Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
111/18.6T8FAR-A.L1-5
Relator: RUI COELHO
Descritores: TRATAMENTO INVOLUNTÁRIO AMBULATÓRIO
REVISÃO
DIREITO DE AUDIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/07/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NULIDADE
Sumário: Sumário:
I - Uma vez determinado o tratamento involuntário em ambulatório, impõe-se a sua revisão periódica, nos termos do art.º 25.º/2 da Lei de Saúde Mental.
II - Essa revisão deverá ser precedida de audição do Requerido, de viva voz, ainda que mediante utilização de meios de comunicação à distância.
III - Não pode o Tribunal prescindir da realização da diligência na qual o Requerido pode falar bastando-se com uma notificação para que este se pronuncie ou requeira o que entenda pertinente.
IV - A Lei de Saúde Mental estabelece como direito especial da pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental, no âmbito deste processo de tratamento involuntário, o direito de participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito seja presencialmente seja por meio de equipamento tecnológico, à distância, não o prevendo por simples interpelação para se pronunciar por escrito.
V - O que lei garante é um verdadeiro direito de audição (de viva voz) e não apenas um direito de pronúncia.
VI - A preterição deste direito constitui nulidade insanável.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Loures – J1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte foi proferido o seguinte despacho:
« O artigo 25.º, da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, que aprova a nova Lei da Saúde Mental, adiante LSM, prevê o regime da revisão da decisão do tratamento involuntário.
A revisão da decisão é obrigatória, independentemente de requerimento, decorridos dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que o tiver mantido (artigo 25.º, n.º 2 da LSM). Para este efeito, o serviço de saúde mental envia ao tribunal, até 10 dias antes da data calculada para a revisão obrigatória, um relatório de avaliação clínicopsiquiátrica elaborado por dois psiquiatras, com a colaboração de outros profissionais do respetivo serviço (artigo 25.º, n.º 4 da LSM).
A revisão da decisão tem lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário e dos demais intervenientes - artigo 25.º, n.º 5 da LSM.
Veio já o Ministério Público pronunciar-se nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 25.º, n.º 5, da LSM, promovendo a manutenção do tratamento involuntário em ambulatório.
Notificado o internando e o seu II. Defensor, para, querendo, se pronunciarem acerca do teor do Relatório de avaliação clínico-psiquiátrica e, bem assim, quanto à necessidade de realização da diligência prevista no artigo 22.º, n.º 2 da LSM, nada disseram ou requereram.
Ora, atento o teor do relatório de avaliação psiquiátrica que antecede (subscrito por dois profissionais médicos), cujo teor não foi colocado em crise, constata-se manterem-se atuais os pressupostos que determinaram a aplicação da medida de tratamento involuntário em regime ambulatório.
Ademais, é certo que o relatório assinala a existência de perigo para bens jurídicos pessoais e patrimoniais do próprio, destacando ausência de crítica para a doença, com risco de descompensação clínica.
Termos em que se determina que o internando AA continue sujeito a tratamento involuntário em regime ambulatório. por se manterem inalterados os pressupostos que o determinaram.»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Ministério Público formulando as seguintes conclusões:
« 1. Os presentes autos tiveram origem comunicação remetida pelo Departamento de Psiquiatria do Centro Hospital do ..., através da qual foi informado que AA, que padece de Psicose, em virtude do mesmo evidenciar, em ........2018, ideação persecutória dirigida a terceiros, discurso delirante, períodos de agitação e heteroagressividade, realidade que consubstanciava um risco significativo para a sua integridade física e vida, vide ref.ª 5139354.
2. De salientar que, em cumprimento do disposto no art.º 17.º, da Lei 36/98 de 24 foi junto relatório da avaliação clínico-psiquiátrica, e, seguidamente, foi agendada a realização de diligência de sessão conjunta, vide ref.ª 108584279, sendo que, no decorrer desta diligência, foi determinada a “…a manutenção do internamento compulsivo em regime ambulatório do AA…”, vide ref.ª 108746766.
3. No seguimento do exposto e até à presente data o requerido continua a beneficiar de tratamento involuntário em regime de ambulatório.
