Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2741/08.5YXLSB.L1-6
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: ARRENDAMENTO MISTO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O fim principal e o subordinado do contrato de arrendamento misto para a indústria e a habitação devem ser determinados por via da interpretação das declarações negociais das partes e das demais circunstâncias envolventes, essencialmente no confronto da lei substantiva vigente ao tempo da sua celebração.
2. Havendo subordinação de um fim a outro, isto é, sendo um deles principal e outro acessório, prevalece o regime correspondente ao fim principal (artigo 1028.º, n.° 3, 1.ª parte, CC.).
3. A resolução do contrato relativamente à parte destinada ao exercício da alfaiataria «arrasta» a parte habitacional, ainda que do contrato não conste que a cessação de um dos fins implica a cessação do outro.
4. Ainda que facto que constitui fundamento de resolução — não utilização do locado por mais de um ano para o fim principal a que se destinava — possa ter-se iniciado no domínio do RAU, se é em plena vigência da lei nova que se completa, é esta a lei aplicável.
5. O legislador, abandonando o sistema de enumeração taxativa dos fundamentos de resolução do contrato de arrendamento, alargou o leque das situações susceptíveis de legitimar a resolução, optando pelo estabelecimento de uma cláusula geral, ao consagrar no nº 2 do artigo 1083º CC que é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do contrato de arrendamento.
6. As situações assinaladas nas alíneas do n.º 2 do artigo 1083.º CC devem ser complementados com o conceito indeterminado de inexigibilidade constante do proémio do artigo.
7. O conceito de não uso é um conceito normativo, e não meramente naturalístico, pelo que para apurar o seu alcance importa ter em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente a natureza do local arrendado, o fim do próprio arrendamento, o grau de redução de actividade, a respectiva origem e inerente justificação, bem como o seu carácter temporário ou definitivo.
8. O direito constitucional à habitação tem o Estado (e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios) como único sujeito passivo, e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios
( Da responsabilidade da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
A , com domicílio na Rua …… , T..., intentou acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra B …., Ld.ª, com sede na Rua ….., Lisboa, e C , com domicilio na Rua Dr. ……, Lisboa, pedindo que:
- se decrete a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento relativo à fracção sita na Rua Dr. …. , Lisboa, quanto a ambas as RR., com fundamento no não uso do locado há mais de um ano para o fim (principal) contratado;
- se condenem as RR. a despejar imediatamente o locado e a entregá-lo ao A. livre e devoluto de pessoas e bens;
Ou, caso assim não se entenda:
- se decrete a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento, em relação à sociedade R. com fundamento no não uso do locado há mais de um ano;
- se decrete a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento, em relação à R. C , com fundamento em uso do locado para fim diverso daquele a que se destina e em violação reiterada das regras de higiene;
- se condenem as Rés a despejar imediatamente o locado e a entregá-lo ao A. livre e devoluto de pessoas e bens.
Alegou para tanto, e em síntese, que quando adquiriu a fracção supra identificada encontrava-se em vigor contrato de arrendamento celebrado entre D … , Ld.ª, e a sociedade R., em 1969.10.15, tendo ficado consignado que, no arrendado — composto de três assoalhadas, cozinha, casa de banho, corredor, marquise e logradouro —, as duas salas da frente se destinavam a alfaiataria e os restantes compartimentos a habitação de um dos gerentes da sociedade R., sendo que os recibos de quitação foram sempre emitidos em nome da sociedade R.. E que a sociedade R. há mais de um ano não exerce no locado a actividade de alfaiataria, fim principal para o qual foi destinado o arrendado.
Afirmou ainda que a R. se tem oposto à realização de obras no locado para evitar o aumento da renda irrisória que paga, e tem se desinteressado da manutenção do locado, que evidencia falta de limpeza há bastante tempo, exalando maus cheiros, janelas e portas sem vidros, janelas e portadas da sala e da cozinha arrancadas, tomadas eléctricas arrancadas.
Contestou a 2.ª R., imputando ao A. a suspensão da laboração da R. sociedade no locado, resultado das obras que aquele ali fez, mais atribuindo ao A. todos os danos e deteriorações existentes no locado, consequência ainda das ditas obras.
Deduziu pedido reconvencional, alegando que as reiteradas destruições e degradação do locado, provocadas pelo senhorio, lhe causaram danos não patrimoniais, cujo montante quantifica em € 20.000,00.
Respondeu o A., pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
Procedeu-se à elaboração de despacho saneador, com dispensa de fixação da matéria de facto assente e de elaboração de base instrutória.
Realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou improcedente o pedido reconvencional, dele absolvendo o A., e, julgando procedente a acção, decretou a resolução do contrato de arrendamento relativamente às duas RR., ordenando o despejo imediato da fracção e sua entrega ao A..
Inconformada recorreu a 1.ª R., apresentando as seguintes conclusões:
« 49
O contrato de arrendamento celebrado em 1/11/1969 foi realizado sob a forma escrita de Escritura Pública.
50
O contrato reunia dois fins distintos: Indústria Doméstica (alfaiataria), duas salas da frente; e habitacional (do sócio gerente) - restantes compartimentos, com uma maior área para a parte habitacional, atendendo que nesta incluí-se o logradouro afecto ao locado em causa.
