Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL JOSÉ RAMOS DA FONSECA | ||
Descritores: | LEGÍTIMA DEFESA EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA ERRO DESCULPÁVEL CAUSA DE EXCLUSÃO DA CULPA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | (da responsabilidade do relator): I - A propósito exclusão da ilicitude da conduta por legítima defesa exigir-se-á a presença de cinco requisitos objetivos e um elemento subjetivo, a saber: (i) a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, (ii) a atualidade da agressão, (iii) a ilicitude da agressão, (iv) a necessidade da defesa, (v) a necessidade do meio e (vi) o conhecimento da situação de legítima defesa – os três primeiros requisitos objetivos referem-se à situação em que o agente atua e os dois últimos à ação de defesa. II – Do quadro de legitima defesa diferenciam-se a especial situação de excesso de legítima defesa, como a legitima defesa putativa. III - No excesso de legitima defesa ainda se está perante quadro de legítima defesa efetiva, mas em que opera um uso de meios que extravasa a proporcionalidade, logo a legitimidade, necessária a impedir ou repelir a agressão. Sendo que a irracionalidade, imoderação ou falta de temperança nos meios empregues na defesa, resultante de um estado afetivo (perturbação, medo ou susto, na definição do art. 33.º/2CP) com que o agente atua, reportam ao excesso dos meios empregados em legítima defesa. Ou seja, só há excesso para efeitos da norma se legítima defesa estiver operante. IV – Diferentemente, na legítima defesa putativa esta pressupõe um erro desculpável sobre a existência de uma agressão atual e ilícita com base no qual o agente desencadeia a defesa, não havendo, então, uma causa de exclusão da ilicitude, mas sim uma causa de exclusão da culpa – art. 16.º/2CP. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes, em conferência, na 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa: I- RELATÓRIO 1. Decisão recorrida Mediante Sentença datada e depositada a 23janeiro2024 (ref.s 432227208 e 432229133), foi o Arguido AA condenado (no que ora se cuida face à delimitação de objeto de recurso): a. na pena de 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 (um) ano, com regime de prova, pela prática, como autor material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada, p. p. pelo art. 143.º/1; 145.º/1a)/2CP, por referência ao art. 132.º/2h)i)CP; b. na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros) num total €500,00 (quinhentos euros), pela prática, como autor material e na forma consumada, de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo art. 3.º/2ab); 86.º/1d) - RJAM (Lei 5/2006-23fevereiro). 2. Recurso Inconformado com a referida Sentença, da mesma e junto do Tribunal a quo interpôs o Arguido recurso (entrado a 23fevereiro2024 - ref. 38576314) motivando-o e delimitando-o no objeto com as conclusões [a tal ponto baralhadas, confusas, repetitivas e desprovidas da síntese exigível – são apresentadas 65 conclusões (A a MMM) -, que mereceram despacho de convite a aperfeiçoamento (20maio2024 – ref. 21534934), o qual foi aceite e cumprido – ainda que de forma assaz deficitária, uma vez que só logrou reduzir as mesmas a 31 conclusões (A a EE), mas que ainda assim, permite ser compreensível a final pretensão formulada em sede dos autos -] que se transcrevem (SIC, com exceção da formatação do texto, da responsabilidade do Relator): i) Conclusões “A) Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, que julgou procedente a acusação e condenou o Arguido pelos crimes de que vinha acusado. I - DA MATÉRIA DE FACTO INCORRECÇÃO DO JULGAMENTO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO: B) Entende o Arguido/Recorrente ter o Tribunal “a quo” incorrido em incorrecção quanto ao julgamento da matéria de facto, porquanto aquela que foi a prova produzida não poderia traduzir o julgamento realizado e, bem assim, a conclusão alcançada quanto aos factos dados por provados. Incorrecção essa que ora se sindica, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do CPP, e cuja modificação se pretende alcançar pelo Tribunal de recurso. C) Discordando da conclusão do Tribunal “a quo” dando como provados os factos elencados sob 3), 4), 5), 6), 7), 8), 9), 10), 11), 12), 13) e 15) do elenco dos factos provados e parte do facto elencado sob 16), concretamente o seguinte segmento: - 16) Por causa dos factos descritos e, 3. (…)” D) E ainda com a circunstância de ter o Tribunal “a quo” concluído como não tendo resultado provado o facto elencado sob E. do elenco dos factos não provados, a que se somam outros factos que se impunham ter por provados, porque, com relevo para a causa, resultaram da prova produzida nos autos. A) DOS FACTOS INCORRECTAMENTE JULGADOS COMO PROVADOS: Factos 3), 4), 7), 8) e 9): E) Entende o Arguido/Recorrente que a ponderação da versão dos factos que apresentou, e que foi corroborada pela demais prova produzida (prova documental e declarações da testemunha BB), aliada à falta de credibilidade da versão do Ofendido (por afronta às regras da experiência comum), que não poderia haver sido ignorada, impunha decisão diversa da recorrida. F) Pelo que, deveria o Tribunal “a quo” haver dado por não provados os factos indicados factos (3, 4, 7 e 8). - Factos 3), 5) e 6): G) Entendeu ainda o Tribunal “a quo” haver resultado provado ter o Arguido desferido um total de 07 (sete) golpes na pessoa do Ofendido (facto dado por provado sob 3), quando a prova documental atesta factualidade diversa (Auto de Exame Directo de Fls. 74 e no Relatório de Urgência de Fls. 51 de que resulta que o Ofendido deu entrada no ..., pelas 05h03 do dia 04.04.2022 apresentando apenas 04 (quatro) golpes e não 07 (sete)). H) Motivo pelo qual, não poderia o Tribunal “a quo” haver dado por provado que os ferimentos de que o Ofendido padeceu tivessem a extensão constante da acusação e, bem assim, os factos dados por provados sob 3., 5., e 6. - Factos 10) e 11): I) Relativamente aos factos dados por provados sob 10. e 11. entende o Arguido/Recorrente que também quanto a eles mal andou o Tribunal “a quo” ao dá-los por provados. Já que, o Arguido também prestou declarações sobre tal matéria, as quais resultaram consentâneas com as regras da experiência, representando uma justificação admissível para que fosse portador do indicado objecto, a qual se impunha assim ponderar. J) SMO, entendemos que a justificação apresentada pelo Arguido não podia deixar de colher, impondose que não pudesse o Tribunal “a quo” dar provada, como deu, a factualidade descrita em 10. e 11. - Factos 12., 13., 15. e 16.: K) Atenta a incorrecção do julgamento quanto à matéria de facto quanto ao provado sob 3. a 11., os quais se impunham ter por não provados, resulta igualmente insuficiente a prova dos factos vertidos sob 12., 13., 15. e 16., os quais, em virtude daquela que foi a prova efectivamente produzida, não podia o Tribunal “a quo” haver dado por provada. B) DOS FACTOS INCORRECTAMENTE JULGADOS NÃO PROVADOS: L) O Tribunal “a quo” considerou ainda como não provado que: “E. O arguido padece de patologia do foro psiquiátrico que impõe a necessidade de acompanhamento médico e terapêutica medicamentosa regular.” quando essa factualidade resultou demonstrada pela prova documental produzida, mormente o Relatório parcialmente transcrito sob 24. dos factos provados e declarações prestadas pelo Arguido.) Pelo que, sempre teria o facto elencado sob E. dos factos não provados de ser considerado provado. C) DOS FACTOS INCORRECTAMENTE NÃO JULGADOS PROVADOS: M) Para além do antes exposto, mais se impõe dar por provados - para além do facto elencado sob E. e em substituição e complemento dos factos indicados e erradamente julgados provados, e com fundamento nas declarações do Arguido, no depoimento de BB e na prova documental constante dos autos - os seguintes factos: 3. 3.1 - Ao que AA lhe respondeu, dizendo que era melhor amigo da DD (residente no résdo-chão) 3.2 - EE persistiu interpelando AA, indo na direcção daquele, o que fez de forma ameaçadora. 3.3 AA, que então se encontrava sentado junto à porta de acesso à habitação de DD, receoso da aproximação de EE, levantou-se, tendo, nesse momento, sido empurrado por EE que, acto contínuo, exibiu a AA uma arma de fogo, do tipo revolver. 3.4 AA temendo que EE viesse a disparar sobre si, removeu do interior do bolso da camisola que trazia vestida uma navalha, da marca “HERBERTZ”, modelo n.º 567412, com o comprimento total de 20,5 cm e com uma lâmina com 9,2 cm, a qual tinha transportado consigo para o local e que utilizava na preparação de produto estupefaciente de que era consumidor; 3.5 AA mostrou a descrita navalha a EE, tentando dissuadi-lo de se continuar se aproximando de si e de utilizar a arma de fogo e assim lhe permitir abandonar o local; 3.6 Verificando que EE não se afastara, AA acabou tentando remover a arma das mãos de EE; 3.7. Nesse momento, AA e EE envolveram-se fisicamente agredindo-se. 3.8. Aquando desse envolvimento AA mantinha na sua mão direita a navalha identificada em 3.4, tendo acabado por atingir EE com 04 (quatro) golpes na zona dorsal esquerda, na zona abdominal e debaixo do sovaco; 4. A contenda e envolvimento físico entre AA e EE terminou com a chegada de BB, que os separou aos dois, após o que ambos abandonaram o local a correr em direcções opostas. 5. Em consequência do descrito em 3.8 (…) 6. Do descrito em 5. resultaram para EE (…) 6.1 As lesões descritas em 6. não determinaram, em concreto, perigo para a vida de EE. 10. O Arguido transportou consigo a navalha identificada em 3.4, apenas se tendo apercebido que o fazia para fora da sua residência quando se encontrava já no trajecto para o local dos factos, pois utilizava-a para a preparação do produto estupefaciente; 27. O arguido padece de patologia do foro psiquiátrico que impõe a necessidade de acompanhamento médico e terapêutica medicamentosa regular, designadamente antipsicótica; 28. No dia dos factos, cerca das 03h00 e imediatamente antes de se dirigir à residência de DD, o Arguido havia consumido produtos estupefacientes (cetamina, ghb e anfetaminas) 29. No momento dos factos o Arguido encontrava-se sob o efeito das substâncias que consumira, visível e notoriamente alterado no estado de consciência normal. 