4. No entanto, e apesar da entrada em vigor da Lei 35/2023 de 21.07, recepcionados os relatórios clinico-psiquiátricos elaborados nos termos do art.º 25.º, n.º 4 da Lei de Saúde Mental, o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal a quo não procede à realização de audição presencial do “…Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínicopsiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento…”, ao invés, notifica, com cópia do supramencionado relatório clinico-psiquiátrico o beneficiário do tratamento involuntário, o seu defensor e a pessoa de confiança daquele, para, querendo, no prazo de 5 dias, se pronunciarem sobre a manutenção do tratamento involuntário em regime ambulatório, no exercício do seu direito de audição, vide despachos datados de 12.10.2023 – ref.ª 157716372, 05.04.2024 – ref.ª 159341945, 12.03.2024 – ref.ª 160222672, 11.06.2024 – ref.ª 161277786, 03.09.2024 – ref.ª 161995133, 23.06.2025 – ref.ª 165598546.
5. De salientar que, no despacho que ora se recorre, à semelhança do anteriormente verificado, após o anteriormente expendido, em virtude de nada ser requerido ou junto, a Meritíssima Juiz de Direito do Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho, em 23.06.2025 (ref.ª 165598546): (…)
6. Ora, o Ministério Público não concorda com o teor do supramencionado despacho judicial, uma vez que o mesmo, em nosso entendimento, não só é desprovido de suporte legal, mas também viola o que legalmente se encontra previsto nos art.ºs 25.º ex vi 21.º, n.º 1, 22.º, 27.º ex vi art.º 33.º, todos da Lei 35/2023 de 21.07.
7. Analisados os referidos preceitos legais, em nosso entendimento, não resulta qualquer causa que fundamente a desnecessidade da realização quer da sessão conjunta, quer da diligência de audição prevista no art.º 25.º, n.º 4 da Lei 35/2023 de 21.07, ao invés, verificamos que o tratamento involuntário em regime ambulatório tem subjacente a possibilidade de sujeição do doente a tratamento em regime de internamento, sempre que o requerido deixe de cumprir as condições estabelecidas para o tratamento em ambulatório, mediante comunicação ao tribunal competente.
8. De acrescentar que, em nosso entendimento, o legislador nacional, com a nova Lei de Saúde Mental, além do mais, pretendeu, na realidade, sublinhar e reforçar o regime instituído pela Lei 36/98 de 24.07, no decorrer da qual, o art.º 19.º, n.º 1 dispunha, ao invés da Lei 35/2023 de 21.07, que “…Na sessão conjunta é obrigatória a presença do defensor do internando e do Ministério Público…”, sendo que, ao substituir a expressão “internando” ( art.º 19.º, n.º1 Lei 36/98 de 24.07) por “requerido” (art.º 21.º da Lei 35/2023 de 21.07) o legislador pretendeu ultrapassar quaisquer dúvidas ou extinguir práticas judiciárias inadequadas existentes, e por conseguinte, impor, sem qualquer margem para dúvidas, que, em todos os processos de tratamento involuntário, quer o requerido se encontre a beneficiar de tratamento involuntário em regime de internamento ou em regime de ambulatório, teria de ser agendada e realizada a diligência de sessão conjunta.
9. De igual forma, que o art.º 25.º, n.º 4 e n.º 5 da Lei 35/2023 de 21.07, estabelecem, de forma peremptória, que a revisão da decisão “…em lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento…”, sendo que, “…É correspondentemente aplicável à audição prevista no número anterior o disposto no n.º 2 do artigo 22.º, e à decisão de revisão o disposto no artigo 23.º…”.
10. Ora, efectuada uma análise a todas as supramencionadas disposições legais, resulta, em qualquer margem para dúvidas, que a sessão conjunta bem como a diligência de audição com vista à revisão da decisão, consubstanciam diligências obrigatórias do processo de tratamento involuntário, as quais deve preceder a decisão final, sendo que, tal obrigatoriedade existe, quer se trate do processo resultante de internamento de urgência, atenta a remissão do art.º 33.º, n.º 3 da Lei 35/2023 de 21.07, aplicando-se a todas as situações de tratamento involuntário, ou seja, quer o requerido se encontre em internamento ou em ambulatório, vide art.ºs 22.º, n.º 3 e 4, 23.º, n.º 2, al. d) e 33.º, n.º 4, todos da Lei 35/2023 de 21.07.
11. Pelo exposto, consideramos que a não realização da diligência de audição para se proceder à revisão da decisão de manutenção do tratamento involuntário consubstancia uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119.°, alínea d), do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no art.º 37.º, da Lei de Saúde Mental, uma vez que a mesma é obrigatória.
12. De acrescentar que, por força do disposto do art.º 5.º da Lei n.º 35/2023, um dos objetivos da política de saúde mental é promover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e combater o estigma face à doença mental, pelo que, apenas e tão-só através da realização da sessão conjunta tais direitos podem ser, devidamente, acautelados.