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Nas cláusulas do contrato não está mencionado que ao terminar um dos fins aí mencionados, terminaria o contrato.
52
Nem dá para subentender que o não uso de uma parte do arrendado prejudica o uso da outra parte, nem que tal facto seja motivo de para o senhorio.
53
A interpretação restritiva do contrato de arrendamento cujo fim do mesmo é a Indústria e não a Habitação põe em causa os direitos fundamentais da recorrente, por ser incongruente e contrária à Lei.
54
O contrato de arrendamento foi celebrado à luz da anterior versão do código civil, designadamente o Artigo 1108, a qual foi revogado pelo Art 75 do RAU, com a mesma versão, no qual era admissível a figura de Indústrias Domésticas, em locados com o fim habitacional.
55
Tal disposição normativa implica considerar que o exercício de qualquer indústria doméstica, ainda que tributada, contando que não tenha mais de três empregados assalariados, é compatível com o fim Habitacional/residencial do locado, objecto do contrato de arrendamento.
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O uso industrial doméstico é o fim subordinado o fim principal o Habitacional. Sem prejuízo de existir complementaridade entre os fins, pelo que, não poderá ser resolvido contrato de arrendamento relativo à habitação pelo não uso do locado há mais de um ano para a indústria (alfaiataria).
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O locado passou única e exclusivamente a ter o seu fim principal, que é a HABITAÇÃO. Para o gerente da sociedade arrendatária, nos termos da alínea c) do artigo 1072 do Código Civil.
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A parte habitacional absorveu a parte industrial, não havendo lugar a desvalorização do locado.
59
Havendo partes distintas afecta a cada uma das finalidades descriminadas, as causas de resolução relativamente a um dos fins não abrange a outra parte da locação, conforme disposto no n.º 2 do artigo 1028 do CC em vigor, Por outro lado,
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As obras realizadas em Maio 2007 (Facto 12), eram passíveis de impugnação e, consequentemente, reacção por parte da inquilina, aqui recorrente.
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O senhorio, ao contrário do realizado, deveria ter feito as obras de conservação necessárias e adequadas e, só após a realização e conclusão das mesmas, comunicaria à inquilina o aumento de renda a realizar nos termos da lei relativamente ao índice de conservação adequado.
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O estado do locado descrito nos factos 13 a 18 supra, são de exclusiva responsabilidade do recorrido, pois compete-lhe a conservação e manutenção do locado relativamente à sua estrutura, pintura, fachada prédio, entre outros, o que não fez até 2007.
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A sujidade visível no chão, paredes, mobiliário, porta janelas, louças de casa de banho e da cozinha foi ocasional e transitória.
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O alegado estado de degradação advém na falta de obras da exclusiva competência do proprietário do locado que nunca tinha realizado qualquer intervenção de conservação no locado, até 2007, nem autorizado a inquilina a concretizá-las, nos termos do art 1074 do Código Civil e do art 42 do contrato de arrendamento.
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O locado, naturalmente, foi-se degradando com o passar dos anos,
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a hipotética intervenção da inquilina relativo a reparação de vidros, pinturas e demais actos necessários às paredes do locado, seria sempre ilegal e insusceptível de ser realizada, por carecer de autorização do senhorio e até a intervenção do senhorio no imóvel está sujeito a requisitos legais conforme se verifica pela análise do documento 2 junto no mesmo requerimento em que foi junto o referenciado doc. 1.
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Às obras realizadas no ano de 2007, aplica-se as disposições legais da legislação em vigor, o NRAU. E, manda as disposições do artigo 1074.º do Código Civil.
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O senhorio só tem direito a actualizar a renda do imóvel após a avaliação do locado nos termos do Artigo 32.º da Lei n.º 6/2006, 27 Fevereiro e apurado o coeficiente de conservação de razoável previsto no artigo 33.º da Lei n.º 6/2006, 27 Fevereiro, facto que não sucedia à data de interposição da presente acção.
69
A recorrente encontra-se numa situação pessoal e habitacional grave e de relevância social e moral, não tendo outra habitação para residir.
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A recorrente tem idade avançada e rendimentos muito baixos, comprovados pelo pedido de apoio judiciário, do qual beneficia.
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Toda os acontecimentos desde 2007 têm aumentado os problemas psicológicos e de saúde da recorrente, inerentes ao seu estado Depressivo,
72
O princípio constitucional (Artigo 65.º da CRP) que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e privacidade familiar. E.
«73.
O prosseguimento da presente Despejo restringe os direitos constitucionalmente garantidos à aqui recorrente.
Termos em que e nos mais de Direito, com o suprimento de V Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida.»
Consigna-se que a numeração dos artigos é a que consta do original.
Contra-alegou o A., concluindo pela forma seguinte:
«A. A Apelante não interpõe apenas recuso de matéria de direito, resultando das suas Alegações uma indubitável impugnação da matéria de facto, alegando factos não provados; mas ao impugnar a matéria de facto provada não o faz correctamente, nem com a devida fundamentação.
B. Assiste-se a alegação de vários factos, completamente falsos, não provados em sede de julgamento, nem sequer referenciados nos depoimentos das Testemunhas.
