Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLA MATOS | ||
Descritores: | CONSTRUÇÃO CLANDESTINA TESTAMENTO LEGADO DIREITO DE USUFRUTO NULIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/30/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | Sumário: (da exclusiva responsabilidade da Relatora): I.A operação urbanística/de loteamento não autorizada nem licenciada correspondente à edificação de uma moradia numa concreta parte de um terreno rústico (com a consequente autonomização material de um lote para construção) é anterior à outorga do testamento que instituiu o legado do usufruto da moradia. II. Assim sendo, tal operação urbanística não autorizada nem licenciada não se constituiu por via do ato jurídico que é o testamento (uma vez que lhe pré-existe), e, nessa perspetiva, a constituição do legado correspondente ao usufruto da casa não, é, per si, contrária à lei; o que é contrario à lei é o ato material pré-existente de edificação da moradia numa concreta porção de um terreno rústico, e que é independente da posterior constituição do usufruto sobre a moradia. III.A descrição no registo predial não é condição de existência jurídica da coisa, desde logo, porque, com exceção dos factos referentes à hipoteca, o registo não tem caráter constitutivo. IV. Apesar de não licenciada, ou seja, ser clandestina, a edificação existia fisicamente, e o direito correspondente à mesma ingressou na esfera jurídica do de cujus. V. Tal edificação, enquanto coisa corpórea, é suscetível de gozo e fruição, e, portanto, de ser objeto de constituição de usufruto. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório: A …, solteiro e maior, contribuinte fiscal n.º … 19, residente na Rua …, n.º … – rés-do-chão, 1170- … Lisboa, B …, solteiro e maior, contribuinte fiscal n.º … 05, residente na Rua …, n.º … – ….º Esq.º, 2685- … Portela LRS, e C …, solteira e maior, contribuinte fiscal n.º … 13, residente na Praceta … – Lote …, Apartamento …, 8200- … Olhos de Água, Albufeira, instauraram a presente acção declarativa, que segue a forma de processo comum, o que fizeram contra D …, divorciado, contribuinte fiscal n.º … 00, residente na Avenida …, Parcela … – Lote …, Aroeira, Charneca de Caparica, em Almada. Para sustentar as pretensões que nestes autos contra o réu formularam, os autores invocaram, em suma, que: - E … faleceu no dia 13 de Março de 2020, no estado de divorciado da mãe dos autores, sendo estes os seus únicos filhos e herdeiros legitimários; - Por sucessão hereditária de sua mãe, o de cujus adquiriu a quota indivisa de 859,4/5165 na propriedade do prédio rústico sito no Pinhal da Aroeira, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo …, da União das Freguesias de Charneca de Caparica e Sobreda, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º …, da freguesia Charneca da Caparica, tendo tal quota de compropriedade sido registada em nome do de cujus, no dia 26 de Janeiro de 2009, pela Ap. …, junto da Conservatória do Registo Predial de Almada; - A quota de compropriedade herdada corresponde a um talhão do referido prédio rústico, onde se encontra erigida uma moradia unifamiliar em alvenaria, coberta de telha e um anexo, a qual se encontra actualmente inscrita junto da Autoridade Tributária e Aduaneira como prédio urbano em propriedade total, sito na Avenida …, Parcela …, Lote …, 2820- … Charneca da Caparica, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da União das Freguesias de Charneca de Caparica e Sobreda; - Tal prédio urbano foi construído clandestinamente, sem licença de construção e sem licença de utilização, não se encontrando registado junto da Conservatória do Registo Predial; - À data do óbito do de cujus, o único bem que compreendia a herança era o referido prédio, com o valor patrimonial actual de € 124.714,20; - Até à presente data, os autores não efectuaram a partilha, permanecendo a herança ilíquida e indivisa, tendo procedido apenas à habilitação de herdeiros, no dia 17 de Abril de 2020; - Em Abril de 2020, os autores foram informados pela Conservatória dos Registos Centrais do Instituto dos Registos e Notariado que o de cujus elaborou um testamento, no dia 8 de Abril de 2014, de cujo conteúdo os autores tomaram conhecimento no dia 5 de Maio de 2020, ficando nessa altura cientes que, pelo dito testamento, o de cujus legou ao réu o usufruto vitalício da sua casa de habitação, situada na Avenida …, parcela …, lote …, Aroeira, Charneca da Caparica, Almada, compreendendo o usufruto de todo o seu recheio, incluindo de todos os créditos cujos respectivos títulos venham a ser encontrados no seu interior; - Sendo tal prédio o único bem que compõe a herança e correspondendo o valor da legítima dos autores a dois terços do valor do prédio rústico, equivale, assim, a legítima ao valor de € 197.840,53 aproximadamente e a quota disponível à diferença entre o valor do bem (€ 296.760,80) e o valor da legítima (€ 197.840,53), o que corresponde a € 98.920,27; - O valor do usufruto, tendo em conta a idade do réu, que é de 45 anos, é de € 148.380,40, determinado ao abrigo do disposto das regras previstas no art.º 13.º, alínea b), do Código do IMT; - Logo, o legado ofende a legítima dos autores em € 49.460,13, correspondente à diferença entre o valor do usufruto (€ 148.380,40) e o da quota disponível (€ 98.920,27), consistindo, por esse motivo, numa liberalidade inoficiosa que, caso não seja declarada a nulidade do legado, tem de ser reduzida, devendo o réu ser condenado no pagamento aos autores do valor de € 49.460,13. Concluem os autores peticionando que seja a ação julgada procedente, por provada, e, em consequência formulam contra o réu o seguinte pedido: a) Reconhecer-se que os autores são, na qualidade de descendentes do de cujus E …, seus legítimos herdeiros legitimários; e b) Declarar-se o legado instituído pelo de cujus E …, por testamento outorgado no dia 8 de Abril de 2014, nulo em substância, por ter como objecto um bem imóvel ilegal, devendo, em consequência, o réu ser condenado a restituir aos autores o prédio urbano, em propriedade total, sito na Avenida …, Parcela …, Lote …, 2820- … Charneca da Caparica, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da União das Freguesias de Charneca de Caparica e Sobreda, devoluto de pessoas e de bens da sua propriedade e ordenar-se o cancelamento de todos e quaisquer registos efectuados ou a efectuar pelo réu que tenham por base o referido testamento. Ou, subsidiariamente, caso assim se não se entenda: c) Reconhecer-se que a legítima dos autores ascende a € 197.840,53; d) Reconhecer-se que a liberalidade realizada pelo de cujus E …, por testamento outorgado no dia 8 de abril de 2014, é inoficiosa, por ofender a legítima no montante de € 49.460,13; e e) Reduzir-se, por inoficiosidade, a liberalidade em apreço, nos termos e para os efeitos dos artigos 2168.º, 2169.º, 2174.º, n.º 2 e 2178.