Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1162/09.7TAOER.L1-3
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
APROPRIAÇÃO ILÍCITA
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.No tipo legal do crime de abuso de confiança previsto no art. 205º, nº 1, do Código Penal, a coisa móvel não é subtraída a outrem pelo agente do crime, como sucede no crime de furto. Ela já está em seu poder, mas por título não translativo de propriedade, dando-lhe, porém, o agente do crime um destino diferente daquele para que foi confiada.
II. A apropriação constitui um dos elementos objetivos do crime de abuso de confiança, mas exige, por parte do agente do crime, um «animus» que lhe corresponde e se exteriorize, através de um comportamento, que revele e execute.
III. Enquanto, que no crime de furto a apropriação intervém como elemento tipo subjetivo de ilícito (com “intenção de apropriação”), no abuso de confiança, diferentemente, a apropriação, encontra-se como elemento do tipo objetivo do ilícito.
IV. Num acordo consubstanciado num contrato de provisionamento bancário, com vista à celebração de um contrato de mútuo, em benefício de terceiros, subordinado ao tempo que demorasse a aprovação do crédito por parte de uma instituição bancária, contrato este que não se chegou a concretizar, a interpelação para a restituição da quantia provisionada, e a sua não devolução atempada, constitui a violação de um direito de crédito.
V. A violação desse direito de crédito, consubstanciada na interpelação para o respetivo pagamento, e a sua não restituição atempada, por si só, não integra o conceito de apropriação, como elemento objetivo do tipo de ilícito de abuso de confiança.
VI. Para a consumação do elemento objetivo do tipo de crime de abuso de confiança, tal como está definido no art. 205º, do Código Penal, é necessária a prática de qualquer ato objetivamente idóneo e concludente, nos termos gerais, «uti dominus»; sendo exatamente nesta realidade objetiva que se traduz a “inversão do título de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação. (sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

       1.1. No 2º Juízo Criminal de Oeiras, foram julgados em processo comum singular os arguidos JP... e CB..., devidamente identificados nos autos, tendo sido condenados como co-autor materiais e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo nº 1 e al. b) do nº 4 do art. 205º e 26º, ambos do Código Penal, cada um dos arguidos, na pena de 2 (dois) anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de dois anos, subordinada ao dever de pagar a MH... a quantia de € 3.000 (três mil euros), bem como no pagamento da quantia de € 30.000 (trinta mil euros), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data de notificação para contestar o pedido cível até efetivo e integral pagamento. Foram ainda condenados a pagar à demandante a quantia de € 3.500 (três mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da presente sentença até efetivo e integral pagamento.
          1.2. Inconformados com a sentença dele interpuseram recurso os arguidos, que motivaram, concluindo nos seguintes termos: (transcrição)

           «141º Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença proferida pelo tribunal "a quo" que condenou os Arguidos e ora Recorrentes pela prática, como co-autores materiais, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, na forma agravada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 26° e 205°, n° 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, a qual fica suspensa na sua execução pelo período de dois anos, subordinada na sua suspensão ao dever de pagar a MH... a quantia de 3.000,00 € (três mil euros), cada um dos Arguidos, devendo juntar aos autos documento comprovativo da entrega dessa quantia até ao terminus do prazo de suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50.0, n.° 2 e artigo 51.0, n.° 1, alínea a) do Código Penal).

E ainda,

142° Da Douta Sentença que condenou os Arguidos e ora Recorrentes, no que concerne ao pedido de indemnização civil, no pagamento da quantia de 30.000,00 € (trinta mil euros), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data de notificação para contestar o pedido até efectivo e integral pagamento e, ainda, no pagamento à demandante da quantia de 3.500,00 € (três mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da presente sentença até efectivo e integral pagamento.

143° Ora, salvo o devido respeito e melhor opinião, consideram os Arguidos e ora Recorrentes que, ao contrário do fundamentado na Douta Sentença, o tribunal a quo, não poderia ter dado como provados os factos das alíneas a) a f) e bb) a ee) pois existe uma contradição insanável da fundamentação e um erro notório na apreciação da prova por parte do tribunal "a quo"

144° Devendo ser reapreciada a matéria de facto, produzida em audiência, nomeadamente os depoimentos da testemunha António Miranda Pêra e da própria Assistente, Aliaria Helena Fonseca.

145° Em relação às alíneas a) e b), a quantia dos 30.000,00€ foi entregue através de um cheque da C.G.D. pelo Denunciante JF... ao Arguido JP..., encontrando-se os dois sozinhos (não podendo tal facto ser contrariado pelos depoimento quer da assistente quer da testemunha de acusação), em compensação pelos anos de amizade, assistência e apoio que este último lhe dedicou.

146° Sendo, também, absolutamente falso que o Denunciante JF... entregou tal cheque aos Arguidos para que estes contraíssem um empréstimo bancário para aquisição da casa que os denunciantes pretendiam comprar.

147° Pelos documentos juntos aos autos e pelos depoimentos da Assistente e da testemunha de acusação em sede de audiência de julgamento, parece que, aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda, constante dos presentes autos, os Denunciantes já teriam, pelo menos, em andamento um pedido de empréstimo junto da C.G.D.

148° Estando, no entanto, tais depoimentos em plena contradição com o explanado na participação crime, na Douta Acusação e na própria Sentença, pois aí se refere que o cheque tinha sido entregue aos Arguidos para estes contraírem um empréstimo em nome dos Denunciantes.

149° Por outro lado, e sendo a celebração do contrato promessa de compra e venda contemporânea da emissão do cheque, também, não faz qualquer sentido que os Denunciantes tenham entregue tal chegue para contrair um empréstimo, porque, e de acordo com os valores liquidados pelos Denunciantes com o sinal e reforço do sinal bastaria não terem entregue o dinheiro aos Arguidos para terem o dinheiro total para a escritura.

150° Por outro lado, os Denunciantes deveriam ter outras contas noutras instituições bancárias, pois que o dinheiro do sinal, do reforço do sinal e do dinheiro entregue aos Arguidos, perfazia um valor para o qual os denunciantes não tinham fundos suficientes na C.G.D.

151° Para além do cheque, de uma procuração forense e de um contrato promessa de compra e venda, não existe mais nenhum documento assinado pelo Denunciante JF..., o que sugere que o mesmo nunca terá querido a devolução do dinheiro.

152° O cheque em questão nos presentes autos foi primeiro depositado e já depois e mediante a devolução do mesmo, os Denunciantes fizeram uma transferência para a conta dos Arguidos no Banco ....

153º A idade dos Arguidos e toda a sua situação financeira era do conhecimento dos Denunciantes, não reunindo os mesmos condições para pedirem um empréstimo bancário.

154° No depoimento indirecto da testemunha de acusação, AMP..., o mesmo referiu que o Arguido JP... estaria autorizado a movimentar as contas dos denunciantes, sendo tal facto, posteriormente contradito pela C.G.D. que afirmou que o Arguido não tinha autorização para movimentar as contas e que não tinha sido solicitado nenhum empréstimo pelos Denunciantes naquela instituição.