C. A ora Apelante não apresenta a transcrição do depoimento das testemunhas, ou sequer indicação dos minutos ou passagens no CD donde resultam os factos invocados e, bem assim de que depoimento testemunhal em concreto resultam os factos ora impugnados.
C. Não existe qualquer fundamento para alteração a matéria de facto assente.
E. As Conclusões apresentadas pela Apelante são na sua boa maioria simples opiniões que se referem a matéria que não foi apreciada pela sentença ora recorrida, porque não têm qualquer interesse para a boa decisão da causa.
F. O ora Recorrido defende a bondade da sentença, visto que, a mesma especifica os fundamentos factuais e jurídicos, não havendo dúvidas sobre quais as razões que levaram o Juiz a quo a decidir nos termos em que o fez.
G. Concorda-se inteiramente com a posição e entendimento do Tribunal de 1.ª instância nomeadamente que, no caso vertente, resultou provado o não uso do locado há mais de um ano por parte da sociedade Ré e, que consequentemente, tal situação implica desvalorização do locado, o que se traduz num prejuízo injusto para o senhorio.
H. Desvalorização esta do locado que obviamente se acentua face o actual estado de degradação do mesmo. Portanto, conclui-se ser inexigível ao senhorio a manutenção deste arrendamento.
I. Ademais, considera o ora Recorrido que a factualidade provada apenas permite o enquadramento jurídico dado pelo Tribunal a quo, sendo este enquadramento consubstanciado peia elaboração doutrinal e jurisprudencial no que concerne à resolução do contrato de arrendamento par não uso do locado para o fim a que estava destinado.
J. Dúvidas não pode haver que o locado foi arrendado para fim comercial, mais concretamente para a actividade de alfaiataria (fim principal) e, a título secundário, acessório ou complementar, permitia-se a habitação do gerente da sociedade. Aliás, foi precisamente este o entendimento do Tribunal "a quo", sendo este o único entendimento legalmente admissível.
K. Resultou provado nos autos que não há qualquer actividade de alfaiataria no locado, pelo menos há mais de um ano, e que, todo o arrendado tem estado desde então, única e exclusivamente, afecto a habitação da Recorrente A.
L. Não tem qualquer sustentação legal a tese defendida pela Apelante de que não havendo uso da parte comercial do locado (alfaiataria), a parte habitacional teria "absorvido" a parte industrial.
M. No caso sub iudice, cumulativamente, não só o locado está a ser destinado a um fim, que não era o seu fim principal, como o uso que lhe está a ser dado enquanto habitação está a provocar grave deterioração, implicando a sua desvalorização e, consequente prejuízo para o ora Apelado.
N. Dúvidas não pode haver que o estabelecimento encerrou e, que o locado já não se destina a qualquer fim comercial, apenas a habitação, que reitera-se não é o fim principal do arrendamento.
O. Entende-se, pois, que andou bem o Tribunal "a quo" ao considerar a não utilização do locado como alfaiataria é fundamento de resolução do contrato de arrendamento.
P. Ao invés do alegado pela Apelante, precisamente porque o recibo de quitação da renda era emitido à sociedade comercial, de tal facto pode-se também depreender que o fim principal do locado é a industria de alfaiataria, porque o titular do contrato é uma pessoa colectiva. E, no contrato de arrendamento apenas é titular a sociedade!
Q. Neste caso sub iudice é patente um total desinteresse da Recorrente A na manutenção da exploração do locado para o fim contratado e, bem assim também um total desinteresse na manutenção do locado em bom estado de conservação, reiterando-se: resultando deste total desinteresse grave prejuízo para o senhorio.
R. A Apelante alega ser aplicável ao caso vertente a figura de "indústrias domésticas", existente à data da celebração do arrendamento em 15 de Outubro de 1969.
S. No entanto, a ora Apelante parte dum pressuposto errado para considerar aplicável esta figura, nomeadamente que, a data de celebração do contrato de arrendamento era admissível a figura de indústrias domésticas em locados com o fim habitacional mas, no caso vertente o contrato de arrendamento não tem um fim habitacional, mas antes um fim comercial (actividade de alfaiataria)!
T. É entendimento consensual na Doutrina que mesmo na figura das "Indústrias Domésticas" não pode haver duplicidade de regimes, pelo que é forçoso determinar o prevalecente, ou seja, a qualificação do arrendamento como comercial (ou não habitacional na terminologia actual) ou como habitacional, sendo então neste caso admissível a existência de "indústria doméstica" e não já de comércio doméstico".
U. Não pode esta tese da Apelante de que o fim principal do contrato é o habitacional e inclui uma "indústria doméstica", por absoluta falta de fundamento — legal e factual — ter qualquer acolhimento e ser defendida, a não ser num deturpado raciocínio jurídico!
V. No que concerne à legislação aplicável, partilha-se da posição assumida pelo Tribunal "a quo" não podendo ser outro o entendimento senão o de que actualmente aplicável a este arrendamento o Novo Regime do Arrendamento Urbano.
W. Desta forma, falecem as conclusões do recurso apresentado pela Apelante e bem andou, pois, o tribunal de 1.ª instância ao aplicar a este contrato o regime do arrendamento comercial, nada havendo a censurar no decidido.
