Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3110/12.8YXLSB.L2-7
Relator: ALEXANDRA DE CASTRO ROCHA
Descritores: OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA
RESPONSABILIDADE CIVIL
DÉFICE FUNCIONAL PERMANENTE
INDEMNIZAÇÃO
DESEMPREGO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Ainda que não se tenha provado que aquele que sofreu lesões que lhe causaram um défice permanente da integridade físico-psíquica estivesse, à data dos factos, empregado, o certo é que a qualquer momento poderá retomar uma ocupação remunerada e, portanto, as sequelas permanentes e irreversíveis de que ficou a padecer implicam necessariamente - dado tratar-se de um défice geral e, portanto, para todas as actividades - um maior esforço para realizar as tarefas laborais que lhe vierem a ser atribuídas, o que importa um dano patrimonial futuro susceptível de ser indemnizado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:
X… intentou a presente acção declarativa contra L… e M…, pedindo a condenação dos RR. a pagarem ao A. «a quantia de € 25.000,00, na proporção de 5.000,00 e € 20.000,00 para o Réu M… e para o réu L…, respectivamente; acrescida de juros vincendos sobre cada um dos referidos montantes, a contar da citação até efectivo e integral pagamento».
Para tanto, alega que foi fisicamente agredido pelos RR., com murros e pontapés, sendo que o R. L… também o esfaqueou na face. Refere que dessa agressão resultaram para si danos físicos, psíquicos e patrimoniais, que pretende ver ressarcidos.
Os RR. contestaram, invocando a prescrição do direito do A. e alegando que em nada contribuíram para as lesões que aquele diz ter sofrido.
O A. veio pugnar pela improcedência da excepção de prescrição suscitada pelos RR..
Oportunamente, foi saneado o processo, tendo sido relegado para final o conhecimento da excepção de prescrição.
Realizado exame pericial, o A. veio ampliar o pedido para € 85.000,00, sendo € 15.000,00 a cargo do R. M… e € 70.000,00 a cargo do R. L….
Procedeu-se a audiência final, tendo sido proferida sentença, que, em consequência da procedência da excepção de prescrição, absolveu os RR. do pedido.
Não se conformando com aquela decisão, dela apelou o A., tendo o TRL, por acórdão de 5/3/2020, revogado a sentença, na parte em que julgou procedente a excepção de prescrição, «considerando a acção proposta atempadamente e ordenando a remessa dos autos ao Tribunal a quo para conhecimento das questões e pedidos que ficaram prejudicados».
Tendo o processo baixado à 1.ª instância, foi proferida sentença, que concluiu com o seguinte dispositivo:
«Conforme os aludidos critérios e fundamentos normativos, julgo a acção procedente e, em consequência:
a) Condeno o Réu, M…, ao pagamento ao Autor, X…, da quantia de 15.000,00 € (quinze mil euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a presente data até efectivo e integral pagamento, sem prejuízo de diferente taxa legal que em cada momento venha a vigorar.
b) Condeno o Réu, L…, ao pagamento ao Autor, X…, da quantia de 70.000,00 € (setenta mil euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a presente data até efectivo e integral pagamento, sem prejuízo de diferente taxa legal que em cada momento venha a vigorar.
A responsabilidade por custas fica a cargo do Réus».
Não se conformando com a sentença, dela apelaram os RR., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
« I. A douta sentença recorrida perpetrou em equívoco quanto à matéria de direito.
II. Ora, o presente recurso tem como principal fundamento a discordância quanto ao valor total arbitrado a título de indemnização global ao aqui Recorrido na douta sentença do Tribunal aquo no valor de 85.000,00€.
III. Note-se que se encontra em discordância o valor arbitrado de uma indemnização proveniente de responsabilidade civil extracontratual dos recorrentes.
IV. Ora não está em causa a discordância quanto à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil dos recorridos, mas sim quanto a parte do valor arbitrado de forma infundamentada, injustificada e à revelia dos arts.496.º e 564.º e 566.º.
V. Atendendo a que a única categoria de danos em causa na douta sentença são danos não patrimoniais, nos termos do art.496.º deveria o douto tribunal aquo ter apreciado os mesmos atendendo ao critério principal da equidade.
