela autora convergiram no sentido de que, em razão do acidente ocorrido e em que foram intervenientes as mencionadas testemunhas JO e RR, foram gerados na esfera destes os danos que foram por estes referenciados, em razão do que, para satisfação das despesas inerentes com hospitalização e outras despesas médicas e ressarcimento de outras despesas havidas, nos termos que circunstanciaram, a seguradora Fidelidade lhes pagou as quantias que referenciaram. Isso mesmo veio a ser cabalmente corroborado pela testemunha JLC, nos termos que circunstanciou, muito embora, como salientou, não teve as funções de gestor do processo.
A ocorrência dos danos e a provocação das despesas decorrentes do acidente para a esfera dos mencionados JO e RR – que também aludiram aos danos tidos no ciclomotor em que se faziam transportar no momento do acidente, bem como, a entidade que os reparou, em total consonância com o que consta dos documentos de fls. 18 a 19vº dos autos – fatura e recibo passados por ÁS – determinou, de acordo com a prova produzida, que a autora tenha satisfeito o valor correspondente, assim como, o da indemnização – a que se referem fls. 20 (documento ilegível que veio a ser junto novamente aos autos em formato legível, com o requerimento de 15-07-2022) que atribuiu.
Tudo tem correspondência com a prova documental junta aos autos – quer a participação de acidente de fls. 15 a 17 dos autos (cujo teor foi confirmado pela testemunha Nelson Pereira, que a elaborou), quanto ao evento danoso ocorrido, quer às suas consequências para JO e RR, conforme documentos de fls. 20 a 33.
Ora, quando o tribunal recorrido decida que um meio de prova, sujeito à sua livre apreciação – apreciação esta pautada pelos princípios da imediação e da oralidade - merece credibilidade ou não a merece, estando tal opção claramente motivada, o tribunal de recurso apenas poderá modificar tal convicção se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum, ou seja, conforme se salienta no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, se as provas produzidas “impuserem decisão diversa” da proferida, não podendo a revogação do assim decidido assentar apenas numa diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
O ordenamento processual probatório português combina o sistema livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, dado que, “a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-10-2016, Pº 1306/12.1TBSSB.E1, rel. JOSÉ TOMÉ DE CARVALHO).
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efetuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação, partindo da análise e ponderação da prova disponibilizada (cfr. Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 435-436).
Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
Ou seja: “A prova não é certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida” (assim, Manuel de Andrade; Noções Elementares do Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, pp. 191-192). O Autor cita Rosenberg e Goldschmidt, adiantando que, pode dizer-se que haverá prova acerca dum ponto de facto logo que o material probatório existente nos autos já permita ao Juiz uma opinião (mais do que a ignorância ou a dúvida, e menos do que a certeza, que corresponde à evidência).
A prova não visa “(...) a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (...)”, mas tão só, “(...) de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (assim, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 419 e 420).
Conforme salientava Vaz Serra (“Provas – Direito Probatório Material”, in BMJ n.º 110, pp. 82 e ss.), “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida.”
A apreciação das provas resolve-se, assim, na formulação de juízos, que assentam na elaboração de raciocínios que surgem no espírito do julgador “(...) segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz segundo os processos psicológicos que presidem ao exercício da actividade intelectual, e portanto segundo as máximas de experiência e as regras da lógica (...)” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 245).
Conforme afirma Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 1996, pp. 160-161) que “não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos  2 alegados pelas partes equivalha a uma certeza absoluta raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança”.
Nessa atividade de livre apreciação da prova deve o tribunal especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art. 607.º, n.º 4, do CPC), permitindo, dessa forma, que se “possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Teixeira de Sousa; Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348) e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.
A “prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência, de 21-06-2016, Pº 2683/12.0TJLSB.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE).
Neste enquadramento, a credibilidade firmada em torno de um específico meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum, que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objetiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjetiva da sua realidade.
Todas estas circunstâncias deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo atuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
Importa ainda ter presente que, estando em questão o exercício do direito de regresso da seguradora relativamente ao seu segurado, ao abrigo do disposto no artigo 27.º do D.L. n.º 291/2007, de 21 de agosto, tal direito “constitui um direito ex novo, pelo que vigoram as regras normais de direito probatório material, incumbindo à Seguradora o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que invoca, em conformidade com o art.º 342º nº 1 do Código Civil (CC)” (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-05-2022, Pº 2791/20.3T8PNF.P1, rel. ISABEL SILVA).
No caso, a apelante entende que a autora não fez prova de que fez uma transferência para o Hospital da CUF em 22-08-2020.
Ora, como se referiu, para que o Tribunal considere provado um facto, não se visa obter um juízo de certeza absoluta e irrefragável no sentido de que o mesmo ocorreu.
Na linha da doutrina, a jurisprudência tem alinhado no sentido de que o juízo probatório a operar, no âmbito da prova sujeita à livre apreciação do julgador (que é aquela que é “apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei.” – cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-04-2020, Pº 1740/18.3T8VNG.P1, rel. JERÓNIMO FREITAS) não visa obter a certeza absoluta de um facto histórico, mas sim, obter um grau de convicção que se reconduz à certeza relativa do facto, que se baste para ocorrer às necessidades da vida em sociedade. Entre muitas outras decisões, podem citar-se, neste sentido, as seguintes:
-Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-03-2021 (Pº 231/19.0T8CNF.C1, rel. ANTÓNIO CARVALHO MARTINS): “A prova não visa a certeza absoluta, a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente, mas tão só, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto, sendo a certeza a que conduz a prova suficiente, assim, uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-12-2015 (Pº 676/13.9GAMCN.P1, rel. RENATO BARROSO): “As provas não têm forçosamente que criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar – certeza essa que, muitas vezes, seria impossível, ou quase impossível de alcançar. O que é necessário é que as mesmas indiquem um grau de probabilidade tão elevado que se baste como certeza possível para as necessidades da vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que um indivíduo praticou determinados factos”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-05-2022 (Pº 3023/16.4T8LRA.C2, rel. HELENA MELO): “para que o Tribunal possa dar como provado um determinado facto não tem que se convencer da certeza absoluta da sua verificação, mas tem de convencer-se com alguma segurança, tem que ocorrer pelo menos um alto grau de probabilidade suficiente de que determinados factos ocorreram ou não ocorreram. Se a prova em juízo tivesse que ser absoluta, na maior parte das coisas, porque tal não é conseguido, a atividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante denegação de justiça, o que significa que a justiça apenas exige um grau de probabilidade bastante ou suficiente, face às circunstâncias do caso, às regras da experiência da vida e aos ensinamentos da ciência”.
Assim, a prova tem por função a demonstração da realidade dos factos (cfr. artigo 341.º do Código Civil), e para esse efeito, o que releva e é exigível é que o julgador forme a sua convicção assente na certeza relativa do facto, devendo existir um alto grau de probabilidade da sua verificação.
Afigura-se-nos líquido que a prova do pagamento de uma transferência bancária não tem, imperiosamente, que ser efetuada pela junção do comprovativo bancário da mesma, podendo a convicção advir ao Tribunal em face de outros meios de prova – documentais ou pessoais - que gerem um elevado patamar de convencimento no julgador, no sentido de que tal transferência teve efetivamente lugar.
Ora, ao invés do pugnado pelo recorrente afigura-se-nos que, no que concerne à ocorrência dos pagamentos efetuados a JO e RR, sua razão de ser ou causa, montantes e datas em que ocorreram, os meios de prova produzidos nos autos atingiram o patamar de suficiência necessário para que uma tal realidade pudesse ser dada como provada pelo julgador, como o fez o Tribunal recorrido.