X. No caso de não acolhimento da posição defendida pelo Tribunal "a quo", relativa a resolução por não utilização do locado para o fim principal, resulta ainda subsidiariamente outro fundamento que legitima a resolução do contrato de arrendamento — a saber: o uso manifestamente imprudente e reprovável do locado por parte da ora Apelante.
Y. Nos termos do disposto no n.° 1 do artigo 684.º A do CPC, apesar de o Tribunal " a quo" não se ter pronunciado relativamente a este fundamento para resolução contratual (uso imprudente e reprovável do locado), subsidiariamente, não vingando a posição adoptada pelo Tribunal de recurso, deverá esse fundamento ser apreciado. Por mera cautela, requer-se pois a ampliação do objecto presente recurso.
Z. Para além da degradação, há que considerar também os intensos maus cheiros e ruídos que provém do locado em questão e, que a utilização que a Recorrente tem vindo a fazer da fracção arrendada causa grave prejuízo ao Senhorio.
AA. É falso que a Recorrente nunca tenha incumprido os seus deveres enquanto inquilina!
BB. Com a falta de limpeza o locado tem vindo a degradar-se e, põe mesmo em risco a saúde, segurança dos restantes inquilinos do prédio e a própria salubridade do ambiente em que se inserem.
CC. O estado de deterioração a que a Recorrente C permitiu que o locado chegasse constitui uma viciação grave e grosseira dos seus deveres enquanto locatária.
DD. Nos termos do artigo 1083.º, n.º 2, alínea d), do CC, é obrigação do inquilino fazer do locado um uso prudente, porque, naturalmente antes do mais, o senhorio tem direito a confiar que o bem, que é seu, se manterá em bom estado durante a duração do contrato de arrendamento.
EE. Não poderá ter qualquer acolhimento a alegação da Recorrente de que, pelo facto de o imóvel em questão estar integrado numa zona de protecção de imóveis não era possível qualquer intervenção da inquilina sem prévia autorização do senhorio.
FF. Ora, como bem saberá a Apelante para limpar e conservar condignamente o locado nas condições mínimas de higiene e salubridade não necessita de qualquer autorização do senhorio.
GG. Em conclusão: a deterioração paulatina do arrendado resulta do facto da Recorrente não cuidar, limpar, nem zelar pelas normais condições de higiene e salubridade, que se traduz numa utilização manifestamente imprudente e reprovável do arrendado, violando-se desta forma o disposto no artigo 1033.º, alínea d) do CC.
HH. Naturalmente, constitui uma obrigação do locatário não fazer uma utilização imprudente do locado, o que por seu turno justifica também a resolução do contrato de arrendamento.
II. Ademais, a gravidade desta violação reiterada e culposa torna inexigível a manutenção do arrendamento e constitui também causa de resolução do contrato.
JJ. Acrescente-se ainda que, demagógica utilizada pela Apelante aludindo o preceito constitucional do direito à habitação consagrado artigo 65.º, n.º 1 da CRP, obviamente, em nada colide cora a resolução deste contrato de arrendamento, muito menos viola quaisquer direitos constitucionalmente garantidos.
KK. Este princípio constitucional deve ser entendido numa perspectiva social e, de garantia de habitação pelo Estado.
LL. E, está bem de ver que tal pretensão de não resolução do contrato de arrendamento comercial não se integra no núcleo de protecção constitucional do direito à habitação, que se trata de um direito de índole social.
MM. Aliás, antes pelo contrário como ficou demonstrado e provado nos presentes autos é a própria Apelante que não zela pela preservação das condições de higiene e conforto do locado.
NESTES TERMOS, E NOS DEMAIS DE DIREITO APLICÁVEL, DEVE O RECURSO DE APELAÇÃO APRESENTADO PELA RECORRENTE SER JULGADO IMPROCEDENTE E A SENTENÇA ORA RECORRIDA CONFIRMADA NOS TERMOS CONTRA ALEGADOS.
SUBSIDIARIAMENTE, DEVE SER ADMITIDA A AMPLIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E DECLARADA A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO DOS AUTOS, POR USO MANIFESTAMENTE IMPRUDENTE E REPROVÁVEL DO LOCADO, ASSIM SE FAZENDO A TÃO COSTUMADA JUSTIÇA!»
2. Fundamentos de facto
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1 - O A. é dono e possuidor da fracção autónoma, designada pela letra A, a que corresponde o R/C Direito do prédio sito na Rua Dr. ….., freguesia de ..., Lisboa, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.° 000 e inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo 000.
2 - A referida fracção foi adquirida pelo A. em 8/8/1997, por compra a E e marido, F .
3 -À data da referida compra, encontrava-se em vigor um contrato de arrendamento entre a sociedade D, Ld.ª, e a sociedade R., celebrado em 15/10/1969.
4 - O referido contrato substituíra o contrato de arrendamento anterior, celebrado, em 11/7/1969, entre a dita sociedade D , Ld.ª, e A.M.R. e J. G.R. , os quais, na altura, figuravam como únicos sócios e gerentes da sociedade R..
5 - O contrato referido em 3 foi celebrado pelo prazo de seis meses, com início no dia 1/11/1969, supondo-se sucessivamente renovado por iguais períodos de tempo.