30. O arguido apenas fez uso da navalha descrita em 3.4 perante a ameaça da agressão iminente de EE com arma de fogo, temendo pela sua vida. 31. Fê-lo tomado de medo, sem se conformar com a produção do resultado, designadamente a produção das lesões descritas em 6. Sem conceder, N) Ponderando, ainda que por mera hipótese académica, assistir fundamento parcial ao julgamento de facto realizado pelo Tribunal “a quo”, no que respeita à insuficiência de prova da posse pelo Ofendido EE, no momento dos factos, de uma arma de fogo então forçoso seria dar por demonstrado e, bem assim, por provado, que essa foi a representação feita e a convicção do Arguido, perante o gesto e postura assumida por EE enquanto se dirigia à sua pessoa e após o empurrar – conforme resultou das suas declarações. O) Pelo que, ainda assim e nesse caso, se se teria de dar por provado que: 3.3 AA, que então se encontrava sentado junto à porta de acesso à habitação de DD, receoso da aproximação de EE, levantou-se, tendo, nesse momento, sido empurrado por EE. Nesse momento, o AA representou, ante a postura corporal de EE, que o mesmo tinha consigo uma arma de fogo e que se preparava para a usa. 3.4 AA temendo que EE viesse a disparar sobre si (porque convicto daquele estar na posse de uma arma de fogo) removeu do interior do bolso da camisola que trazia vestida uma navalha, da marca “HERBERTZ”, modelo n.º 567412, com o comprimento total de 20,5 cm e com uma lâmina com 9,2 cm, a qual tinha transportado consigo para o local e que utilizava na preparação de produto estupefaciente de que era consumidor; 3.5 AA mostrou a descrita navalha a EE, tentando dissuadi-lo de se continuar se aproximando de si e de utilizar a arma de fogo e assim lhe permitir abandonar o local; 3.6 Verificando que EE não se afastara, AA acabou tentando remover o objecto que estava em crer ser uma arma das mãos de EE; 3.7. Nesse momento, AA e EE envolveram-se fisicamente agredindo-se. 3.8. Aquando desse envolvimento AA mantinha na sua mão direita a navalha identificada em 3.4, tendo acabado por atingir EE com 04 (quatro) golpes na zona dorsal esquerda, na zona abdominal e debaixo do sovaco; 4. A contenda e envolvimento físico entre AA e EE terminou com a chegada de BB, que os separou aos dois, após o que ambos abandonaram o local a correr em direcções opostas. 5. Em consequência do descrito em 3.8 (…) 6. Do descrito em 5. resultaram para EE (…) 6.1 As lesões descritas em 6. não determinaram, em concreto, perigo para a vida de EE. 10. O Arguido transportou consigo a navalha identificada em 3.4, apenas se tendo apercebido que o fazia para fora da sua residência quando se encontrava já no trajecto para o local dos factos, pois utilizava-a para a preparação do produto estupefaciente; 27. O arguido padece de patologia do foro psiquiátrico que impõe a necessidade de acompanhamento médico e terapêutica medicamentosa regular, designadamente antipsicótica; 28. No dia dos factos, cerca das 03h00 e imediatamente antes de se dirigir à residência de DD, o Arguido havia consumido produtos estupefacientes (cetamina, ghb e anfetaminas) 29. No momento dos factos o Arguido encontrava-se sob o efeito das substâncias que consumira, visível e notoriamente alterado no estado de consciência normal. 30. O arguido apenas fez uso da navalha descrita em 3.4 por ter representado uma agressão iminente de EE com arma de fogo, temendo pela sua vida. 31. Fê-lo tomado de medo, sem se conformar com a produção do resultado, designadamente a produção das lesões descritas em 6. II DO ENQUADRAMENTO PENAL – Do Julgamento da Matéria de Direito: P) Crê Arguido/Recorrente, contudo, que a subsunção jurídica a operar se impõe diversa da alcançada pelo Tribunal “a quo”. - Do Crime de Detenção de Arma Proibida: Q) Dando por provada a justificação apresentada pelo Arguido para a circunstância de fazer transportar consigo, na data dos factos, a navalha descrita (que utilizava no âmbito do consumo de produto estupefaciente). – como se impõe entendemos, diversamente daquela que foi a conclusão alcançada pelo Tribunal “a quo”, que necessariamente se terá de concluir pelo não preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreço. R) Pelo que, sempre se haverá de concluir pelo não preenchimento da totalidade dos elementos de que depende a verificação do crime e consequentemente, pela Absolvição do Arguido relativamente à prática deste crime. - Do Crime de Ofensa à Integridade Física Qualificada: S) Tal como antes se alegou, entende o Arguido que a matéria de facto efectivamente resultante da prova produzida terá de redundar na afirmação de que o mesmo não agiu pretendendo ou conformando-se com a possibilidade de ofender a integridade física do Ofendido com a utilização da navalha que tinha em sua posse e com a produção das lesões de que aquele foi, de facto, acometido. E, portanto, não tendo resultado provados os factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo incriminador, terá o Arguido de ser absolvido da sua prática. Contudo, ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que - Da Legítima Defesa: T) Entendendo a acção como contínua, no seu todo. I.e., que a contenda física no seio da qual ocorreram as lesões do Ofendido é uma continuidade do acto praticado, despoletado pela exibição e ameaça de disparo com arma de fogo de que foi alvo, e, portanto, os golpes assim desferidos no corpo do Ofendido se integraram na mesma acção, toda ela adoptada a cobro do mencionado propósito defensivo do Arguido (animus defendendi) e sem que se possa concluir ter o Arguido incorrido no crime de ofensa à integridade física qualificada de que vinha acusado. U) Deste modo, não só a sua condenação criminal, como também no âmbito cível, traduz consequência que não procede. Excluída a ilicitude da sua conduta, outra solução não resta senão a sua absolvição em ambas as vertentes. Mas, ainda que também assim não se entendesse, se dirá que V) Entende o Arguido que a subsunção jurídica realizada pelo Tribunal “a quo”, concluindo pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de Ofensa à Integridade Física Qualificada, p.e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, 26.º, 143.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, alíneas h) e i) do CP, nunca poderia subsistir. W) No caso concreto, como se demonstrou, não poderia o Tribunal “a quo” concluir estar perante uma forma enganosa, fraudulenta ou de surpresa de actuação do Arguido. E ainda que a navalha, como o que foi utilizada pelo Arguido, é um objecto de uso corrente e, como arma branca que também é, pode servir, frequentemente, como arma de agressão, mas, a todas as luzes, não pode integrar-se no conceito jurídico-penal de "meio insidioso” X) Portanto, entendemos que nunca se poderia ter por verificado o exemplo padrão ínsito na al. i) do n.º 2 do art. 132.º do CP. e a conduta do arguido consubstanciada na agressão nunca se poderia ter por reveladora de especial censurabilidade e perversidade. Y) Pelo que, os factos praticados pelo Arguido, ainda que se houvesse de excluir tudo quanto antes se disse, sempre se teria de ter por consubstanciadora de um crime de Ofensa à Integridade Física Simples, p. e p. pelo art. 143.º do CP, Z) Com dispensa de aplicação de pena, nos termos previstos no n.º 3 do art. 143.º do CP. Não obstante, ainda que assim não se entendesse, o que apenas por mero dever de patrocínio se admite, sempre se dirá que, - Da Legítima Defesa putativa: AA) Acaso se concluísse, como por hipótese antes se admitiu, na não demonstração da existência de uma arma de fogo (do tipo revolver) na posse do Ofendido EE, antes se dando por provado, tão somente, haver sido apenas essa uma convicção do Arguido, potenciada pelo estado alterado em que se encontrava no momento dos factos, ter-se-á de ter por líquido, a nosso ver, que, por parte do Arguido, houve uma falsa representação dos pressupostos objectivos necessários à legítima defesa, quando foi confrontado e se envolveu na contenda com o Ofendido. BB) O arguido agiu, pois, com animus defendendi e na errónea suposição de que se verificavam todos os pressupostos da legítima defesa, sendo o seu erro desculpável, verificando-se, portanto, um caso de exclusão do dolo. CC) E, nesse caso, impondo-se a condenação do Arguido não pela prática do crime de vinha acusado de Ofensa à Integridade Física Qualificada, p.e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, 26.º, 143.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, alíneas h) e i) do CP, mas antes pela prática do crime de Ofensa à Integridade Física por negligência, p. e p. pelo n.º 1 do art. 148.º do Código Penal. DD) E, em concreto, numa pena de multa, atenta a ponderação das circunstâncias que a seu favor se apuraram militar, de entre as quais se salienta a inexistência de condenação anterior pela prática de factos da mesma natureza. EE) Devendo assim ser concedido provimento ao presente recurso, e em consequência ser a Douta Sentença recorrida revogada e substituída por decisão que: • Determine a modificação do julgamento quanto à matéria de facto realizada, nos termos enunciados, e • Determine a modificação do julgamento quanto à matéria de direito • Absolvendo o Arguido da prática do crime de detenção de arma proibida de que vinha acusado; • Absolvendo o Arguido da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada de que vinha acusado, ou • Condenando o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, com dispensa de pena, por verificação dos pressupostos previstos no n.º 3 do art. 143.º do CP, ou - Condenado o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, em pena de multa a graduar pelo mínimo; NESTES TERMOS, E nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, revogando-se a Douta Sentença recorrida, quer quanto ao julgamento da matéria de facto, quer quanto ao julgamento de direito, nos precisos termos enunciados. Sendo que assim se fará JUSTIÇA!” 3. Resposta ao recurso Regularmente admitido o recurso (a 28fevereiro2024 - ref. 433353625) e de tal notificado o Ministério Público junto do Tribunal a quo (a 20março2024 - ref. 38854056) respondeu ao mesmo de forma direta, pugnando no sentido da improcedência do recurso. 