VI. Pelo contrário, e não obstante o tribunal aquo fazer a ressalva da não vinculação dos tribunais judiciais à Portaria 679/2009 de 25 de junho, a verdade é que aplicou tal qual os montantes que constam da mesma para algumas das categorias de danos não patrimoniais em causa.
VII. Conforme consta da douta sentença, o Tribunal aquo optou por seguir a tese da qualificação do dano biológico na sua vertente não patrimonial, não havendo por isso qualquer condenação por danos patrimoniais.
VIII. Na determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial, a lei aponta nitidamente para uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade;
IX. Quanto ao dano biológico, e como referido supra, o douto Tribunal usou da Tabela constante no anexo IV da Portaria referida afim de fixar o valor em causa de 68.000,00€, valor que não se considera excessivo nem desproporcional ou irrazoável.
X. Quanto ao dano estético, a valoração do mesmo deve relevar fundamentalmente da aplicação de critérios objetivos, sem prejuízo, porém, da ponderação da apreciação íntima e, portanto, subjectivizante do lesado, quanto à sua repercussão.
XI. Ora, uma vez mais o Tribunal aquo baseou-se nos valores constantes dos Anexos da Portaria em causa para fixar o valor de 5.745,60€ atendendo a que foi atribuído ao Recorrido uma pontuação de grau 5/7.
XII. Não podem os recorrentes concordar com tal valor de indemnização porquanto, e uma vez que tal Portaria não é vinculativa, conforme tem sido entendimento da nossa jurisprudência, deveria o douto Tribunal ter fixado um valor de indemnização inferior porquanto o impacto do dano estético em causa no caso concreto não justifica tal valor, sendo irrazoável.
XIII. Neste sentido, andou mal o Tribunal na aplicação e interpretação do art.566.º do CC, porquanto não ponderou de forma casuística e equitativa a situação referente ao dano estético face à situação concreta do recorrido.
XIV. Ora, somando as quantias explicitadas e fundamentadas na douta sentença: 68.000,00€ relativamente ao défice funcional permanente (também designado dano biológico), 3.283,20€ relativo ao quantum doloris e 5.745,60€ atinentes ao dano estético, o total perfaz o valor de 77.028,80€.
XV. Assim, fica por explicar e fundamentar o critério utilizado para fixar, alegadamente, de forma equitativa uma indemnização global de 85.000,00€.
XVI. Porquanto fica por fundamentar, a que título é atribuído o restante valor de 7.971,20€.
XVII. Pelo que nos parece, em causa está o valor respeitantes aos restantes danos não patrimoniais descritos da douta sentença, contudo, não refere o tribunal com que critérios alcançou o valor de 7.971,20€.
XVIII. Foi simplesmente para perfazer o valor peticionado pelo recorrido?
XIX. Mais, no elenco dos demais danos não patrimoniais em crise, o Tribunal aquo refere que ao valor arbitrado pelo dano biológico “sempre acresce o sopesamento e valoração da angústia, frustração, tristeza, revolta e das restrições comportamentais e correlativa compensação monetária”.
XX. Ora, pretendeu o douto tribunal compensar monetariamente, e de forma completamente arbitrária o recorrido pelas "restrições comportamentais descritas”, contudo, parece ignorar tal instância, com o devido respeito, que no conceito de dano biológico, nomeadamente na tese de dano não patrimonial, embora o mesmo não determine perda de rendimento laboral, a verdade é que já envolve as restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente, conforme jurisprudência uniformizada.
XXI. Ao acrescentar aos danos não patrimoniais uma compensação por estas “restrições comportamentais”, que mais não são do que as dificuldades inerentes ao seu dia-a-dia que passou a sentir após o sucedido, a douta sentença está a duplicar indemnizações, fazendo portanto uma errada aplicação do art.496.º ao caso concreto.
XXII. Porquanto tais danos encontram-se abrangidos na avaliação do dano biológico/corporal.
XXIII. Assim, andou mal o Tribunal de 1.ª instância ao decidir fixar o valor peticionado sem justificação e até com duplicação de danos.