6 - Ficou consignado no contrato que, no arrendado — composto de três assoalhadas, cozinha, casa de banho, corredor, marquise e logradouro —, as duas salas da frente se destinavam a alfaiataria e os restantes compartimentos a habitação de um dos gerentes da sociedade R., sendo que os recibos de quitação foram sempre emitidos em nome da sociedade R..
7 - Foi convencionada a rema mensal de 2.100$00, a qual, mercê das actualizações legais que foi sofrendo ao longo dos anos, se cifra, actualmente, em € 73,10.
8 - O gerente da sociedade R. que habitava o arrendado, Sr. A.M.R. casado com a Ré C faleceu em 23/11/2005.
9 - A R. C é sócia e gerente da sociedade R..
10 - Há mais de um ano, por referência à data propositura da acção, que a sociedade R. não exerce no locado a actividade comercial de alfaiataria.
11 - A placa da empresa de alfaiataria que existia na fachada do prédio foi retirada há mais de um ano — por referência à data da propositura da acção — não existindo máquinas a funcionar, nem havendo movimento de clientela no arrendado.
12 - No ano de 2007, a A. iniciou obras de beneficiação do arrendado — e para isso obteve-se autorização para entrar no arrendado, aí tendo ido o senhorio e funcionários —, tendo procedido, mais concretamente, à instalação de gás na divisão da cozinha — com abertura de roços —, sendo que a R. C impediu a A. de finalizar tal obra e de reparar/repor azulejos da cozinha e colocar um armário por cima do lava-louça, que haviam sido removidos por força dias obras, visto que não queria que essa beneficiação se repercutisse num aumento de renda, aumento esse que o A. lhe comunicou, por carta, pretender fazer.
13 - A data de 23/7/20018, o arrendado encontrava-se bastante sujo, sujidade essa visível no chão, paredes, mobiliário, portas, janelas, louças de casa de banho e de cozinha.
14 - Na casa de banho, a banheira estava bastante suja, com a tinta raspada e contendo plantas, sendo que nas várias divisões existem vidros de portas e janelas partidos, alguns, substituídos por papel de jornal.
15 - A janela de uma das assoalhadas que deita directamente para a rua não possui vidros ou portadas, tendo apenas um estore.
16 - No locado há portas com fechaduras arrancadas ou destruídas.
17 - No chão do arrendado há partes do mesmo sem tacos ou corticite.
18 - No locado, há divisões sem luz, como, por exemplo, a casa de banho, onde os fios eléctricos estão descarnados, faltando também tomadas eléctricas.
19 - O locado exala maus cheiros intensos.
20 - Em 2008, entre finais de Setembro e Dezembro, ocorreram obras no prédio onde se situa o locado, as quais se traduziram na reparação do telhado e na reparação das fachadas e sua pintura (frente e tardoz).
21 - Para o efeito, o A. solicitou a emissão, em 17/9/2008, de uma licença de ocupação da via pública, tendo no quintal afecto ao locado sido colocados apenas andaimes da obra, ficando o estaleiro instalado na rua em frente ao prédio.
22 - Em 2007, por seu turno, e a par das obras relacionadas com a instalação de gás, ocorreram obras no prédio relativas à coluna de água.
23 - O A. fez remodelações no 2.º Dt.º e no 2.º Esq. do prédio em apreço em data anterior a 2007, mais tendo feito remodelações no 2.º Dt.º do mesmo prédio em 2007.
*
Consigna-se, nos termos do artigo 659,º, n.º 3, ex vi artigo 713.º, n.º 2, CPC, que o contrato de arrendamento referido em 3. foi celebrado através de escritura pública.
3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684.º, n.º 3, e 685.º A, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º, n.º 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões:
- impugnação da matéria de facto;
- qualificação do contrato cuja resolução é pedida;
- determinação do regime aplicável;
- fundamento de resolução do contrato;
- o princípio constitucional do direito à habitação.
3.1. Da impugnação da matéria de facto
Nos termos do artigo 712º, nº 1, alínea a), CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º B, CPC, a decisão com base neles proferida.
E, de acordo com o nº 2 do mesmo artigo, no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
O artigo 685.º B CPC estabelece os ónus que impendem sobre o impugnante, sob pena de rejeição do recurso:
- especificar quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados (nº 1, alínea a);
- especificar quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida (nº 1, alínea b);
- no caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
Embora a apelante tenha afirmado que é fundamento do recurso a posição do Juiz a quo sobre a matéria de facto alegada, e enunciar, no capítulo epigrafado «Da matéria impugnada» os artigos 5.º, 6.º, 10.º, 12.º a 19.º, 22.º e 23.º da matéria de facto, a verdade é que não deduziu qualquer impugnação, não tendo dado cumprimento aos ónus que impendem sobre o recorrente quando impugna matéria de facto.
Termos em que se rejeita a impugnação da matéria de facto.
3.2. Da qualificação do contrato cuja resolução é pedida
O contrato cuja resolução é pedida pelo apelado é um contrato de arrendamento, celebrado em 1969.10.15, por escritura pública, tendo ficado consignado que, no arrendado — composto de três assoalhadas, cozinha, casa de banho, corredor, marquise e logradouro —, as duas salas da frente se destinavam a alfaiataria e os restantes compartimentos a habitação de um dos gerentes da sociedade R., sendo que os recibos de quitação foram sempre emitidos em nome da sociedade R..