4. Tramitação subsequente Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista ao Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, o qual, com concreta e circunstanciada explanação, acompanhando a posição exarada pelo Ministério Público na primeira instância, emitiu parecer (a 22abril2024 - ref. 21480686) pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo Arguido. Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório, aqui inexistindo resposta do Arguido. Ordenada a correção de conclusões, operada a aceitação de tal convite, nos termos já supra expostos, o processo foi com vista ao Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, o qual manteve o parecer antecedente. Efetuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso seja julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Apreciação do recurso i) Sentença recorrida Dada a sua relevância para o enquadramento e melhor compreensão do infra a decidir em termos de delimitação do objeto de recurso, urge, desde já, aqui verter quer a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada, as razões para tal e ainda, por fim, o enquadramento jurídico que efetua na fundamentação de direito. a. Factos provados (SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator) “II.1.1 DA ACUSAÇÃO PÚBLICA 1. No dia 4 de Abril de 2022, pelas 3h30min, no interior do prédio sito na ..., AA bateu, por várias vezes, com força, na porta da residência do R/C Esq., onde habita DD, o que fez com que EE, se tivesse dirigido ao local, para averiguar o que se estava a passar, por lhe ter sido solicitada ajuda por FF, residente no prédio em causa. 2. Nesse local, EE abordou AA, a quem perguntou o que se passava. 3. Em circunstâncias não concretamente apuradas, EE e AAenvolveram-se fisicamente e o arguido, utilizando para o efeito uma navalha, da marca “HERBERTZ”, modelo n.º 567412, com o comprimento total de 20,5 cm e com uma lâmina com 9,2 cm, a qual tinha transportado consigo para o local, desferiu no ofendido 7 (sete) golpes com a mesma, que atingiram EE na zona dorsal esquerda, na zona abdominal e debaixo do sovaco. 4. O arguido apenas cessou a sua actuação porquanto foi afastado por BB. 5. Em consequência da conduta do arguido, o ofendido EE sofreu dores nas regiões atingidas, as quais alojam órgãos vitais, assim como feridas incidas na face anterior do hemitórax direito, na face lateral esquerda do tórax, na face posterior do hemitórax esquerdo, no hipocôndrio esquerdo, na metade esquerda da parede abdominal, no contorno inferior da cicatriz umbilical, e na metade direita da parede abdominal, feridas estas com enfisema torácico, laceração do pequeno epiplon com ligeiro hemoperitoneu, tendo recebido tratamento médico e tendo tais lesões determinado, como consequência directa e necessária, 15 (dez) dias de doença, com igual afectação da capacidade de trabalho geral. 6. Em consequência da conduta do arguido, resultaram, como consequências permanentes para o ofendido, cicatrizes nos locais atingidos. 7. O arguido sabia que as suas condutas eram aptas a molestar a integridade física de EE, e, não obstante, quis agir da forma por que o fez, com o propósito de alcançar tal resultado, o que conseguiu. 8. Ao agir da forma descrita, utilizando para concretizar os seus intentos uma navalha, com as características descritas, surpreendendo o ofendido ao fazê-lo, e atingindo-o com tal arma nas zonas do tórax e do abdómen, regiões que alojam órgãos vitais, visava o arguido impedir o ofendido de reagir e de se defender eficaz e atempadamente da sua actuação, atenta a natureza do meio que utilizou. 9. Conhecia o arguido as características da faca que empunhava, tendo plena consciência da capacidade de agressão da sua parte metálica e das lesões graves que poderia infligir no ofendido ao desferir-lhe golpes com a mesma nas zonas do tórax e do abdómen, não se coibindo, ainda assim, de a usar da forma supra descrita, tendo-a escolhido justamente pelos motivos referidos. 10. O arguido transportou a referida navalha para o local e utilizou-a na prática dos factos, fora e em contexto diverso daqueles do seu habitual emprego, e não ofereceu, nem tinha qualquer motivo ou justificação para deter, transportar consigo ou utilizar na via pública, nos moldes em que o fez, o aludido objecto, como detinha, transportou e utilizou. 11. Com a conduta descrita, o arguido quis deter, transportar e utilizar, fora e em contexto diverso daqueles do seu habitual emprego e sem qualquer justificação, a navalha acima descrita, bem conhecendo as características e as qualidades da mesma e bem sabendo que se tratava de arma cuja detenção, naquelas concretas circunstâncias, alheias ao seu normal emprego, e sem que tivesse qualquer justificação para tal, é proibida por lei, intentos que logrou alcançar. 12. O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente. 13. Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas, e, ainda assim, não se coibiu de as adoptar. II.1.2 DA CONTESTAÇÃO 14. À data dos factos o arguido era consumidor regular de produtos estupefacientes. II.1.3 DO PEDIDO DE REEMBOLSO DAS DESPESAS HOSPITALARES DO GG 15. Todos os descritos em 1. a 13.. 16. Por causa dos factos descritos em 3., o GG prestou serviços médicos a EE, no valor de €2.135,10. II.1.4 APURARAM-SE, AINDA, OS SEGUINTES FACTOS: 17. O arguido encontra-se preso preventivamente no estabelecimento prisional de ..., à ordem do processo 933/23.6GCALM, que corre termos no Tribunal Judicial de Almada. 18. Não tem rendimentos. 19. Tem um filho de 6 anos de idade, que vive com a mãe. 20. Tem o 9.º ano de escolaridade. 21. É destro. 22. O arguido é visto pelos seus amigos como pessoa muito inteligente, disponível, tendo-lhes prestado ajuda quando aqueles precisavam, e com um comportamento dito normal até que iniciou o consumo de estupefacientes. 23. O arguido é visto pela sua mãe, como um filho muito afetuoso, atencioso, um pai atencioso e um bom irmão, muito trabalhador e inteligente. 24. Do relatório da DGRSP, com data de 11.12.2023, pode ler-se, para além do mais, o seguinte: À data dos factos que constam da acusação, AA, que tem 30 anos de idade, residia numa moradia na ... (Rua …) com três amigos (HH, II e JJ), todos profissionalmente ativos. A habitação foi arrendada em nome do arguido no verão de 2021, tendo este cedido os quartos aos amigos, que contribuíam apenas para as despesas de manutenção da casa. A dinâmica relacional com os três coabitantes é descrita como equilibrada, pautada pelo companheirismo e pela amizade. Porém, o arguido reconhece que os amigos assumiam uma atitude crítica em relação ao seu estilo de vida, mais concretamente no que respeita o padrão de consumo de substâncias tóxicas, encorajando a sua adesão a tratamento com vista à reabilitação. Este reconhece que recorria frequentemente à utilização de cocaína, anfetaminas e benzodiazepinas para se manter desperto durante mais tempo, a trabalhar no investimento e na mineração de cripto moedas, assim como na produção de artigos/notícias para revistas online. O arguido é pai de uma criança menor de idade, com quem aparentemente estabelecia uma relação vinculativa. Segundo a informação veiculada pela progenitora, ficou inibido de contactar a criança há sensivelmente dois anos, por se ter observado uma intensificação do consumo de substâncias tóxicas e por ter manifestado comportamentos agressivos dirigidos à mãe da criança. A privação dos contactos teve um impacto negativo no arguido a nível emocional. Salienta-se que o arguido apresenta elevada mobilidade residencial. Refere o arrendamento de uma habitação (T2) na ..., onde viveu sozinho durante algum tempo, recebendo a visita do descendente, sendo que no período que antecedeu à rutura relacional AA coabitou com a progenitora do seu filho e a criança em ... e também em… Após os alegados factos que deram origem à acusação, o arguido abandonou a sua habitação e foi residir para …, transitando entre moradas. Afirma que a mudança observada foi motivada, numa fase inicial, pelo sentimento de insegurança que se instalou, isto é, por recear vir a sofrer represálias, tendo se desorganizado, posteriormente a nível pessoal, intensificando e agudizando o consumo de substâncias estupefacientes (heroína e cocaína fumada). Para além do paradeiro incerto, pernoitando o arguido em sítios diversos, este terá partilhado o quarto com conhecidos, que eram consumidores de produtos estupefacientes, nomeadamente cocaína fumada. Segundo a progenitora, durante esse período da sua vida o arguido chegou a viver na condição de sem-abrigo, com uma grande degradação da sua imagem, apresentando-se muitas vezes desnutrido e com falta de higiene. À data dos alegados factos o arguido encontrava-se profissionalmente ativo, a prestar serviços de .... (…) O arguido assume consumir regularmente substâncias aditivas desde os 16 anos, tendo intensificado os consumos a partir de 2021. No verão de 2022 observou-se uma escalada para o consumo de heroína e cocaína fumada, prática que reconhece como problemática e prejudicial à saúde física e psíquica, condicionando negativamente o seu discernimento, o modo de se relacionar e a tomada de decisão. (…) No que concerne a características e competências pessoais, o arguido afigura-se um indivíduo independente, com espírito de liderança, competências cognitivas e comunicacionais, que revela lacunas ao nível da regulação das emoções, défices de autocontrolo, reduzida tolerância à frustração, permeabilidade a pares e dificuldade na resolução de problemas. Apesar da aparente capacidade empática, o seu discurso evidencia uma atitude autocentrada. (…) Ainda que a medida de coação que foi aplicada tenha sido impactante a nível pessoal e profissional, mas sobretudo familiar, demonstrando a progenitora uma grande preocupação com o seu bem-estar e o acesso a cuidados médicos, AA reconhece que a privação da liberdade surtiu um efeito positivo pois acautelou a interrupção do consumo de drogas duras (heroína e cocaína). (…) O arguido que se encontra em prisão preventiva desde 04-07-2023 tem beneficiado de suporte financeiro por parte da progenitora, que contribui com €90.00 semanais para as suas despesas pessoais. AA frequenta o curso de informática no Estabelecimento Prisional, ocupa o tempo livre na biblioteca