Demonstram-no, nos termos já referenciados, os depoimentos convergentes e sintonizados dos mencionados JO e RR, mas também de JLC, sendo de sublinhar que os mesmos decorrem de fontes com interesses divergentes (os primeiros lesados e o último prestador de serviços para a autora) e não interessadas relativamente ao objeto do litígio e ao seu desfecho.
Demonstram-no, igualmente e em termos que corroboram as declarações que se extraem dos aludidos testemunhos, os documentos juntos aos autos.
A este respeito, o Tribunal recorrido expressou-se nos seguintes termos, que nos merecem inteira adesão:
“Da documentação resulta que a A. pagou pela reparação do ciclomotor o montante de € 149,92, documentos de fls. 18 e 19 e 29 verso, e embora a A. tenha pago a ÁS o montante total de € 154,45, em 25/10/2017, estando comprovado nos autos que a reparação teve um custo total de € 149,92, sendo que se desconhece porque razão a A. procedeu ao pagamento de um acréscimo de € 4,53, certamente por outro serviço prestado no mesmo âmbito que, no entanto, não foi invocado pela A., o tribunal apenas pode considerar o montante referente ao custo da reparação no valor de € 149,92, pois o valor de € 4,53 desconhecesse a que título foi pago, porque não invocado pela A., admitindo-se, contudo, que terá sido pago por qualquer serviço referente ao acidente, mas como não foi alegado pela A., não pode o tribunal considerá-lo.
Mais resulta da documentação junta, em conjugação com os referidos depoimentos, que a A., em 20/01/2018, pagou a JO o montante de € 15.787,63, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, conforme documento junto aos autos a fls. 20, parcialmente ilegível, e cuja cópia legível foi junta aos autos pela A. em 15/07/2022, e documento de fls. 30, donde resulta qual o montante pago pela A. a JO a esse título (€ 15.787,63), em 20/01/2018.
Mais resulta da documentação junta, em conjugação com os referidos depoimentos, que pela assistência médica e medicamentosa prestada a JO, e ajuda de terceira pessoa, a A., despendeu os seguintes valores: € 88,15, em 25/08/2017, conforme documento de fls. 32 verso, € 104,72, em 30/09/2017, conforme documento de fls. 32, € 638,78, em 10/10/2017, conforme documento de fls. 31 verso, € 154,40, em 14/11/2017, conforme documento de fls. 21 e 31, € 6,00, em 07/12/2017, conforme documentos de fls. 22 e 30 verso, € 1.809,95, em 06/07/2018, conforme documentos de fls. 23 e 26, € 31,00, em 14/08/2018, conforme documentos de fls. 24 e 26 verso, e € 27,00, em 22/08/2020, conforme documento de fls. 27.
Por fim, resulta ainda da documentação junta, em conjugação com os depoimentos das testemunhas RR e JLC, que a A. pagou o montante total de € 108,41, referente a despesas hospitalares ao Centro Hospitalar do Oeste, pela assistência prestada a RR, conforme documentos de fls. 28, 28 verso, 29 e 33.
Dos referidos documentos resultam os valores pagos pela A., as entidades a quem foram pagos esses valores, e em que datas, não tendo o tribunal tido quaisquer dúvidas que a A. despendeu tais montantes, por força do sinistro em causa, tendo procedido aos referidos pagamentos nas datas apostas nos documentos, face ao teor desses documentos em conjugação com os depoimentos referidos.”.
A respeito do pagamento de € 27,00, o Tribunal deu como verificada a sua ocorrência por referência à data de 22-08-2020, louvando-se no documento de fls. 27. O mesmo representa, conforme salientou JLC, um registo existente na autora relativamente a tal pagamento, não tendo sido produzida qualquer prova de que assim não suceda. A compatibilidade e coerência dos meios de prova produzidos, permite asseverar, com a necessária e suficiente consistência, que o pagamento do aludido valor – tal como os demais considerados como provados pelo Tribunal recorrido – teve efetivamente lugar, no modo aí descrito e, nessa medida, também, por referência à data que nesse documento é considerada.
A circunstância de RR ter referenciado que, segundo julga, a última consulta de seu companheiro teve lugar em Dezembro do ano do acidente (2017) não altera esta conclusão, por estarem em causa diversas factualidades (ali, o pagamento; aqui, a data de realização da última consulta), não sendo possível formular, sem qualquer outra demonstração que não ocorreu, o juízo presuntivo procurado elaborar pela apelante a respeito da conexão entre a data da última consulta e a do seu pagamento.
Do mesmo modo, também não inculca diversamente a circunstância de não se encontrar nos autos a fatura respeitante a tal assistência hospitalar, elemento que é, sem dúvida, adjuvante para aferir da existência da assistência, mas que, contudo, não é imperioso ou obrigatório que exista nos autos para que se dê como provado o respetivo facto – a assistência – e, bem assim, o pagamento do custo correspondente.
De semelhante forma, a circunstância de não constar dos autos o comprovativo bancário da transferência ou algum outro documento bancário ou título de pagamento, não obstava a que o Tribunal recorrido pudesse, em razão da livre apreciação que empreendeu sobre as provas produzidas - nos termos circunstanciados e detalhados com que o evidenciou na motivação acima transcrita da decisão recorrida - concluir que, perante os aludidos meios de prova produzidos nos autos (os depoimentos de JO, RR e JLC e o teor do documento de fls. 27, conjugado com os demais elementos documentais aportados para os autos e que sedimentam a ocorrência das consequências danosas resultantes do acidente, a sua reparação e o correspondente pagamento, pela autora, dos custos inerentes às mesmas e incorridos aos lesados), o pagamento da quantia correspondente ocorreu e se demonstrou, louvando-se, o Tribunal, como se disse, também, quanto ao aludido pagamento de 27,00€, ocorrido em 22-08-2020, também no “print” referente aos registos existentes na autora.
Por fim, não se afere que para além da prova do pagamento ocorrido – e especificamente quanto ao valor indemnizatório pago pela autora ao sinistrado – a autora se encontrasse vinculada a alguma outra demonstração probatória.
Ao invés, caberia antes ao réu, ora recorrente, demonstrar que a seguradora pagou mais do que o devido ou o que não era devido, alegando para tanto os factos correspondentes a essas causas impeditivas, modificativas ou extintivas da pretensão deduzida, de acordo com a previsão contida no artigo 342.º, n.º 2, do CC.
Conforme elucidativamente se decidiu, a respeito desta temática, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-05-2021 (Pº 2807/18.3T8AVR.P1, rel. ALEXANDRA PELAYO): “Uma vez demonstrado o pagamento da quantia indemnizatória por parte da autora (facto este que está na raiz do reembolso pedido), a ré, se entendesse que este direito não era fundado (…) teria que provar que a seguradora pagou mal - que pagou o indevido - alegando para esse efeito os factos materiais pertinentes, não podendo limitar-se a rejeitar a sua responsabilidade (no caso do seu segurado) dizendo que não teve oportunidade de participar na negociação da transação efetuada (…)”.
Ou seja: No exercício do direito de regresso da seguradora contra os corresponsáveis em relação à indemnização paga por aquela aos lesados, cabe-lhe demonstrar os factos que, segundo a norma substantiva aplicável servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido, competindo à ré demonstrar, para eximir-se de tal obrigação, que a autora pagou mais do que o devido, ou o que não era devido.
Ora, tal demonstração não ocorreu, limitando-se o réu a impugnar os factos alegados pela contraparte e a invocar desconhecer com que critérios a autora determinou a indemnização (cfr. contestação apresentada, designadamente, ponto 19.º desse articulado).