Trata-se de um contrato de arrendamento com pluralidade de fins, divergindo apelante e apelado quanto ao fim principal e ao fim subordinado: enquanto apelante defende que o fim principal é a habitação, sendo acessório o exercício da actividade de alfaiataria, o apelado sustenta a posição inversa, de que o fim principal é o exercício da actividade de alfaiataria, sendo a habitação o fim subordinado.
A divergência tem importantes consequências quanto ao destino da acção de resolução do contrato de arrendamento, porquanto o fundamento invocado que constitui objecto do recurso é a não utilização do locado para o fim principal contratado.
Não resultando expressamente do contrato de arrendamento qual o fim principal e o fim subordinado, há que atender à intenção das partes aquando da celebração do contrato de arrendamento.
À falta de outros elementos, porque nada foi alegado a este respeito, e na esteira do acórdão do STJ, de 2007.07.05, Salvador da Costa, www.dgsi.pt.jstj, proc. 07B193,
«O fim principal e o subordinado do contrato de arrendamento misto para a indústria e a habitação devem ser determinados por via da interpretação das declarações negociais das partes e das demais circunstâncias envolventes, essencialmente no confronto da lei substantiva vigente ao tempo da sua celebração» (ponto 1 do sumário).
O primeiro elemento a assinalar é a circunstância de o contrato de arrendamento ter sido celebrado por uma sociedade e ser esta a responsável pelo pagamento das rendas, o que constitui forte sugestão de que o fim principal é o exercício da alfaiataria, sendo a habitação um fim subordinado.
A forma como é descrito o fim do contrato também aponta no sentido de ser a actividade de alfaiataria a actividade principal, pois a ela se destinam as duas salas da frente e é a actividade descrita em primeiro lugar, sendo a finalidade da habitação enunciada em termos residuais.
Por outro lado, o contrato foi celebrado através de escritura pública. À data da celebração, o artigo 1029.º CC impunha a redução a escritura pública dos arrendamentos sujeitos a registo (alínea a) do n.º 1) e os arrendamentos para o comércio, indústria e exercício de profissão liberal (alínea b) do n.º 1).
Ora, não estando o arrendamento sujeito a registo, porque não foi celebrado por prazo superior a seis anos (artigo 2.º, n.º 1, alínea p) do CRP em vigor à data da celebração), a observância da forma escrita indicia a celebração de um contrato para uma actividade industrial, não sendo razoável presumir que um contrato para habitação, pelo prazo de seis meses, renovável, fosse celebrado através de escritura pública, não obrigatória, quer pelos transtornos, quer pelos custos implicados.
Por todo o exposto é de concluir que a finalidade principal do arrendamento era o exercício da actividade de alfaiataria, sendo o fim habitacional acessório.
Não colhe o argumento esgrimido pela apelante de que se trata de contrato habitacional por a área destinada à habitação ser maior que a destinada ao exercício da alfaiataria, por incluir o logradouro.
Com efeito, para além de desconhecemos a área da fracção que é destinada a cada uma das actividades, os elementos apurados indiciam supremacia do fim não habitacional.
O regime dos arrendamentos com pluralidade de fins consta do artigo 1028.º CC, do teor seguinte:
1. Se uma ou mais coisas forem locadas para fins diferentes, sem subordinação de uns a outros, observar-se-á, relativamente a cada um deles, o regime respectivo.
2. As causas de nulidade, anulabilidade ou resolução que respeitem a um dos fins não afectam a parte restante da locação, excepto se do contrato ou das circunstâncias que o acompanham não resultar a discriminação das coisas ou partes da coisa correspondentes às várias finalidades, ou estas forem solidárias entre si.
3. Se, porém, um dos fins for principal e os outros subordinados, prevalecerá o regime correspondente ao fim principal; os outros regimes só são aplicáveis na medida em que não contrariem o primeiro e a aplicação deles se não mostre incompatível com o fim principal.
Nos contratos com pluralidade de fins, sem subordinação de uns a outros, aplica-se a cada um deles o regime respectivo, como se existissem dois contratos distintos.
As excepções a este regime constam dos n.ºs 2 e 3 deste artigo e são três:
a) Subordinação de um fim a outro;
b) Omissão no contrato, e nas circunstâncias que o acompanham, da discriminação das coisas ou partes da coisa correspondentes às várias finalidades;
c) Solidariedade dos fins a que as coisas se aplicam.
Tal como a acção se encontra delineada, estamos perante um contrato com pluralidade de fins, em que o fim principal é o exercício da actividade de alfaiataria e o fim subordinado a habitação.