º, do CC, e, em consequência, condenar-se o réu no pagamento aos autores da quantia de € 49.460,13, correspondente ao valor da redução, até a legítima se encontrar preenchida; e f) Condenar-se o réu no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor mínimo de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros), por cada dia de atraso no cumprimento. O réu apresentou contestação, na qual se defendeu por impugnação, invocando ser válida a deixa testamentária do usufruto da casa de habitação do de cujus, por ser essa a sua vontade, bem como se defendeu por exceção, invocando que ocorre erro na forma do processo no que toca ao pedido subsidiário, por considerar que os autores deveriam ter requerido o inventário (judicial ou não) para aí ser discutida, se fosse o caso, a questão da redução da liberalidade por inoficiosa. Os autores vieram, na sequência do convite que para tanto lhes foi endereçado pelo tribunal, apresentar a sua resposta, pugnando pela improcedência da exceção invocada. No despacho saneador foi julgada procedente a exceção de erro na forma de processo no tocante ao pedido subsidiário, decisão da qual foi pelos autores interposto recurso e que veio a ser revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu ser de admitir o pedido de redução de liberalidade por inoficiosidade nesta ação declarativa de processo comum. Após saneamento e instrução dos autos, teve lugar a realização de audiência de julgamento, finda a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelos fundamentos de facto e de Direito que ficaram expressos, julgo a acção parcialmente procedente, por provada em parte, e, em consequência: a) Reconheço que os autores A …, B … e C …, na qualidade de descendentes do de cujus E …, são os seus herdeiros legitimários; b) Declaro que a legítima dos autores A …, B … e C …, na herança aberta por óbito do seu progenitor E …, ascende a € 101.800,00 (cento e um mil e oitocentos euros); c) Declaro que a liberalidade realizada pelo de cujus E …, a favor do réu D …, por testamento outorgado no dia 8 de Abril de 2014, é inoficiosa, por ofender a legítima dos autores no montante de € 25.450,00 (vinte e cinco mil e quatrocentos e cinquenta euros); d) Decreto a redução, por inoficiosidade, da liberalidade feita através do legado instituído pelo de cujus E …, por testamento outorgado no dia 8 de Abril de 2014, a favor do réu D …, em consequência do que o condeno no pagamento aos autores A …, B … e C …, da quantia de € 25.450,00 (vinte e cinco mil e quatrocentos e cinquenta euros), correspondente ao valor da redução; e) Absolvo o réu dos restantes pedidos que contra o mesmo foram nestes autos formulados pelos autores; f) Condeno os autores e o réu nas custas do processo, na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 2/3 para os autores e em 1/3 para o réu. * * * Registe e notifique. * * * Requerimento de 16.04.2024, com a referência 39096778: Fixo a remuneração do Exm.º Sr. Perito em 1 (uma) UC (Unidade de Conta). Notifique. Dê pagamento. “ *** Inconformados, vieram os AA intentar recurso de apelação, apresentando alegações com as seguintes conclusões: “1. O Tribunal a quo incorre em erro de julgamento ao desvalorizar as normas respeitantes à nulidade do negócio jurídico, aplicáveis ao caso em apreço nos autos; 2. Porquanto ignora que a nulidade invocada decorre do artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil, por legalidade do objecto do legado (negócio jurídico); 3. E não por aplicação de norma paralela ao regime anteriormente consagrado no Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro; 4. Contrariamente ao que é sustentado na Sentença Recorrida, a nulidade do legado não depende da aplicação de normas de direito público – ainda que se fundamente na violação das mesmas – mas sim da aplicação de normas de direito privado; 5. O Tribunal a quo reconheceu correctamente que a edificação urbana objecto do legado se encontra em terreno rústico e que, à luz do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), não estava autorizada nem licenciada à data da outorga do testamento e da abertura da sucessão; 6. A edificação em causa, por não estar licenciada, é contrária às normas imperativas do RJUE, e, como tal, o legado do usufruto sobre essa edificação deve ser considerado nulo nos termos do artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil, o qual estabelece a nulidade dos negócios cujo objecto seja contrário à lei. 7. A referência ao Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de Janeiro, pelo Tribunal a quo é inadequada, pois o que está em causa é a nulidade de uma deixa testamentária que constitui um direito real sobre um imóvel erigido ilegalmente e não a partilha ou transmissão do mesmo; 8. A Sentença Recorrida peca na correcta apreciação das normas aplicáveis à nulidade do negócio jurídico. 9. Ao reconhecer que a edificação em terreno rústico foi realizada sem licenciamento, o Tribunal a quo deveria ter concluído pela nulidade do legado, nos termos do artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil; 10. A edificação urbana foi construída de forma ilegal sobre o prédio rústico, o que torna impossível a transmissão ou constituição de direitos reais sobre essa construção. Como consequência, o legado que visa constituir o direito de usufruto a favor do Recorrido é nulo; 11. O único bem que integra a herança são avos indivisos de um prédio rústico, conforme os factos provados. Este é o único bem passível de ser objecto de transmissão ou constituição de direitos reais; 12. A moradia ilegal não é descrita predialmente, nem pode ser, devido à sua condição irregular; 13. A inscrição matricial da edificação urbana apenas serve para fins tributários, não constituindo, nem o reconhecimento da legalidade da coisa em si, nem título de propriedade, nem atestando a existência, no ordenamento jurídico, de um prédio urbano; 14. Existem duas realidades incompatíveis: a. Por um lado, o prédio rústico devidamente registado e passível de partilha pelos Recorrentes; b. Por outro lado, uma moradia ilegalmente construída que não é reconhecida na realidade jurídica; 15. Nos termos do artigo 280.º do Código Civil, o negócio jurídico é nulo quando o seu objecto é legalmente impossível ou contrário à lei: 16. No momento da abertura da sucessão, a edificação urbana, sem licença de utilização e construída em violação flagrante da lei aplicável, não poderia ser objecto de transmissão ou constituição de direitos reais. 17. A jurisprudência tem sido unânime ao afirmar que a ausência de licença de utilização ou construção implica a nulidade do negócio jurídico; 18. Assim, a edificação em questão configura um objecto contrário à lei e o usufruto constituído por legado, um negócio impossível, o que gera a sua nulidade; 19. A nulidade invocada refere-se à ilegalidade do imóvel objecto do usufruto e não a um vício formal do testamento; 20. O artigo 286.º do Código Civil prevê que a nulidade deve ser conhecida oficiosamente; 21. As consequências dessa nulidade incluem a restituição de qualquer prestação feita, nos termos artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil; 22. Nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do Código do Registo Predial (CRP), é exigido que, para a transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis, estes estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa que transmite o direito ou contra quem se constitui o encargo; 23. A referida norma, conjugada com o artigo 280.º do CC, reforça a nulidade da deixa testamentária; 24. O único bem devidamente inscrito a favor do de cujus é a quota indivisa de 859/5165 avos de um prédio rústico, não existindo registo da moradia em questão; 25. Desta forma, não existe sustentação legal para a constituição do usufruto sobre a moradia ilegal, o que torna o legado nulo à luz do artigo 9.º, n.º 1, do CRP e do artigo 280.º do Código Civil; 26. A inscrição predial é condição essencial prévia para a prática de actos de disposição sobre imóveis, de forma a assegurar a publicidade e a segurança jurídica do comércio imobiliário, nos termos do artigo 1.º do CRP; 27. No presente caso, a ausência de registo predial da edificação urbana compromete a segurança jurídica, inviabilizando a constituição de qualquer direito sobre a mesma; 28. No caso, apenas seria válida a constituição do direito de usufruto no testamento, se incidisse sobre os avos indivisos devidamente registados; 29. Conclui-se, assim, que o direito de usufruto legado é juridicamente inexistente (e nulo), uma vez que o objecto sobre o qual incide (a edificação urbana) não tem existência legal; 30. A nulidade do usufruto constitui-se a partir da ausência de um objecto juridicamente válido para o direito real, nos termos dos artigos 9.º do CRP e 280.