Assim, em face de tudo o exposto, não se afere resultar da decisão recorrida, algum erro apreciativo relativamente à prova produzida, nem outra circunstância que determine que a matéria factual vertida nos pontos 15), 16) e 17) dos factos provados, transite para o rol dos factos não provados.
Nestes termos, a impugnação de facto deduzida quanto aos pontos 15), 16) e 17) dos factos provados, soçobra.
*
II) Impugnação da decisão de direito:
*
B) Se a exceção de prescrição deveria ter sido julgada procedente?
Considera o recorrente que a exceção de prescrição deveria ter sido julgada procedente, em suma, pelas seguintes razões:
- Não pode o tribunal concluir que o último pagamento efetuado pela A. ocorreu em 22-08-2020;
- O início do prazo de prescrição terá ocorrido a 20-01-2018 (data em que a A. pagou a JO a título de indemnização: pela hospitalização - € 2.500,00, pelo dano biológico - € 3.587,20, pelo dano moral - € 5.799,90 e pelo período de incapacidade temporária - € 3.900,53, no total de € 15.787,63).
Conclui, assim, que, quando a ação deu entrada em 18-03-2021, já havia decorrido o prazo de prescrição.
Vejamos:
O artigo 298.º, n.º 1, do CC, a respeito da repercussão do tempo nas relações jurídicas, estatui que se encontram “sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição”.
“A prescrição é um instituto que se funda num facto jurídico involuntário: o decurso do tempo. Invocada com êxito, a prescrição determinará a paralisação de direitos, sempre que os mesmos não sejam exercidos, sem uma justificação legítima, durante um certo lapso de tempo fixado na lei. Confere-se, assim, ao beneficiário da prescrição, o poder ou faculdade de recusar, de modo lícito, a realização da prestação devida (cf. n.º 1 do artigo 304.º - tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito)” (assim, Ana Filipa Morais Antunes; Prescrição e Caducidade; Coimbra Editora, 2008, p. 16).
Relativamente ao início do curso da prescrição, decorre do n.º 1 do artigo 306.º do CC que “o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido”, sendo o seu prazo ordinário o de 20 anos (cfr. artigo 309.º do CC).
Quanto à sua interrupção, nomeadamente quando promovida pelo titular do direito, estatui o artigo 323.º do CC que:
“1. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.
2. Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.
3. A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números anteriores.
4. É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido”.
A interrupção ocorre, igualmente, “pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido”, apenas sendo relevante o reconhecimento tácito “quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam” (cfr. artigo 325.º, n.ºs. 1 e 2, do CC).
Em termos processuais, a prescrição configura-se como uma exceção perentória, assumindo a natureza de um facto obstativo ao exercício de um direito (cfr. artigo 576.º, n.º 3, do CPC).
Sobre a prescrição no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, aquiliana ou por factos ilícitos, prescreve o artigo 498.º do CC o seguinte:
“1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.
2. Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.
3. Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
4. A prescrição do direito de indemnização não importa prescrição da acção de reivindicação nem da acção de restituição por enriquecimento sem causa, se houver lugar a uma ou a outra”.
Justificando o curto prazo de prescrição a que está sujeito o direito à indemnização fundado na responsabilidade civil, refere Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª Edição, Almedina, Coimbra, pp. 596-598) que a prova dos factos que consubstanciam a responsabilidade civil “em regra feita através de testemunhas, torna-se extremamente difícil e bastante precária a partir de certo período de tempo sobre a data dos acontecimentos, e por isso convém apressar o julgamento das situações geradoras de dano ressarcível”.
Assim, no âmbito deste instituto a lei fixou o prazo de 3 (três) anos de prescrição, a contar do momento em que o lesado teve conhecimento do seu direito, ou seja, a partir da data em que ele, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito à indemnização pelos danos que sofreu.
Conforme resulta do n.º 1 do artigo 498.º do CC, o início do prazo prescricional não está dependente do conhecimento da extensão integral dos danos - o que é justificado pela possibilidade de o lesado formular um pedido genérico de indemnização, cujo montante exato será definido em liquidação da sentença, quando não seja possível determinar logo a extensão exata do dano – nem do conhecimento da pessoa do responsável.
A jurisprudência tem considerado que o momento em que se inicia o prazo curto de prescrição é aquele em que sejam conhecidos do lesado os pressupostos da ação de indemnização, traduzidos nos seus elementos fácticos, e não o do reconhecimento judicial da verificação do facto lesivo e da sua qualificação (cfr. Acórdãos do STJ de 18-04-2002, Pº 02B950, rel. ARAÚJO DE BARROS; de 03-11-2005, Pº 04B4235, rel. PIRES DA ROSA; e de 23-02-2010, Pº 3165/08.OTBPRD.P1.S1, rel. MÁRIO CRUZ).
Segundo o n.º 2 do artigo 498.º do CC, prescreve igualmente no prazo de 3 anos, agora a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.
O regime do n.º 2 do artigo 498.º tem sido aplicado, por analogia, ao direito ao reembolso atribuído por lei a outras entidades que satisfizeram a indemnização ao lesado, ainda que o direito ao reembolso não corresponda, na sua natureza, a um verdadeiro “direito de regresso”, no sentido próprio do termo.
Assim, tem sido aplicado tal normativo ao direito ao reembolso da seguradora que satisfez indemnização ao lesado, reconhecido nas hipóteses taxativamente previstas no artigo 27.º do D.L. n.º 291/2007, de 21 de agosto (assim, José Carlos Brandão Proença, “Natureza e Prazo de Prescrição do “Direito de Regresso” no Diploma do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel – Ac. do STJ de 18.10.2012, Proc. 56/10”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 41, 2013, p. 44 e Acórdãos do STJ de 26-06-2007, Pº 07A1523, rel. FARIA ANTUNES e de 07-04-2011, Pº 329/06.4TBAGN.C1.S1, rel. LOPES DO REGO).
Conforme salienta Gabriela Páris Fernandes (em anotação ao artigo 498.º do CC, no Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral; Universidade Católica Editora, 2018, pp. 378-379), “[o] regime do n.º 2 do artigo 498.º não tem merecido resposta uniforme por parte da jurisprudência quanto à questão de saber como deve contar-se o prazo prescricional do direito de regresso ou de reembolso nos casos em que a indemnização devida ao lesado ou lesados tiver sido paga de forma faseada, ao longo de um determinado período de tempo: se deve contar-se um prazo prescricional autónomo relativamente a cada ato de pagamento parcelar efetuado pelo titular do direito ao reembolso, iniciando-se a contagem do prazo de prescrição a partir de cada ato de pagamento, atomisticamente considerado (neste sentido, cfr. os Acs. STJ 27.03.2003, 26.06.2007 e 07.05.2014); ou se, pelo contrário, o prazo de prescrição só se inicia na data em que for realizado o último pagamento ao lesado, pois só neste último momento ficou integralmente satisfeita a indemnização global e unitária de indemnização por todos os danos sofridos em consequência do facto lesivo (Acs. STJ 04.11.2010 e 10.03.2016). Solução intermédia foi a seguida pelo Ac. STJ 07.04.2011 e mais recentemente acolhida pelos Acs. STJ de 19.05.2016, 07.02.2017 e 18.01.2018. Entendeu, com efeito, o STJ, pelo referido Ac. 07.04.2011, que o início da contagem do prazo de prescrição se dá com o último pagamento, mas admitindo uma ressalva a este entendimento quanto aos pagamentos parcelares suscetíveis de integrarem um núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente referenciado dos demais danos peticionados (…)”.