A este propósito, explicam Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 3.ª edição, vol. II, pg. 372-3,
«Havendo subordinação de um fim a outro, isto é, sendo um deles principal e outro acessório, prevalece o regime correspondente ao fim principal (n.° 3, 1.ª parte). É a doutrina proclamada, a propósito dos contratos mistos, pela conhecida teoria da absorpção. O regime correspondente à prestação principal que integra o contrato absorve as partes restantes do negócio (Antunes Varela, Contratos Mistos, 1968, pág. 14). Mas, quando se verifica a subordinação de um dos fins de um dos fins do contrato ao outro? Há apenas uma questão de facto a resolver, se é que a solução não resulta, explicita ou implicitamente, do próprio contrato. O arrendamento de um prédio urbano, por ex., para nele funcionar um hospital, uma casa de saúde, um colégio, etc, engloba, ou pode englobar em si, como fins subordinados, não autónomos, a habitação dos enfermeiros ou dos professores; no arrendamento de um prédio urbano para uma exploração industrial, com a cláusula de que nele podem habitar trabalhadores, fica igualmente subordinado este último ao fim primeiro: não há arrendamento para habitação, mas um arrendamento industrial. No arrendamento de uma casa de habitação, com a faculdade atribuída ao inquilino de nela exercer uma profissão liberal, das que são habitualmente exercidas no domicílio, há apenas, atento o fim principal do contrato, um arrendamento para habitação.
Em qualquer destes casos pode ser aplicado o regime próprio do fim subordinado, mas somente na medida em que não contrarie o regime correspondente ao fim principal e a aplicação dele não se mostre incompatível com este fim (n.° 3).
A regra da aplicação conjunta dos dois regimes, correspondente ao ensinamento da chamada teoria da combinação temática dos negócios mistos (Antunes Varela, Das obrigações em geral, 4.ª, ed., I, pág. 248) e da prevalência do regime correspondente ao fim principal, no caso de conflito, vale não apenas quanto às matérias restritamente versadas no n.° 2 do artigo 1028.°, mas quanto a quaisquer outros pontos da relação contratual».
Do exposto resultam duas consequências: que a parte habitacional não «absorve» a parte destinada ao exercício da alfaiataria, como pretende a apelante, e que a resolução do contrato relativamente à parte destinada ao exercício da alfaiataria «arrasta» a parte habitacional.
Torna-se, assim, irrelevante que do contrato não conste que a cessação de um dos fins implica a cessação do outro.
3.3. Determinação do regime aplicável
O contrato de arrendamento cuja resolução se discute foi celebrado em 1969 e a acção destinada a resolvê-lo intentada em Outubro de 2008, quando já se encontrava em vigor o Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei 6/2006.
A Lei 6/2006 citada estabeleceu no seu título II (artigos 26º e ss.) um conjunto de normas transitórias.
Tratando-se de um contrato não habitacional celebrado antes do Decreto-lei 257/95, de 30.09, é aplicável o disposto no artigo 26º, por remissão do artigo 28º da citada Lei.
Assim, por força do estabelecido no artigo 26º, nº 1, da citada Lei, o contrato em apreço passa a estar submetido ao NRAU, com mas especificidades dos números seguintes que não logram aplicação ao caso.
E o artigo 59º da mesma Lei, subordinada à epígrafe «aplicação no tempo», estabelece, no seu nº 1, que o novo regime do arrendamento urbano aplica-se às relações contratuais constituídas antes da sua entrada em vigor que subsistam nessa data, sem prejuízo do disposto nas disposições transitórias.
No caso vertente, o facto que constitui fundamento de resolução — não utilização do locado por mais de um ano para o fim principal a que se destinava — poder-se-á ter iniciado no domínio do RAU, mas é em plena vigência da lei nova que o fundamento de resolução se radica na esfera do senhorio. A dúvida quanto ao início da verificação do facto que integra fundamento de resolução reside na circunstância de se ter alegado e provado que há mais de um ano não se exercia a actividade de alfaiataria no locado — e há mais de um ano pode ser há mais de vários anos. De todo o modo, a lei aplicável sempre seria o NRAU.
A este propósito, escreve Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, Almedina, vol. II, 4ª edição, pg. 1014:
«No tocante aos fundamentos de resolução, mesmo quanto aos velhos arrendamentos vinculísticos, é aplicável a lei nova às relações contratuais que subsistam, sem prejuízo das normas transitórias constantes dos art.s 26 e 27 (citado art. 59-1).
Importa neste caso, distinguir os fundamentos resolutivos ocorridos e completados na vigência da lei anterior, que continuarão a ser regidos por ela, dos que, mesmo iniciados durante esse âmbito de aplicação, se prolonguem para o império da lei nova, sem que tenha o senhorio, por ex., até aí suscitado a resolução do contrato, hipótese que já terá de submeter-se ao disposto no artigo 1083 CC, apesar do facto resolutivo vir de trás.
Valerá aqui também, sem margem para dúvidas importantes, o dispositivo do artigo 12-2 CC, no passo em que determina que, quando a lei dispõe sobre os seus efeitos, “entende-se em caso de dúvida que só visa factos novos”»
Conclui-se, pois, que o caso vertente tem de ser analisado à luz do disposto no artigo 1083º, n.º 2, alínea d), CC, na redacção introduzida pelo artigo 3º da Lei 6/2006 citada.
O legislador, abandonando o sistema de enumeração taxativa dos fundamentos de resolução do contrato de arrendamento, alargou o leque das situações susceptíveis de legitimar a resolução, optando pelo estabelecimento de uma cláusula geral, ao consagrar no nº 2 do artigo 1083º CC que é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do contrato de arrendamento.