º do Código Civil; 31. O direito real legado não está relacionado com a Posse de uma construção ilegal, nem foi a Posse que lhe foi transmitida pelo de cujus; 32. Ao contrário do que a Sentença Recorrida sugere, a deixa testamentária em questão não se limita a transmitir a Posse de uma coisa corpórea, mas sim a constituir um Direito Real de Usufruto; 33. A utilização do instituto da Posse pelo Tribunal a quo para validar a transmissão do direito de usufruto é imprópria; 34. A tutela jurídica da Posse pretende conferir a uma situação de facto assente na aparência de um direito a protecção que o reconhecimento social dessa situação de facto exige, 35. Porém, a tutela começa e acaba no reconhecimento de determinados direitos do titular da Posse sobre o bem objecto da mesma. A Posse é uma situação de facto que confere uma protecção relativa, assente na relação entre um determinado sujeito e um determinado objecto. 36. E como tal, não é oponível a terceiros e não configura, por conseguinte, título que permita a transmissão de direitos reais absolutos, com eficácia erga omnes, oponíveis a terceiros. 37. Não assiste ao possuidor o direito de transmitir o usufruto a terceiros. Essa faculdade pertence exclusivamente ao proprietário. 38. O direito real de usufruto pressupõe necessariamente a possibilidade de registo (para assegurar o efeito erga omnes e a o seu carácter absoluto) e a edificação em questão, sendo ilegal, não pode ser registada, o que a torna inexistente para efeitos de usufruto; 39. O registo predial está sujeito ao princípio da legalidade substancial, o que significa que os factos a serem inscritos devem ser válidos e conformes com a Lei, nos termos do artigo 68.º do CRP; 40. A constituição do usufruto sobre a construção ilegal é nula, inviabilizando a possibilidade de inscrição predial; Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido total provimento ao presente Recurso de Apelação, devendo ser revogada a Sentença Recorrida na parte do decaimento (relativamente ao segundo pedido principal) e, em consequência: a) Declarar o legado instituído pelo de cujus E …, por testamento outorgado no dia 8 de Abril de 2014, nulo em substância, por ter como objecto um bem imóvel ilegal, devendo em consequência ser o Recorrido condenado a restituir aos Recorrentes o Prédio Urbano, em propriedade total, sito na Avenida …, Parcela …, Lote …, 2820- … Charneca da Caparica, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da União das Freguesias de Charneca da Caparica e Sobreda, devoluto de pessoas e de bens da sua propriedade e ordenar-se o cancelamento de todos e quaisquer registos efectuados ou a efectuar pelo Recorrido que tenham por base o referido testamento.” O réu contra-alegou, concluindo nos seguintes termos: “I. Os Recorrentes interpõem o presente recurso com base na sua convicção pessoal e divergência interpretativa da lei relativamente à realizada pelo tribunal a quo. II. Não obstante, e salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão aos Recorrentes relativamente à sua pretensão, a qual, ao longo das suas alegações, limitam-se a dar aquela que, para si, deveria ter sido a análise e interpretação da lei do julgador face à prova produzida. III. Sendo que, entende-se da alegação apresentada pelos Recorrentes que o fundamento do presente recurso consiste na divergência entre as suas convicções pessoais sobre a interpretação legal referente à prova produzida em audiência e a convicção que o Tribunal firmou legalmente sobre os factos. IV. O Tribunal a quo fundamentou e partilhou o modo como atingiu as respostas e no sentido em que as cristalizou. V. Assim, não se mostrando verificados quaisquer requisitos que pudessem consubstanciar a nulidade pretendida pelos Recorrentes da deixa Testamentária, concretamente do legado em que foi constituído o Usufruto Vitalício, que tem por base o imóvel, a favor do Recorrido. VI. O imóvel, não se pode, como pretendem os Recorrentes configurar como inexistente ou legalmente impossível. VII. A Licença de Habitação, tal como, a inscrição no Registo Predial, não possuem natureza constitutiva. VIII. A Posse sobre o imóvel exteriorizava o Direito de Propriedade sobre o mesmo, o que factualmente e legalmente se afirma, tendo sido o respetivo imóvel, habitação própria do de cuius. IX. O Decreto-Lei n.º 448/91, no qual os Recorrentes se apoiam para firmar a sua posição, não se aplica “in casu” não vigorando atualmente no nosso ordenamento jurídico a impossibilidade alegada, segundo o Decreto-Lei n.º 555/99, RJUE, e o Decreto-Lei n.º 10/2024. X. A lei aplicável, é antes aquela que vigorava à data do testamento no que concerne à validade das disposições nele inclusas e a lei vigente à data da abertura da sucessão e no que toca aos efeitos que dela promanaram para os herdeiros (cfr. art.º 12.º, do Código Civil). XI. Nesse sentido vai o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.11.2019, com texto integral acessível in www.dgsi.pt – processo n.º 3077/16.3T8VIS.C1.S1, assim sumariado: “I. A lei aplicável a um testamento é determinada em função do regime legal em vigor à data em que o mesmo foi outorgado e o regime sucessório dos herdeiros e legatários que sejam chamados à sucessão do testador é o regime legal vigente ao tempo da sua morte ainda que o momento da vocação sucessória ocorra em data posterior à morte do testador. XII. Tal como, referido pela Douta sentença e ao contrário da pretensão dos Recorrentes o RJEU vigente não contém norma paralela àquela que vinha consagrada no art.º 56.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro, o qual previa que eram nulos os atos jurídicos praticados em violação ao disposto no artigo 53.º, o qual, por sua vez, contemplava a proibição de atos ou negócios jurídicos de que resultasse, directa ou indirectamente, a divisão em lotes sem a existência do respectivo alvará. XIII. Assim, actualmente não vigora tal norma jurídica no nosso ordenamento e não se vislumbra em que medida o legado do usufruto do imóvel em questão possa considerar-se um negócio jurídico, cujo objecto, seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável. XIV. O que resulta do testamento e do usufruto é que o autor da herança, que tinha a efectiva posse de determinadas coisas corpóreas, correspondentes a uma construção na qual residia e ao respectivo recheio, concedeu o seu gozo temporário ao Recorrido, não tendo ocorrido, por via do legado instituído no testamento, qualquer acto translativo da propriedade de algum bem ou direito que não existisse ou cuja utilização não seja viável, ou cujo gozo seja contrário à lei ou indeterminável. XV. Com efeito, sendo existente a construção da moradia em causa, identificada e tendo a mesma sido utilizada como habitação pelo autor da herança, tal como o seu recheio, o qual se comportou como dono de tais coisas, pois que inscreveu na matriz predial urbana a existência de tal habitação, assim assumindo os inerentes encargos decorrentes do seu aproveitamento, incluindo obrigações tributárias, e dispôs da sua utilização temporária mediante testamento, comportando-se em tudo como se único proprietário fosse de tais bens, assim estando reunida na sua actuação o corpus e o animus próprios de quem exerce um direito de propriedade sobre coisas determinadas. XVI. Para que o Tribunal a quo pudesse considerar procedente o pedido de nulidade da deixa testamentária que instituiu o legado sobre o imóvel, teria que considerar que a c s r çã m pr ç , s “cl s i ” “il g l”, ã p ri igualmente vir a ser objecto de partilha, o que contraria o regime legal actualmente vigente e que será necessariamente aplicável à partilha ainda por efectuar, o qual prevê não só a possibilidade de transacionar imóveis sem exibição de licença de utilização, como a possibilidade de legalização de construções erigidas em terrenos rústicos (art.ºs 1.º, 16.º e 21.