155° Ao invés do esclarecimento de dúvidas, os depoimentos da Assistente e da testemunha de acusação apenas levantaram mais dúvidas sobre os factos e a sua cronologia.

156° Ao contrário do dado por provado na alínea c) da Douta Sentença, não ficou provado nem que os Arguidos tenham solicitado um empréstimo ou que este tenha sido indeferido.

157° Apesar de quase todo o depoimento da testemunha de acusação AMP... tenha sido um depoimento indirecto, pois ele relatou o que o seu irmão lhe disse, o tribunal não fez as diligências necessárias, para se ouvir tal testemunha, não sendo de aplicar o disposto no artigo 129º, nº1, do C.P.C.

158° Por outro lado, o depoimento desta testemunha não poderá ser isento, uma vez que a mesma mediou os negócios de venda e compras das casas dos Denunciantes em 2008 e em 2012.

159º Uma vez que o cheque no valor de 30.000,00€ foi oferecido pelo Denunciante JF... ao AP..., pelos cerca de 40 anos de ajuda e convivência, não se poderá dar como provados os factos das alíneas d) a f) da Douta Sentença.

160° Os Arguidos fizeram sua a importância dos 30.000,00 € titulada pelo cheque, porque a mesma lhes foi doada e não entregue para contrair um empréstimo e com a obrigação de ser devolvida caso tal empréstimo se não concretizasse.

161°. Por outro lado, também, não poderão ser dado como provados os factos das alíneas bb) a cc) referentes ao pedido de indemnização civil, porque tanto da análise dos documentos juntos aos autos, como do depoimento da Assistente e da testemunha de acusação não se conseguiu provar os mesmos, não se conseguiu provar qual a situação financeira da Assistente e se após a entrega do cheque dos 30.000,00 € a Denunciante tenha passado por privações, ou tenha ficado numa má situação financeira.

162° Existindo, ainda uma contradição entre o facto dado como provado na alínea ee) e a alínea xxv) dos factos dado como não provados.

163º Havendo tantas contradições entre os documentos juntos aos presentes autos e entre estes e os depoimentos da Assistente e da testemunha de acusação, que apenas colocaram mais dúvidas sobre a veracidade dos factos e a cronologia dos mesmos, o tribunal a quo deveria ter aplicado o princípio do in dúbio pro reo e ter absolvido os Arguidos e ora Recorrentes por falta de certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

164º Os Arguidos e ora Recorrentes não preencheram os elementos integrantes do crime de porque vinham acusados, devendo, por conseguinte, ser proferida decisão que revogue a Douta Sentença recorrida na parte que condenou os Arguidos JP... e CB..., como co-autores materiais num crime de abuso de confiança na forma agravada, previsto e punível nas disposições conjugadas dos artigos 26.° e 205.° do Código Penal.

Bem como,

165° Devendo, ainda, ser proferida decisão que revogue a Douta Sentença recorrida na parte que condenou os Arguidos e ora Recorrentes JP... e CB... pela prática de um crime de abuso de confiança e na parte que os condenou no pedido de indemnização cível deduzido peia Assistente.

166° Tudo de acordo com a costumada Justiça!»
1.4 Na 1ª Instância houve Resposta do Ministério Público o qual conclui pela improcedência do recurso.
1.5 Nesta Relação o Exmº Procurador Geral Adjunto apôs o seu Visto.
            1.6. Foi colhido o Visto legal
                                                           ***
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:

a) No dia 4 de Março de 2008, em Oeiras, JF... e MH... transferiram a quantia de € 30.000 (trinta mil euros) para a conta bancária n.º 0003.17... do Banco ... titulada pelos arguidos JP... e CB..., para que os arguidos comprovassem junto de instituição bancária capacidade financeira para obtenção de empréstimo bancário.

b) A quantia que fosse mutuada reverteria a favor dos queixosos para que estes pudessem adquirir habitação própria, uma vez que não tinham acesso ao crédito por terem, respectivamente, 75 e 84 anos.

c) Sucede que o empréstimo bancário não foi obtido e os arguidos, interpelados pelos queixosos pelo menos, em Outubro de 2008, não restituíram até hoje a quantia em questão.

d) Os arguidos bem sabiam que a quantia monetária que os ofendidos lhes entregaram seria para obtenção de empréstimo bancário e que posteriormente deveria ser devolvida, quer fosse ou não obtido o empréstimo bancário.

e) Não obstante, os arguidos previamente combinaram entre si integrarem a quantia nos seus patrimónios, o que fizeram, comportando-se como se fossem os proprietários do dinheiro.

f) Agiram livre, deliberada e conscientemente, de forma concertada, não ignorando que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se apurou que:

g) O Arguido, JP..., conheceu o Denunciante, JF.., há mais de 40 anos quando moravam no mesmo prédio, na Av. ..., em Algés.

h) Devido à poliomielite que sofreu em criança, o Denunciante, JF..., sempre teve extrema dificuldade em se locomover, dificuldade essa que se foi agravando com a idade e com as doenças próprias da mesma.

i) Ao longo dos anos, o Arguido, JP..., foi ajudando naquilo que podia, indo muitas vezes, depois do seu trabalho, buscar o Denunciante às "Oficinas ... " e levando-o ao "Diário ... ", onde este trabalhava, à noite, como revisor de  provas.

j) Outras alturas, o Arguido João P... pediu ajuda ao seu colega de trabalho, o Sr. JA..., para o ajudar a levar o Denunciante ora ao trabalho, ora ao hospital ou a qualquer outro local.

k) Ultimamente, e como o Arguido já não conduzia e o estado de saúde do Denunciante também se deteriorara muito, necessitando de efectuar fisioterapia em Algés, o Arguido vinha de sua casa em Lisboa, passava pelos bombeiros de Oeiras para solicitar um transporte para doentes e acompanhava o Denunciante nos tratamentos.

l) O Arguido ajudava o Denunciante naquilo que podia, fazendo pequenos trabalhos em sua casa, fazendo alguns recados e chegando a entregar nas Finanças as suas declarações de IRS.

m) Assim foi durante os cerca de 40 anos que durou a amizade de ambos, havendo plena confiança entre ambos.

n) Os Denunciantes faziam questão em pagar os transportes públicos utilizados pelo Arguido aquando das suas deslocações para acompanhamento do Denunciante.

o) Em 04.07.2008, o arguido teve um enfarte do miocárdio inferior com supradesnivelamento ST, tendo tido alta em 08.07.2008.

p) O arguido está reformado e beneficia de pensão de reforma no valor mensal de € 485.

q) A arguida C.. não trabalha, nem recebe subsídios.

r) Vivem em casa arrendada pela mãe da arguida C..., sendo aquela senhora, quem paga a renda no valor mensal de € 500.

s) Os arguidos têm empréstimos bancários contraídos, em fase de incumprimento.

t) O arguido JP... tem dois filhos maiores e independentes.

u) A arguida C... tem uma filha maior e independente.

v) O arguido JP... concluiu o 2.º ano do curso comercial e a arguida C...élia o 12.º ano de escolaridade.