Por fim, nos termos do n.º 3 do artigo 498.º do CC, se o facto ilícito lesivo constituir crime e a lei estabelecer para a prescrição um prazo mais longo, será este o aplicável.
“O disposto no n.º 3 do artigo 498.º só é aplicável, segundo o entendimento que tem prevalecido, nos casos em que se demonstre que o facto ilícito que fundamenta o pedido constitui, no caso concreto, crime para o qual a lei estabelece prazo mais longo de prescrição: o lesado que pretenda beneficiar deste prazo mais longo terá de provar que se mostram, em concreto, preenchidos todos os elementos essenciais do tipo legal de crime em referência, designadamente a culpa efetiva, não bastando a alegação desses factos nem a consideração de uma presunção legal de culpa” (assim, Gabriela Páris Fernandes; anotação ao artigo 498.º do CC, no Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral; Universidade Católica Editora, 2018, p. 379), mas não sendo já de exigir que tenha existido prévio procedimento criminal contra o lesante ou condenação penal, nem impede tal aplicação a circunstância de o processo criminal ter sido arquivado ou o crime amnistiado ou de não ter sido exercido tempestivamente o direito de queixa (cfr. Gabriela Páris Fernandes (em anotação ao artigo 498.º do CC, no Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral; Universidade Católica Editora, 2018, p. 379).
Conforme sinaliza esta Autora (ob. cit., pp. 380-381), tem sido entendido maioritariamente, que o alongamento do prazo de prescrição do direito de indemnização estabelecido no n.º 3 do artigo 498.º, não vale quanto ao direito de reembolso da seguradora, que satisfez ao lesado indemnização ao abrigo do regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a exercer contra os responsáveis civis, nas hipóteses legalmente previstas, por se entender que o direito ao reembolso nasce com o pagamento e a título originário na esfera jurídica das entidades que a ele têm direito, pelo que o direito ao reembolso é autónomo do direito do lesado que foi satisfeito (cfr., neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 27-10-2009, Pº 844/07.2TBOER.L1, rel. PAULO SÁ; de 16-11-2010, Pº 2119/07.8TBLLE.E1.S1, rel. JOÃO CAMILO; de 07-04-2011, Pº 329/06.4TBAGN.C1.S1, rel. LOPES DO REGO; de 17-11-2011, Pº 1372/10.4T2AVR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA; de 29-11-2011; e de 18-10-2012, Pº 56/10.8TBCVL-A.C1.S1, rel. TAVARES DE PAIVA).
Na decisão recorrida, a exceção de prescrição foi apreciada, nomeadamente, nos termos seguintes:
“O R. invoca a prescrição do direito da A., por o acidente ter ocorrido em 09/07/2017, e não ter sido junto comprovativo do pagamento em 22 de agosto de 2020, e já ter decorrido o prazo previsto no artigo 498°, n° 2 do Código Civil.
A A. refere que não ocorreu a prescrição invocada, pois ao caso aplica-se o prazo de prescrição de cinco anos, por aplicação do disposto no artigo 498°, n° 3 do Código Civil, e ainda que assim não se entenda, o prazo conta-se a partir do último pagamento, além de que, por força da legislação Covid, os prazos de prescrição estiveram suspensos entre 09/03/2020 e 02/06/2020.
Cumpre apreciar.
Dispõe o artigo 498°, n° 2 do Código Civil, sob a epígrafe prescrição, o seguinte:
1.O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso.
2.Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.
3.Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
Antes de mais, importa aferir qual o prazo de prescrição aplicável ao caso em apreço, se o prazo previsto no n° 2 ou no n° 3 do artigo 498° do Código Civil, já que a A. invoca a aplicação do prazo de prescrição de 5 anos previsto no referido n° 3.
Desde já adiantamos que, no nosso entendimento, o prazo de prescrição aplicável ao caso é o prazo de 3 anos previsto no artigo 498°, n° 2 do Código Civil.
Na verdade, o direito de regresso da seguradora constitui um direito novo que apenas se forma no momento do pagamento pela seguradora ao lesado com o acidente de viação provocado pelo seu segurado.
Tal direito da seguradora não se confunde com os direitos dos lesados decorrentes do ato ilícito do lesante, a que se aplica o prazo prescricional de 5 anos previsto no n° 3 do referido preceito legal.
O direito da seguradora trata-se de um direito de regresso nascido na esfera jurídica da seguradora que suportou a indemnização que competiria ao lesante, daí que o prazo previsto para a prescrição dos direitos de indemnização dos lesados seja uma realidade distinta daquele previsto para as relações dos responsáveis entre si (a seguradora tem direito a haver daquele que causou o acidente o que pagou em vez dele).
Deste modo, o prazo alargado previsto no n° 3 do artigo 498°, do Código Civil aproveita aos lesados, mas já não aos corresponsáveis entre si, a estes aplica-se o prazo prescricional previsto no n° 2 do referido preceito, ou seja, o prazo de 3 anos.
Aqui chegados, importa saber a partir de que momento se começa a contar o referido prazo, é certo que tal só pode ocorrer a partir do momento em que o titular do direito de regresso efetuou a prestação de que pretende ser reembolsado, a questão coloca-se nas situações em que para ressarcir os danos resultantes de um mesmo acidente, ocorre uma sucessão de atos de pagamento efetuados pela seguradora, e passa por saber se se deve contar um prazo prescricional autónomo relativamente a cada pagamento parcelarmente efetuado pela seguradora, iniciando-se o prazo relativamente a cada parcela satisfeita pela seguradora, ou se o prazo prescricional só se inicia na data em que for realizado o último pagamento.
Quanto a este aspeto, entendemos, tal como vem sendo entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, que nos casos em que é possível uma autonomização das indemnizações, por se reportarem a danos diferenciados, poderá haver uma autonomização do início da contagem do prazo de prescrição em função da natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados, podendo a seguradora exercitar o seu direito de regresso referente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, correndo em relação a cada núcleo o prazo de prescrição, por exemplo, por danos decorrentes da destruição e privação do uso de veículo, o prazo contar-se-ia a partir do último pagamento atinente a tais danos, que são autonomizáveis, por exemplo, dos danos decorrentes da lesões físicas, em relação aos quais o prazo de prescrição iniciar-se-ia a partir da data de último pagamento desse núcleo indemnizatório (veja-se, a título de exemplo, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07/04/2011 e de 07/02/2017).
No entanto, nestes casos, caberá ao réu, que invocou a prescrição, o ónus de alegar e provar que os valores peticionados pela seguradora correspondem a um núcleo indemnizatório autónomo e diferenciado, atendendo aos critérios suprarreferidos, e em relação ao qual já decorreu o prazo de 3 anos, não bastando alegar como fundamento da prescrição a data que consta dos documentos, ou seja, a prescrição em relação a todos os valores peticionados pela seguradora, caso em que se deve atender ao último pagamento efetuado.
No caso em apreço, o R. apenas alega genericamente a prescrição, por referência à data de um dos pagamentos invocados pela A., pelo que, o início do prazo de prescrição, e no que respeita à indemnização relativa ao lesado JO, será a partir do último pagamento efetuado pela A., que, no caso, ocorreu em 22/08/2020, como resulta da factualidade.
Assim, na data de entrada da petição inicial, 18/03/2021, ainda não haviam decorrido os 3 anos de prescrição, e tendo o prazo de prescrição sido interrompido no dia 23/03/2021, por força do disposto no artigo 323°, n° 2 do Código Civil, ainda que o R. tenha sido citado apenas em 14/04/2021, não se verifica a prescrição invocada pelo R. (…)”.
Este juízo não merece qualquer censura, tendo plena aderência aos preceitos legais aplicáveis e à situação presente apurada.
