Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1617/08.0TBSCR.L1-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO
PEDIDO
IMPROCEDÊNCIA MANIFESTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. O despacho liminar de indeferimento de providência cautelar terá de ser reservados para situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido.
II. Nos casos de fronteira, onde a dúvida se coloca, deverá dar-se seguimento ao procedimento, ainda que se admite à partida a eventualidade do seu insucesso no âmbito da sua regular tramitação.
(Sumário do Relator PR)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I. OBJECTO DO RECURSO.
No Tribunal Judicial da Comarca de Santa Cruz, A intentou o presente procedimento cautelar não especificado contra B, pedindo que:
- o requerido seja intimado a informar para onde, ou para que Banco ou Instituição Bancária, situada no País ou no Estrangeiro, efectuou a transferência da conta que o falecido marido possuía, em 14 de Dezembro de 2007, no Banco C..., aprovisionada com 394.984,36€, bem como a fornecer todos os elementos respeitantes à operação que fez, dando conta do dinheiro que levantou da conta do falecido.
- seja decretada e imposta ao requerido a imediata proibição de, por qualquer forma ou meio, proceder ao levantamento da quantia referida; o mesmo acontecendo com a conta aberta em dólares, de que o falecido era detentor, aberta no mesmo banco e aprovisionada com 74.158,74USD e que não foi levantada;
- seja o Banco C..., S.A., com sede …, informado da providência requerida, designando-se desde logo esta entidade Bancária fiel depositária do capital transferido.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que:
A requerente foi casada, no regime da comunhão geral de bens com D...., falecido no dia 21 de Dezembro de 2007, na África do Sul;
O falecido marido possuía, em 14 de Dezembro de 2007, uma conta no Banco C..., aprovisionada com 394.984,36€, e em 3 de Janeiro, mas com data-valor de 14/12/2007, o capital foi totalmente transferido, encontrando-se a mesma a zero, tendo sido informada que fora o requerido, irmão do falecido e seu representante, quem havia processado a transferência do numerário para outra conta que desconhece;
O falecido era detentor de outra conta aberta no mesmo banco aprovisionada com 74.158,74USD, que não foi movimentada ou levantada, tendo a requerente, assim que tomou conhecimento da situação acima referida, tratado de revogar a dita procuração;
A requerente era a única herdeira do falecido e desconhece o destino que o requerido deu ao capital, sendo que, com a operação realizada, corre sérios riscos de dissipação e usurpação;
A presente providência antecede e fica dependente da acção declarativa a intentar contra o requerido com vista à condenação do mesmo a devolver à requerente do capital pertença do falecido e de que indevida e ilicitamente se apropriou.
A presente providência foi liminarmente indeferida, por douto despacho no qual defende que não se verifica o requisito do periculum in mora, por a lesão já se encontrar consumada, nada havendo a prevenir ou acautelar, não alegando a requerente nenhum facto concreto que permita, objectivamente, concluir pela existência do fundado receio, após a violação do direito, nem ser a lesão irreparável ou de difícil reparação, apesar de ser grave.
Inconformada com a decisão, veio a Requerente interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
I) - Ao invés do referido pelo Tribunal, a requerente alegou factos suficientes de modo a que o mesmo pudesse concluir com objectividade pela existência do fundado receio, após a violação, como disse.
II) - A pretensão da requerente não visou a obtenção material do numerário que o requerido fez entrar na sua conta; o que ela pretende é acima de tudo que o requerido seja ou fique impedido de levantar o dinheiro e de se apropriar do mesmo em proveito próprio.
III) - O efeito por ela pretendido não é o definitivo que apenas a acção lhe poderá proporcionar, mas antes, a obtenção de medida ou medidas cautelares que concretamente se revelem adequadas a assegurar o efeito útil emergente do exercício jurisdicional.