e manifesta motivação para a frequência do Programa de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) para se habilitar com o ensino secundário. A nível disciplinar, constata-se que o arguido regista duas infrações (datadas de 07-09-2023 e 22-10-2023) por deter, possuir, introduzir, fabricar ou distribuir substância tóxica. AA, que é acompanhado em consulta de psiquiatria no estabelecimento prisional e faz terapêutica ansiolítica, antidepressiva e anti psicótica, assume preservar o consumo de haxixe, visto que considera que a substância o auxilia a relaxar e a aliviar o stress quotidiano. (…) O arguido demonstra compreender a ilicitude e a gravidade da conduta que lhe é imputada, todavia associa o seu comportamento à ingestão de substâncias tóxicas. O arguido é capaz de refletir de forma crítica sobre a sua conduta, revelando arrependimento. Quanto ao dano causado, este parece ter consciência do mesmo, mas por outro lado, assume uma atitude ambivalente em relação à vítima, pois não lhe reconhece esse estatuto, considerando que o próprio corria risco de vida, visto ter-se sentido ameaçado, fazendo referência à utilização de uma arma de fogo. A análise da informação recolhida permite concluir que AA é um indivíduo com nível de escolaridade médio, que apresenta hábitos de trabalho. Já ao nível das competências pessoais e sociais, verifica-se que este manifesta fragilidade emocional permeabilidade à influência negativa dos pares, reduzida tolerância à frustração e dificuldades ao nível da inibição de impulsos. (…) Assim, em caso de condenação e caso seja equacionada a aplicação de uma pena a cumprir na comunidade, atendendo aos elevados fatores de risco identificados e às características pessoais do arguido, colocam-se reservas quanto à sua atual capacidade para corresponder adequadamente às regras de conduta que habitualmente estão associadas a este tipo de medida. Considera-se que AA necessita de uma intervenção intensiva que deverá ter enfoque no comportamento aditivo, no desenvolvimento de competências cognitivas e emocionais, nas competências de resolução de problemas/autogestão e no desenvolvimento da consciência crítica. 25. Do relatório do ..., de 01.04.2023, consta para além do mais, o seguinte: Por consulta de processo clínico, foi possível apurar diagnóstico prévio de Perturbação de Uso de Múltiplas substancias em doente com traços antissociais. 26. O arguido tem averbadas no seu certificado de registo criminal as seguintes condenações: i. Por Acórdão de 31.03.2022, transitada em julgado a 18.05.2022, no âmbito do processo n.º 14/13.0PESXL, por factos ocorridos a 07.10.2013, pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e sujeita a regime de prova.” b. Factos não provados (SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator) “II.2.1 DA ACUSAÇÃO A. Na ocasião descrita em 2. o ofendido não obteve resposta. B. Então, EE virou costas, no intuito de se ausentar do local. C. Na ocasião descrita em 3. AA aproximou-se repentinamente pelas costas de EE. D. Na ocasião descrita em 8. ao agir da forma descrita, utilizando para concretizar os seus intentos uma navalha, com as características descritas, surpreendendo o ofendido ao fazê-lo, porquanto se aproximou pelas costas deste quando o mesmo se encontrava a ausentar-se do local e atenta a forma repentina e sub-reptícia como actuou. II.2.2 DA CONTESTAÇÃO E. O arguido padece de patologia do foro psiquiátrico que impõe a necessidade de acompanhamento médico e terapêutica medicamentosa regular.” C. Motivação (SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator) “Para formar a nossa convicção sobre a matéria de facto provada e não provada baseámo-nos na análise ponderada e crítica do conjunto da prova produzida, em ordem à reconstituição da dinâmica do acontecido. Mais nos baseámos no princípio da livre apreciação da prova ínsito no art.º 127.º do Código Processo Penal, o qual preceitua “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Como é sabido, a livre apreciação da prova de modo algum se confunde com a apreciação arbitrária ou com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos vários meios de prova. “A prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve, portanto, colocar o julgador ao apreciar livremente a prova”. Vejam-se, nesta orientação Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado e Comentado, III, 246; Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, 288; entre outros. Por isso se consagrou a necessidade de fundamentar a decisão “com indicação de exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (cfr. art. 374.º, n.º 2 do Código Processo Penal). Concretizando. O arguido assumiu que no dia hora e local constantes da acusação, se encontrava sentado junto da habitação da sua amiga DD, e como esta não lhe abria a porta, bateu insistentemente, com receio que a mesma pudesse estar desmaiada, como já tinha ocorrido em ocasiões anteriores, por consumo de produto estupefaciente, conforme transmitiu à testemunha BB (residente no segundo andar do referido prédio), que confirmou, nesta parte, o teor das declarações do arguido. Pouco depois, na versão do arguido, surge o ofendido, EE, que o aborda em tom agressivo, o empurra e lhe exibe/aponta um revolver. Como tem a faca apreendida no bolso, tenta com a mesma intimidar o ofendido e retirar-lhe a arma da mão, acabando ambos por se envolver fisicamente, até que BB o empurra, cai pelas escadas e vai-se embora. Não deu conta de ter penetrado o corpo do ofendido com a sua faca, embora admita que o possa ter feito, tal como veio a relatar junto da PSP no dia seguinte. Não obstante a versão apresentada pelo arguido, nada no autos nos pode levar a concluir que o ofendido tivesse, de facto, apontado ao arguido uma arma, ou qualquer outro objecto: a testemunha BB não viu qualquer objecto nas mãos do ofendido quando os separou, conforme esta mesma testemunha esclareceu, de forma clara e desinteressada; o ofendido não utilizou qualquer objecto contra o arguido, apesar de ter sido insistentemente agredido com um faca pelo arguido (7 facadas) e sem que tivesse logrado pelos seus próprios meios a repelir a agressão, encontrando-se o arguido em cima de si quando BB interveio. Por outro lado, os factos foram contextualizados de forma distinta pelo ofendido EE, que descreve os factos tal como vêm na acusação. Nega que tenha tido algum confronto verbal ou físico com o arguido antes de o mesmo o atingir com uma faca pelas costas ou que tivesse um qualquer objecto nas mãos (nomeadamente arma de fogo) e o tivesse exibido ao arguido. No entanto, também não pudemos dar credibilidade a esta versão dos factos, por se encontra em contradição com as regras de experiência e sensu comum e com a demais prova produzida. Em primeiro lugar, foge às regras da lógica que o ofendido, a meio da noite se tivesse deslocado até ao prédio da sua amiga, a pedido desta, por causa de um indivíduo que aí se encontrava a causar distúrbios e, confrontado com tal situação nada fizesse, ou seja, não é crível que depois de ter perguntado ao arguido o que se passava e que este nada tivesse dito, seguindo a sua versão, aceitasse esse silêncio e tivesse virado costas, até porque a sua amiga tinha-lhe pedido uma acção e ninguém se levanta a meio da noite para não agir. Aqui faz mais sentido a versão do arguido, que refere que o ofendido o aborda de forma agressiva, perguntando-lhe insistentemente quem era e dizendo-lhe para se ir embora. Ademais, atendendo à localização das primeiras lesões (o ofendido disse que foi primeiro atingido na omoplata esquerda e depois no sovaco esquerdo), e ao facto do arguido ser destro (e por isso segurava a faca com que atingiu o ofendido com a mão direita), não estava de costas para o arguido quando primeiro o arguido o atacou pois, se assim fosse, as lesões seriam do lado direito do corpo e não do esquerdo, pelo que concluímos que o ofendido não estava de costas para o arguido quando o confronto físico se iniciou, razão por que se deram tais factos como não provados. A testemunha KK, agente da PSP que se deslocou ao local, já não se recordava bem da ocorrência e não assistiu aos factos, pelo que confirmou o auto de noticia e o auto de apreensão junto aos autos a fls. 5 e 7/8 dos autos, de onde apenas decorre, com relevo, que o ofendido já se encontrava em casa quando foi abordado por este agente da PSP. Permanecemos na dúvida acerca do que terá despoletado a agressão do arguido para com o ofendido e do contexto em que as agressões ocorreram, sendo que nenhuma das versões ouvidas nos merece credibilidade neste aspecto, apesar de não termos dúvidas que a agressão ocorreu e com uma faca, tal como o próprio arguido admite. Relativamente às lesões, as mesmas vêm descritas quer no auto de exame directo, de fls. 74 dos autos, quer no relatório de urgência de fls. 51. e são compatíveis com uma agressão por faca. Não existe qualquer incongruência entre o exame pericial de fls. 74. (onde se descrevem 7 cicatrizes provocadas pela agressão do arguido), e o relatório de urgência de fls. 51 e ss., onde se faz referência a 4 portas de entrada, pois tal descrição é feita pela cirurgia e reporta-se à intervenção a que o ofendido foi sujeito (laparoscopia exploradora, através da qual é introduzido no corpo do paciente uma câmara e pinças, através de pequenos orifícios, para aferir de eventuais lesões internas que o mesmo possa ter), e não às lesões provocadas pela actuação do arguido. Relativamente à factualidade vertida sob 7. a 13 foram tidas ainda em consideração as regras da experiência e do senso comum, visto que é manifesto que, actuando da forma descrita, o arguido o fez livre, voluntária e conscientemente, com perfeito conhecimento do carácter proibido da conduta praticada, não podendo ignorar que usando da sua força física no ofendido, através de uma faca, o molestava fisicamente, o que quis. Também não restam dúvidas que o arguido conhecia as características da faca que transportava e que não tinha qualquer motivo para a ter levado consigo para a via pública, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Mais se chama a atenção para o facto de quando primeiro prestou declarações, o arguido referiu que tinha utilizado a faca, em casa, para proceder ao corte de produto estupefaciente e que depois se esqueceu que a tinha, mas num segundo momento já disse que vinha a brincar com a faca no bolso no percurso para casa da sua amiga, pelo que, tendo já procedido ao consumo de estupefacientes em casa, nenhum outro motivo justificava a posse daquele objecto na via pública, o que o arguido bem sabia. Relativamente às condições pessoais e económicas do arguido atendeu-se às suas declarações em conjugação com o depoimento prestado pela sua mãe, na análise critica e ponderada do relatório da DGRSP e do relatório do ... juntos aos autos. Quer a mãe do arguido, LL, quer os seus amigos MM, NN, OO mostram grande estima e consideração pelo arguido, pelo que foi isso que se verteu nos factos provados, realçando todos que a partir de certo momento o arguido se perdeu com os hábitos aditivos. O Tribunal viu o arguido a desenhar e escrever com a mão direita, pelo que conclui, em conjugação com o que o mesmo referiu, que é destro. Quanto aos antecedentes criminais atendeu-se ao seu certificado de registo criminal junto aos autos.” 