Não deixou, no entanto, de enunciar exemplificativamente cinco situações típicas de resolução, o que suscita a questão de saber se se trata de autênticos fundamentos de resolução, que não têm de passar pelo crivo do juízo de inexigibilidade da manutenção da relação locatícia, ou de meras presunções ilidíveis dessa inexigibilidade, a aferir em cada caso concreto.
Aparentemente, o legislador pretendeu eregir estes factos típicos em verdadeiros fundamentos de resolução, tanto mais que as situações elencadas revestem normalmente particular gravidade em termos de violação contratual (neste sentido, Pinto Furtado, op. cit., pgs. 1001-2).
No entanto, existindo uma cláusula geral, afigura-se mais curial entender estas situações como meras presunções ilidíveis, sempre sujeitas ao juízo valorativo da inexigibilidade, sob pena de o legislador ter consagrado uma solução híbrida.
Fosse essa a sua intenção, e melhor seria ter dito que as situações elencadas no n.º 2 do artigo 1083.º CC constituem fundamento de resolução (numa formulação semelhante à do artigo 64.º RAU), e acrescentar que constitui ainda fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do contrato de arrendamento.
No sentido de que as situações assinaladas nas alíneas do n.º 2 do artigo 1083.º CC devem ser complementados com o conceito indeterminado de inexigibilidade, se pronunciaram Gravato de Morais, Novo Regime do Arrendamento Comercial, Almedina, 2ª edição, pg. 209, e Fernando Batista de Oliveira, A Resolução do Contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano, Causas de Resolução e Questões Conexas (em especial a cláusula geral resolutiva do n.º 2 do artigo 1083.º do CC), Almedina, pg, 29.
Assim, existirá fundamento de resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1038.º, n.º 2, alínea d), CC, se o arrendatário não usar o locado por mais de um ano, desde esse incumprimento, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento.
O artigo 1072.º CC, na redacção introduzida pelo artigo 3.º da Lei 6/2006 citada, e sob a epígrafe «uso efectivo do locado», veio consagrar uma obrigação de uso efectivo da coisa locada, não podendo deixar de a utilizar por mais de um ano. Assim se pôs termo à discussão no âmbito do direito anterior sobre o a razão de ser da norma constante do artigo 64º, nº 1, alínea h), RAU (violação do contrato pelo arrendatário, o interesse do senhorio, ou a tutela do interesse geral em fomentar o aproveitamento do imóvel – cfr. Gravato de Morais, op. cit., pg. 236).
O conceito de não uso é um conceito normativo, e não meramente naturalístico, pelo que para apurar o seu alcance importa ter em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente a natureza do local arrendado, o fim do próprio arrendamento, o grau de redução de actividade, a respectiva origem e inerente justificação, bem como o seu carácter temporário ou definitivo.
No caso vertente, tudo indicia que a cessação de actividade foi definitiva, tendo inclusivamente sido retirada a placa do estabelecimento, sendo certo que se trata de actividade cuja importância tem vindo a decrescer. E o estado de degradação do locado é evidente.
Não se torna, pois, exigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento.
A decisão recorrida não merece censura.
3.4. O princípio da constitucionalidade do direito à habitação
Afirma a encontra-se numa situação pessoal e habitacional grave e de relevância social e moral, não tendo outra habitação para residir, ter idade avançada e rendimentos muito baixos, comprovados pelo pedido de apoio judiciário, do qual beneficia e que todos os acontecimentos desde 2007 têm aumentado os problemas psicológicos e de saúde da recorrente, inerentes ao seu estado depressivo (artigos 69.º a 71.º das conclusões.
À excepção do apoio judiciário de que beneficia, nenhum dos outros factos têm suporte nos autos.
O direito à habitação consagrado no artigo 65.º da Constituição da República releva de uma dupla natureza: a de direito negativo, enquanto direito de não ser privado arbitrariamente de uma habitação; e a de direito positivo, enquanto direito de obter habitação, por via da propriedade ou do arrendamento, o que implica medidas e prestações estaduais destinadas a obter esse desiderato (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, Coimbra Editora, 4.ª edição, pg. 834).
A privação do direito à habitação decorrente da resolução do contrato de arrendamento não foi arbitrária, porque foi decretada pelo tribunal, com respeito pela legislação vigente, tendo sido assegurado à apelada o direito de defesa através do apoio judiciário, com nomeação de defensor oficioso.
E o direito a obter habitação tem como destinatário o Estado, e não os senhorios, como tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional.
É o seguinte o sumário do acórdão do Tribunal Constitucional n.° 130/90, de 1992.04.01, BMJ 416/158:
I - O direito à habitação, consagrado no artigo 65.° da Constituição, ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, é um direito a prestações, que implica determinadas acções ou prestações do Estado, cujo conteúdo pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário e cuja efectividade está dependente da chamada «reserva do possível» em termos políticos, económicos e sociais.
II - O direito à habitação tem, assim, o Estado (e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios) como único sujeito passivo, e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios: além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento nas condições e nos termos definidos por lei.
O despejo não põe em causa os direitos constitucionais da apelante por não caber ao apelado a salvaguarda desses direitos.
A confirmação da decisão prejudica a apreciação do recurso ampliado, relativo ao outro fundamento invocado.

4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Lisboa, 12 de Maio de 2011

Márcia Portela
Fernanda Isabel Pereira
Manuela Gomes