XXIV. Como tal, o valor da indemnização global arbitrada pelo douto Tribunal aquo revela-se excessivo e injustificado, pelo que deve ser reduzido para o valor de 77.028,80€, valor esse que se encontra demonstrado o seu fundamento, não se devendo manter o valor de 85.000,00€.
Termos em que, com o douto suprimento de V/Exa, deve ser proferida decisão que, julgando procedente o presente recurso seja reconhecido que a douta sentença aqui em crise errou na interpretação do direito e na sua aplicação aos factos, com as legais consequências Decidindo assim, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!».
O A. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635.º n.º4 e 639.º n.º1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões formuladas pelos recorrentes nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3.º n.º3 e 5.º n.º3 do Código de Processo Civil). Note-se que «as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa». Por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022 – 7.ª ed., págs. 134 a 142].
Nessa conformidade, é a seguinte a questão que cumpre apreciar:
- Fixação da indemnização devida.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença primitiva (nessa parte, confirmada pelo anterior acórdão do TRL) considerou como provados os seguintes factos:
«Da petição inicial
Art.º 1º - No dia 30 de Setembro de 2003, cerca das 11.30h, no Arruamento do Palácio da Justiça, em Lisboa, o Autor foi agredido pelos Réus.
Art.º 2º - De facto, nesse dia o aqui Autor acabava de sair do tribunal depois de ter sido julgado como Arguido, num processo em que o 2.º Réu era Ofendido.
Art.º 4º - Foi nesse contexto que o Réu M… surgiu detrás do Autor e o deitou por terra com uma rasteira.
Art.º 6º - Com o Autor caído no solo, o Réu L…, por seu turno, puxou de uma faca e deu-lhe várias facadas, na face lateral esquerda.
Art.º 7º - Os Réus ainda agrediram o Autor a murro e pontapé na cara e no tronco, de forma violenta e repetida.
Art.º 8º - O Autor ficou assim caído no chão, esfaqueado, esmurrado e pontapeado, numa situação de quase desmaio.
Art.º 9º - Acabou por ser assistido no Hospital para onde foi transportado de ambulância.
Art.º 10º - De facto, conforme ficha de atendimento no Serviço de Urgência do Hospital Curry Cabral (fls. 10 e ss.), o Autor deu ali entrada pelas 12:33H do dia 30/09, por motivo de “feridas incisas na face à esq. (agressão) “, tendo saído com o diagnóstico de “ traumatismo facial com feridas inciso-contusas, exérese dentária x malar esq. “ (fls. 10 do Doc. 1).
Art.º 12º - Da agressão sofrida resultou para o Autor um “traumatismo fácil com fractura do complexo zigomático-malar esquerdo e fractura tripla da mandíbula”.
Art.º 13º - O A. foi operado em 06/10/2003 sob anestesia geral, sendo efectuada redução e osteossíntese rígida das fracturas da mandíbula e redução instrumental da fractura malar esquerda “.
Art.º 14º - Acontece que o Autor sofreu um rompimento dos pontos da ferida operatória (deiscência) e várias redicivas infecciosas desde então, pelo que vem sendo seguido permanentemente em consulta externa.
Art.º 15º - Na verdade, o Autor teve que ser novamente internado e reoperado por várias vezes naquele ano e no seguinte.
Art.º 16º - O Autor foi de novo operado à face/ boca em 3/11/2003, em 19/01/2004, em 08/03/2004 e em 16/05/2005, tendo para tanto ficado internado sempre por períodos de alguns dias ou semanas.
Art.º 17º - Tais operações consistiram essencialmente em limpeza cirúrgica, encerramento do osso exposto e enxerto ósseo (de “ossocórtico-esponjoso da crista ilíaca direita ao nível do ramo horizontal da mandíbula esquerda e fixação rígida “ ), remoção do mesmo e reconstrução mandibular.
Art.º 18º - Posteriormente, o Autor foi ainda submetido a nova cirurgia, para colocação de enxerto ósseo ao nível da mandíbula.
Art.º 19º - Basicamente os últimos anos da vida do Autor têm sido de grande dor e sofrimento, entre constantes operações cirúrgicas e tratamento pós-operatório.