IV) - O facto do requerido ter feito a transferência do dinheiro (que a requerente não chegou a tempo de evitar) não significa de maneira nenhuma que a lesão já houvesse sido cometida, nem isso fez desaparecer o fundado receio de que o direito dela possa sofrer uma lesão (essa sim!) grave e dificilmente reparável, como é justamente o caso do requerido poder levantar e do mesmo passo dissipar todo o dinheiro existente na conta do extinto à data de sua morte.
V) - Daí que, persistindo a possibilidade do requerido poder levantar o dinheiro que agora está incorporado numa sua conta pessoal, cremos de bom alvitre que o mesmo seja intimado a não o fazer, isto é, a não levantar esse montante, antes mesmo de ser proferida sentença definitiva que decida o caso e resolva definitivamente a questão.
VI) - O fundado receio que funciona como pressuposto deste tipo de providências cautelares, exige que à data da sua instauração, exista uma situação de lesão iminente, mas também quando se indicie a verificação de novas lesões do mesmo direito.
VII) - A situação de perigo, id est, a possibilidade do levantamento e apropriação/dissipação do dinheiro, contra a qual a requerente quis e quer reagir, é e continua actual, sendo que o levantamento e transferência que fizera anteriormente servem justamente para fortalecer a convicção acerca da gravidade da situação e reforçar outrossim a necessidade de uma tutela cautelar que evite a repetição ou a persistência de situações lesivas.
VIII) - Poder-se-á então dizer que o levantamento, seguido do depósito numa conta pessoal, representou efectivamente um primeiro acometimento do direito da requerente; mas ao contrário do que disse o órgão jurisdicional, não se pode dizer que o mal já tenha sido perpetrado e que não haja necessidade de evitar fosse que fosse. Não, a transferência do dinheiro para a sua conta pessoal é que faz radicar a convicção de que ele pode, querendo, levantá-lo e gastá-lo como melhor lhe aprouver.
IX) - O mal maior, a lesão grave e dificilmente reparável é ou será com certeza essa, sendo isso que faz com que a requerente necessite da tutela cautelar e provisória e antecipatória que fez notar nos pedidos que fez.
X) - Nesse sentido, pode dizer-se que a lesão do direito, propriamente, ainda não ocorreu, embora exista fundado receio de que possa acontecer e que só não sucederá se o Tribunal, antecipando a tutela, o impeça provisoriamente.
XI) - Não parece de acolher o entendimento inserto no texto decisório, no sentido de que a requerente não alegou factos relativos à situação patrimonial do requerido, designadamente para o caso de, havendo ele dissipado o capital e tendo sido condenado na acção principal a devolvê-lo, não o possa fazer à custa do seu património.
XII) - Não tem lógica como deixar que o requerido faça o mal, pratique a lesão, dissipe o dinheiro, mesmo que ele seja dono de pingue património, de vasto bambúrrio.
XIII) - Julga-se que isso não faz sentido nesta sede, mas apenas e quando muito, no âmbito da acção principal já concluída.
XIV) - A decisão do indeferimento liminar, salvo o devido e merecido respeito, afigura-se precipitada, pois que os autos contêm todos os elementos, todos os requisitos e pressupostos processuais necessários ao êxito do procedimento cautelar.
XV) - A partir da transferência, admitiu-se que a lesão já fora cometida e que nada existia que fosse mister acautelar, o que já se viu não ser assim, atenta a circunstância de o requerido estar absolutamente à vontade, absolutamente liberto de quaisquer amarras para que possa levantar e fazer desaparecer todo o dinheiro.
XVI) - Afigura-se, ao que é permitido supor, que ao órgão decisor não se lhe colocou a hipótese que se vem referindo, é dizer, a probabilidade indesmentível e deletéria do requerido se poder alcandorar a todo aquele dinheiro. É exactamente o facto de ser viável e praticável tal figurino que justifica o fundado receio por parte da requerente de que o requerido possa cometer lesão grave e dificilmente reparável do seu direito.
XVII) - Nem é indiferente ao caso, maxime, ao facto de se haver rejeitado in limine a providência, a circunstância de ser o Tribunal de Santa Cruz a preparar e julgar a acção principal, o que desde logo anuncia e praticamente garante (devido ao enorme número de processos e pendências que o mesmo tem a seu cargo), a prolação de uma decisão muito diferida no tempo.