De facto, ao invés do que pugna o apelante, não se logrou demonstrar que o “último pagamento” efetuado pela autora, no cumprimento da obrigação de indemnizar os danos decorrentes do acidente, tenha ocorrido na data de 11-01-2018, mas sim, que o último pagamento efetuado (com respeito a despesas ocorridas com o lesado JO) teve lugar na data de 22-08-2020, conforme resulta do vertido no ponto 16) dos factos provados.
Interposta que foi a presente ação em 18-03-2021 (cf. registo aposto na petição inicial - cfr. artigo 259.º do CPC), nessa data não se encontrava transcorrido o prazo prescricional de 3 anos, a que se reporta o n.º 2 do artigo 498.º do CC, pelo que a exceção de prescrição não procede.
Quanto à lesada RR, resulta do facto provado em 17) que, a mesma, em consequência do embate “teve necessidade de cuidados médicos, uma vez que sofreu escoriações e teve que ser suturada no cotovelo esquerdo, tendo a A. pago a quantia total de € 108,41 (cento e oito euros e quarenta e um cêntimos), ao Centro Hospitalar Oeste, para pagamento de despesas hospitalares e despesas médicas, em 07/12/2017, o valor de € 100,41, e 11/01/2018, o valor de € 8,00”.
O “último pagamento” efetuado relativamente a esta lesada teve assim lugar em 11-01-2018.
Contudo, nem por isso, se mostra ter transcorrido o prazo prescricional de 3 anos.
É que, em resultado da situação de emergência de saúde pública de âmbito internacional, declarada pela Organização Mundial de Saúde, no dia 30 de janeiro de 2020, bem como à classificação do vírus SARS-CoV-2 como uma pandemia, no dia 11 de março de 2020 e à situação de calamidade pública, que motivou a declaração de sucessivos estados de emergência (o primeiro dos quais pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março), foram introduzidas no ordenamento jurídico diversas alterações, de exceção e com carácter temporário, em vários diplomas legais, por forma a adaptar o quadro normativo ao novo status quo e às exigências particulares que, a especial situação pandémica que se vivenciava, foi impondo ao longo do tempo.
Assim, logo em 19 de março de 2020 foi publicada a Lei n.º 1-A/2020 que, ratificando os efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, veio aprovar diversas medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS -CoV -2, agente causador da doença COVID -19.
Entre a data da sua publicação e 18-03-2021 (data em que entrou em juízo a petição inicial), esta Lei n.º 1-A/2020 veio a ser alterada pelos seguintes diplomas:
- Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril;
- Lei n.º 4-B/2020, de 6 de abril;
- Lei n.º 14/2020, de 9 de maio;
- (Retificação n.º 20/2020, de 15 de maio);
- Lei n.º 16/2020, de 29 de maio;
- Lei n.º 28/2020, de 28 de julho;
- Lei n.º 58-A/2020, de 30 de setembro;
- Lei n.º 75-A/2020, de 30 de dezembro;
- Lei n.º 1-A/2021, de 13 de janeiro; e
- Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro.
No artigo 7.º dessa Lei n.º 1-A/2020 estatuíam-se diversas regras sobre os “prazos e diligências”.
O teor deste normativo, na sua versão originária, era o seguinte:
“Artigo 7.º
Prazos e diligências
1 — Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS -CoV -2 e da doença COVID -19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública.
2 — O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.
3 — A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4 — O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.
5 — Nos processos urgentes os prazos suspendem-se, salvo nas circunstâncias previstas nos n.ºs 8 e 9.
6 — O disposto no presente artigo aplica-se ainda, com as necessárias adaptações, a:
a) Procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias;
b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, e respetivos atos e diligências que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários;
c) Prazos administrativos e tributários que corram a favor de particulares.
7 — Os prazos tributários a que se refere a alínea c) do número anterior dizem respeito apenas aos atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como aos prazos para a prática de atos no âmbito dos mesmos procedimentos tributários.
8 — Sempre que tecnicamente viável, é admitida a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada.
9 — No âmbito do presente artigo, realizam-se apenas presencialmente os atos e diligências urgentes em que estejam em causa direitos fundamentais, nomeadamente diligências processuais relativas a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente, diligências e julgamentos de arguidos presos, desde que a sua realização não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes.
10 — São suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria.
11 — Após a data da cessação da situação excecional referida no n.º 1, a Assembleia da República procede à adaptação, em diploma próprio, dos períodos de férias judiciais a vigorar em 2020”.
Em termos fundamentais e no que ora interessa, o preceito legal em apreço estabelecia:
– O decretamento ou reconhecimento de uma “situação excecional”;
– A suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade enquanto durasse a mencionada situação excecional.
Referindo-se, em particular, à previsão de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, constante do n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua versão originária, evidenciava José Joaquim Fernandes Oliveira Martins (“A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – uma primeira leitura e notas práticas”, in Julgar Online, março de 2020, p. 6, disponível em: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/03/20200320-ARTIGO-JULGAR-A-Lei-1A2020-uma-primeira-leitura-e-notas-pr%C3%A1ticas-Jos%C3%A9-Joaquim-Martins-v3.pdf) o seguinte:
“Trata-se de um normativo, (…) que vai levantar grandes dificuldades, visando criar uma nova causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade, impedindo que as mesmas se verifiquem por mero efeito da situação de pandemia existente, mas fazendo-o de uma forma que suscita mais dúvidas do que certezas.
De facto, os institutos da prescrição e da caducidade aplicam-se nos vários ramos do direito, não havendo, de novo, um regime único da prescrição e da caducidade, mas antes, por exemplo, uma prescrição civil e uma prescrição penal (e dentro desta última, várias prescrições, com regimes muito diversos).
De todo o modo, este artigo parece só aplicar-se a prazos de prescrição e de caducidade relativos a, sic, “processos e procedimentos” já em curso ou, alargando o seu âmbito e no que será talvez mais razoável, a prazos que digam respeito a concretos, mesmo que futuros, “processos e procedimentos” que se iniciem antes, no decurso ou após a vigência desta lei, só assim se podendo entender a menção final expressa aos mesmos, não resultando deste normativo, salvo melhor opinião, que se queiram suspender todos os prazos substantivos em curso e que não digam respeito a qualquer, mesmo que só futuro, “processo e procedimento” (…)”.
Sobre o âmbito de aplicação desta previsão normativa, Miguel Teixeira de Sousa e J. H. Delgado de Carvalho (“As medidas excepcionais e temporárias estabelecidas pela L 1-A/2020, de 19/3 (repercussões na jurisdição civil)”, março de 2020, pp. 3-4, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2020/03/as-medidas-excepcionais-e-temporarias.html) referiam que “O regime é aplicável, sem qualquer dúvida, às acções ou aos procedimentos que, de modo a evitar a prescrição ou a caducidade, tivessem de ser propostos durante a vigência da situação excepcional. Assim, por exemplo, os prazos convencionados ou legais que regulam a produção de efeitos da resolução de contratos não ficam suspensos, dado que a resolução opera ex voluntate (cf. art. 436.º, n.º 1, CC); mas já fica suspenso o prazo (substantivo) para propor uma acção de anulação (cf., por exemplo, arts. 287.º, n.º 1, 917.º e 1644.º a 1646.º CC) ou uma acção de preferência (cf., por exemplo, arts. 416.º, n.º 2, e 1410.º, n.º 1, CC). A mesma solução vale para os prazos estabelecidos no CPC para a propositura de acções (cf., por exemplo, arts. 373.º, n.º 1, al. a), e 395.º CPC) (…).