Do pedido de indemnização cível:

x) A demandante e os demandados eram amigos de longa data e entre eles imperava uma relação de amizade e confiança.

y) O demandado era visita habitual da casa da demandante e ajudava o seu marido nas suas deslocações, em virtude da deficiência física deste.

z) A demandante vivia com o marido JF... em Oeiras e pretendiam mudar para um apartamento em Algés, por razões de conveniência relacionadas com os seus problemas de saúde.

aa) Para o efeito, iniciaram contactos para a compra de um apartamento em Algés, para mais tarde venderem o seu em Oeiras.

bb) A demandante e o marido possuíam parte do montante necessário para a aquisição do imóvel, mas necessitavam de um empréstimo para o remanescente e neste contexto foi efectuada a transferência aludida em a).

cc) Em virtude da conduta dos demandados, a demandante sente-se triste, defraudada e angustiada e amargurada, preocupada com o futuro.

dd) O marido da Demandante, o Senhor JF..., viveu os seus últimos dias de vida triste, amargurado e angustiado com esta situação e chorava frequentemente por se encontrar na situação física em que se encontrava por nada poder fazer.

ee) Sofre ainda a Demandante por si, e por saber que o marido faleceu sem ter visto ser feita justiça e que o mesmo viveu amargurado, triste e angustiado nos últimos anos da sua vida em virtude da conduta dos Demandados».

Deram-se como não provados os seguintes factos:

i) A primeira vez que os arguidos foram interpelados foi em Outubro de 2008.

ii) A quantia de € 30.000 foi entregue aos arguidos pelos anos de apoio, dedicação e de amizade revelados pelos Arguidos, mais precisamente, pelo Arguido, JP..., para com os Denunciantes e, nunca, em tempo algum, tal importância foi entregue para que os Arguidos pedissem junto de uma instituição bancária um empréstimo em seu nome para financiar a aquisição de uma casa em nome dos Denunciantes.

iii) A quantia de € 30.000, para além de ser uma compensação pelos mais de 40 anos de apoio e assistência aos Queixosos, era, também, uma forma de ajudar economicamente os Arguidos que atravessavam uma fase muito complicada das suas vidas.

iv) Os denunciantes tinham pleno conhecimento das dificuldades económicas dos Arguidos.

v) Sabiam, por conseguinte, que os Arguidos, por motivos económicos, tiveram de deixar em 2003 a casa arrendada onde moravam sita na R. ..., ..., para passarem a morar na casa da mãe da Arguida, sita na Rua ..., em Algés.

vi) Assim como, também, tinham pleno conhecimento de que, desde 2007, os Arguidos e a mãe da Arguida passaram a morar na Travessa ..., em Lisboa, por decisão do senhorio desta, uma vez que está a proceder ao realojamento dos arrendatários para demolição e reconstrução do dito prédio.

vii) Toda esta precária situação financeira dos Arguidos era do pleno conhecimento dos Denunciantes.

viii) Tendo sido o Denunciante, JF... escriturário das "Oficinas ... " e revisor do "Diário ... ", era uma pessoa bastante esclarecida, nunca podendo ter proposto ou aceite tal negócio.

ix) Tal dinheiro, foi entregue aos Arguidos e aceite pelos mesmos, como compensação por todos os serviços prestados ao longo de mais de quarenta anos e para ajudar os mesmos a fazerem face a um momento mais complicado das suas vidas.

x) A entrega de tal quantia não surpreendeu os Arguidos, uma vez que já por diversas vezes, ao longo dos cerca de 40 anos, o Denunciante tentara ajudar financeiramente os Arguidos com a argumentação de que não tinham filhos nem familiares a quem deixar o pouco que tinham amealhado e que era uma forma de ajudarem alguém em vida.

xi) A compra da nova casa seria efectuada com o produto da venda da casa que habitavam, não sendo necessário recorrer a empréstimos.

xii) Os denunciantes tinham o dinheiro necessário para pagar a nova casa sem recorrer a empréstimos.

xiii) Todos os telefonemas injuriosos feitos para solicitar a entrega do dinheiro foram sempre feitos pela Denunciante MH... e nunca pelo Denunciante João Fonseca.

xiv) A Demandante queria mudar de casa, mas como foi vítima desta burla já não teve dinheiro para proceder a compra de um imóvel em Algés para onde sempre pretendeu mudar-se, e só agora há cerca de 6 meses conseguiu faze-lo, já após a morte do seu marido que nunca chegou a realizar esses desejo. 

xv) A demandante passou a olhar para toda a gente com desconfiança, não permitindo muitas vezes que a ajudem, por medo de ser enganada novamente.

xvi) No entanto, chora todos os dias por se sentir sozinha e por não saber se terá dinheiro para sobreviver até ao resto dos seus dias.

xvii) A Demandante, agora viúva, vive sozinha e devido a conduta dos arguidos tem medo de deixar entrar alguém em sua casa o que por vezes torna a sua subsistência muito difícil pois tenta fazer tudo sozinha.

xviii Vive constantemente amedrontada e assustada e receia que alguém entre em sua casa e se aproxime de si apenas por interesse ou com o intuito de lhe retirar o pouco dinheiro que ainda lhe resta.

xix Vive da reforma que recebe no valor de cerca de 300,00 (trezentos euros) e agora vê-se obrigada a ter de poupar em despesas básicas como alimentação, vestuário e saúde pois se assim não for, o dinheiro que tem não lhe chegara para viver o resto da sua vida.

xx) Viu assim os seus hábitos diários e a sua vida económica completamente alterada pois agora vive preocupada com a falta de dinheiro.

xxi) A Demandante e o seu marido haviam conseguido juntar o seu "pezinho de meia" para a velhice e agora ficou a Demandante sem quase nada em virtude da conduta dos arguidos.

xxii) A sua vida mudou completamente em virtude da conduta dos arguidos.

xiii) Sente-se a demandante traída por aqueles em quem confiara e transformaram a sua velhice numa incógnita em virtude da sua insuficiência económica.

xxiv) Transformou-se a demandante numa pessoa amargurada com a vida e revoltada pela injustiça de ter ficado sem esse montante, imprescindível para a sua vida diária, uma vez que a reforma que recebe é manifestamente insuficiente para as despesas de saúde, bem como as despesas do dia a dia, conforme documentos que se protestam desde já juntar.

xxv) Vive ainda a demandante amargurada por saber que o seu marido faleceu com a angústia de ter sido traído por quem havia considerado amigo e de nunca ter chegado a ver ser feita justiça.

xxvi) Além do mais, faleceu o marido da demandante sem saber se a sua esposa iria ter condições económicas para enfrentar o futuro em virtude de não ter à data do seu falecimento a certeza de que um dia iriam ser ressarcidos do montante que ilegitimamente lhes retiraram.

Na motivação da decisão de facto consta o seguinte:

«A convicção do Tribunal quanto aos factos provados formou-se atendendo à prova carreada para os presentes autos e produzida em sede de audiência de julgamento, de acordo com o disposto no art. 127.º do Código de Processo Penal.