XVIII) - Será, por isso, necessário esperar pela passagem de muitos e muitos anos até que o assunto fique resolvido, quando não se descortina qualquer razão, qualquer fundamento válido e substancial para não fazer os autos avançarem para a fase subsequente, que no caso seria a produção de prova e o decretamento, sendo esse o caso, da ou das providências.
XIX) - Não o tendo feito e antes indeferido liminarmente o presente procedimento, o órgão decisor violou o disposto nos artigos 234° - A, n° 1; 381°, n° 1, do Código de Processo Civil e bem assim o art. 20° da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a composição provisória disponibilizada pelo procedimento cautelar encontra o seu fundamento último na redita disposição.
Nestes termos e nos mais de direito, deve, pois, conceder-se provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.
Não houve contra-alegação.
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento do mesmo, cumpre decidir.
A questão a resolver é a de saber se deve ser ordenado o prosseguimento do procedimento cautelar requerido.
II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
Os factos a tomar em consideração para conhecimento do recurso são os que decorrem do relatório acima inscrito.
III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.
Com a reforma processual civil operada pelo DL 329-A/95, de 12/12, as providências cautelares não especificadas, largamente enraizadas na nossa tradição como um meio de protecção de direitos ameaçados, foram eliminadas e substituídas por um «procedimento cautelar comum», no qual se insere a regulamentação dos aspectos comuns a toda a justiça cautelar.
Assim, preceitua o n.º 1 do art. 381º, do C.P.C. que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».
Por outro lado, o n.º 1, do art. 387º, do mesmo Código, complementa que «a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão».
Como diz A. Neto, “o decretamento de uma providência cautelar não especificada (comum) depende da concorrência dos seguintes requisitos: (a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado - objecto de acção declarativa -, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; (b) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; (c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393º a 427º do CPC; (d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; (e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar”.
Para que seja legítimo o recurso, em termos gerais, ao procedimento cautelar comum é necessário, pois, que concorram, os requisitos aludidos, entre os quais importa salientar, pela sua relevância: a aparência da existência de um direito e o perigo da insatisfação desse direito.
Não é necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero “fumum boni juris”, ou seja, que o direito se apresente como verosímil.
Também não é necessário que exista certeza de que a lesão do direito se vai tornar efectiva com a demora, bastando, mas exigindo-se, que se verifique um justo receio de tal lesão vir a concretizar-se.
Com efeito, o legislador condicionou a tutela antecipada, ou conservatória, do direito à realização de prova sumária quanto ao aludido fundado receio da sua lesão grave e dificilmente reparável, à prova do periculum in mora, que é requisito comum a todas as providências cautelares.
Deste modo, tem de haver-se como princípio assente que só lesões graves e dificilmente reparáveis podem facultar ao tribunal, em face da pretensão do interessado, que profira uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão.
Não se pode olvidar que, tratando-se de uma tutela cautelar decretada muitas vezes sem a audiência da parte contrária, não se poderia conceber que fosse qualquer lesão a justificar a ingerência na esfera jurídica do demandado, acaso lhe produzindo dano de que não pudesse ser ressarcido em caso de injustificado recurso à providência cautelar (art.s 385º, n.º 1 e 390º CPC).
Neste condicionalismo deve o juiz sopesar, na salvaguarda dos interesses, a par dos danos que o requerente invocar na providência, também aqueles que, possivelmente, a decisão possa comportar para o requerido, e, assim, recusar o seu decretamento se os prejuízos decorrentes para o segundo excederem manifestamente os danos alegados pelo primeiro (art. 387º, n.º 2, do CPC).
Problemático não será que só as lesões graves e irreparáveis ou de difícil reparação merecem a tutela provisória que o procedimento cautelar comum visa precaver, ficando afastadas do âmbito de interesses acautelados, ainda que irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, bem assim as lesões graves mas facilmente reparáveis.