Art.º 20º - O autor esteve, naturalmente, incapacitado de trabalhar nos períodos em que decorreram as operações e internamentos sucessivos ao longo destes anos.
Art.º 21º - O Autor vive com dores e necessita de acompanhamento médico frequente.
Art.º 22º - Derivado da agressão, é agora uma pessoa que tem que ter especiais cuidados com a alimentação.
Art.º 23º - Finalmente, o Autor tem várias cicatrizes na face e apresenta assimetria na mesma.
Art.º 24º - Por tudo isto, o Autor sofreu e sofre muito também do ponto de vista psicológico.
Art.º 25º - O Autor vive permanentemente angustiado, frustrado, triste, e também revoltado com o que lhe aconteceu e com o impacto que isso tem na sua vida.
Art.º 26º - Também sofreu e continua a sofrer muitas dores e generalizado mau estar, e está fisicamente limitado em termos de alimentação.
Art.º 28º - No âmbito do processo com o NUIPC 934/03.0PVLSB, em que são denunciantes X… e em que são arguidos, L… e M….
No âmbito destes autos o ofendido X… não foi notificado nos termos e para os efeitos dos arts. 75º, 76º e 77º do CPP, e não deduziu pedido de indemnização cível.
Certifica-se ainda, que por despacho de 16/04/2007, foi homologada a desistência da queixa por parte dos denunciantes e determinado o arquivamento dos autos, conforme consta da mencionada certidão.
Sendo que este despacho foi notificado ao denunciante, X… por ofício de 15/06/2007.
Da audiência de julgamento
A) No âmbito de perícia realizada considerou-se que o autor tem:
Défice funcional temporário total: 365 dias;
Défice funcional temporário parcial: 3017 dias;
Quantum doloris: grau 6/7;
Défice funcional Permanente: 42 pontos, sendo de admitir o dano futuro;
Repercussão na actividade profissional: implica esforço suplementar na realização da actividade profissional actual (não determinada repercussão temporária na actividade profissional por o A. se encontrar desempregado à data dos factos);
Dano estético permanente: grau 5/7;
Repercussão nas actividades positivas e de lazer: grau 2/7.
B) A Presente acção foi intentada a 25-09-2012, vide petição inicial».
DO MÉRITO DO RECURSO
Reportam-se os autos às consequências que o A. pretende fazer extrair da responsabilidade civil extracontratual, fundada na culpa.
Nesta matéria, rege o art. 483.º n.º1 do C.C., de acordo com o qual «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Incumbia, deste modo, ao A. a prova dos factos constitutivos do seu direito (art. 342.º n.º1 do C.C.), ou seja, a prática, por parte dos RR. de um facto voluntário, ilícito, culposo e danoso, existindo nexo de causalidade entre o facto e os danos.
In casu, foi já estabelecido, na sentença, o preenchimento de todos aqueles pressupostos e, portanto, a existência de responsabilidade dos RR. pelo ressarcimento dos danos resultantes da agressão física ao A., responsabilidade essa que não vem posta em causa no presente recurso. Assim sendo, cumpre, apenas, determinar o montante da indemnização a atribuir.
A decisão recorrida fixou ao A. uma indemnização global de € 85.000,00, cabendo ao R. M… o pagamento de € 15.000,00 e ao R. L… o pagamento de € 70.000,00 (precisamente o valor do pedido, após a ampliação do mesmo).
Os RR. discordam daquele valor de € 85.000,00, entendendo que o mesmo deve ser reduzido a € 77.028,80. Isto porque, segundo eles, foram atribuídos, pelo tribunal a quo, € 68.000,00 pelo dano biológico, € 3.283,20 pelo quantum doloris e € 5.745,60 pelo dano estético, ficando por justificar os restantes € 7.971,20, sendo certo que, caso estes dissessem respeito à angústia, frustração, tristeza e revolta pelas restrições comportamentais de que ficou a padecer o A., existiria uma duplicação de indemnizações, porquanto tais consequências foram já valoradas na vertente não patrimonial do dano biológico.
Porém, não é assim.