Concretizando, para prova dos factos vertidos na acusação, o Tribunal considerou, desde logo, a cópia do cheque n.º 56377422883, no valor de € 30.000, assinado por JF..., à ordem do arguido, de fls. 8; cópia da carta de fls. 9 e 10, subscrita por MH..., datada de 12.01.2009, na qual solicita a devolução da quantia de € 30.000, carta essa registada, mas não reclamada pelos arguidos (fls. 11 a 21); informação bancária do ... de fls. 79 a 84, da qual resulta que o cheque n.º 56377422883 foi depositado na conta bancária solidária n.º 0003.17...., titulada por ambos os arguidos e aí domiciliada (sendo que as respectivas assinaturas apenas foram conferidas em 06.03.2008, cfr. fls. 80 e 80v, donde se extrai que a conta apenas foi aberta para o depósito deste valor) e extracto da conta n.º 0003.1791..., desde 28.02.2008 até 10.07.2008 (vd. fls. 128 a 130), do qual resulta que o cheque n.º 56377422883 foi depositado em 28.02.2008, apresentado a compensação em 29.02.2008, em 03.03.2008 foi logo efectuado um levantamento de € 500 em numerário, entretanto o cheque foi devolvido e em 04.03.2008, JF... faz uma transferência bancária para a conta n.º 0003.1791..., no valor de € 30.000 (ou seja, no valor daquele mesmo cheque). Os arguidos constituíram ainda um depósito a prazo em 14.03.2008, no valor de € 27.000, tendo efectuado sucessivos levantamentos desse depósito, até restarem apenas € 22.000, sendo que descontadas as respectivas comissões e imposto de selo, em 10.07.2008, levantaram em numerário o valor de € 21.417,57, ficando a conta com um saldo nulo. Da documentação, considerou-se ainda o teor da carta de fls. 184, cópia do contrato promessa de 28.02.2008 de fls. 185 a 188 e cópia da “reserva de propriedade” de fls. 189, dos quais resulta que JF... e MH... celebraram, em 28.02.2008 (data do depósito do cheque n.º 56377422883), um contrato-promessa para aquisição de uma fracção autónoma sita no rés-do-chão de um prédio em Algés, pelo preço de € 127.500, o qual seria liquidado nos seguintes termos: € 19.125 a título de sinal e princípio de pagamento, que entregaram em 28.02.2008, a quantia de € 80.875, a título de reforço do sinal que deveria ser efectuado no prazo máximo de 60 dias a contar dessa data e a restante quantia, € 27.500 seria liquidada no acto da outorga da escritura de compra e venda, através de cheque visado, “…que se realizará em simultâneo com a escritura de hipoteca com a instituição bancária a que os segundos outorgantes recorreram para obter financiamento para a compra desta fracção…”. Daqui resulta expressamente que JF... e MF... tinham a intenção de recorrer a empréstimo bancário para pagar o remanescente do preço de aquisição daquele imóvel. Por outro lado, dali não se extrai de forma tão clara que o empréstimo fosse apenas contraído para obtenção da quantia de € 27.500. A final, este contrato de compra e venda acabou por não ser celebrado por JF... e MH..., mas por terceiros. Considerou-se, ainda, a certidão do assento de óbito de JF..., de fls. 119 e 120, da qual se extrai que faleceu com 77 anos de idade, em 19.03.2010 (pelo que em 2008 teria 75).

Para prova da matéria de facto vertida na acusação (para a qual remeteu a pronúncia), consideraram-se ainda as declarações da assistente MH..., bem como o depoimento de AMP....