2. Objeto do recurso O poder de cognição do Tribunal ad quem mostra-se primariamente delimitado em função das conclusões extraídas pelo recorrente da sua fundamentação de motivação, já que é nelas que se sintetizam as razões da sua discordância com a decisão recorrida (arts. 402.º; 403.º; 412.º/1CPP). “As conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras.” (Pereira Madeira, in Código de Processo Penal comentado”, António Henriques Gaspar, José Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires da Graça, Ed. Almedina, 2014, p. 1299). Contudo, está ainda o Tribunal ad quem obrigado a decidir todas as questões de conhecimento ex officio, tais quais as nulidades insanáveis, ou que não se mostrem sanadas, que afetam o processado (arts. 379.º/2;410.º/3CPP) e dos vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (art. 410.º/2CPP) e que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, rel. Juiz Conselheiro Bernardo Fisher Sá Nogueira, 19outubro1995, in DR I-Série-A, 28dezembro995 e Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2005, rel. Juiz Conselheiro Armindo dos Santos Monteiro, 20outubro2005, in DR I-Série-A, 7janeiro2005, acessíveis in www.stj.pt/uniformizacao-de-jurisprudencia). Umas e outras definem, pois, o objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior. O recurso interposto de uma Sentença abrange toda a decisão (art. 402.º/1CPP) e mesmo que opere limitação do recurso a uma parte da decisão tal não prejudica o dever de o Tribunal ad quem retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida (art. 403.º/3CPP). Nos termos do disposto no art. 428.º/1CPP “[a]s relações conhecem de facto e de direito” “devendo por isso, subsumir o direito aos factos”. (nesta específica expressão, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro Pires da Graça, 16maio2012, NUIPC 30/09.7GCCLD.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jstj) Resumindo, havendo tão só recurso em matéria de facto, a Relação conhece do objeto do recurso, e se modificar a matéria de facto, extrai as consequências jurídicas decorrentes; sendo o recurso de facto e de direito, conhece de ambos; sendo o recurso somente de direito, conhece do recurso, sem prejuízo do disposto no art. 410.º/2/3CPP; havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente pelo Tribunal competente para conhecer da matéria de facto (art. 414.º/8CPP). Ou seja: a função do Tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que o convocou o Tribunal ad quem a um juízo de mérito. Impõem os art. 368.º; 369.ºCPP - por remissão do art. 424.º/ 2CPP -, que o Tribunal da Relação conheça das questões que constituem o delimitado objeto do recurso pela seguinte ordem: a) das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão; b) das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412.ºCPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410.º/2CPP; c) das questões relativas à matéria de direito. Seguindo este alinhamento metodológico e de sistematização, no caso concreto e atentas as afirmadas pretensões e subsequentes conclusões apresentadas em sede de motivação do recurso interposto, diremos desde já que em nenhum momento, de forma direta ou indireta, se mostram colocadas - e nenhumas oficiosamente se vislumbram - questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão. Sendo certo que o recorrente, nem em sede de fundamentação, nem em sede de conclusões inerentes, dá adequado e competente cumprimento ao determinado nas alíneas a) a c) do art. 412.º/2CPP, igualmente certo é que se logra percecionar – como infra se circunscreverá – qual é o final, delimitado, possível e concreto objeto do recurso, assim se permitindo a este Tribunal conhecer do Direito. Concluindo, no caso em apreço, não nos ancorando em argumentos formais e atendendo ao que ainda assim se vislumbra das conclusões da motivação do recurso, tendo em conta o contexto normativo, as questões que importa decidir, por serem as efetivamente as que técnica e materialmente se mostram colocadas como objeto do recurso, sustentam-se: 1.ª da impugnação ampla da matéria de facto (chamada de “recurso efetivo da matéria de facto”, prevista no art. 412.º/3/4/6CPP); 2.ª da impugnação restrita da matéria de facto (chamada de “revista alargada”, prevista no art. 410.º/2CPP); 3.ª – opera violação das regras de apreciação da prova, consequentemente e em especial o princípio in dubio pro reu, devendo ser dados como não provados e como provados os indicados factos? 4.ª qualificação jurídica dos factos: A) estão preenchidos os elementos típicos do crime de detenção de arma proibida? B) estão preenchidos os elementos típicos do crime de ofensa à integridade física qualificada? 1 – elemento subjetivo; 2 – legítima defesa; 3 – desqualificação: a) passagem a crime de ofensa à integridade física simples; b) dispensa de pena; 4 – legítima defesa putativa. 1.ª da impugnação ampla da matéria de facto (chamada de “recurso efetivo da matéria de facto”, prevista no art. 412.º/3/4/6CPP) Antes de mais há que resolver uma questão que contende com uma efetiva pré delimitação do objeto do recurso quanto a impugnação de matéria de facto. No caso presente a sentença apresenta 26 factos provados, sendo os iniciais 13 respeitantes à matéria penal, dentre estes os últimos 6 por reporte à parte subjetiva, seguindo-se 1 facto relativo à contestação, reportando situação pessoal do Arguido, após o que se seguem 2 factos relativos à questão cível, outros 9 factos relativos à situação pessoal do Arguido e 1 final sobre os seus antecedentes criminais. O Arguido, na sua peça de recurso logo começa a fundamentação de motivação por afirmar (após entre a p. 3 e a p. 7 da sua peça de recurso reproduzir a matéria de facto provada e não provada em sede de sentença) que “Entende (…) ter o Tribunal “a quo” incorrido em incorrecção quanto ao julgamento da matéria de facto, porquanto aquela que foi a prova efectivamente produzida não poderia traduzir o julgamento realizado e, bem assim, a conclusão alcançada quanto aos factos dados por provados” após o que (pontos 10 a 12, a p. 7 da peça de recurso) (o que retoma na conclusão B) da peça de conclusões corrigidas), opinando sobre a questão de “livre apreciação da prova”, formula uma delimitação (posteriormente sectorizada) dos factos que entende estarem incorretamente julgados (pontos 13 a 13, a p. 8 da peça de recurso): - factos provados: 3), 4), 5), 6), 7), 8), 9), 10), 11), 12), 13) e 15), 16) (este parcialmente, somente quanto à parte “Por causa dos factos descritos em 3”); - facto não provados: E.; - outros factos que entende deveriam ter sido dados como provados (elenca-os nos pontos 86 a 104, a p. 26 a 32 da peça de recurso). Seguidamente, e após transcrição doutrinal (ponto 16, a p. 8 a 10 da peça de recurso), o Arguido sectoriza aqueles reportados factos, nos seguintes termos: - factos provados: 3), 4), 7), 8) e 9) (pontos 18 a 59, a p. 11 a 20 da peça de recurso) (o que retoma nas conclusões E) e F) da peça de conclusões corrigidas); - factos provados: 3), 5) e 6) (pontos 60 a 66, a p. 20 a 23 da peça de recurso) (o que retoma nas conclusões G) e H) da peça de conclusões corrigidas); - factos provados: 10) e 11) (pontos 67 a 77, a p. 23 a 25 da peça de recurso) (o que retoma nas conclusões I) e J) da peça de conclusões corrigidas); - factos provados: 12), 13), 15) e 16) (pontos 78 a 80, a p. 25 da peça de recurso) (o que retoma na conclusão K) da peça de conclusões corrigidas); - facto não provados: E. (pontos 81 a 85, a p. 25 a 26 da peça de recurso) (o que retoma na conclusão L) da peça de conclusões corrigidas); - outros factos que entende deveriam ter sido dados como provados (pontos 86 a 104, a p. 26 a 32 da peça de recurso) (o que retoma nas conclusões M) a O) da peça de conclusões corrigidas). Desde já delimitando, dir-se-á que quanto ao ponto de facto 9 da matéria de facto provada é o próprio Arguido quem no recurso nada diz ou alega de concreto sobre tal, uma vez que ainda que comece, através da referência antes do ponto 18, a p. 11, da peça de recurso por o incluir nesse setor, certo é que termina a sua alegação no ponto 59 e nesse firma a sua consideração de não prova somente aos factos 3, 4, 7 e 8. E se dúvidas houvesse sobre tal, certo é que na conclusão F) (conclusões corrigidas – como já o era na conclusão R) originária) restringe o objeto em causa, excluindo esse facto 9. Como já vimos dizendo, são só as questões efetivas e concretamente suscitadas pelo Arguido recorrente e, por fim, sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que este Tribunal ad quem tem de apreciar. “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões». (cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., p 335) No concreto face à alegação firmada pelo Arguido nada é dito, como tal sequer estamos perante abandono, sim perante ausência de objeto – motivação e conclusões – pelo que nada pode este Tribunal dizer sobre tal matéria. Adiante. Com vista a que pela via de recurso seja efetivamente permitida a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, a lei prevê, sob pena de nulidade, a obrigatoriedade de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência – art.s 363.;364.