Em primeiro lugar, porque, na sentença recorrida, aqueles valores de € 68.000,00, € 3.283,20 e € 5.745,60 foram mencionados apenas como um limite mínimo (resultante da ponderação dos critérios estabelecidos na Port. 377/2008 de 26-5, com as alterações da Port. 679/2009 de 25-6), a partir do qual se deveria calcular a indemnização devida, tendo o tribunal a quo entendido que, atento o cálculo segundo a equidade, maxime face às consequências sofridas pelo A., a indemnização global teria de fixar-se num valor superior.
Depois, porque nos autos não são apenas peticionados danos não patrimoniais: o A. refere, expressamente, nos arts. 19.º a 38.º da petição inicial, que sofreu não só dores, angústia, tristeza e revolta, mas também incapacidade para o trabalho (durante os períodos por que se estenderam os tratamentos) e uma diminuição da sua capacidade de trabalho. Essa incapacidade / diminuição da capacidade tem evidentes reflexos patrimoniais.
Vejamos.
Dano é a lesão de qualquer bem jurídico. Engloba, por um lado, a lesão de um património, denominando-se, então, dano patrimonial, e, por outro, a lesão da integridade física e/ou moral de uma pessoa, denominando-se, nesse caso, dano não patrimonial.
Quanto aos danos patrimoniais, alegava o A., como se disse, que esteve impedido de trabalhar em razão das cirurgias e tratamentos, além de ter visto diminuída a sua capacidade de trabalho.
A este respeito, provou-se que, em consequência das lesões provocadas pelos RR., o A. teve um défice funcional temporário total de 365 dias (durante os quais, evidentemente, esteve impedido de trabalhar) e um défice funcional temporário parcial de 3017 dias (portanto, mais de oito anos!), tendo ficado a padecer de um défice funcional permanente de 42 pontos, sendo certo que este implica um esforço suplementar na realização da sua actividade profissional.
É certo que não se provou que o A. tenha deixado de receber quaisquer retribuições concretas durante os períodos de défice funcional total ou parcial, nem que deixará de as auferir no futuro. No entanto, é evidente que as sequelas permanentes e irreversíveis de que ficou a sofrer implicam para o A. um maior esforço para realizar as tarefas laborais que lhe vierem a ser atribuídas, o que importa um dano patrimonial futuro susceptível de ser indemnizado, ainda que o A. se encontre porventura desempregado, pois, a qualquer momento, pode retomar a sua vida profissional. Como se refere no Ac. RL de 13/9/2018[1], «a perda definitiva e parcial da capacidade geral de utilização do corpo deve ser ressarcida como dano patrimonial, excepto quando se prove que o lesado está “irremediavelmente afastado do ciclo laboral”, ónus da prova que cabe ao responsável pela indemnização (e nesta hipótese excepcional essa perda entrará então no cálculo da compensação por danos não patrimoniais)».
No caso dos autos, não se tendo provado que o A. esteja irremediavelmente afastado do mercado de trabalho, terá o mesmo, assim, de ser compensado pelo prejuízo, no aspecto estritamente laboral, decorrente de ter de fazer um esforço maior para obter o mesmo rendimento e, muito provavelmente, perder futuras oportunidades laborais e perder a possibilidade de vir a obter ocupação mais bem remunerada[2].
Princípio geral da obrigação de indemnização é o de que o obrigado à reparação do dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562.º do Código Civil).
Para efeitos de cálculo de indemnização, dispõe o art. 564.º, do mesmo diploma legal, que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, sendo certo que, na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior. Ainda com interesse, estatui o n.º 2 do art. 566.º, do mesmo Código, que a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos [teoria da diferença], sendo certo que, se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (nº3 da norma em referência).