º, do Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de Janeiro). XVII. A constituição do usufruto, mediante legado do testador, sobre a sua própria habitação e respectivo recheio, mesmo não possuindo aquela licença de habitação, é, em si, um acto jurídico lícito, que não viola normas imperativas de direito público, nem sustenta uma situação de violação ou de fraude à lei. XVIII. Acresce que, em última análise sempre devia prevalecer a vontade última do autor do testamento que pretendeu inequivocamente realizar a deixa testamentária posta agora em causa pelos Recorrentes. XIX. Sendo assim, o testamento e subsequentemente, o Usufruto Vitalício é legalmente válido. XX. Não se mostrando, assim, verificados quaisquer requisitos que pudessem consubstanciar a nulidade do referido testamento ou da deixa testamentária, inexiste fundamento factual e legal para declarar nulo em substância o acto jurídico titulado pelo testamento em causa. XXI. Pelo exposto, é inevitável, por justa, criteriosa e legal, a manutenção integral da Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, por ser esta o corolário da perfeita subsunção jurídico-civil e imerecedora de reparos, de resto, completamente infundados. XXII. Impondo-se, assim, concluir pela total improcedência do recurso dos Recorrentes com as legais consequências. Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso, ser julgado totalmente improcedente, por não provado, com a consequente manutenção, in totum, da Douta sentença recorrida, com as legais consequências, por assim ser de inteira JUSTIÇA! * O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo. * Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. * II – Objeto do Recurso: Segundo as conclusões do recurso, que delimitam o respetivo objeto, a questão a apreciar no recurso é a seguinte: Nulidade do legado do usufruto de casa de habitação não licenciada e não descrita no Registo Predial, estando apenas registada a favor do de cujus uma quota sobre o terreno rústico onde a casa está implantada. * III – Fundamentação de Facto: A 1ª Instância deu por provada a seguinte factualidade: 1) Foi inscrita no registo predial, pela apresentação 18, de 1983/07/05, a aquisição, por compra a F …, G … e H …, a favor de I … ou I …, viúva, da quota correspondente a 859,40/5165 do prédio rústico com a área total e a área descoberta de 5.165 m2, sito em Aroeira, na freguesia de Charneca de Caparica, concelho de Almada, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º …/…28 e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …, da Secção AL. 2) I … faleceu no dia 29 de Dezembro de 2000, no estado de viúva de E …. 3) No dia 10 de Julho de 2008, no Cartório Notarial de J …, sito na Avenida dos Metalúrgicos – n.º 5-A, no Seixal, perante a respectiva Notária, compareceram L …, casada com M …, sob o regime da comunhão de adquiridos, aquela como primeira outorgante, bem como N … e O …, ambos solteiros e maiores, como segundos outorgantes, e ainda o referido M …, casado com a primeira outorgante, os quais declararam no instrumento epigrafado de “Repúdios”, cuja cópia consta de fls. 21 a 22 verso e se dá por reproduzida, por todos subscrito, a primeira, que é uma das sucessíveis chamadas à herança de I …, que também usou I … e que, pela presente escritura, tendo em conta que até ao presente, nem tácita nem expressamente, a aceitou, repudia à herança a que foi chamada por óbito de sua mãe e que ela, primeira outorgante, tem como única descendência sucessível os seus filhos N … e O …, segundos outorgantes, mais declarando o terceiro outorgante que presta à sua mulher o necessário consentimento para a inteira validade deste repúdio, tal como declararam os segundos outorgantes que repudiam a herança, que não aceitaram, nem expressa nem tacitamente, de sua avó, a referida I …, a quem sucedem por direito de representação, em virtude do repúdio efectuado por sua mãe, L … e que não têm descendência sucessível. 4) No dia 10 de Julho de 2008, compareceu no Cartório Notarial de J …, sito na Avenida dos Metalúrgicos – n.º 5-A, no Seixal, perante a respectiva Notária, como outorgante, E …, divorciado, o qual declarou no instrumento epigrafado de “Habilitação de Herdeiros”, cuja cópia consta de fls. 19 verso a 20 verso e se dá por reproduzida, que subscreveu, entre o mais, que, no dia 29 de Dezembro de 2000, faleceu I …, que também usou I …, no estado de viúva de E …, a qual não fez testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus filhos E …, declarante, à data da sucessão casado com P …, sob o regime da comunhão de adquiridos, e L …, casada com M … sob o regime da comunhão de adquiridos, mais declarando que seriam herdeiros da finada os seus filhos E … e L … se esta não tivesse repudiado, como repudiou, a respectiva herança de sua mãe, por escritura outorgada nesse dia, no mesmo Cartório e no mesmo livro de notas, iniciada a folhas 86, e que a referida L … e marido têm como única descendência sucessível os seus filhos, N … e O …, ambos solteiros e maiores, os quais seriam, pois, herdeiros da finada, em consequência do repúdio de sua mãe, por direito de representação, se os mesmos não tivessem repudiado, como repudiaram, a herança de sua avó, I …, na escritura já identificada, não tendo os repudiantes descendentes, pelo que, em consequência e por força do direito de acrescer, é o declarante o único herdeiro da falecida, não havendo quem com ele possa concorrer na sucessão da referida I …. 5) Mostra-se inscrita no registo predial, pela apresentação 2059 de 2009/01/26, a aquisição, por sucessão hereditária de I …, que também usou I …, da quota correspondente a 859,40/5165 do prédio rústico com a área total e a área descoberta de 5.165 m2, sito em Aroeira, na freguesia de Charneca de Caparica, concelho de Almada, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º …/… 28 e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …, da Secção AL, descrita no ponto 1), a favor de E …, divorciado. 6) No dia 8 de Abril de 2014, compareceu no Cartório Notarial de II …, sito na Rua Quinta de São Marcos – n.º 2-C, Charneca de Caparica, Almada, perante o respectivo Notário, como outorgante, E …, divorciado, o qual declarou no instrumento epigrafado de “Testamento”, cuja cópia consta de fls. 13, 13 verso e 14 e de fls. 31, 31 verso e 32 e se dá por reproduzida, que subscreveu, entre o mais, que, por este seu testamento, lega a D …, o usufruto vitalício da sua casa de habitação sita na Avenida …, Parcela … Lote …, Aroeira, Charneca da Caparica, Almada, e de todo o recheio da mesma, incluindo de créditos, se lá forem encontrados os respectivos títulos. 7) Na parcela de terreno indicada em 1) foi construída uma moradia unifamiliar em alvenaria, coberta de telha e um anexo, que se acha inscrita, como prédio urbano em propriedade total, sito na Avenida …, Parcela …, Lote …, 2820- … Charneca da Caparica, na matriz predial urbana sob o artigo … da União das Freguesias de Charneca de Caparica e Sobreda. 8) No dia 13 de Março de 2020, faleceu E …, no estado de divorciado de P …, cujo casamento entre ambos foi dissolvido por divórcio, por decisão proferida pela 3.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, transitada no dia 12 de Janeiro de 2005. 9) No dia 17 de Abril de 2020, compareceu no Cartório Notarial de Q …, sito na Rotunda Nuno Rodrigues dos Santos – n.ºs 2 e 2-C, no Centro Comercial da Portela, Loja 3, Piso 0, Portela, perante a respectiva Notária, como outorgante e na qualidade de cabeça-de-casal, A …, solteiro e maior, o qual declarou no instrumento epigrafado de “Habilitação de Herdeiros”, cuja cópia consta de fls. 28, 28 verso e 29 e se dá por reproduzida, que subscreveu, entre o mais, que, no dia 13 de Março de 2020, faleceu E …, no estado de divorciado de P …, o qual não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus filhos A …, B … e C …, todos solteiros e maiores, não existindo outras pessoas que, segundo a lei, possam concorrer com os indicados herdeiros nesta sucessão. 10) No dia 11 de Maio de 2020, compareceu no Cartório Notarial de Q …, sito na Rotunda Nuno Rodrigues dos Santos – n.ºs 2 e 2-C, no Centro Comercial da Portela, Loja 3, Piso 0, Portela, perante a respectiva Notária, como outorgante e na qualidade de cabeça-de-casal, A …, solteiro e maior, o qual declarou no instrumento epigrafado de “Retificação”, cuja cópia consta de fls. 29 verso, 30 e 31 e se dá por reproduzida, que subscreveu, entre o mais, que, no dia 16 de Abril de 2020, outorgou uma escritura de habilitação de herdeiros, lavrada a folhas 72 do Livro C-40, na qual declarou que no dia 13 de Março de 2020, faleceu E …, no estado de divorciado de P …, mais tendo declarado que o falecido não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus filhos A …, B … e C …, todos solteiros e maiores, e que rectifica a referida escritura, no sentido de passar a constar que o autor da herança, E …, deixou testamento público, lavrado no dia 8 de Abril de 2014, exarado de folhas 74 a folhas 74 verso, do Livro n.º 2, do Cartório Notarial de Almada, a cargo do Notário II …, no qual efectuou um legado a D … e que deixou como herdeiros legitimários os identificados filhos A …, B … e C …, não existindo outras pessoas que, segundo a lei e o testamento, possam concorrer com os indicados herdeiros nesta sucessão, mantendo, no demais, o conteúdo da dita escritura que se rectifica. 11) Os autores não partilharam a herança deixada por óbito de seu pai E …, constituída exclusivamente pelo direito à quota de 8594/51650 avos indivisos do prédio descrito sob o ponto 1) e do direito correspondente ao valor das obras nele edificadas que coincidem com a construção referida em 7). 12) A construção da moradia referida em 7) não foi precedida de licença de construção, nem foi relativamente à mesma emitida licença de utilização. 13) À data do óbito de E …, em 13 de Março de 2020, o valor de mercado do direito à quota de 8594/51650 avos indivisos do prédio descrito sob o ponto 1) e do direito correspondente ao valor das obras nele edificadas que coincidem com a construção referida em 7) era de € 152.700,00 (cento e cinquenta e dois mil e setecentos euros) e tem actualmente o valor de € 203.110,00 (duzentos e três mil e cento e dez euros), de entre o qual € 73.040,00 (setenta e três mil e quarenta euros) correspondem ao valor do direito à quota de 8594/51650 avos indivisos do prédio e € 130.070,00 (cento e trinta mil e setenta euros) correspondem ao valor das obras realizadas. 14) Relativamente ao imóvel descrito em 1), mostra-se inscrita no registo predial: a) Sob a apresentação 13, de 1983/08/12, a aquisição da quota de 845,7/5165, a favor de R … e de S …, casados um com o outro sob o regime da comunhão de adquiridos, por compra a F …, G … e H …; b) Sob a apresentação 15, de 1984/11/12, a aquisição da quota de 433,85/5165, a favor de T … e de U …, casados um com o outro sob o regime da comunhão geral, por compra a F …, G … e H …; c) Sob a apresentação 17, de 1984/11/12, a aquisição da quota de 846,40/5165, a favor de V … e X …, casados um com o outro sob o regime da comunhão de adquiridos, por compra a F …, G … e H …; d) Sob a apresentação 12, de 1995/08/12, a aquisição da quota de 868,40/5165, a favor de Y …, solteira e maior, por compra a F …, G … e H …; e) Sob a apresentação 13, de 1995/09/21, a aquisição da quota de 422,85/5165, a favor de V … e X …, casados um com o outro sob o regime da comunhão de adquiridos, por compra a F …, G … e H …; f) Sob a apresentação 34, de 1996/08/20, a aquisição da quota de 454,55/5165, a favor de Z … e de AA …, casados um com o outro sob o regime da comunhão de adquiridos, bem como a favor de BB … e de CC …, casados um com o outro sob o regime da comunhão de adquiridos, por compra a F …, G … e H …; g) Sob a apresentação 4, de 2003/11/07, a aquisição da quota de 433,85/5165, a favor de DD …, divorciado, por compra a EE … e a FF …, casados um com o outro sob o regime da comunhão geral; h) Sob a apresentação 1348, de 2011/07/25, a aquisição da quota de 845,7/5165, a favor de GG …, casada com HH … sob o regime da comunhão de adquiridos, por dação em cumprimento de R … e S …. 15) Aquando da morte de E …, o réu tinha 45 anos de idade. * E considerou não provada a seguinte factualidade: 16) À data do óbito de E …, em 13 de Março de 2020, o valor de mercado do direito à quota de 8594/51650 avos indivisos do prédio descrito sob o ponto 1) e do direito correspondente ao valor das obras nele edificadas que coincidem com a construção referida em 7) era de € 296.760,80 (duzentos e três mil e cento e dez euros). * * * IV – Fundamentação de Direito: Na presente apelação impõe-se avaliar se é nulo o legado do usufruto de casa de habitação não licenciada e não descrita no Registo Predial, estando apenas registada a favor do de cujus uma quota (859,40/5165) sobre o terreno rústico onde a casa está implantada. Ou seja, o de cujus era comproprietário do terreno rústico onde veio a ser erigida a moradia objeto do usufruto que legou ao Réu. Enquanto comproprietário do terreno rústico detinha na sua titularidade apenas uma quota ideal ou abstrata sobre esse prédio rústico e não uma parte especificada do mesmo prédio; quota que, independentemente de não ser quantitativamente igual à dos outros comproprietários (confrontar factos provados), era qualitativamente igual (cf. art. 1403º nº2 do C.C.). Todavia, nesse prédio rústico foi construída uma moradia que veio a constituir a sua casa de habitação e cujo usufruto deixou em testamento ao réu. Os autores/apelantes invocam a nulidade desse legado, alicerçando-a no disposto no art. 280 nº1 do C.C., preceito que dispõe nos seguintes termos: “É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.” Entendem os apelantes que a edificação em causa, por não estar licenciada, é contrária às normas imperativas do RJUE, e, como tal, o legado do usufruto sobre essa edificação deve ser considerado nulo nos termos do artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil, o qual estabelece a nulidade dos negócios cujo objeto seja contrário à lei. O apelado discorda. Vejamos. O testamento foi outorgado em 08 de Abril de 2014, e a abertura da sucessão ocorreu em 13.03.2025, por virtude do óbito do de cujus nesta última data. Para averiguar a invocada nulidade do legado por o respetivo objeto ser contrário à lei, temos que nos socorrer da legislação vigente à data da outorga do testamento, em face do princípio da não retroatividade da lei nova que resulta do art. 12º nº1 do C. Civil (preceito que dispõe que: «A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuía eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”). Impõe-se assim averiguar se o legado viola regras imperativas do RJUE - DL 555/99 de 16.12 - na versão vigente em Abril de 2014, e não na versão atual, introduzida pelo DL 10/2024 de 08.01. Os apelantes não indicam nas conclusões qualquer concreta norma do RJUE que não tenha sido analisada na sentença da 1ª instância, sendo que nesta se alude aos artigos 2º als. i) e j), 4º, 77, 14 nº1, e 49º todos do referido RJUE. Resulta do referido art. 2º al i) do referido RJUE que, para efeitos desse diploma, se entende por «Operações de loteamento» as acções que tenham por objecto ou por efeito a constituição de um ou mais lotes destinados, imediata ou subsequentemente, à edificação urbana e que resulte da divisão de um ou vários prédios ou do seu reparcelamento; e da al j) que se entende como «Operações urbanísticas», as operações materiais de urbanização, de edificação, utilização dos edifícios ou do solo desde que, neste último caso, para fins não exclusivamente agrícolas, pecuários, florestais, mineiros ou de abastecimento público de água. Por sua vez o art.º 4.ºnº1 do RJUE prescreve que “a realização de operações urbanísticas depende de licença, comunicação prévia com prazo, adiante designada abreviadamente por comunicação prévia ou comunicação, ou autorização de utilização, nos termos e com as exceções constantes da presente secção”; e do nº 2 als. a) e c) desse preceito decorre que estão sujeitas a licença administrativa “As operações de loteamento”, e “As obras de construção, de alteração ou de ampliação em área não abrangida por operação de loteamento ou por plano de pormenor que contenha os elementos referidos nas alíneas c), d) e f) do n.º 1 do artigo 91.º do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, que estabelece o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial”. Nessa decorrência, o art.º 77.º do RJUE regula a especificação dos elementos que o alvará de licença de operação de loteamento ou de obras de urbanização deve conter, nos termos da licença. O art. 14 nº1 possibilita a qualquer interessado pedir à câmara municipal, a título prévio, informação sobre a viabilidade de realizar determinada operação urbanística ou conjunto de operações urbanísticas diretamente relacionadas, bem como sobre os respetivos condicionamentos legais ou regulamentares, nomeadamente relativos a infraestruturas, servidões administrativas e restrições de utilidade pública, índices urbanísticos, cérceas, afastamentos e demais condicionantes aplicáveis à pretensão. Por último o art.º 49.º do referido diploma dispõe que: “1 - Nos títulos de arrematação ou outros documentos judiciais, bem como nos instrumentos relativos a atos ou negócios jurídicos de que resulte, direta ou indiretamente, a constituição de lotes nos termos da alínea i) do artigo 2.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 6.º e 7.º, ou a transmissão de lotes legalmente constituídos, devem constar o número do alvará ou da comunicação prévia, a data de emissão do título, a data de caducidade e a certidão do registo predial. 2 - Não podem ser realizados atos de primeira transmissão de imóveis construídos nos lotes ou de frações autónomas desses imóveis sem que seja exibida, perante a entidade que celebre a escritura pública ou autentique o documento particular, certidão emitida pela câmara municipal, comprovativa da receção provisória das obras de urbanização ou certidão, emitida pela câmara municipal, comprovativa de que a caução a que se refere o artigo 54.º é suficiente para garantir a boa execução das obras de urbanização. 3 - Caso as obras de urbanização sejam realizadas nos termos dos artigos 84.º e 85.º, os atos referidos no número anterior podem ser efetuados mediante a exibição de certidão, emitida pela câmara municipal, comprovativa da conclusão de tais obras, devidamente executadas em conformidade com os projetos aprovados. 4 - A exibição das certidões referidas nos n.os 2 e 3 é dispensada sempre que o alvará de loteamento tenha sido emitido ao abrigo dos Decretos-Leis n.os 289/73, de 6 de junho, e 400/84, de 31 de dezembro.” Ora, efetivamente não podemos deixar de concordar com o Tribunal a quo no sentido de que no imóvel rústico de que o de cujus era comproprietário terão sido realizadas operações urbanísticas e de loteamento, pois nele foi edificada uma moradia, numa sua concreta parcela, operação não permitida em terreno rústico, e não autorizada, nem licenciada. A afetação de uma porção concreta do terreno rústico comum à implantação de uma moradia não pode deixar de implicar a autonomização material de um lote para construção. Neste sentido veja-se o Ac. do TRL de 28.05.2009 proferido no Processo 133/1994.L1-2, e designadamente o seguinte trecho da fundamentação: “(…)Já no caso de edifício implantado numa parcela não juridicamente autonomizável de prédio rústico, sem loteamento legal, detido em compropriedade pelo construtor do edifício e por outros, a situação se coloca em termos menos lineares. A afectação dessa parcela comum à implantação de edifício destinado à habitação, construído pelo 1º Réu – que quando assimilada seja à disposição ou oneração de parte especificada…redundará em disposição ou oneração de coisa alheia, desde que efectuada “sem consentimento dos restantes consortes”, cfr. art.º 1408º, , n.º 1, do Código Civil – implica em qualquer caso a autonomização material de um lote para construção (o tal “lote 57”).(…)” A questão que se coloca é a de saber se tendo a moradia sido implantada e construída à revelia de regras imperativas que impõem o licenciamento de operações urbanísticas, a posterior constituição, por testamento, de usufruto sobre a mesma moradia se encontra inquinada de nulidade por ser contrária à lei. Entendemos que não. A operação urbanística/de loteamento não autorizada nem licenciada correspondente à edificação de uma moradia numa concreta parte de um terreno rústico (com a consequente autonomização material de um lote para construção) é anterior à outorga do testamento que instituiu o legado do usufruto da moradia. Assim sendo, tal operação urbanística não autorizada nem licenciada não se constituiu por via do ato jurídico que é o testamento (uma vez que lhe pré-existe), e, nessa perspetiva, a constituição do legado correspondente ao usufruto da casa não, é, per si, contrária à lei; o que é contrario à lei é o ato material pré-existente de edificação da moradia numa concreta porção de um terreno rústico, e que é independente da posterior constituição do usufruto sobre a moradia. Exatamente por não ser o testamento o ato constitutivo de loteamento (nem o mesmo testamento transmitir lotes legalmente constituídos) não se aplica ao caso o disposto no art. 49 nº1 do RJUE na parte que dispõe que “nos instrumentos relativos a atos ou negócios jurídicos de que resulte, direta ou indiretamente, a constituição de lotes nos termos da alínea i) do artigo 2.º sem prejuízo do disposto nos artigos 6.º e 7.º, ou a transmissão de lotes legalmente constituídos, devem constar o número do alvará ou da comunicação prévia, a data de emissão do título, a data de caducidade e a certidão do registo predial”. Também não se aplica o numero 2 do referido artigo 49º - que, recorde-se, refere que “ Não podem ser realizados atos de primeira transmissão de imóveis construídos nos lotes ou de frações autónomas desses imóveis sem que seja exibida, perante a entidade que celebre a escritura pública ou autentique o documento particular, certidão emitida pela câmara municipal, comprovativa da receção provisória das obras de urbanização ou certidão, emitida pela câmara municipal, comprovativa de que a caução a que se refere o artigo 54.º é suficiente para garantir a boa execução das obras de urbanização “- , pois o testamento também não “transmite imóveis construídos nos lotes”. O testamento apenas constituiu o usufruto da moradia, não transmitiu a respetiva propriedade. Recordemos que o usufruto, conforme decorre do art. 1439º do Código Civil, é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma. É, portanto, um direito de gozo, de fruição, limitado no tempo (no limite, o tempo de vida do beneficiário – art. 1443º do C.C.), não sendo transmitida ao usufrutuário a propriedade da coisa ou direito. Não havendo transmissão da propriedade da edificação, também não é in casu aplicável o disposto no art. 1º do nº1, do DL nº 281/99, de 26 de Julho (entretanto revogado pelo já referido DL 10/2024) que dispõe que não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial, ou da respectiva participação para a inscrição, e da existência da correspondente licença de utilização, de cujo alvará, ou isenção de alvará, se faz sempre menção expressa na escritura. Cumpre ainda referir que a situação sub judice não se subsume ao disposto no art. 1376º do CC que veda o fracionamento de prédios aptos para cultura em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, porquanto in casu a parcela fracionada se destina a um fim que não a cultura (construção) – cf. art. 1377 al c) do C.C.. Pelo exposto, entende-se inexistir nulidade do legado decorrente de contrariedade à lei do respetivo objeto. Averiguemos agora se o legado é nulo por impossibilidade legal do seu objeto. Defendem os apelantes que nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, é exigido que, para a transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis, estes estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa que transmite o direito ou contra quem se constitui o encargo, sendo que o único bem devidamente inscrito a favor do de cujus é a quota indivisa de 859/5165 avos de um prédio rústico, não existindo registo da moradia em questão, pelo que não existe sustentação legal para a constituição do usufruto sobre a moradia ilegal. Concluem que o direito de usufruto legado é juridicamente inexistente (e nulo), uma vez que o objecto sobre o qual incide (a edificação urbana) não tem existência legal, remetendo para o disposto nos termos dos artigos 9.