ºCPP. Porém, no caso de pretender impugnar a matéria de facto, pela via ampla, o recorrente deverá especificar, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, devendo fazê-lo com a referenciação e indicação concreta exigida – 412.º/3/4CPP –. É que, havendo impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, sendo antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, na limitação da perspetiva dos concretos pontos de facto que o Arguido recorrente indique. E por isso mesmo é que o citado art. 412.º/3/4CPP impõe ao recorrente o ónus de tríplice especificação de tais concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (Simas Santos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9março2006, Proc. nº 06P461, acessível in www.dgsi.pt/jstj; Germano Marques da Silva, Forum Justitiae, Maio 99 “o recurso sobre a matéria de facto não significa um novo julgamento, mas antes um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”; Damião Cunha, in obr. cit., em sentido idêntico sustenta que os recursos “…são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos»”). Note-se, porém, que a lei refere as provas que “impõem” e não as que “permitiriam” solução diversa, pois haverá casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Daí que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção (art. 127.º CPP). (neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, rel. Juiz Desembargador Fernando Monterroso, 20março2006, Proc. 245/06-1.ª, acessível in www.dgsi.pt/jtrg) Com efeito, no sentido de cumprir o referido ónus deve “o recorrente explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido visa precisamente impor à recorrente que relacione o facto individualizado que considera incorretamente julgado.” O requisito do art. 412.º/3b)CPP “só é observado se, para além da especificação das provas, o recorrente explicitar os motivos e em que termos essas provas indicadas impõem decisão diversa da decisão do Tribunal, de modo a fundamentar e tornar convincente que tais provas impõem decisão diferente” (…) sendo que tal “exigência corresponde, de algum modo, àquela que é exigida ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, porque do mesmo modo que o julgador tem o dever de fundamentar as decisões, também o recorrente tem que fundamentar o recurso.”. Daí que “não cumpre tal requisito a mera negação dos factos, a discordância quanto à valoração feita pelo Tribunal recorrido quanto à prova produzida, considerações e afirmações genéricas, a invocação de dúvidas próprias, sem que se analise o teor dos depoimentos das testemunhas indicados nas respetivas passagens da gravação, com a indicação dos motivos por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, rel. Juiz Desembargador Luís Teixeira, 12julho2023, NUIPC 982/20.6PBFIG.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrc e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro João Silva Miguel, 18fevereiro2016, NUIPC 9/13.4PATVR.R1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jstj) Na verdade, como elucidativamente escreveu o então Juiz Desembargador Antero Luís, ora Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, NUIPC 23/14.2PCOER.L1-9, 4fevereiro2016, acessível in www.dgsi.pt/jtrl) delimitando a abrangência da normalidade de situações reportáveis como de erro de julgamento, estas são as seguintes:“- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto; - ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado; - prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo; - prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova; - e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.” Pois bem, in casu, conforme decorre da motivação de recurso e das conclusões que dela extraiu, o Arguido afirma que inúmeros factos provados não deveriam ter sido dados como provados, e ainda, outros não provados deveriam ter sido dados como provados. Porém, contrariamente ao que seria de esperar perante tão rotunda afirmação de pretensão de recurso amplo de matéria de facto como “prova a impor" decisão diversa da recorrida, o Arguido recorrente limita-se a trazer à colação e defender somente um pessoal diferente valoração da prova resultante dos depoimentos e documentos prestados e apreciados em audiência. Delimitando e subsumindo. Os factos 3), 4), 7) e 8) descrevem a atuação de desferimento, por parte do Arguido no corpo do ofendido, de 7 (sete) golpes com uma descrita navalha, a razão de cessação de tal atuação, o conhecimento do Arguido sobre a aptidão da sua atuação e intencionalidade concretizada da mesma. Os factos 3), 5) e 6) descrevendo a atuação de desferimento, por parte do Arguido no corpo do ofendido, de 7 (sete) golpes com uma descrita navalha, reportam as consequências da mesma. Os factos 10) e 11) reportam, quanto ao udo da navalha, o conhecimento do Arguido sobre inviabilidade de transporte e uso, bem como a aptidão da sua atuação e intencionalidade concretizada com o uso da mesma. Os factos 12) e 13) traduzem a liberdade atuacional e a consciência criminal inerente, sendo que os factos 15) e 16), reportando a remissão para a matéria cível, consolidam os danos e os custos da inerente atuação hospitalar. O facto não provados reporta a desnecessidade de acompanhamento médico e terapêutica medicamentosa regular à patologia psiquiátrica por parte do Arguido. Os outros – extensos - factos que o Arguido entende deveriam ter sido dados reportam à conceção de factos que o Arguido, na sua apreciação e convicção, entende que deveriam ter sido dados como provados. Ora, quanto aos factos dados como provados, assim como com relação aos factos dados como não provados, através de fundamentação e exame crítico, o Tribunal descreve as razões para a sua convicção, que funda nos depoimentos prestados e nos documentos analisados em sede de audiência, ou seja nas prova apreciadas à luz do art. 355.ºCPP e nas regras, que convoca e descreve, de livre apreciação da prova, nos termos do art. 127.ºCPP. No presente recurso, o Arguido limita-se a apelar a depoimentos prestados e documentos analisados, que embora individualize e reporte parcialmente, dos mesmos não logra apresentar efetivos fundamentos que imponham apreciação diversa, antes se quedando por generalidades e contestação da credibilidade que foi atribuída pelo julgador aos concretos depoimentos e documentos. E, na verdade, de nada vale ao Arguido recorrente insurgir-se contra a convicção do tribunal recorrido no sentido em que se formou, uma vez que é ao julgador que compete apreciar da credibilidade dos veículos transmissores dos factos. A ele cabe a espinhosa missão de apreciar, em obediência ao disposto no art. 127.º CPP, quais os depoimentos e documentos que merecem credibilidade, e se o merecem na sua totalidade ou só em parte. Na verdade, a atividade judicatória na valoração dos depoimentos tem de atender a uma multiplicidade de fatores que têm a ver, designadamente, com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, as coincidências, as contradições, a linguagem gestual, etc. No caso vertente, o Tribunal a quo deu credibilidade a uns depoimentos e retirou-os a outros, de forma total ou parcial quanto ao seu decurso, do mesmo passo que, com absoluta transparência, indica as razões porque assim o fez, revelando-se, por isso, inconsistente a afirmação constante do recurso quando tenta alargar a falta de credibilidade de parte do depoimento do ofendido a todo o seu depoimento. É que não viola qualquer regra de direito probatório a valorização só em parte do depoimento do ofendido, uma vez que o Tribunal pode acreditar apenas em parte, não valorizando a totalidade do depoimento se, em face dos demais elementos de prova e de acordo com as regras da experiência e da lógica, se evidencie que, relativamente a certos factos, o depoimento assumiu um posicionamento deslocado. E foi isso que fez o Tribunal a quo, quando fez destrinça do depoimento do ofendido no confronto do modo como interpretou ter-se iniciado o esfaqueamento com o demais pelo ofendido relatado. Ou seja, o tribunal a quo avaliou a prova segundo a sua livre convicção, sem que tivessem sido violadas quaisquer regras da experiência comum ou sido utilizados meios de prova proibidos, sendo que a factualidade impugnada tem plena sustentabilidade nas provas indicadas na motivação fáctica da sentença recorrida. Recorrendo às palavras da Juíza Desembargadora Eduarda Lobo (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, NUIPC 463/09.9JELSB.P1, 6outubro2010, acessível in www.dgsi.pt/jtrp) dir-se-á que efetivamente in casu “[o] recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo Tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.” Assim o é porque o Arguido recorrente se expressa em moldes tais que tão só pretende substituir o labor de valoração de prova e subsequente convicção do julgador, pela sua própria convicção, sem qualquer critério adequado, quão mais legal, para tal, “escolhendo” interpretações de depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, mas sem sequer especificar em que efetiva e concreta parte dos mesmos ali se podem valer, para tanto invocando ou dúvidas ou insuficiências. Ora tal processo não é aquele que um Estado de Direito como Portugal determina em Lei. Neste são os julgadores em 1.ª instância quem, em nome do povo e em cumprimento do comando constitucional do art. 202.ºCRP, exercendo a função jurisdicional, cumprem para tanto as regras que lhe determinam o poder/dever de apreciar livremente a prova. Apreciação que há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo”. (neste sentido cfr. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal – Coimbra Editora –1974, p. 202/205) A forma de descortinar o erro de julgamento não passa, pois, pela mera alegação da discordância entre a convicção próxima da justiça por mão própria em que o Arguido recorrente forma a sua – sempre indissociável - subjetiva convicção. Antes tem que passar pela demonstração inequívoca de que o Tribunal desdizeu as exigidas regras da experiência e afrontou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas, etc.). Por isso, quando o recorrente pretende apenas sindicar a livre apreciação da prova, o recurso amplo da matéria de facto estará irremediavelmente destinado à improcedência. E assim o é porque antes é obrigação do Tribunal atuar de forma livre no conferir da credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento doutros, uma vez que o faça de forma explicitada e convincente – o motive -, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos atos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defendendo-se uma outra solução, o Tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (neste sentido, cfr. Damião da Cunha, in O Caso Julgado Parcial, Publicações Universidade Católica) Mostra-se, deste modo, evidente à luz da leitura global da fundamentação de motivação, assim como das conclusões que limitam o objeto do recurso interposto, que o que o Arguido recorrente pretende é, afinal, não uma impugnação ampla da decisão de facto, sim é, simplesmente, opor a sua convicção e reclamar que por ela este Tribunal Superior opte ou a sufrague, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova e esquecendo que, como se afirma em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (rel. Juiz Conselheiro Pires da Graça, 27maio2010, NUIPC 11/04.7GCABT.C1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jstj), “Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.” Concluindo, nesta parte. Uma vez que não impugna o Arguido recorrente o julgamento da matéria de facto em moldes de via ampla, consequentemente em nada pode este Tribunal debruçar-se sobre a matéria de facto uma vez que o recurso sobre a mesma técnica e formalmente inexiste. O que vale para dizer que, em conformidade com disposto nos art.s 417.º/6a)b);420.º/1a)CPP se rejeita cuidar de tal questão nesta sede recursiva, pois, citando o Juiz Desembargador Paulo Guerra (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, 8fevereiro2012, NUIPC 188/10.2TASRE.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrc) “É hora de exigir rigor processual e argumentativo, aquando da instauração de um recurso, e não um sem número de ideias soltas, sem grande consistência técnico-jurídica, e apoiado em ideias de senso comum, pouco próprias num ato processual deste género.” 2.ª da impugnação restrita da matéria de facto (chamada de “revista alargada”, prevista no art. 410.º/2CPP) Alegação diferente por parte do Arguido recorrente – ainda que colocada de forma transversal e não direta, mas que não deixará de se cuidar, quão mais não seja para que não se conjeturem omissões de pronúncia -, é se a questão antes deve ser tratada em moldes de via restrita de impugnação da matéria de facto, mormente por recurso à questão do n.º 2 do art. 410.ºCPP, na delimitação da sua alínea a) - insuficiência para a decisão da matéria de facto. É que, de facto, o Arguido recorrente aquando da referência aos pontos de factos provados 12), 13), 15) e 16) (pontos 78 a 80, a p. 25 da peça de recurso) (o que retoma na conclusão K) da peça de conclusões corrigidas), assim como quanto aos extensos outros factos que entende deveriam ter sido dados como provados (pontos 86 a 104, a p. 26 a 32 da peça de recurso) (o que retoma nas conclusões M) a O) da peça de conclusões corrigidas), em concreto e em especial quanto à alegada posse de uma arma de fogo por parte do ofendido aquando da contenda, reporta “insuficiência de prova” o que vale por – delineando, pois nada mais é dito - poder estar o Arguido a afirmar a existência (que sempre cumpriria conhecer oficiosamente, diga-se) da situação contida na alínea a) do n.º 2 do art. 410.ºCPP. Não cremos, porém, ser esse o adequado caminho, pois o que antes está em causa mais não é do que uma deficiente - também neste campo – forma de enquadramento da questão por parte do Arguido recorrente. Diremos, assim, que os vícios da matéria de facto que integram as categorias das alíneas do n.º 2 do art. 410.ºCPP, não obstante a diversidade de elementos, revertem todas as inconsistências no domínio da prova, ou mais precisamente, no processo lógico e racional de formação da convicção sobre a prova. São anomalias decisórias ao nível da confeção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. São, como tal, vícios da decisão, não de julgamento, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no art. 374.º/2CPP, concretamente à exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa (ainda que concisa) dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal. “A indagação de tais vícios, por parte do tribunal ad quem, é uma tarefa puramente jurídica, de matéria de direito, já que mais nenhuma outra prova é necessária para que se possa concluir pela eventual existência ou não dos mesmos. Mais não constitui tal tarefa de indagação do que a aplicação da norma adjetiva em causa às circunstâncias concretas da decisão em recurso.” (neste sentido, cfr. o Acórdão desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, NUIPC 3237/15.4TDLSB.L3-5, 21maio2024, relatado pela Juíza Desembargadora Sandra Oliveira Pinto, acessível in www.dgsi.pt/jtrl) A alínea a) do art 410.º/2CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) contém um vício que se traduz numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. É dizer que o Tribunal não dá nem como provado nem como não provado algum facto necessário para justificar a posição tomada. Ou seja, para que ocorra o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada é imperativo que in casu o Tribunal se demita da sua função investigatória ex officio, isto é, que, podendo fazê-lo, se abstenha de procurar conhecer de facto relevante para a determinação da sanção penal que se lhe deva cominar, mostrando-se tal prova possível. Ora, no caso dos autos, em termos de alegação – sem qualquer concretização, note-se – quanto a este vício do art. 410.º/2a) CPP, desde logo se vislumbra uma ostensiva confusão do Arguido recorrente entre “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e “insuficiência da prova para os factos que erradamente”, na tese do Arguido recorrente, “foram dados como provados”. “Se na primeira, se critica o Tribunal por não ter indagado (e depois conhecido) os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir, de acordo com o objeto do processo, retenha-se; na segunda, censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal. Como é evidente, esta segunda questão tem a ver com a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º 3, com a reapreciação da prova e não com a verificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, que hão-de ser inequivocamente visíveis no texto da decisão, sem recurso a quaisquer provas documentadas, como se sabe. (…) Parece clara a confusão: verdadeiramente, o que o recorrente não aceita é a apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal. Ostensivamente, a questão nada tem a ver com o vício do artigo 410.º que curamos, mas com a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º 3, como resulta claro, julgamos, do que temos vindo a expor.”(neste sentido, que vimos seguindo de perto, Sérgio Gonçalves Poças, in Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Revista Julgar, n.º, 10, ano 2010, p. 26ss.) Ora, como supra já se dilucidou, inexiste válida impugnação ampla da matéria de facto para os termos do art. 412.º/3/4/6CPP, sendo que a transviada chamada à colação que o Arguido recorrente faz da questão do art. 410.º/2a) CPP não resulta de qualquer trecho do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, sim resulta de confusão conceptual com aquela intenção - gorada – de invocação de erro de julgamento. No caso sub judice, o que se constata é que o Tribunal perante o objeto dos autos, delimitado pela acusação e pela contestação que o Arguido recorrente apresentou, ateve-se a julgar mediante as provas apresentadas e nos limites do objeto. E essas provas apresentadas foram apreciadas e valoradas na sede própria de julgamento (art. 355.ºCPP). Como tal, nem insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre – o que sempre teria que resultar do texto decisório, e não resulta -, nem vicio de omissão de enumeração de factos provados ocorre. O que não obsta a que, pelo correto prisma a observar, infra este Tribunal Superior venha a conhecer a real questão colocada pelo Arguido recorrente, a qual se funda na alegação dum preenchimento de quadro de violação das regras de apreciação da prova, em especial o princípio da livre apreciação. É esse, de facto, o cerne real – mas não explicado de forma adequada – da pretensão inicial do objeto de recurso do Arguido, como se colhe dos pontos 10 a 12, a p. 7 da peça de recurso, o que retoma na conclusão B) da peça de conclusões corrigidas. 3.ª opera violação das regras de apreciação da prova, consequentemente e em especial o princípio in dubio pro reu, devendo ser dados como não provados e como provados os indicados factos? O Arguido sustenta que (ponto 10 da motivação) ”o princípio da livre apreciação da prova não pode ser confundido com um qualquer cheque em branco passado ao julgador; (ponto 11 da motivação) (…) a liberdade de apreciação da prova encontra-se inerente ao dever de perseguir a chamada «verdade material», sendo que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo; (ponto 12 da motivação) (…) a livre ou íntima convicção não poderá ser "uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável”, “Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (máxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal (…) mas em todos o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros” a qual “(…) existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável" - Direito Processual Penal, vol. 1º,Coimbra, 1974, págs. 202-203.” Nada a discordar do dito. Diga-se. Descendo, em seguimento, ao concreto dos autos, invocando a questão e citando o quanto cita o Arguido, estará o mesmo, em moldes finais, a afirmar que o Tribunal a quo violou o princípio da presunção de inocência/in dubio pro reo na sua interligação com o respeito pelas regras de apreciação da prova e dentre estas as regras da experiência comum e livre convicção. É esta, no fundo, a questão global do recurso do Arguido e que o mesmo pela via enviesada do “recurso efetivo da matéria de facto” quis colocar. Sim, porque o que o Arguido no fundo coloca em causa é a fundamentação a que chegou o Tribunal de 1.