Assim, em conformidade com aquelas normas, o A. deverá ser ressarcido da repercussão, na respectiva actividade profissional, das sequelas de que ficou a padecer e que lhe causam um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 42 pontos (dano biológico). Note-se que, embora não conste da matéria provada qual era a actividade profissional que o A. desenvolvia, o certo é que se o défice de que ficou a sofrer é geral (portanto, para todas as actividades), parece-nos claro que afectará o A. qualquer que seja a sua actividade profissional concreta. É assim que, mesmo que à data dos factos o A. não se encontrasse empregado, o certo é que a qualquer momento poderá retomar uma ocupação remunerada e, portanto, as sequelas permanentes e irreversíveis de que ficou a padecer implicam necessariamente - dado tratar-se, como se disse, de um défice geral - um maior esforço para realizar as tarefas laborais que lhe vierem a ser atribuídas, o que importa um dano patrimonial futuro susceptível de ser indemnizado.
Não sendo então possível apurar o montante concreto do prejuízo, recorrer-se-á a juízos de equidade e razoabilidade (art. 566.º n.º3 do Código Civil).
Ora, levando-se em consideração o défice funcional de que o A. ficou a padecer, o valor da retribuição mínima mensal garantida vigente (€ 820,00 - DL 107/2023 de 17-11), bem como a jurisprudência do STJ[3], mas sendo certo que não consta da matéria de facto a idade do A. (e, portanto, desconhece-se até quando decorrerá provavelmente a sua vida activa), entende-se ser adequada a atribuição da quantia de € 70.000,00.
Quanto aos danos não patrimoniais, diz-nos o art. 496.º n.º1 do Código Civil que deve atender-se àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada) - cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7.ª ed., pág. 600. O dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. Já o simples incómodo é destituído de relevância jurídica, porque não é ofensivo de um bem com dignidade suficiente para merecer a tutela indemnizatória.
A este respeito, com interesse, provou-se que:
- O A., depois de ter sido agredido a murro e pontapé e de ter sido esfaqueado, ficou caído no chão, numa situação de quase desmaio;
- Foi transportado de ambulância para o hospital, onde foi assistido, apresentando traumatismo fácil com fractura do complexo zigomático-malar esquerdo e fractura tripla da mandíbula;
- Foi operado em 06/10/2003 sob anestesia geral, sendo efectuada redução e osteossíntese rígida das fracturas da mandíbula e redução instrumental da fractura malar esquerda;
- Sofreu um rompimento dos pontos da ferida operatória (deiscência) e várias recidivas infecciosas desde então, pelo que vem sendo seguido permanentemente em consulta externa;
- Teve de ser novamente internado e re-operado à face/ boca em 3/11/2003, em 19/01/2004, em 08/03/2004 e em 16/05/2005, tendo para tanto ficado internado sempre por períodos de alguns dias ou semanas;
- Posteriormente, o Autor foi ainda submetido a nova cirurgia, para colocação de enxerto ósseo ao nível da mandíbula;
- Os últimos anos da vida do Autor têm sido de grande dor e sofrimento, entre constantes operações cirúrgicas e tratamento pós-operatório;
- Tem de ter especiais cuidados com a alimentação;
- Tem várias cicatrizes na face e apresenta assimetria na mesma;
- Vive permanentemente angustiado, frustrado, triste, e também revoltado com o que lhe aconteceu e com o impacto que isso tem na sua vida;
- Sofreu e continua a sofrer muitas dores e generalizado mal-estar, e está fisicamente limitado em termos de alimentação;
- Teve um período de doença de 365 dias de défice total e de 3017 dias de défice parcial;
- Teve um quantum doloris de grau 6/7;
- Teve um dano estético permanente de grau 5/7;
- Teve uma repercussão nas actividades positivas e de lazer de grau 2/7.
Ora, todos os factos descritos constituem danos não patrimoniais dignos da tutela do Direito – de um ponto de vista objectivo, justifica-se plenamente a atribuição de uma indemnização àquele que sofreu lesões físicas, com as consequentes dores fortes e desgostos, ainda mais quando essas lesões implicaram internamento hospitalar e sujeição a intervenções cirúrgicas e quando resultaram em sequelas definitivas geradoras de danos estéticos e de limitações físicas na vida privada, incluindo em termos de alimentação e de actividades de lazer.
Como não é possível a reconstituição natural (art. 566.º n.º1 do C.C.), o que se visa é a atribuição de uma quantia pecuniária, no sentido de proporcionar um prazer alternativo, susceptível de fazer esquecer a dor, a fixar equitativamente (arts. 496.º n.º4 e 494.º do C.C.).