O regime instituído nos n.ºs 3 e 4 do art. 7.º L 1-A/2020 visa evitar situações anómalas no domínio da prescrição e da caducidade. Seria o que sucederia se um interessado ficasse impedido de instaurar o meio processual destinado à satisfação do seu direito devido a situação epidemiológica e se um outro interessado, que futuramente fosse por ele demandado, pudesse vir a excepcionar a prescrição ou a caducidade ou o tribunal pudesse vir a conhecer oficiosamente desta caducidade. Seria um resultado que violaria o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais (cf. art. 20.º, n.º 1, da CRP), dado que a verificação da prescrição ou da caducidade do direito do interessado conduziria ao insucesso da sua pretensão ou do seu pedido” (sublinhado nosso).
Este artigo 7.º veio a ser alterado, em parte, pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril (art. 2.º) passando, desde então, a ter a seguinte redação:
“Artigo 7.º
[...]
1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.
2 - ...
3 - ...
4 - ...
5 - O disposto no n.º 1 não obsta:
a) À tramitação dos processos e à prática de atos presenciais e não presenciais não urgentes quando todas as partes entendam ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
b) A que seja proferida decisão final nos processos em relação aos quais o tribunal e demais entidades entendam não ser necessária a realização de novas diligências.
6 - Ficam também suspensos:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
b) Quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judiciais de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 137.º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial.
7 - Os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, observando-se quanto a estes o seguinte:
a) Nas diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais realiza-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
b) Quando não for possível a realização das diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, nos termos da alínea anterior, e esteja em causa a vida, a integridade física, a saúde mental, a liberdade ou a subsistência imediata dos intervenientes, pode realizar-se presencialmente a diligência desde que a mesma não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes;
c) Caso não seja possível, nem adequado, assegurar a prática de atos ou a realização de diligências nos termos previstos nas alíneas anteriores, aplica-se também a esses processos o regime de suspensão referido no n.º 1.
8 - Consideram-se também urgentes, para o efeito referido no número anterior:
a) Os processos e procedimentos para defesa dos direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais, referidas no artigo 6.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, na sua redação atual;
b) O serviço urgente previsto no n.º 1 do artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de março, na sua redação atual;
c) Os processos, procedimentos, atos e diligências que se revelem necessários a evitar dano irreparável, designadamente os processos relativos a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente e as diligências e julgamentos de arguidos presos.
9 - O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, aos prazos para a prática de atos em:
a) [Anterior alínea a) do n.º 6.]
b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, incluindo os atos de impugnação judicial de decisões finais ou interlocutórias, que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo a Autoridade da Concorrência, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, bem como os que corram termos em associações públicas profissionais;
c) Procedimentos administrativos e tributários no que respeita à prática de atos por particulares.
10 - A suspensão dos prazos em procedimentos tributários, referida na alínea c) do número anterior, abrange apenas os atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como os atos processuais ou procedimentais subsequentes àqueles.
11 - Durante a situação excecional referida no n.º 1, são suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
12 - Não são suspensos os prazos relativos à prática de atos realizados exclusivamente por via eletrónica no âmbito das atribuições do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I. P.
13 - (Anterior n.º 11.)”.
Quanto aos processos não urgentes, a redação inicial da Lei n.º 1-A/2020 estabelecia a sujeição destes processos ao regime das férias judiciais, com a consequente suspensão dos prazos processuais. Com a Lei n.º 4-A/2020, foi eliminada do artigo 7.º, n.º 1 a referência à aplicação do regime das férias judiciais, tendo-se determinado de forma expressa a suspensão dos prazos processuais até à cessação da situação excecional provocada pela COVID-19. No entanto, o número 5 do artigo 7.º veio estabelecer que a referida suspensão dos prazos não obstava à tramitação dos processos e à prática de atos processuais presenciais e não presenciais através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados (designadamente, teleconferência, videochamada ou outros), contanto que todas as partes entendessem ter condições para assegurar a sua prática por essas vias.
Ou seja: “Tendo em conta o disposto no art. 7º, nº 1, da Lei nº 1-A/2020, na redação dada pela Lei nº 4-A/2020, de 6.4, os prazos processuais nos processos não urgentes ficaram suspensos a partir de 9.3.2020 (não se iniciando, ou suspendendo-se se estivessem em curso), não sendo as partes obrigadas a praticar qualquer ato processual enquanto durasse o período de suspensão, apenas se prevendo a possibilidade, nos termos do nº 5 do art. 7º, de se verificar a tramitação dos processos e a prática de atos presenciais e não presenciais não urgentes quando todas as partes entendam ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, manifestando-a expressamente no processo” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-01-2021, Pº 1711/19.2T8CSC.L1-7, rel. CRISTINA COELHO).
Quanto aos processos urgentes, a versão originária da Lei n.º 1-A/2020 havia determinado a suspensão dos prazos, ainda que com algumas exceções. Com a Lei n.º 4-A/2020 optou o legislador, diversamente, no sentido de que os processos urgentes continuassem a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências (cfr. n.º 7 do referido artigo 7.º).
A nova redação produziu efeitos retroativos a 09-03-2020, com exceção das normas aplicáveis aos processos urgentes, cuja produção de efeitos se iniciou no dia 07-04-2020, data da entrada em vigor da Lei n.º 4-A/2020 (cfr. artigo 6.º da Lei n.º 4-A/2020).
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25-03-2021 (Pº 114/19.3T8RMR.E1, rel. FRANCISCO MATOS), a redação da nova lei “permitiu unificar o regime para todas as jurisdições [v.g. na jurisdição administrativa o prazo de impugnação de atos anuláveis não se suspende nas férias judiciais diferentemente do que se passa no domínio do processo civil em que os prazos processuais se suspendem durante as férias judiciais – cfr. artigo 58.º, n.º 2, do CPTA, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22/2 e artigo 138.º, n.º 1, do CPC] e da qual resulta, a nosso ver, sem qualquer dúvida, a suspensão de todos os prazos para a prática de atos processuais, em processos não urgentes, independentemente da sua duração”.
Certo é que, o regime de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade se manteve, com a publicação da Lei n.º 4-A/2020, sem qualquer alteração.
Comentando a previsão normativa do referido artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, refere Paulo Pimenta (“Prazos, diligências, processos e procedimentos em época de emergência de saúde pública (DL nº 10-A/2020, de 13 de Março, Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e Lei nº 4-A/2020, de 6 Abril)”, Abril 2020, disponível em https://www.direitoemdia.pt/magazine/show/68) o seguinte:
“O nº 3 do art. 7º, também com foros de excepcionalidade, consagra a suspensão de prazos de prescrição e de caducidade relativamente a todos os tipos de processos e procedimentos, sendo que, nos termos do nº 4, esta suspensão de prazos de prescrição e caducidade prevalece sobre quaisquer regimes que fixem prazos máximos imperativos, prevendo-se que tais regimes serão alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional (…). 
Nesta conformidade, enquanto durar a situação de excepção, não haverá necessidade de instaurar processos ou procedimentos para evitar a prescrição ou a caducidade, sendo que os respectivos prazos retomarão a sua contagem assim que findar a dita situação de excepção. Importa salientar que o sentido da lei, e a suspensão opera somente quanto a esses prazos, é o de acautelar casos em que o exercício do direito implica a instauração de um processo ou um procedimento, isto é, implica uma concreta iniciativa processual.
A título meramente exemplificativo, por referência a previsões do Código Civil, estão suspensos os prazos para instaurar acções de anulação (art. 287º), acções destinadas à efectivação de responsabilidade civil extracontratual (art. 498º) (…)” (sublinhado nosso).