A assistente prestou declarações de forma muito espontânea, admitindo claramente não ter presenciado a conversa que o seu marido, JF..., manteve com o arguido JP... a propósito da entrega do dinheiro. Porém, aludiu ao contexto da compra de uma nova habitação, da necessidade de recorrerem ao crédito bancário (note-se que dos extractos bancários das contas que JF... e a assistente eram titulares na CGD, juntos aos autos no decurso do julgamento, resulta que a sua situação financeira não era de desafogo, ao ponto de poderem prescindir de € 30.000), às dificuldades que consideravam existir em virtude da idade avançada. Além disso, de forma absolutamente clara, referiu que ouviu o seu marido a telefonar ao arguido, a solicitar a devolução do dinheiro e que este, apesar de dizer que ia devolver tal quantia (de acordo com o que o seu marido lhe transmitiu), nunca o chegou a fazer. Referiu ainda o estado psicológico em que o seu marido ficou na sequência desta situação (passava o dia a chorar). Note-se que na parte em que as declarações da assistente são um relato daquilo que o seu marido lhe transmitiu, podem ser valoradas, uma vez que este já faleceu e face ao disposto no n.º 1 do art. 129.º do CPP. Esclareceu ainda que, de cada vez que o arguido JP... prestava um serviço a JF..., era logo gratificado (cfr. no mesmo sentido o depoimento de VP...). Além disso, a testemunha AP..., gerente de uma imobiliária (“MI,,,”) e irmão de AMP..., o agente imobiliário que esteve directamente envolvido no negócio de compra e venda da casa de JF... e esposa e aquisição de uma nova casa sita num rés-do-chão, de um modo absolutamente isento, aludiu aos contornos deste negócio, destrinçando de forma clara aquilo que tinha conhecimento directo daquilo que lhe foi transmitido pelo irmão, que se encontra em Angola. Ora, o Tribunal realizou diligências tendo em vista proceder à inquirição de AP..., mas tal revelou-se inviável, conforme resulta de fls. 501 e atento o disposto no n.º 6 do art. 328.º do CPP. De qualquer modo, face à impossibilidade de ser encontrado AP... (desconhece-se a sua morada em Angola), o depoimento de AMP... pode ser valorado (cfr. n.º 1 do art. 129.º do CPP). Ora, os arguidos prestaram declarações e, em suma, negaram que tal quantia monetária lhes tivesse sido entregue com aquela finalidade. Assim, o arguido JP... afirmou que foi JF... quem lhe entregou um envelope, contendo o cheque n.º 56377422883, envelope esse que só abriu já em casa, na presença da sua esposa, a arguida C... e, posteriormente, depositou esse cheque numa conta, que abriu para o efeito. Referiu ainda que foi JF... quem o chamou de propósito a sua casa e, numa conversa que tiveram a sós, lhe entregou aquele envelope dizendo, “está aqui, faça disto o que quiser”. Esclareceu ainda que JF... lhe entregou aquela quantia por serem amigos de longa data (conhecem-se desde os 11 anos de idade do arguido) e porque o arguido sempre o ajudou muito na sua vida diária (JF... tinha uma deficiência física que dificultava a sua locomoção) e, além disso, JF... tinha conhecimento das dificuldades económicas do arguido. Assim, alegou que tal quantia lhe foi entregue como forma de pagar uma dívida de gratidão, pelos 40 anos de atenções e cuidados que lhe dedicou e que nunca JGF... lhe solicitou a devolução daquela quantia e só MH..., passado um tempo (não soube indicar em que momento) é que começou a ligar-lhe a solicitar a restituição daquele montante e que impediu que o arguido voltasse a contactar com JF... (nunca mais o viu depois de ter recebido o cheque). Reconheceu que ajudou JF... a procurar uma nova casa, para morar (um rés-do-chão, face às dificuldades de locomoção) e que o colocou em contacto com o agente imobiliário (AP...), mas negou que tivessem acordado que iria pedir um empréstimo bancário que reverteria para JF... e esposa, afirmando que, nessa data, o seu nome já constava da lista negra do Banco de Portugal. Referiu ainda que não depositou tal cheque na conta do BES, de que era titular, porquanto devia algum dinheiro a esta instituição bancária e assim poderiam reter-lhe logo aquela verba (daqui já se vê o zelo do arguido em pagar as suas dívidas) e afirmou não se lembrar porque motivo não manteve aquele dinheiro na conta do ... e ter ideia que o depositou no B... (mas afirmou não ter a certeza, admitindo ainda como hipótese que o tivesse depositado no ..., sendo que VP... também referiu como provável que tivesse sido depositado neste último banco). A arguida C... reconheceu não estar presente no momento em que JF... entregou o cheque ao arguido JP..., mas no essencial sustentou a versão deste, referindo que foi uma doação, pelos serviços prestados ao longo dos anos e que nunca JF... solicitou a devolução de tal quantia, apenas MH..., uns tempos antes de Julho de 2008. Referiu ainda que, posteriormente, se deslocaram a casa de JF..., mas MH... não os deixou entrar e impediu os contactos com o mesmo, desconhecendo em que data este faleceu. Contudo, a versão dos arguidos não se revelou minimamente consistente e, como tal, não se considerou credível. Ora, não é credível que em 28.02.2008, JF... e MH... celebrassem um contrato-promessa do qual consta expressamente de que iriam necessitar de um empréstimo bancário para liquidar parte do preço e, nesse mesmo dia, JF... entregasse um cheque no valor de € 30.000 ao arguido e, posteriormente, face a essa devolução, efectuasse uma transferência bancária nesse valor. Se JF... tinha desafogo económico ao ponto de entregar aquela quantia a um amigo, não fazia sentido socorrer-se de crédito bancário. A que propósito haveria de gratificar o arguido precisamente num momento em que tal verba lhe seria necessária, face ao negócio que estava a celebrar. De facto, note-se que, muito embora a intenção fosse vender a casa onde viviam e com o preço da mesma liquidar o preço, a verdade é que esse negócio poderia demorar tempo a concretizar-se (como veio a acontecer), pelo que necessitaria de ter liquidez. Na verdade, a versão da acusação é muito mais plausível e a coincidência cronológica entre a celebração daquele negócio e a transferência bancária daquela quantia para a conta dos arguidos é consistente com essa versão, porquanto revela que JF... queria mesmo que a conta dos arguidos, domiciliada num banco onde não tinham situações de incumprimento, tivesse um montante pecuniário significativo e assim estivessem em melhor posição de obter crédito. Além disso, mesmo admitindo por hipótese que em 2008 o nome do arguido já constasse da lista negra do Banco de Portugal (e que, por esse motivo, fosse inviável obter crédito bancário), nada permite concluir que JF... e MH... tinham conhecimento dessa circunstância. E, em 2008, o arguido tinha 66 anos de idade e a arguida 48 anos de idade, pelo que é plausível que JF... e MH... acreditassem que os arguidos estariam em melhores condições de obter crédito do que eles, com 75 e 84 anos de idade. Note-se, ainda, a sucessão cronológica entre o momento em que começa a ser solicitada a devolução daquela quantia (de acordo com a arguida C..., antes de Julho de 2008) e o momento em que os arguidos encerram a conta bancária no ..., ou seja, inícios de Julho de 2008. Ora, mesmo pelas regras da experiência comum, não é normal alguém proceder ao levantamento em numerário de mais de € 21.000, quando a intenção (de acordo com o arguido JP...) é depositar essa quantia noutra conta bancária. O procedimento mais comum, até por razões de segurança, é efectuar uma transferência bancária para a nova conta. Assim, o procedimento adoptado pelos arguidos revela algo simples: a intenção de ocultar o destino dado ao dinheiro e obviar à sua restituição. De facto, com a transferência bancária efectuada por JF..., foi fácil perceber onde se encontrava o dinheiro, mas a partir do momento em que o mesmo foi levantado em numerário, perdeu-se o seu rasto e os arguidos não explicaram minimamente para onde se “evaporou” aquela verba (afirmaram que foram gastando aos poucos, conforme as necessidades). Por outro lado, a explicação apresentada pelos arguidos para terem deixado de ver e contactar com JF..., ao ponto de desconhecerem sequer a data em que o mesmo faleceu não é credível: note-se que o arguido JP... conhecia bem as rotinas deste, uma vez que era visita assídua de casa e o ajudava em deslocações a diversos locais, pelo que mesmo admitindo, por hipótese, que MH... não o deixasse entrar na sua residência, sempre poderia tentar encontrá-lo num local público. Além disso, se como a arguida C... refere, MH... começou a solicitar a devolução daquela quantia antes de Julho de 2008, o procedimento mais normal e plausível, mesmo de acordo com as regras da experiência comum (e ao alcance dos arguidos, tanto mais que a sua filha, VP... é licenciada em Direito e acompanhou de bastante perto os problemas relacionados com a entrega daquela quantia), seria tentar esclarecer a situação ainda em vida de JF... ou obter um documento devidamente assinado por este em que atestasse que tinha doado aquela quantia, até para evitar futuros problemas e, para tanto, os arguidos tinham todo o interesse em realizar todas as diligências necessárias para chegar à fala com o mesmo. Note-se que JF... apenas faleceu em Março de 2010, ou seja, os arguidos tiveram quase dois anos para, querendo, esclarecer a situação e não é credível que durante todo este período JF... estivesse sempre recluso em casa, incontactável. Mas, nas palavras de VP..., o seu pai, o arguido JP..., foi uma vez a casa de JF... e MH..., tocou à campainha e não lhe abriram a porta. Mesmo admitindo, por hipótese, que tal sucedeu, em dois anos, uma única deslocação a casa de JF... após ter recebido o cheque revela bem o empenho colocado pelos arguidos na resolução da questão. Pelo contrário, a atitude dos arguidos demonstra que após o recebimento daquela quantia se furtaram aos contactos com JF..., a fim de não cumprirem o acordado e ficarem com aquela verba. Por outro lado, não foi valorado o depoimento de VP..., filha dos arguidos que, num discurso colado ao dos seus pais (ou vice-versa), corroborou a versão destes (e apresentando as mesmas inconsistências), mas revelando claro interesse na causa, não só pelas relações familiares, mas sobretudo, como a própria admitiu, porque reflexamente beneficiou daquela quantia, na medida em que serviu igualmente para pagar despesas suas. Note-se que esta testemunha, num discurso onde não deixou de revelar os valores porque se rege e o seu conceito de amizade (ao ponto de afirmar que € 30.000 não era muito, considerando toda a ajuda prestada pelo seu pai a JP...), referiu que, ao longo dos anos, JF... sempre foi gratificando JP... pelos serviços que este lhe ia prestando (cfr. também, neste sentido, as declarações da assistente). Ora, assim sendo, mais uma vez, não é plausível que já tendo gratificado o arguido, ao longo do tempo, à medida a que os serviços iam sendo prestados, JF... resolvesse gratificá-lo novamente e logo numa quantia tão avultada. Em suma, tudo isto para dizer que a versão dos arguidos padece de contradições e inconsistências quando confrontada com a demais prova produzida, motivo pelo qual não se considerou credível. Assim, atentas as regras da experiência comum e do que resultou objectivamente provado quanto à conduta dos arguidos, o Tribunal considerou como provadas as alíneas d) a f). Quanto aos factos relativos à condição económica, pessoal e profissional dos arguidos, relevaram, apenas nesta matéria, as suas declarações, que não foram infirmadas pela demais prova produzida e o teor de fls. 448. Para prova da inexistência de antecedentes criminais atendeu-se ao teor do c.r.c. junto aos autos. No que concerne aos factos relevantes para a apreciação do pedido de indemnização civil, consideraram-se as declarações da assistente, que se afiguraram credíveis conjugadas com as regras da experiência comum e o depoimento de AMP.... Relativamente aos factos não provados, tal justifica-se por não ter sido produzida prova que corroborasse tais factos (nomeadamente à demais matéria do pic) ou por se ter valorado a versão contrária (da contestação dos arguidos, excepto na parte em que não foi infirmada pela demais prova produzida, nomeadamente quanto à relação de amizade e serviços prestados ao longo de 40 anos), nos termos supra expostos, sendo certo que não se incluiu matéria irrelevante face ao objecto dos autos (não se considerou relevante a matéria relativa à posterior venda da casa), nem matéria conclusiva ou de direito».