Acresce que, como tem entendido a doutrina e a jurisprudência, o critério de avaliação do “fundado receio”, deve assentar em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade[1].
Na apreciação do aludido “justo receio” de grave lesão futura e dificilmente reparável, há que avaliar, de forma objectiva, todas as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, tomando em consideração os interesses em jogo para ambas as partes, a condição económica de cada uma, a anterior conduta do requerido e sua projecção em comportamento subsequente. Enfim, deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, sob risco de total ou parcial ineficácia da acção (declarativa ou executiva), intentada ou a intentar.
No caso em apreço, alegado que se mostra suficientemente o pretenso direito da requerente, o que essencialmente está em causa é saber se os factos invocados pela mesma também consubstanciam fundado receio de lesão do direito alegado.
Ora, a resposta não pode deixar de ser afirmativa, como a requerente demonstra nas suas doutas alegações, que, no fundamental, aqui se subscrevem.
Antes de mais e tomando-se sempre em atenção os factos invocados, não se pode considerar que a lesão do direito se mostre totalmente consumada, pois que a requerente não alega que o requerido se tenha apoderado da quantia depositada, utilizando-a em proveito próprio. O que invoca é que o requerido a levantou e que não sabe o destino que lhe deu, mostrando receio de que a venha a dissipar.
Perspectivando-se a eventualidade do requerido ter incorporado numa conta pessoal o dinheiro levantado é justo o receio de que o venha a utilizar em proveito próprio, com risco da requerente jamais vir a ser ressarcida.
Por isso, invoca a requerente e com aparente razão que a condição de perigo contra a qual quer reagir, é e continua actual, pois que o levantamento e transferência que o requerido fizera anteriormente servem justamente para fortalecer a convicção acerca da gravidade da situação e reforçar a necessidade de uma tutela cautelar que salvaguarde o que ainda pode ser garantido.
Na verdade, o levantamento do depósito bancário, seguido, ao se supõe, do depósito numa conta pessoal, representou efectivamente uma primeira ofensa ao direito da requerente, mas não se pode considerar que a lesão do direito já tenha sido inteiramente consumada e que nada mais haja a acautelar.
Parece haver e que se traduz precisamente no que a requerente pretende com o presente procedimento cautelar.
Tendo o requerido efectuado a transferência do dinheiro para a sua conta é justo o receio ou razoável a convicção de que ele poderá, se quiser, levantá-lo e gastá-lo sem dar contas à requerente.
E essa eventualidade, a todo o tempo verificável, não se compadece com a morosidade própria da acção principal, da qual apenas se pode esperar, nessa vertente, uma decisão alongada no tempo, facultando ao requerido uma posse, quiçá excessiva e aparentemente indevida do dinheiro.
Além disso, a requerente pretende que o requerido seja intimado a abster-se de levantar o dinheiro de outra conta, o que parece justificado em face do precedente que aquele resolveu eleger.
Não se vê, por isso, obstáculo ao prosseguimento do presente procedimento cautelar.
Em Suma:
Os despachos liminares de indeferimento das providências cautelares terão de ser reservados para situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido, pois que nos casos de fronteira, onde a dúvida se coloca, deverá dar-se seguimento ao procedimento, ainda que se admite à partida a eventualidade do seu insucesso dentro da sua normal tramitação.
Procedem, assim, as conclusões do recurso, sendo de revogar a decisão recorrida.
IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento à apelação e revoga-se a decisão recorrida, para efeito de prosseguimento do procedimento.
Custas pela apelante, a atender a final (art. 453º do CPC).
Lisboa, 01 de Outubro de 2009.
FERNANDO PEREIRA RODRIGUES
MARIA MANUELA GOMES
OLINDO SANTOS GERALDES
        

[1] Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. I, pág. 684 e Ac. RL, de 26.05.83, in Col. Jur., 1983, tomo III, pág. 132 e Ac da RP de 27.11.2003, acessível em http://www.dgsi.pt/jrp.