Luís Menezes Leitão (“Os prazos em tempos de pandemia Covid-19”, in Estado de Emergência - COVID-19 Implicações na Justiça, Coleção Caderno Especial, [Em linha], Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, Abril 2020, disponível na internet em: https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=KFbmVM5ylRU%3d&portalid=30, p. 72) questiona, em face do referido regime legal, se o mesmo se aplica apenas em relação aos prazos para instaurar acções ou procedimentos que evitem a prescrição e a caducidade ou se abrange também prazos para o exercício extrajudicial de direitos legais ou contratuais, concluindo por uma resposta afirmativa apenas quanto à primeira situação, mas salientando que, em diversos casos (v.g. artigo 8.º da Lei n.º 1-A/2020, na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020 e artigo 4.º do D.L. n.º 10-J/2020, de 26 de março) o legislador também considerou a suspensão de prazos de prescrição/caducidade no âmbito da segunda situação referida.
O regime legal do referido artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, nesta nova redação da Lei n.º 4-A/2020, vigorou até 03-06-2020, data da entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, que revogou o referido artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 (artigos 8.º e 10.º), colocando termo à suspensão generalizada dos prazos processuais, retomando-se a contagem dos prazos judiciais a partir de 03-06-2020 (inclusive), considerando-se, em cada prazo, o tempo decorrido até à declaração da sua suspensão (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-12-2021, Pº 939/19.0T8GRD-A.C1, rel. MÁRIO RODRIGUES DA SILVA).
“A Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, que procedeu à revogação parcial da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, teve como consequência a cessação da suspensão dos prazos judiciais e dos prazos administrativos. A contagem dos referidos prazos, no âmbito de todos os tipos de processos judiciais (urgentes e não urgentes), é retomada a partir do quinto dia a contar da publicação do diploma (em resultado da vacatio legis estipulada no seu art. 10.º), cessando, assim, a suspensão extraordinária até então vigente” (assim, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 21-01-2021, Pº 214/18.7BELSB, rel. PEDRO MARCHÃO MARQUES).
A revogação do mencionado artigo 7.º da Lei nº 1-A/2020, na redação dada pela Lei nº 4-A/2020, operada pela Lei n.º 16/2020, não repôs, todavia, a situação que existia à data anterior a 12 de Março de 2020, reconhecendo o legislador que, apesar de ser admissível atenuar as regras impostas pelo referido normativo, se tornava, ainda assim, necessário criar determinadas regras ainda excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID -19, dando origem à referida substituição do revogado artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, pelo então aditado artigo 6.º-A à mesma lei.
De facto, a Lei n.º 16/2020, de 29 de maio veio aditar à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o artigo 6.º-A, com a seguinte redação:
“Artigo 6.º-A
Regime processual transitório e excecional
1 - No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.
2 - As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:
a) Presencialmente e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela Direção-Geral da Saúde (DGS); ou
b) Através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior e se for possível e adequado, designadamente se não causar prejuízo aos fins da realização da justiça, embora a prestação de declarações do arguido ou de depoimento das testemunhas ou de parte deva sempre ser feita num tribunal, salvo acordo das partes em sentido contrário ou verificando-se uma das situações referidas no n.º 4.
3 - Nas demais diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza-se:
a) Através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou
b) Presencialmente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior, e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, higiene e sanitárias definidas pela DGS.
4 - Em qualquer das diligências previstas nos n.º 2 e 3, as partes, os seus mandatários ou outros intervenientes processuais que, comprovadamente, sejam maiores de 70 anos, imunodeprimidos ou portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde, devam ser considerados de risco, não têm obrigatoriedade de se deslocar a um tribunal, devendo, em caso de efetivação do direito de não deslocação, a respetiva inquirição ou acompanhamento da diligência realizar-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, a partir do seu domicílio legal ou profissional.
5 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é garantida ao arguido a presença no debate instrutório e na sessão de julgamento quando tiver lugar a prestação de declarações do arguido ou coarguido e o depoimento de testemunhas.
6 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
d) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores;
e) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser feitas nos termos da alínea b) do n.º 2, da alínea b) do n.º 3 ou do n.º 7.
(…).
8 - O disposto nas alíneas d) e e) do n.º 6 prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo correspondente à vigência da suspensão.
(…)”.
Decorre do novo regime instituído pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, que, com a revogação do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, a generalidade dos prazos de prescrição e de caducidade – que até 03-06-2020 se encontravam suspensos (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-07-2021, Pº 12420/16.4T8LSB-C.L1-7, rel. DINA MARIA MONTEIRO) - deixaram de estar suspensos (só assim não sucedendo com os prazos de prescrição e de caducidade mencionados nas alíneas a), b) e c), do n.º 6 do artigo 6.º-A aditado pela Lei n.º 16/2020 à Lei n.º 1-A/2020, relativos aos processos e procedimentos referentes a prazos para apresentação do devedor à insolvência, actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências para entrega judicial da casa de morada de família e as ações de despejo, procedimentos especiais de despejo e processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário possa, por força da decisão final a proferir, ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa), sendo, todavia, alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão (artigo 6.º-A, n.º 8, aditado à Lei n.º 1-A/2020, pela Lei n.º 16/2020).
“Cessando a suspensão, os prazos de prescrição e caducidade deverão ser calculados como se a suspensão não tivesse tido lugar, acrescentando-se uma dilação ao prazo final correspondente ao período da suspensão, ou seja, correspondente ao período entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020. Esta solução afigura-se como a mais correta de forma a evitar uma duplicação da suspensão e respetivo alargamento do prazo” (cfr., neste sentido, Nuno Peres Alves e Mara Rupia Lopes; “Legal Alert – Covid-19 – Medidas Excecionais e Temporárias – Cessação da Suspensão dos Prazos Administrativos e de Contencioso Administrativo”, em: https://www.mlgts.pt/xms/files/site_2018/Newsletters/2020/Cessacao_da_suspensao_dos_prazos_administrativos_e_de_contencioso_administrativo__-_Legal_Alert.pdf).
Por seu turno, perante o agravamento excecional da situação de pandemia COVID-19, veio a ser aprovada a Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que veio determinar um conjunto de medidas excecionais, temporárias e de caráter urgente no âmbito do desenvolvimento da atividade judicial e administrativa, retomando e desenvolvendo, no essencial, medidas já anteriormente aplicadas no primeiro semestre de 2020 no quadro do combate à primeira vaga da pandemia.
Assim, a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro veio revogar o aludido artigo 6.º-A da Lei n.º 1-A/2020 (cfr. artigo 3.º).
E, para além disso, veio a alterar a referida Lei n.º 1-A/2020, aditando a este último diploma, entre outros, o artigos 6.º-B do seguinte teor:
“Artigo 6.º -B
Prazos e diligências
1 — São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 — O disposto no número anterior não se aplica aos processos para fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
3 — São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1.
4 — O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão (…)”.
Relativamente aos prazos de prescrição e caducidade retoma-se, em parte, a solução consignada na redação originária da Lei n.º 1-A/2020, passando o novo artigo 6.º-B, n.ºs. 3 e 4, aditado à referida Lei pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, a determinar a suspensão de prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1 do mesmo artigo, prevalecendo este regime sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.
Assim, conforme se refere na nota informativa da PLMJ (“Coronavírus: Medidas excecionais e temporárias com impacto em matéria de contencioso”, 05-02-2021, pp. 4-5, disponível em linha, em: https://www.plmj.com/xms/files/03_Novidades_legislativas/2021/02_fevereiro/NL_TT_Coronavirus_-_Medidas_excecionais_e_temporarias_com_impacto_em_materia_de_contencioso.pdf):
“(…) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos ficam igualmente suspensos, para impedir que a prescrição ou a caducidade sobrevenham por efeito da situação excecional em que vivemos.
Esta suspensão prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, que se consideram alargados pelo período de tempo em que a suspensão durar”.
Estas medidas entraram em vigor em 02-02-2021, embora produzam efeitos à data de 22-01-2021, sem prejuízo das diligências judiciais e atos processuais entretanto realizados e praticados.
O sentido das alterações legais prende-se com a “(…) necessidade de controle da pandemia Covid 19 e perante a declaração de estado de emergência”, surgindo “com o desiderato de evitar deslocações de pessoas aos tribunais com o consequente risco de aumento da doença, por contágio” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-05-2021, Pº 598/18.7T8LSB.L1-8, rel. ISOLETA COSTA).
Em termos muito sintéticos pode resumir-se a sucessão de regimes normativos, referentes aos prazos de prescrição/caducidade até à data de entrada em juízo da presente ação (18-03-2021), de acordo com o quadro seguinte:


Diploma legalEntrada em vigorPRAZOS DE PRESCRIÇÃO/CADUCIDADE
Lei n.º 1-A/2020, de 19/312-03-2020Suspensão dos prazos, relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, prevalecendo sobre quaisquer regimes, sendo os prazos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional (n.ºs. 3 e 4 do artigo 7.º)
Lei n.º 4-A/2020, de 6/409-03-2020 (07-04-2020 quanto aos processos urgentes)
Lei n.º 16/2020, de 29/503-06-2020Retomada a contagem da generalidade dos prazos (revogação do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020) sendo os mesmos alargados pelo período de tempo correspondente à vigência da suspensão (n.º 8 do artigo 6.º-A, aditado à Lei n.º 1-A/2020);
Manutenção de suspensão dos prazos nos seguintes casos:
- processos e procedimentos referentes a prazos para apresentação do devedor à insolvência;
- actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências para entrega judicial da casa de morada de família; e
- as ações de despejo, procedimentos especiais de despejo e processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário possa, por força da decisão final a proferir, ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa (artigo 6.º-A, n.ºs. 6 e 8, aditados à Lei n.º 1-A/2020)
Lei nº 4-B/2021, de 1/202-02-2021 (produzindo efeitos a 22-01-2021)Suspensão de prazos relativos a processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, regime que prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão (n.ºs. 3 e 4 do artigo 6.º-B, aditado à Lei n.º 1-A/2020).


Assim, por força do disposto nos artigos 7.º, n.ºs. 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio e do artigo 6.º-B, n.ºs. 3 e 4, aditados à Lei n.º 1-A/2020, pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, entre o período de 09-03-2020 e 02-06-2020 e de 22-01-2021 até à data de instauração da presente ação, o prazo prescicional ficou suspenso, com o correspondente alargamento no prazo a considerar do tempo de suspensão.
Ora, considerando a data do último pagamento a RR – 11-01-2018 – e contabilizados os aludidos períodos de suspensão, verifica-se que, na data de 18-03-2021, data em que foi instaurada em juízo a presente ação, não tinha decorrido integralmente o prazo prescricional de 3 anos (sendo que, entre 12-01-2018 – cfr. artigo 279.º, al. b) do CC – e 12-01-2020, decorreram 2 anos; entre esta data e 09-03-2020 decorreram 26 dias; entre 02-06-2020 e 21-01-2021 decorreram mais 232 dias).
Foi precisamente este o juízo – que não nos merece qualquer censura - o expendido pelo Tribunal recorrido: “Quanto à lesada Rosália Maria Macieira Rodrigues, tendo o último pagamento ocorrido em 11/01/2018, também não decorreu o prazo de prescricional de 3 anos, tendo em conta a legislação sobre medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-Cov-2 e doença Covid 19.
Vejamos.
Estabelecia o artigo 7°, n° 3, da Lei n° 1-A/2020, de 19 de Março, que a situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, prevendo o n° 4, o disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.
Esta lei entrou em vigor no dia seguinte (artigo 11°), mas produzindo efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n° 10-A/2020, de 13 de Março (artigo 10°), vindo a norma interpretativa do artigo 5° da Lei n° 4-A/2020, de 6 de Abril, a fixar em 9 de Março de 2020 a data do início de produção de efeitos das disposições do artigo 7° da Lei n° 1-A/2020, de 19 de Março.
Depois, o artigo 8° da Lei n° 16/2020, de 29 de Maio, entrada em vigor no quinto dia posterior ao da sua publicação (artigo 10°), revogou, além do mais, o artigo 7° da Lei n° 1- A/2020, de 19 de Março, e estabeleceu, no seu artigo 6°, que os prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações introduzidas (pela Lei n° 16/2020) são alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão.
Por último, a Lei n° 4-B/2021, de 1 de fevereiro, entrada em vigor a 2 de Fevereiro de 2021 (artigo 5°), aditou à Lei n° 1-A/2020, de 19 de Março, além do mais, o artigo 6°-B, produzindo efeitos a partir de 22 de Janeiro de 2021 (artigo 4°), que dispõe, 1. São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos, e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais,, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes;
(...) 3. São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n° 1.
4.O disposto no número anterior prevaleça sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão. (...).
Posteriormente, a Lei n° 13-B/2021, de 5 de Abril, entrada em vigor a 6 de Abril de 2021 (artigo 7°), no seu artigo 6° revogou o artigo 6°-B da Lei n° 1-A/2020, de 19 de Março, dispondo o artigo 5° que, sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão.
Deste modo, no âmbito da legislação sobre medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, há a considerar os períodos de suspensão dos prazos de prescrição, entre 9 de março e 2 de junho de 2020 e entre 22 de janeiro e 6 de abril de 2021.
Assim, quanto aos valores pagos relativamente à lesada Rosália Maria, cujo último pagamento ocorreu em 11/01/2018, dando-se início à contagem do prazo de prescrição nessa data, suspendeu-se entre 09/03/2020 e 02/06/2020, e suspendeu-se novamente entre 22/01/2021 e 06/04/2021, ou seja, em 23/03/2021, cinco dias após a propositura da ação (18/03/2021), encontrava-se suspenso e ainda não havia decorrido o prazo de 3 anos a contar da data do último pagamento e ressalvados os períodos de suspensão.
Por tudo o exposto, improcede a exceção de prescrição invocada pelo R..”.
O juízo formulado pelo Tribunal recorrido no sentido de que não se verifica a invocada exceção de prescrição, não merece, pois, censura devendo manter-se, improcedendo as conclusões, em contrário, tecidas pelo recorrente.
*
C) Se a decisão recorrida - de condenação do réu no pagamento à autora da quantia de € 18.905,96, acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, vencidos e vincendos desde a citação – 14-04-2021 – até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado – deve ser revogada?
Pugna o recorrente pela revogação da decisão recorrida.
Sucede que, tal revogação encontrava-se sustentada na impugnação da matéria de facto que, como se viu, resultou improcedente.
Ora, não tendo sido suscitadas, sem tal base, quaisquer causas para a alteração do decidido, nem elas se vislumbrando de oficioso conhecimento, conclui-se pela resposta negativa à questão colocada.
A apelação deverá, pois, ser julgada improcedente, com manutenção, na íntegra, da decisão recorrida.
*
De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses, sendo que, conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária inerente incidirá sobre o apelante, que decaiu integralmente no presente recurso - cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
*
5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível, em julgar improcedente a apelação deduzida e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
Notifique e registe.
*
Lisboa, 6 de julho de 2023.
Carlos Castelo Branco
Laurinda Gemas
Nelson Borges Carneiro