                                                     ***

            3. O DIREITO

            3.1. O objeto do presente recurso atentas as conclusões da motivação dos recorrentes, prende-se com as seguintes questões:

- contradição insanável da fundamentação e um erro notório na apreciação da prova por parte do tribunal "a quo";

- impugnação da matéria de facto;

- os arguidos e ora recorrentes não preencheram os elementos integrantes do crime de porque vinham acusados, devendo, por conseguinte, ser proferida decisão que revogue a Douta Sentença recorrida na parte que condenou os Arguidos JP... e C..., como co-autores materiais num crime de abuso de confiança na forma agravada, previsto e punível nas disposições conjugadas dos artigos 26.° e 205° do Código Penal, bem como na parte que condenou os Arguidos e ora Recorrentes JF... e C... pela prática de um crime de abuso de confiança e na parte que os condenou no pedido de indemnização cível deduzido pela Assistente.

           3.1.1. Começando por analisar a última questão suscitada, ou seja, os recorrentes não preencheram os elementos integrantes do crime de porque vinham acusados.

No tipo legal do crime de abuso de confiança previsto no art. 205º, nº 1, do Código Penal, “Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade é punido …”, a coisa móvel não é subtraída a outrem pelo agente do crime, como sucede no crime de furto; ela já está em seu poder, mas por título não translativo de propriedade, dando-lhe, porém ele um destino diferente daquele para que foi confiada, ao dela se apropriar ilegítimamente.[i]

“O crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime patrimonial pertencente à subespécie dos crimes contra a propriedade, tem como objecto de acção, tal como o furto, uma coisa móvel alheia, e, ainda como o furto revela-se por um acto que traduz o mesmo conteúdo substancial de ilicitude, uma apropriação».[ii]

Porém, “a consumação deste crime consiste na inversão do título de posse, ou seja, no passar o agente a dispor da coisa “animo domini”. (…) O crime consuma-se quando o agente, que recebe a coisa móvel por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir “animo domini”, devendo porém entender-se que a inversão do título de posse carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse. Isto não significa, porém, que a conduta tenha que ser positiva, já que uma mera omissão pode consubstanciar essa reveladora objectividade” [iii]

Ou seja, um dos elementos típicos do crime de abuso de confiança que exprime por excelência o bem jurídico protegido é a apropriação.
           Enquanto, que no crime de furto a apropriação intervém como elemento tipo subjectivo de ilícito (como “intenção de apropriação”), no abuso de confiança, diferentemente, na sua estrutura de apropriação «qua tale», isto é, na sua veste objetiva de elemento do tipo objectivo do ilícito. Por isso, a apropriação no abuso de confiança, «não pode ser (...) um puro fenómeno interior – até porque «cogitationis poenam nemo patitu» – mas exige um «animus» que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento, que revele e execute». [iv]

            A apropriação traduz-se sempre, no contexto do crime de abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção: o agente que recebera a coisa «uti alieno», passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais – «uti dominus»; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a “inversão do título de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação (...) Sob que forma deva manifestar-se a apropriação, é em definitivo indiferente: necessário é apenas, que como acima se disse, se revele por actos concludentes que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa “como proprietário”. (...) É indispensável que através do acto ou actos de apropriação se tenha verificado uma deslocação da propriedade: a mera afetação da substância da coisa não constitui abuso de confiança[v].

3.1.2. Retomando a factualidade dada como provada na sentença recorrida, na parte que aqui releva:

«No dia 4 de Março de 2008, em Oeiras, JF... e MH... transferiram a quantia de € 30.000 (trinta mil euros) para a conta bancária n.º 0003.179... do Banco ... titulada pelos arguidos JP... e CB..., para que os arguidos comprovassem junto de instituição bancária capacidade financeira para obtenção de empréstimo bancário. [al. a) factos provados]. A quantia que fosse mutuada reverteria a favor dos queixosos para que estes pudessem adquirir habitação própria, uma vez que não tinham acesso ao crédito por terem, respetivamente, 75 e 84 anos. [al. b) factos provados]. Sucede que o empréstimo bancário não foi obtido e os arguidos, interpelados pelos queixosos pelo menos, em Outubro de 2008, não restituíram até hoje a quantia em questão. [al. c) factos provados]. Os arguidos bem sabiam que a quantia monetária que os ofendidos lhes entregaram seria para obtenção de empréstimo bancário e que posteriormente deveria ser devolvida, quer fosse ou não obtido o empréstimo bancário. [al. d) factos provados].

     3.1.3. No caso subjudice o que ocorreu, foi um acordo celebrado entre os queixosos e os arguidos, consubstanciado num contrato de provisionamento bancário da conta dos arguidos, com vista à celebração de um contrato de mútuo entre os arguidos e o Banco ..., em benefício de terceiros, ou seja, os queixosos, contrato esse subordinado ao tempo que demorasse a aprovação do crédito por parte do banco.

No entanto, tal contrato de mútuo em benefício de outrém, isto é, entre a instituição bancária e os arguidos, não se chegou a concretizar. Mais acordaram os queixosos e os arguidos, que a quantia provisionada seria restituída aos queixosos em prazo que se desconhece, mas independentemente da concretização do contrato de mútuo entre os arguidos e o Banco .... Interpelados para restituírem a quantia provisionada na conta dos arguidos, pelo menos em Outubro de 2008, estes não devolveram tal quantia aos queixosos.

           Daqui se conclui, que as obrigações que decorreram do mencionado acordo têm natureza civil. Não há dúvida que os queixosos têm um direito de crédito sobre os recorrentes. Contudo, a violação deste direito de crédito por parte dos arguidos, ora recorrentes, não integra o elemento objetivo do crime de abuso de confiança. Trata-se de um caso semelhante, aos exemplos referidos pelo Prof. Figueiredo Dias[vi], designadamente o caso, do mútuo, que, como contrato com eficácia real tendo por objeto coisas fungíveis, transfere a propriedade para o mutuário, (CC, art. 1144º), como será o caso do depósito irregular que tem também como objeto coisas fungíveis e ao qual são aplicáveis as normas relativas ao mútuo (CC, arts. 1205º e 1206º): trata-se ainda de um contrato real quoad effectum que transfere a propriedade da coisa para o depositário. E o mesmo deverá ainda dizer-se, para o efeito, do próprio depósito bancário de coisas fungíveis, nomeadamente de dinheiro, se bem que a sua natureza seja muito discutida, variando as qualificações: mútuo, depósito irregular, contrato misto, etc, «com a formulação agora legislativamente consagrada torna-se isento de dúvida que a violação de um mero direito de crédito de quem faz a entrega da coisa não pode nunca integrar o tipo objetivo do tipo de ilícito do abuso de confiança».

     3.1.4. No enquadramento jurídico-penal, conclui-se na sentença, que perante estes factos, encontram-se preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de abuso de confiança, fundamentando-se: «Tal significa que, em virtude da relação de amizade e de confiança que mantinham com JF... e a assistente, aos arguidos foi entregue aquela quantia de € 30.000, para que a restituíssem posteriormente àqueles, ou seja, os arguidos estavam incumbidos de proceder à entrega daquele dinheiro, que receberam licitamente, por título não translativo da propriedade. Os arguidos tinham na sua disponibilidade (a conta do ... para a qual foi transferido o dinheiro era solidária, portanto cada um dos arguidos poderia restituir) entregar aquele dinheiro que detinham (mas do qual não eram proprietários), face ao acordo celebrado, mas, ao invés, apropriaram-se do mesmo, para si, não diligenciando pela sua restituição, mesmo após terem sido interpelados para tanto. Mais se apurou que os arguidos previamente combinaram entre si integrarem a quantia nos seus patrimónios, o que fizeram, comportando-se como se fossem os proprietários do dinheiro, tendo assim actuado de forma concertada, em comunhão de esforços e de intentos, pelo que actuaram em co-autoria material (cfr. art. 26.º do Cód. Penal)».

É certo que os arguidos tinham na sua disponibilidade a quantia que foi transferida para a sua conta no Banco ... de que eram titulares, tendo a obrigação de a entregar aos queixosos, uma vez que a detinham e da qual não eram proprietários, face ao acordo celebrado entre os queixoso e os arguidos, não diligenciando pela sua restituição, mesmo após terem sido interpelados para tanto.

Contudo, já não se pode concluir como se afirma na sentença recorrida, que os arguidos se apropriaram da mencionada quantia, integrando-a nos seus patrimónios,o que fizeram, comportando-se como se fossem os proprietários do dinheiro”. Trata-se de uma mera conclusão que não se mostra alicerçada em factos concretos. Da factualidade provada, não resulta que os arguidos tenham praticado qualquer ato objetivamente idóneo e concludente, nos termos gerais – «uti dominus»; sendo exatamente nesta realidade objetiva que se traduz a “inversão do título de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.

Ou seja, o que resultou apurado é que os arguidos tinham a sua conta provisionada com a quantia de 30 000€, transferida licitamente pelos queixosos; que tal transferência visava comprovar junto da instituição bancária, que os arguidos tinham capacidade financeira para obtenção de empréstimo bancário; que a quantia que fosse mutuada pelo Banco ... reverteria a favor dos queixosos para que estes pudessem adquirir habitação própria, uma vez que não tinham acesso ao crédito por terem, respetivamente, 75 e 84 anos de idade; que o mencionado montante seria devolvida aos queixosos, independentemente da concretização do contrato de mútuo entre os arguidos e o Banco ...; que empréstimo bancário não foi obtido e os arguidos, interpelados pelos queixosos pelo menos, em Outubro de 2008, não restituíram até hoje o montante de 30 000€.

           Do exposto resulta que os arguidos não se «apropriaram» da aludida quantia, no sentido e alcance que lhe é dado, no crime de abuso de confiança, como elemento típico objectivo do ilícito.

Com efeito, não resulta provado qualquer ato de onde se possa concluir, que se comportaram como proprietários da referida quantia, v.g., transferindo-a para uma outra conta bancária, que tivessem efetuado levantamentos da conta bancária, para onde foi transferida a quantia de 30 000€; que tivessem utilizado total ou parcialmente este montante, para qualquer fim, mas tão só que interpelados para a restituir aos queixosos, não o fizeram. Do exposto resulta que da factualidade provada, não resulta qualquer facto do qual se possa concluir, que os arguidos, ora recorrentes, tenham agido com «uti dominus», ou seja, não está demonstrada a “inversão do título de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação, não houve deslocação da propriedade para os arguidos. A situação de não restituição atempada não integra o conceito de apropriação, como elemento objetivo do tipo de ilícito de abuso de confiança. Neste sentido, não se verifica o elemento objetivo do tipo de ilícito abuso de confiança, ou seja, a apropriação, consubstanciada na inversão do título de posse ou detenção.

Assim sendo, uma vez que não se verificam os elementos objetivos do tipo de ilícito do crime de abuso de confiança, impõe-se a absolvição dos arguidos, procedendo, por fundamentos diversos, os recursos dos arguidos, ficando prejudicadas as demais questões objeto do recurso.

3.3. Relativamente ao pedido de indemnização cível.

           3.3.1. Na sentença recorrida foram ainda os arguidos/demandados condenados a pagar à demandante a quantia de € 30.000 (trinta mil euros), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data de notificação para contestar o pedido cível até efetivo e integral pagamento, bem como pagamento àquela da quantia de € 3.500 (três mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da presente sentença até efetivo e integral pagamento.
O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal terá sempre de ser fundado na prática de um crime (art. 71º, do CPP).
Em conformidade com o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça nº 07/99, de 17JUN99, [publicado no Diário da República, I Série -A, nº 179, de 03AGO99], face à redação do art. 71º, do CPP, o regime imposto relativo à questão da indemnização a fixar pela prática de um crime, é o da adesão obrigatória da ação civil na ação penal, ou seja, o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal só pode ser exercido no próprio processo penal, enxertando-se o procedimento civil a tal destinado na estrutura do processo criminal em curso. O pedido de indemnização civil, com base num crime, só pode ser deduzido em separado nos casos previstos na lei, ou seja, nos casos a que se refere o art. 72º, do CPP.