13. Assim, consideramos que o despacho recorrido deve ser substituído por outro que determine a realização de diligência de audição para se proceder à revisão da decisão de manutenção do tratamento involuntário, diligência de realização obrigatória, uma vez que apenas mediante a sua realização poderá assegurar-se o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos requeridos em processos de tratamento involuntário, com a presença obrigatória do defensor ou mandatário constituído e do Ministério Público (cfr. artigos 25.º ex vi 21°, 22°, todos da Nova Lei da Saúde Mental), por forma a acautelar a legalidade do processo e o princípio do contraditório, tendo o Tribunal a quo violado as disposições conjugadas dos artigos 8.º, 14.º, 15.º, 19.º, 20.º, 21.º, 23.º, 27.º, 33.º, n.º 3, da Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (Nova Lei de Saúde Mental), artigo 119.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal. »
- da resposta -
Notificado para tanto, não respondeu Requerido.
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da procedência do recurso
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a única questão a decidir é a de saber se o despacho recorrido é nulo porque proferido sem que tivesse sido realizada a sessão conjunta, inexistindo fundamento para dela prescindir.
FUNDAMENTAÇÃO
- da sessão conjunta
Considerando a questão suscitada pelo recurso, importa atender ao que dispõe a lei sobre a matéria do internamento compulsivo e do tratamento involutário em regime de ambulatório.
Os passos processuais do procedimento que nos ocupa estão regulados nos art.º 17.º e seguintes da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho). A sessão conjunta (art.º 22.º) merce inclusivamente um artigo dedicado à sua preparação (21.º). Deste último resulta a necessidade de notificação do Requerido sendo que, porém, a sua presença não é obrigatória (22.º/1).
Caso esteja presente, o Requerido tem que ser ouvido (art.º 22.º/3), segundo o qual «Após audição das pessoas notificadas e convocadas», ou seja, apenas após a sua audição deverá o Juiz dar a palavra para alegações.
No que toca ao requerido, mais relevante se torna tal audição porque, se nessa diligência o mesmo aceitar o tratamento e não houver razões para duvidar dessa aceitação, está aberto o caminho para o arquivamento do processo (n.º 4).
Nos presentes autos, o Requerido foi sujeito a tratamento involuntário em ambulatório, sendo a decisão recorrida referente a uma revisão, tal como previsto no art.º 25.º/2 da Lei de Saúde Mental. E está previsto, no mesmo artigo: « 4 - Para o efeito previsto no n.º 2, o serviço de saúde mental envia ao tribunal, até 10 dias antes da data calculada para a revisão obrigatória, um relatório de avaliação clínico-psiquiátrica elaborado por dois psiquiatras, com a colaboração de outros profissionais do respetivo serviço.
5 - A revisão da decisão tem lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento.
6 - É correspondentemente aplicável à audição prevista no número anterior o disposto no n.º 2 do artigo 22.º, e à decisão de revisão o disposto no artigo 23.º »
Ora, a remissão para o art.º 22.º/2 permite, desde logo, compreender que a audição do requerido se presume de viva voz, ainda que mediante utilização de meios de comunicação à distância.
Porém, no caso que nos ocupa, bastou-se o Tribunal a quo com a notificação do requerido e seu defensor para, querendo, se pronunciarem. Perante este quadro, será que foi garantido o direito de audição do Requerido?
Deveria ter sido ouvido presencialmente ou via meio de comunicação à distância com imagem e som?
Cientes das questões relativas ao princípio da imediação, entendemos que estes se mostram particularmente relevantes em sede de prova e poderão, ainda que assim não seja em todos os casos, revelar-se essenciais para apurar a credibilidade do depoente, a veracidade do testemunho, a espontaneidade das suas reacções.
Neste processo o Requerido não é ouvido como testemunha. A sua audição está delimitada por uma condição clínica, cujo juízo médico está subtraído à livre apreciação do Juiz (art.º 20.º/6 da Lei de Saúde Mental), e visa apenas permitir ao decisor aferir da viabilidade de um tratamento voluntário.
O quadro normativo da Lei de Saúde Mental visa permitir a sujeição do doente a um tratamento involuntário, ou seja, contra a sua vontade manifesta. Navegamos em águas de limitação de direitos fundamentais e, por isso, todo o quadro legislativo aplicável se mostra garantístico e desenhado de acordo com um princípio de intervenção mínima. De tal é sintomático o art.º 15.º/4 da Lei de Saúde Mental, segundo o qual « As restrições aos direitos, vontade e preferências das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental decorrentes do tratamento involuntário são as estritamente necessárias e adequadas à efetividade do tratamento, à segurança e à normalidade do funcionamento da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental, nos termos do respetivo regulamento interno».