Levando-se em consideração:
- a extensão das múltiplas lesões e fracturas sofridas pelo A.,
- as cirurgias e tratamentos a que foi submetido, incluindo internamento hospitalar e seis intervenções cirúrgicas,
- as angústias e dores que sofreu (na face – quantum doloris de grau 6 numa escala crescente de 7),
- o período de doença (365 dias de défice funcional temporário total e 3017 dias de défice funcional temporário parcial),
- as actividades desportivas e de lazer que teve de deixar de praticar (dano de grau 2 numa escala crescente de 7),
- a incapacidade para todas as actividades da sua vida diária de que ficou a padecer (de 42 pontos),
- o desgosto em face das sequelas e cicatrizes que possui na face (dano estético de grau 5 numa escala crescente de 7),
- a jurisprudência recente do STJ[4], que não permite que a indemnização a fixar seja miserabilista ou simbólica, antes impondo que a mesma permita o efectivo ressarcimento dos danos,
- o aumento do custo de vida (inflação) que se vem verificando,
é forçoso considerar que a quantia de € 15.000,00 que o tribunal pode atribuir (em respeito pelo princípio do pedido - cfr. art. 609.º n.º1 do Código de Processo Civil) é manifestamente insuficiente para compensar o A. pelos seus sofrimentos. No entanto, atento o valor global de € 85.000,00 peticionado pelo A. é apenas essa que se pode fixar.
Nada existe, assim, a censurar à decisão recorrida, que fixou criteriosamente a indemnização a cargo dos RR..
Uma pequena nota para dizer que, apesar de, nos termos do art. 497.º n.º1 do Código Civil, a responsabilidade civil ser solidária (o que significa que ambos os RR. seriam responsáveis pelo pagamento da totalidade da indemnização devida), o certo é que o A. apenas pediu a condenação do R. M… no pagamento de € 15.000,00 e do R. L… no pagamento de € 70.000,00, pelo que, novamente em obediência ao disposto no art. 609.º n.º1 do Código de Processo Civil, terá de ser esse o teor da condenação.
Portanto, improcede, in totum, a apelação.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes - art. 527.º do Código de Processo Civil -, sem prejuízo do apoio judiciário que tenha sido concedido.

LISBOA,19/12/2024
Alexandra de Castro Rocha
João Bernardo Peral Novais
Carlos Oliveira
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[1] Proc. 3181/14, disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Cfr. entre outros, Ac. RP de 7/12/2018, proc. 23088/15, Ac. RP 27/9/2018, proc. 903/15, Ac. STJ de 29/10/2019, proc. 7614/15, Ac. RC de 9/11/2021, proc. 307/19, Ac. STJ de 13/4/2011, proc. 843/07, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt).
[3] Cfr. Ac. de 26/1/2016, proc. 2185/04, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1482d1a9849fcf8180257f48004fa482?OpenDocument, no qual, para um défice funcional permanente de 40 pontos se fixou uma indemnização de € 150.000 pelo dano biológico; Ac. de 23/4/2020, proc. 5/17, disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:5.17.2T8VFR.P1.S1/ , no qual, para um défice funcional permanente de 42 pontos se fixou a indemnização pelo dano biológico em € 71.000,00.
[4] Cfr. os seguintes Ac. do STJ:
- de 29/10/2020, proc. 2631/17 (disponível em http://www.dgsi.pt), que, em caso semelhante ao dos autos (quantum doloris de 6 em 7, vários tratamentos e intervenções cirúrgicas, cicatrizes), fixou a indemnização por danos não patrimoniais em € 75.000,00;
- de 19/3/2019, proc. 683/11 (disponível em http://www.stj.pt – Sumários – Cível – Ano de 2019), que, em caso semelhante ao dos autos (quantum doloris de 6 em 7, 5 cirurgias), fixou em € 80.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais;
- de 18/3/2021, proc. 1337/18 (disponível em http://www.dgsi.pt), que, em caso paralelo ao dos autos (quantum doloris 5 em 7, dano estético 4 em 7, várias fracturas), fixou em € 50.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais.