Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA DE AZEREDO COELHO | ||
Descritores: | COISA DEFEITUOSA REPARAÇÃO DA COISA INDEMNIZAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/29/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I) O comprador de coisa defeituosa não pode repará-la por si e pedir a condenação do vendedor no pagamento do despendido na reparação, quando não lha tenha previamente exigido. II) O regime do Decreto-Lei 67/2003 não rejeita a hierarquia entre os direitos à reparação, substituição, redução do preço ou resolução, limitando-se a excecioná-la quando razões de boa-fé o justifiquem. III) O artigo 12.º da Lei de Defesa do Consumidor não autoriza interpretação no sentido da admissibilidade de exercício autónomo do direito a indemnização por danos não patrimoniais, já que apenas no contexto da apreciação do incumprimento do contrato de pode apurar a existência de dano residual não indemnizado a carecer da proteção atribuída pela norma. (AAC) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I) RELATÓRIO C… e M…, casados entre si e com os mais sinais dos autos, vieram instaurar ação com processo comum sumário contra I…, LDA, também com os sinais dos autos, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia de € 13.780,00, que reputam necessário despender para a reparação de defeitos de fração de imóvel que a Ré lhes vendeu, e a de € 2.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da situação defeituosa da fração que compraram à Ré. A Ré contestou impugnando a existência dos defeitos, excecionando a caducidade do direito acionado, e defendem a improcedência do pedido por falta de fundamento pois, a haver defeitos, deveriam os Autores pedir a sua reparação e não a condenação no pagamento das obras que entendem necessárias a obtê-la. Concluiu pela sua absolvição e pela condenação dos Autores como litigantes de má-fé em multa e indemnização estimando dever esta ser fixada em € 5.000,00. Foi proferido despacho enunciando a possibilidade de decisão de mérito sem produção de prova, ficando prejudicada a apreciação da litigância de má-fé, nada tendo sido dito pelas partes. Foi proferida sentença que julgou improcedente a ação por desrespeito da hierarquia dos direitos concedidos ao comprador de coisa defeituosa e por falta de fundamento legal da pretendida condenação a pagar ou a indemnizar. Os Autores interpuseram recurso da sentença, concluindo como segue as suas alegações: Não foram apresentadas contra-alegações. O recurso foi recebido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nada tendo sido alterado nesta Relação. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II) OBJECTO DO RECURSO Tendo em atenção as conclusões do Recorrente e inexistindo questões de conhecimento oficioso - artigo 635.º, n.º 3, 639.º A, nº 1 e 3, com as exceções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre apreciar se tem fundamento legal o pedido de condenação da Ré vendedora a pagar o montante a despender na reparação dos defeitos da fração vendida, sem precedência do pedido de reparação, substituição, redução do preço ou resolução do contrato, e se tem fundamento o pedido de indemnização. III) FUNDAMENTAÇÃO Como bem o refere a decisão recorrida, estando em causa a apreciação da petição inicial em si mesma, não há lugar a fixação de factos assentes, mas antes à apreciação de toda a factualidade alegada na perspetiva da viabilidade das pretensões. No caso dos autos está em causa a venda de uma fração, sem que esteja alegado que a Ré vendedora seja construtora do imóvel em que a fração se integra. Ninguém discute, e merece-nos concordância, a qualificação do contrato como de compra e venda de imóvel sendo vendedora a Ré e compradores os Autores. Na definição dos contornos jurídicos da questão importa ainda atender a que a Ré vendedora se apresenta como sociedade por quotas dedicada ao comércio e indústria de materiais de construção e os Autores são pessoas singulares, apresentando-se como casados entre si e utilizando a fração adquirida para sua habitação e de sua família. Está alegada a existência de defeitos do bem vendido e que a venda ocorreu em 1 de agosto de 2008. A situação enquadra-se, em consequência, no âmbito do Decreto-Lei 67/2003, na redação dada pelo Decreto-Lei 84/2008, por ser a vigente quando a ação foi proposta, uma vez que este último diploma entrou em vigor em 21 de Junho de 2008, nos termos do disposto no seu artigo 5.º. O regime do Decreto-Lei 67/2003 é especial relativamente ao do Código Civil (CC) por isso que regula apenas os negócios em que uma das partes tenha a natureza de consumidor, enquanto o regime do CC tem vocação universal, sem restrição quanto à natureza dos contratantes. Termos em que se aplica o Decreto-Lei 67/2003, sem prejuízo da aplicação das normas gerais do CC em tudo o que não esteja em contradição com o Decreto-Lei 67/2003[1]. Vendo então o que aí se regula quanto à compra e venda, temos que o artigo 3.º estatui que o «vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue». O artigo 4.º, n.º 1, dispõe que «em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato». Por seu turno, o n.º 5 do artigo 4.º estatui que «o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais». Na delimitação das normas a considerar de modo imediato há ainda que atender ao disposto no artigo 12.º da Lei 24/96 (LDC), na redação do Decreto-Lei 67/2003, que atribui ao «consumidor [tem] direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos». Ou seja, a questão colocada situa-se na confluência (i) dos direitos atribuídos no contexto do programa contratual e da alteração que nele inscreve a existência de desconformidades da coisa e (ii) do direito a indemnização destinado a ressarcir os danos decorrentes das desconformidades da coisa. A primeira bateria de direitos destina-se a repor a justiça contratual tal como as partes a configuraram ao formarem a vontade de contratar. Por isso que os direitos atribuídos são os de reparação, ou seja, de reposição da coisa no estado em que as partes a quiseram no programa negocial, de substituição por coisa igual quando tal seja possível, de redução do preço, equilibrando as prestações das partes, diminuindo a do comprador por admissão implícita de que as desconformidades diminuíram a correlativa prestação do vendedor, enquanto repercutida na esfera patrimonial do comprador. Ao comprador é ainda facultada a possibilidade de resolução do contrato que, paradoxalmente, é ainda uma forma de repor a justiça contratual nos casos em que a manutenção do contrato não permite repor as partes na situação que determinou a sua celebração. Existe uma hierarquia destes direitos? Ou seja, o comprador apenas pode pedir a resolução depois de pedir a reparação, substituição ou redução do preço e estas últimas depois de exigir a reparação, etc.? O n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei 67/2003 parece abolir qualquer tipo de hierarquia ao dizer que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos (reparação, substituição, redução do preço ou resolução) sem prejuízo das regras do abuso de direito. Na verdade, a possibilidade de exercício desses direitos já resultava do n.º 1 pelo que o n.º 5 escusava de a repetir, quando não fosse questão do legislador rejeitar por ele a hierarquia entre os direitos[2]. Mas não se conclui assim sem mais pela livre opção do comprador que teria no n.º 1 da norma um cardápio à escolha. Cremos que pelo n.º 5 o legislador não rejeita a hierarquia entre aqueles direitos, rejeita o périplo por eles quando as razões de boa-fé – que o instituto do abuso de direito convoca - o não exijam[3]. Expliquemo-nos. O n.º 5 tem o escopo de deixar claro que o comprador não precisa de respeitar a “ordem” dos direitos atribuídos pelo n.º 1 quando a boa-fé lhe não exija tal respeito[4]. São os casos que a jurisprudência veio admitindo de declaração de não satisfação da reparação ou substituição da coisa, de transformação da mora da vendedora em incumprimento definitivo, de urgência da reparação dos defeitos. Ou seja, o n.º 5 inscreve explicitamente, no exercício dos direitos atribuídos pelo n.º 1, o respeito pela boa-fé das partes no contexto do programa contratual[5] em afloramento do regime geral e não em consagração de exceção. É essa a única “hierarquia” estabelecida entre os direitos em causa. Hierarquia que impõe ao comprador que alegue as razões pelas quais desiste do programa contratual ou das possibilidades da sua reposição do modo mais “reconstituinte” possível[6]. Na verdade, se bem atentarmos, é essa a escala que se estabelece entre os mencionados direitos, pois a ordem da sua atribuição relaciona-se com a sua capacidade de repor o programa contratual: os atribuídos em “primeiro” lugar são mais adequados a salvaguardar o contrato tal como foi estabelecido do que os que se lhe seguem na enumeração normativa[7]. Aliás, quando tal não constasse da referida norma, sempre seria decorrente das regras gerais sobre a liberdade e vinculação contratual e sobre o cumprimento e incumprimento dos contratos, não afastadas pelo disposto no artigo 4.º, n.º 1, cuja relação de especialidade se não estabelece com tais normas. Não seria razoável supor que as partes, que se vincularam mutuamente, face a um cumprimento menos adequado pudessem desvincular-se do programa negocial, abolindo-o, quando fosse possível reconduzi-lo aos termos contratados. Igual falta de razoabilidade se encontraria quando o legislador impusesse o exercício sucessivo dos direitos do artigo 4.º n.º 1 quando fosse conhecido ab initio a desadequação de um deles em relação ao que se lhe segue na ordem legal. Suponha-se uma situação em que fosse manifesto que a reparação da coisa nunca poderia satisfazer o programa ou que a vendedora nunca a poderia reparar por si ou por outrem de modo satisfatório. A alegação dos factos que assim permitiam concluir sempre atribuiria a possibilidade de exercício em primeira mão dos direitos “subsequentes”[8]. Esta ponderação consta aliás da sentença impugnada ao referir que o exercício dos direitos «não é, contudo, aleatório (…)» pois que existe entre eles «uma espécie de sequência lógica». Dir-se-ia, e di-lo a sentença impugnada, que no caso os Autores não exercem nenhum destes direitos antes pedem o pagamento das obras e indemnização por danos não patrimoniais decorrentes do desgosto e incómodos por assim terem sua casa. É certo. Porém, as mesmas razões iluminam a questão que assim se suscita, embora nela se devam distinguir o pagamento das obras e a indemnização por danos não patrimoniais. O pagamento das obras reconduz-se afinal a um pedido de reparação da coisa pelo próprio e não pela vendedora, prescindindo por ora da questão da antecipação do pagamento face à realização das obras. Não se trata nesta sede de um pedido de indemnização que possa reconduzir-se ao artigo 12.º da LDC. Ora não se vê fundamento legal para tal pedido. O que a lei atribui é o direito de o comprador exigir da vendedora o cumprimento pontual (ponto por ponto) da sua prestação que no caso envolve repor a coisa no estado acordado. Não atribui o direito de se lhe substituir no cumprimento, ressalvadas, naturalmente, situações de estado de necessidade[9]. Se o comprador não quiser exigir o cumprimento, optando antes por fazer as obras sibi imputet. Não pode é prescindir da exigência do cumprimento do contrato acordado para exigir prestação diversa da contratada que em tal se consubstancia a exigência do preço das obras[10]. Questão que não tem que ver com a hierarquia de direitos a que nos referimos, tem que ver com as regras de cumprimento e incumprimento do contrato[11] e de respeito pela vinculação que assumiu. Com o que concluímos com a decisão recorrida pela falta de fundamento da pretensão deduzida de pagamento do preço das obras, independentemente da ocorrência ou não de defeitos, cuja irrelevância justifica a decisão de mérito, como bem foi decidido. Resta a questão da indemnização pelos danos não patrimoniais, que não se refere ao cumprimento do programa contratual mas às consequências do incumprimento do mesmo, tomada a expressão em sentido amplo, abrangendo a mora. O artigo 12.º da LDC parece, numa primeira abordagem, autorizar interpretação no sentido da admissibilidade de exercício autónomo deste direito. Cremos, porém, não ser essa a melhor interpretação. O artigo 12.º, como o seu paralelo para a empreitada geral, o artigo 1223.º do CC, estabelecem que o comprador ou dono da obra que exerçam os direitos concedidos em ordem ao cumprimento do programa contratual mantêm direito a indemnização nos termos gerais. Ou seja, quando o exercício daqueles direitos os não coloque em situação indemne, ausente de dano, podem ver ressarcido esse dano “não absorvido” pelo cumprimento do programa negocial ou pela resolução do contrato[12]. O que se refere induz a conclusão de que apenas no contexto daquele cumprimento a posteriori, voluntário ou coercivo, se pode determinar a existência ou não do dano remanescente. Dito de outro modo, apenas a conclusão do programa de cumprimento ou a verificação do incumprimento definitivo permite apurar da existência de dano residual não indemnizado a carecer da proteção atribuída pelo artigo 12.º da LDC. Não é essa a circunstância dos autos, como abundantemente referido, pelo que bem andou a sentença recorrida ao julgar improcedente a ação. IV) DECISÃO Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida. Custas pelos Recorrentes. * Lisboa, 29 de abril de 2014
__________________________ (Ana de Azeredo Coelho)
__________________________ (Tomé Ramião)
__________________________ (Vítor Amaral)
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