º do CRP e 280.º do Código Civil. Apreciando: A função do registo predial vem indicada no art. 1º do CR Predial: destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. Salvo o caso da hipoteca, o registo predial não tem natureza constitutiva. Tanto não tem natureza constitutiva que o art. 4º nº 1 prevê que os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros (o número 2 excetua os factos constitutivos de hipoteca cuja eficácia, entre as próprias partes, depende da realização do registo). Todavia, o registo é condição de eficácia contra terceiros, conforme resulta do art. 5º nº1 do mesmo Código, que refere que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo (excetuam-se os casos expressamente previstos nas alíneas do número 2 do preceito). A propósito da natureza do registo, veja-se o seguinte trecho do Ac. do STJ de 01.07.2021 proferido no Processo 5484/18.8T8VNG.P1.S1: “Nos termos do art. 2º, nº 1, al. a), do CRP, “estão sujeitos a registo … os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão”. Prevê-se no nº 1 do art. 4º que “os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros”, o que revela a adoção de um modelo em que o registo não tem efeito constitutivo, salvo quando a lei o prevê explicitamente, como ocorre com a hipoteca. Porém, se, independentemente do registo predial, o direito real de habitação, ou qualquer outro direito real congénere não registado, pode ser invocado inter partes, já a sua eficácia perante terceiros está dependente da realização do registo, sendo este o mecanismo jurídico que confere ao ato a publicidade destinada a tutelar os interesses de terceiros alheios às relações existentes entre os intervenientes no ato precedentemente outorgado mas não levado ao registo. É o que prescreve explicitamente o art. 5º do CRP, nos termos do qual “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo” (nº 1), sendo que, prevê o nº 4, que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si” (sublinhado nosso). É certo que o art. 9º do C.R. Predial estipula que: “1 - Os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo. 2 - Excetuam-se do disposto no número anterior: a) A partilha, a expropriação, a venda executiva, a penhora, o arresto, a apreensão em processo penal, a declaração de insolvência e outras providências ou atos que afetem a livre disposição dos imóveis; b) Os atos de transmissão ou oneração praticados por quem tenha adquirido no mesmo dia os bens transmitidos ou onerados; c) Os casos de urgência devidamente justificada por perigo de vida dos outorgantes. 3 - Tratando-se de prédio situado em área onde não tenha vigorado o registo obrigatório, o primeiro ato de transmissão posterior a 1 de outubro de 1984 pode ser titulado sem a exigência prevista no n.º 1, se for exibido documento comprovativo, ou feita justificação simultânea, do direito da pessoa de quem se adquire.” Ora, a propósito deste preceito e do princípio subjacente (princípio da legitimação) refere Mercília Pereira Gonçalves in “Principais Princípios do Registo Predial”, Datavenia (Revista Jurídica Digital), ano 10, nº13, o seguinte: “O princípio da legitimação (formal) refere-se aos factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não poderem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo (artigos 9.º, n.º 1 do Código do Registo Predial e artigo 54.º, n.º 2 do Código do Notariado). Trata-se de um princípio que constitui um comando para as entidades competentes em lavrar os títulos: advogados, câmaras de comércio e indústria e solicitadores, devendo os outorgantes fazer prova da existência do registo legitimante a favor do disponente ou da pessoa que onera o prédio7 . Caso não seja feito, devem aquelas entidades recusar-se a intervir no ato em causa, sob pena de sanções disciplinares e de eventual responsabilidade civil nos termos gerais do artigo 483.º do Código Civil. Ficam excetuados da aplicação do princípio da legitimação, os casos elencados no artigo 9.º, n.º 2 do Código do Registo Predial.” Também no Acórdão da Relação de Guimarães de 18.09.2008 proferido no Processo 1154/08-2 (Relator Augusto Carvalho) se refere que o art. 9º do C.R.Predial consagra o princípio da legitimação que tem por finalidade a titulação dos actos, sendo dirigido aos notários, magistrados e outras entidades com competência para titular os factos. É o que resulta do seguinte trecho do Acórdão: “Dispõe o artigo 9º, nº 1 e 3, do CRP, que os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor de pessoa de quem se adquire o direito ou contra o qual se constitui o encargo; e, tratando-se de prédio situado em área onde não tenha vigorado o registo obrigatório, o primeiro acto de transmissão posterior a 1 de Outubro de 1984 pode ser titulado sem a exigência prevista no nº 1, se for exigido documento comprovativo, ou feita justificação simultânea, do direito da pessoa de quem se adquire. Por sua vez, o artigo 34º, nº 2, do mesmo diploma, estabelece que no caso de existir sobre os bens registo de aquisição ou reconhecimento de direito susceptível de ser transmitido ou de mera posse, é necessária a intervenção do respectivo titular para poder ser lavrada nova inscrição definitiva, salvo se o facto for consequência de outro anterior inscrito. Na sentença recorrida entendeu-se, e bem, que o citado artigo 9º não é aplicável à actividade registral, pois, o princípio da legitimação nele consagrado dirige-se à entidade tituladora dos factos sujeitos a registo, enquanto o princípio do trato sucessivo estabelecido no artigo 34º do mesmo CRP é de cumprimento obrigatório pelo conservador do registo predial. O trato sucessivo – inscrição prévia e continuidade das inscrições – «foi no Código de 1984 considerado, a par da legitimidade e da representação, como pressuposto do processo de registo, algo que lhe suporta o peso e o sustém, de tal modo que a sua não verificação representa a degradação desse processo, por falta de base de apoio ou de um elo de ligação. Para evitar dificuldades futuras aos interessados, por não existirem documentos para estabelecer ou reatar o trato sucessivo, foi criada a disposição do artigo 9º deste Código, dirigido às entidades encarregadas da titulação dos factos, às quais se impõe a obrigação de exigirem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo, ressalvando-se, porém, algumas situações consideradas excepcionais». Isabel Pereira Mendes, Código do Registo Predial Anotado, pág. 233. Estão excluídos do âmbito do nº 1, do artigo 34º e, consequentemente, da obrigatoriedade do registo prévio, os casos regulados pelo nº 3 do artigo 9º. «Ou seja, sempre que, nos termos dessa disposição, seja exigido pelas entidades que lavram os títulos documento comprovativo, ou feita justificação simultânea, do direito da pessoa de quem se adquire, o adquirente, para inscrever a seu favor a aquisição de um prédio não descrito, ou descrito mas sobre o qual não recaia inscrição de aquisição ou de reconhecimento de direito ou de mera posse, não terá de inscrever previamente o direito a favor do transmitente». Isabel Pereira Mendes, ob. cit., pág. 234. De facto, e como já se referiu, o artigo 9º, nº 3, consagra o princípio da legitimação que tem por finalidade a titulação dos actos, sendo dirigido aos notários, magistrados e outras entidades com competência para titular os factos. Aos conservadores do registo predial impõe-se o cumprimento obrigatório do princípio do trato sucessivo. Por força de tal princípio, está-lhes impedido que, nas situações em que exista sobre os prédios registo de aquisição ou mera posse, lavrem uma qualquer outra inscrição, em termos definitivos, sem a intervenção do respectivo titular – artigo 34º, nº 2. Existindo uma desactualização a nível registral, derivada do facto de o registo não ser obrigatório e de anteriormente a 1 de Outubro de 1984, não ter vigorado o princípio da legitimação, há que proceder, previamente, ao