Mais, estabelece a própria Lei de Saúde Mental um conjunto de direitos e deveres que, no que toca aos primeiros e ao Requerido em processo de tratamento involuntário, consagram expressamente o direito de (art.º 8.º/3 al. b) «Participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre; ».
A actual lei consagra o direito de participação presencial ou por meio de equipamento tecnológico. Diferente era o preceito na anterior lei, Lei n.º 36/98, de 24 de Julho, que no seu art.º 10.º previa o direito «b) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito, excepto se o seu estado de saúde o impedir;», ou seja, estabelecendo a regra de presença física do Requerido [Ac. Tribunal da Relação do Porto de 26.06.2029, Desembargador William Themudo Gilman - ECLI:PT:TRP:2019:674.16.0T8OVR.Q.P1.CF].
Contudo, a lei mudou. Operando a leitura comparada dos dois preceitos, mostra-se manifesta a vontade do legislador de tornar igualmente válida a regra da audição à distância, o que fica demonstrado pela utilização do “ou” entre as duas possibilidades [cfr. Ac. Tribunal da Relação do Porto de 13.11.2024, Desembargador Francisco Mota Ribeiro - ECLI:PT:TRP:2024:1164.11.3TBPRT.A.P1.1A];
Assim, consagrada que foi a possibilidade de participação à distância, se no decurso desta o Juiz precisar de maior imediação, poderá sempre lançar mão da interrupção da diligência para a retomar com a presença do Requerido.
Porém, o Tribunal a quo foi mais longe. Tratando-se da revisão da medida, que ocorre necessariamente de dois em dois meses, prescindiu da realização da diligência na qual o Requerido poderia falar, por uma notificação para que este se pronunciasse ou requeresse o que entendesse pertinente.
Recordemos que a Lei de Saúde Mental sofreu uma alteração recente, consagrando um conjunto de alterações nas quais se inclui a de permitir a audição do Requerido por meios de comunicação à distância como forma de garantir a sua participação nas decisões que o afectem directamente. Por isso previu igualmente a audição de quem já está internado ou sujeito a tratamento involuntário aquando das revisões periódicas da medida, permitindo a sua participação pelos mesmos meios.
Ou seja, a lei em causa estabelece como direito especial da pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental, no âmbito deste processo de tratamento involuntário, o direito de participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito seja presencialmente seja por meio de equipamento tecnológico, à distância. Não o prevê por simples interpelação para se pronunciar por escrito. Aliás, como escrito no Ac. Tribunal da Relação do Porto de 13.11.2024 citado «No tocante à audição em presença da pessoa necessitada de cuidados de saúde mental, a opção legislativa assim plasmada na nova Lei da Saúde Mental dá ainda cumprimento à Recomendação 818 (1977), da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, dirigida ao Comité de Ministros, no seu ponto 17. iii., na qual se recomenda o convite aos governos dos Estados membros no sentido de diligenciarem para que as decisões dos tribunais não sejam tomadas com base apenas em relatórios médicos, mas que a pessoa doente, como qualquer outra pessoa, tenha o direito efetivo de ser ouvida. »
Assim, o que se exige é a garantia de um verdadeiro direito de audição (de viva voz) e não apenas um direito de pronúncia, mediante notificação para se fazer chegar aos autos a sua posição.
Não tendo o Tribunal propiciado tal oportunidade, estamos perante um vício cujas consequências temos que procurar no Código de Processo Penal, ex vi art.º 37.º da Lei de Saúde Mental. Ora, nos termos do art.º 119.º al. c), a falta do Arguido, neste caso, do Requerido, quando a lei exige a sua comparência, neste caso para ser ouvido, importa uma nulidade insanável, sendo esse o vício que macula a decisão recorrida.
Como tal, declara-se nulo o despacho recorrido, por preterição da diligência de audição, presencial ou via mecanismos de comunicação à distância com imagem e som, do Requerido – art.º 122.º do Código de Processo Penal. Consequentemente, determina-se a repetição do acto, desta feita precedida da audição do Requerido em conformidade como os preceitos acima citados.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar nulo o despacho recorrido. Mais se determina que o Tribunal a quo realize diligência de audição do Requerido nos termos dos art.º 25.º e 22.º/2 da Lei de Saúde Mental) com a presença obrigatória do defensor ou mandatário constituído e do Ministério Público, previamente à decisão que vier a ser proferida em substituição do despacho agora declarado nulo.
Sem custas.

Lisboa, 07 de outubro de 2025
Rui Coelho
Paulo Barreto
Alda Tomé Casimiro