O art. 129º do Código Penal remete a regulamentação da indemnização de perdas e danos emergentes do crime para a lei civil, e esta só pode ser o art. 483º, do Código Civil, que apenas contempla a responsabilidade por factos ilícitos, mas com total exclusão da responsabilidade contratual e da responsabilidade por factos lícitos, nos casos contemplados na lei. E estas duas responsabilidades, por um lado a responsabilidade por facto ilícito (extracontratual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual, são essencialmente diferentes, porquanto esta resulta da falta de cumprimento de uma determinada obrigação preexistente entre credor e devedor, enquanto a responsabilidade extracontratual deriva de um facto ilícito prejudicial a alguém independentemente de qualquer obrigação preexistente entre o lesante e o lesado.

Do exposto resulta que o art. 129º, do CP, face à jurisprudência fixada no citado aresto, afastando-se totalmente de qualquer relação de causalidade, apenas se limita a afirmar ou a estabelecer um regime de regulação para a indemnização emergente do crime, e neste particular impõe-se que tal indemnização seja regulada pela lei civil, ou seja, tal normativo apenas remete para o art. 483º, do CC, tratando-se de regulação da indemnização de perdas e danos emergentes do crime, sendo que a indemnização civil que interessa ao direito penal e ao processo penal só pode consistir, na indemnização de perdas e danos emergentes do crime, excluindo-se, portanto e claramente, a indemnização que resulte da responsabilidade contratual.

            Ou seja, a causa de pedir que há-de fundamentar o pedido de indemnização cível a formular em processo penal, nos termos dos arts. 129º, do CP e 71º e 377º, do CPP, terá que coincidir com os mesmos factos que também são pressuposto da responsabilidade criminal e pelas quais o arguido é acusado.

           Não basta que se provem factos que consubstanciam uma obrigação de natureza civil: é necessário que se esteja perante um ilícito civil que produza o dever de indemnizar nos termos do art. 483º, do C. Civil. O regime da adesão obrigatória não implica uma ação cível qualquer, mas tão-somente um pedido de indemnização civil para ressarcimento dos danos causados por uma conduta considerada como crime.

           O facto ilícito criminal, fundamento do pedido cível enxertado no processo penal, não é por si fonte geradora, nem pode ser, de responsabilidade contratual.

3.3.2. Conforme resulta do art. 377º, nº 1, do CPP, a condenação em indemnização civil, no caso de absolvição quanto à matéria penal, só pode ter lugar quando - ainda que haja sentença absolutória na parte criminal – o pedido de indemnização civil venha a revelar-se fundado. O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal terá sempre de ser fundado na prática de um crime (art. 71º, do CPP).

O citado Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/99 [D.R. n.º 179, Série I-A de 1999-08-03], decidiu e foi mantido pelo Acórdão de 20ABR05 do Supremo Tribunal de Justiça, que não viu razões para reexame da jurisprudência, foi que se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.[vii]

3.3.3. No caso subjudice, não há dúvida que a demandante deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos/demandados peticionando que os mesmos sejam condenados a pagar-lhe, a título de danos patrimoniais, por si alegadamente sofridos, pelos factos vertidos na acusação, a quantia de € 30.000 e a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 15.000, quantias estas acrescidas de juros desde a data da notificação e até efetivo e integral pagamento (fls. 277 a 283).

Ou seja, a causa de pedir no pedido de indemnização civil formulado pela demandante coincide com os mesmos factos que também são pressuposto da responsabilidade criminal e pelas quais os arguidos foram acusados, para ressarcimento dos danos causados por uma conduta considerada como crime, ou seja, a responsabilidade extracontratual ou aquiliana.

Porém, uma vez que os arguidos foram absolvidos da prática do crime de abuso de confiança, por não se verificarem os elementos objetivos do tipo, o incumprimento por parte dos arguidos/demandantes do acordo celebrado com a demandante, estamos no âmbito da responsabilidade contratual, que não pode ter lugar no processo penal, por não verificado, manifestamente, o requisito de que depende – ser fundado na prática de um crime ou emergir de um crime.

Neste sentido, por fundamentos diversos, procedem também quanto ao pedido cível os recursos dos demandados, ficando prejudicadas as demais questões objeto do recurso.
                                               ***
4. DECISÃO.

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento aos recursos dos arguidos/demandados, por fundamentos diversos, e em consequência revoga-se a sentença recorrida, absolvendo os arguidos/demandados JP... e CB..., da prática como co-autores materiais e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos arts. 205º, nº1 e al. b), do nº 4 e 26º, do Código Penal, em que foram condenados, bem como se absolve os demandados do pagamento à demandante da quantia de € 30.000 (trinta mil euros), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data de notificação para contestar o pedido cível até efetivo e integral pagamento, e do pagamento da quantia de € 3.500 (três mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da presente sentença até efetivo e integral pagamento.

Sem custas.

                                                                       ***

Lisboa, 29 de janeiro de 2014

Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Moraes Rocha


[i] O Código Penal de 1886 (art. 453º), ía no sentido de uma enumeração exemplificativa dos títulos que poderiam dar origem a um abuso de confiança, seguida de uma cláusula geral que já então devia ser reconduzido ao caráter do título não translativo de propriedade: “que lhe tenham sido entregues por depósito, locação, mandato, comissão, administração, comodato, ou que haja recebido para trabalho, ou emprego determinado, ou por qualquer outro título que produza obrigação de restituir ou a apresentar a mesma coisa recebida ou um valor equivalente”.
[ii] Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora 1999, Tomo II, pág. 94.
[iii] Vide, neste sentido J. António Barreiros, in “Crimes Contra o Património, 111, e Prof. Cavaleiro Ferreira, aí citado.
[iv] Prof. Eduardo Correia, in RLJ, 90º, 36, citado pelo Prof. Figueiredo Dias, in ob cit, pág. 103.
[v] Prof. Jorge Figueiredo Dias, in loc. Cit.
[vi] In loc. cit., pág. 102.

[vii] No AC do TRP de 01JUL09, (relator Desembargador António Gama) publicado in www.dgsi.pt, em que estava em causa, além do mais, saber se proferida decisão penal absolutória pode ocorrer no mesmo processo condenação cível com base em responsabilidade pelo risco, decidiu que «absolvido o arguido em crime por acidente de viação, a condenação em indemnização civil por responsabilidade pelo risco não está vedada, pois o que se afasta e exclui na decisão Uniformizadora de Jurisprudência é apenas a responsabilidade civil contratual e a responsabilidade pelo risco não deixa de ser responsabilidade extracontratual. Conclui-se, assim, que o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Se o arguido for absolvido desse crime, o pedido cível formulado só poderá ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco (responsabilidade extracontratual).