registo das aquisições intermédias, reatando-se o trato sucessivo antes de se proceder ao registo definitivo de aquisição a favor do actual proprietário. Aliás, é o próprio recorrente a reconhecer que, por força do artigo 9º, foram introduzidas obrigações às entidades que titulam os actos sobre direitos reais (nomeadamente, notários e tribunais), circunstância que veio imprimir uma nova dinâmica à instituição registral, enquanto garante da segurança no comércio imobiliário (cfr. fls. 171).” Tratando-se de um comando dirigido aos notários e outras entidades tituladoras de atos e negócios jurídicos, e não prevendo a lei qualquer vício do ato caso esse comando não seja observado, entendemos que a violação do art. 9º do C.R.Predial não acarreta a nulidade do ato celebrado. Sobre esta questão, veja-se o seguinte trecho do Acórdão do TRL de 24.03.2011 proferido no Proc. 195/09.8TBPTS.L1-2: “(…) Para estimular a realização do registo, o Código de Registo Predial de 1983, encontrou uma outra fórmula que, com alterações, transitou para o Código de Registo Predial de 1984: a proibição de titulação de factos de que resulte a transmissão de direitos ou a constituição de encargos sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire ou contra a qual se constitui o encargo (artº 9 nº 1). Solução que, devidamente reconformada, é depois estendida ao registo das acções (artº 3 nº 2). Eliminou-se, assim, uma referência expressa à obrigatoriedade do registo e, em sua substituição, adoptou-se um esquema indirecto, através da introdução do ónus ou do encargo do registo. Na prática, sem o registo, os bens ficam numa situação de inalienabilidade, forçando todos os titulares a ter o maior interesse na sua realização. Este esquema – que corporiza um verdadeiro princípio de legitimação registral – levanta o problema delicado da validade do negócio titulado em violação dele, sustentando alguma doutrina a invalidade, por vício de forma[9], desse negócio e outra – que se tem por preferível – a sua validade, dado que no caso se trata de uma legitimação formal, não estando em causa a legitimação substantiva, restringindo, assim, o valor do princípio da legitimação ao domínio específico do registo[10].”(sublinhado nosso). Portanto, também este Acórdão perfilha a tese da validade do negócio titulado em violação do disposto no art. 9º do C.R. Predial. Do exposto resulta inexistir nulidade do legado em causa nos presentes autos por impossibilidade legal decorrente do facto de a edificação sobre que incide não estar descrita no registo predial. A descrição no registo predial não é condição de existência jurídica da coisa, desde logo, porque, como se disse, e com exceção dos factos referentes à hipoteca, o registo não tem caráter constitutivo. É que apesar de não licenciada, ou seja, ser clandestina, a edificação existia fisicamente, e o direito correspondente à mesma ingressou na esfera jurídica do de cujus, sendo que consta do facto provado 11 que o direito correspondente ao seu valor integra a respetiva herança. Tal edificação, enquanto coisa corpórea, é suscetível de gozo e fruição, e, portanto, de ser objeto de constituição de usufruto. Obviamente só o proprietário da edificação poderá constituir o usufruto da mesma a favor de outrem, pois o mero possuidor da coisa não detém na sua esfera o poder de constituir usufruto. Ora, dos factos provados, designadamente dos 5 a 7 e 11, resulta que o de cujus construiu a moradia no terreno de que era comproprietário. Moradia construída sem licenciamento quer de construção quer de utilização (facto provado 12). Sobre situação semelhante foi proferido em 28.05.2009 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo 133/1994.L1-2, Acórdão com o seguinte sumário: “I- A acessão tem carácter potestativo, por isso havendo um verdadeiro direito, ou faculdade, de acessão, que cabe ao titular beneficiário. II- Até ao exercício deste, as propriedades mantêm-se distintas. III- Na espécie industrial imobiliária, teremos como pedra de toque, para a demarcação entre benfeitorias e acessão, a natureza inovadora e transformadora das obras, que podem ter lugar em qualquer prédio alheio, seja unicamente no solo, seja em construção nele existente, desde que, no entanto, se não trate de simples obras de melhoramento ou de reparação. IV- Em certas modalidades de actuação o comproprietário posiciona-se, relativamente ao bem objecto da compropriedade, como um terceiro. V- À construção, por um dos comproprietários, de moradia exclusivamente para si, em parte do terreno comum que desse modo afecta ao seu interesse exclusivo, sem autorização dos demais, são aplicáveis as regras da acessão. VI- Porém, não havendo o prédio sido sujeito a operação legal de loteamento, permanecendo juridicamente como um único prédio rústico, tal sempre obstaria à eficácia de eventual autorização, por parte do colectivo de comproprietários, de incorporação de moradia construída por um deles, na perspectiva da aquisição por acessão da propriedade da parcela de terreno, em que fora feita a implantação, na medida em que implicaria uma divisão do prédio em lotes, à margem do processo legalmente estabelecido. VII- Nesta circunstância, e enquanto o colectivo dos comproprietários não exercer qualquer dos direitos que em alternativa contempla o art.º 1341º, do Código Civil – sendo que verdadeiramente só há acessão no segundo termo daquela – confrontar-nos-emos com uma situação de manutenção de propriedades distintas, sobre o “terreno” e sobre a “construção”. VIII- O reconhecimento da propriedade do implante, pelo incorporante – naturalmente apenas subsistente enquanto o colectivo dos proprietários não actuar a acessão ou for exigida a destruição da obra com restituição do terreno ao seu primitivo estado à custa do autor da obra – não implica, do ponto de vista jurídico, o fraccionamento do prédio rústico, ou sequer a constituição de um direito de superfície naquele.” Na perspetiva deste Acórdão, há uma propriedade específica sobre a construção na esfera de quem a construiu, sem prejuízo de essa propriedade poder, no contexto referido no Acórdão, vir a ser posteriormente afastada pelos proprietários do terreno onde tal construção se encontra implantada. Também José de Oliveira Ascensão in Direito Civil, Reais, 4ª edição refundida, Reimpressão, Coimbra Editora Limitada, pagina 402, reconhece, a propósito da análise de quem pode ser beneficiário da acessão, a existência de um dono do solo e de um dono do implante, referindo expressamente que: “(…)Por isso, beneficiário da acessão pode ser, quer o dono do solo quer o dono do implante(…)”. E na página 403 refere o seguinte: “(…) Concluímos pois que a acessão tem carácter potestativo. Por isso há um verdadeiro direito, ou faculdade de acessão, que cabe ao titular beneficiário. Até ao exercício deste, as propriedades mantêm-se distintas. Cada um dos sujeitos pode exercer, tanto quanto as circunstâncias autorizem, o seu direito, e inclusivamente cedê-lo a outrem.(…)” O que significa que o proprietário do implante poderá constituir usufruto sobre o referido implante. Assim, não se discutindo sequer nos autos que o de cujus E … fosse, aquando da outorga do testamento que instituiu o legado de usufruto da sua casa de habitação a favor do réu, substantivamente dono da respetiva edificação, ainda que esta não estivesse descrita no registo predial (veja-se que no art. 31º da p.i. os AA, tratando-a como prédio urbano, alegam expressamente que está compreendida na respetiva herança) não podemos concluir no sentido da impossibilidade legal da correspondente deixa testamentária. Por todo o exposto, o recurso improcede. As custas do recurso são a cargo dos apelantes, por terem ficado vencidos (art. 527 nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil). *** V. DECISÃO: Pelo exposto acordam as Juízes desta 8ª seção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida. Custas pelos recorrentes. Notifique. Lisboa, 30.04.2025 Carla Matos Cristina Lourenço Teresa Sandiães |