ª instância, alegando que nesta sede deveria ter operado uma diferenciada ponderação/convicção: a sua ponderação. Ora, a análise desta questão terá sempre que ser efetuada à luz da especificidade dos autos. De facto, não existindo válida impugnação da matéria de facto, como supra se elucidou, qualquer eventual violação do princípio da presunção de inocência /in dubio pro reo terá que ser vislumbrada com recurso a critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto. É dizer, tal violação tem que resultar evidenciada no texto da decisão recorrida, só por si ou conjugado com as regras da experiência comum. (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, rel. Juiz Desembargador Inácio Monteiro, 4fevereiro2015, NUIPC 42/13.6GCMBR.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrl, onde se pode ler que “ [a] apreciação pelo Tribunal da Relação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto, isto é, deve ser da análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, seguindo o processo decisório, evidenciado pela análise da motivação da convicção, se se chegar à conclusão que o Tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido.)” princípio de presunção de inocência/in dubio pro reo A paráfrase in dubio pro reo não é atualmente um simples brocardo, adágio ou aforismo, mas um princípio fundamental no nosso direito processual probatório, decorrendo da presunção constitucional de inocência até ao trânsito em julgado de decisão condenatória (art. 32.º/2CRP) e consiste em: na dúvida sobre os factos a provar, o Tribunal decide em favor do Arguido. Existindo um laivo de dúvida, por mínimo que seja, sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação delituosa, ninguém pode ser condenado com base nesse facto. Quando existir uma réstia de dúvida, não pode haver punição: isto é, a punição somente pode verificar-se, quando o julgador adquirir ou formar a convicção da certeza da imputação feita ao acusado, com base nas provas produzidas. Mas, para que a dúvida seja relevante para este efeito, “há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida”. (Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I, p. 205) Dai que, como refere o Juiz Desembargador Agostinho Torres (Acórdão desta 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, 1fevereiro2011, NUIPC 153/08.0PEALM.L1-5, acessível in www.dgsi.pt/jtrl) “[o] princípio in dubio pro reo, é um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto (…); traduz o correspetivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos, é um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido”. Este quadro deve estar sempre presente na mente do julgador, mas a este, em cada caso concreto, designadamente quando está em causa a mediação e oralidade da prova, pautado pelo princípio da livre apreciação da prova, cabe-lhe a apreciação crítica que faz dos vários elementos probatórios e em que termos os conjuga, valorando e credibilizando uns em detrimento de outros e mesmo parte duns em detrimento de parte doutros. Tal exame crítico (expressamente imposto com a revisão do CPP operada pela Lei 59/98-25agosto, através do aditamento da expressão “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal” apenas deu formato de lei àquilo que era já o entendimento e a prática diária forense; a discussão passou agora para a abrangência que aquela expressão pode comportar) mais não consiste do que na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o Tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo Tribunal e das razões da sua convicção. Dir-se-á, contudo, que o rigor e a suficiência do exame crítico haverão de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo imprescindível, mas do mesmo modo bastante, que sejam percetíveis as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte. Mas como é evidente, a lei “não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas produzidas e muito menos a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão”( Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro Lourenço Martins, 30janeiro2002, processo 3063/01-3, acessível in www.stj.pt) do mesmo modo que “a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada finte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível”. (Acórdão desta 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, rel. Juiz Desembargador José Adriano, 2outubro2018, NUIPC 36/14.4JBLSB.L1-5, acessível in www.dgsi.pt/jtrl) apreciação da prova Ou seja, o princípio in dubio pro reo acha-se intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (art. 127.ºCPP) do qual constitui faceta, e este último apenas comporta as exceções integradas no princípio da prova legal ou tarifada ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum. Quanto à validade da prova, tal qual à sua recolha, o CPP cuida das mesmas de forma específica entre os arts. 124.º e 190.º frisando ab initio que “constituem objeto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis” (art. 124.º/1CPP). A administração e valoração das provas cabe, em primeira linha, ao Tribunal perante o qual foram produzidas, que apreciará e decidirá sobre a matéria de facto segundo o princípio estabelecido no art. 127.ºCPP: “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente.” Significa isto, no rigor das coisas, que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o Tribunal apreciá-los de acordo com a experiência comum, com o distanciamento, a ponderação e a capacidade crítica, na “liberdade para a objetividade” (cfr. Teresa Beleza, in Revista do Ministério Público, Ano 19º, p. 40; cfr. sobre a génese do princípio, quadro histórico, fundamentos e conteúdo, António Alberto Medina de Seiça, in O Conhecimento Probatório do Co-arguido, Studia Iuridica, Universidade de Coimbra, 42, p. 162ss) Acresce que a convicção sobre a matéria de facto dada como provada terá, em regra, que resultar da prova produzida ou examinada em audiência (art. 355.ºCPP). Tal livre valoração da prova não é uma atividade exclusivamente subjetiva assente numa inexplicável certeza no julgador causada por sentimentos ou impressões sem consistência. Esse dom inexiste. Do que aqui se fala é da viabilidade e aptidão de explicação de acordo com critérios que traduzam racionalidade, lógica e crítica, decorrentes da experiência comum, do saber científico das ciências exatas e das ciências sociais, e também da experiência profissional e pessoal do julgador. Não se descure, contudo, que existe sempre um fator humano envolvido na função jurisdicional, necessariamente a incutir em cada decisão uma vertente subjetiva inerente ao decisor (singular ou coletivo) dado que cada um coopera com o seu saber e experiência para o resultado que a final se produz. E daí a alusão do referido art. 127.ºCPP à “livre convicção” com a significância de que o julgador, obedecendo a estas regras, não aprecia a prova de forma arbitrária ou com uma valoração puramente subjetiva, pois os factos dados como provados e não provados, com base neste princípio, devem ter fundamentação suficiente com apoio na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção, como um dos requisitos da sentença, exigidos pelo art. 374.º/2 CPP. É dizer, importa o mesmo a sujeição a critérios lógicos e objetivos que determinam uma convicção racional, concreta e transmissível, pelo que o decisor tem que explicar as razões da sua decisão, e estas têm que ser sindicáveis pelo destinatário e, nesta sede, pelo Tribunal de recurso. Como linha mestra, seguem-se as palavras do Juiz Conselheiro Armando Leandro (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 26janeiro2000, processo 197/99-3, acessível in www.stj.pt) quando nos diz que “[a] fundamentação da decisão da matéria de facto, imposta pelo art. 374.º, n.º 2, do CPP, assume função intraprocessual e também extraprocessual muito relevante, ligada ao exercício do direito de recurso - que torna necessária a apreensão do essencial do processo lógico-formal do julgador que determinou a decisão recorrível - e à aceitação das decisões judiciais pela comunidade, a pressupor a compreensibilidade das mesmas, fonte indispensável do seu prestígio e legitimação. O dever de fundamentação deve, pois, ser cuidadosamente cumprido em harmonia com essas importantes funções, ainda que equilibradamente, por forma compatível com a natureza do princípio da livre apreciação da prova - art. 127.º, do CPP -, que pressupõe uma convicção não totalmente explicável, mas que não se confunde nunca com apreciação arbitrária da prova e não reconduzível a um mera impressão ou convencimento subjetivos do julgador. No fundo, as já referidas razões “extraídas do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais” que Gomes Canotilho e Vital Moreira reportam. E.R. Vadill (La actividadd probatória en el processo penal español in La prueba en em processo penal, Centro de Estúdios Judiciales – Col. Cursos, vol 12, Ministerio de Justicia, Madrid, 1993, p. 108.) diz-nos que “Un juez profesional (…) no puede basar su sentencia en una pura e íntima conviccíon, en uma especie de corazonada, no exteriorizable ni controlable en otras instancias.” Por isso mesmo, dir-se-á que na vida judiciária há a verdade dos Arguidos e a verdade dos Ofendidos, que filtram a sua intervenção nos factos através da subjetividade inerente à qualidade humana. Há, também, a verdade das testemunhas que, assistindo, sem intervenção direta, aos factos, não se encontram menos imunes à subjetividade e afeições do que os atores principais, quantas vezes de forma inconsciente. Há, por seu turno, a verdade do julgador, que deflui das anteriores e da sua pessoal perceção, contínua e sólida visão do sentido de regra de experiência de vida, a designada verdade processual, a qual é, não raras vezes, o máximo denominador comum e de tempero das anteriores, única certeza obtida, quando a inverosimilhança destas não arreda do acolhimento do Tribunal, na sua busca incessante da verdade material histórica, que surge como a desejada perfeição no julgamento da matéria de facto. Para tal desiderato, na audiência, o Tribunal é confrontado com um concreto caso, delimitado pelo princípio do acusatório, e com vista à apreciação do mesmo são apresentados diversos meios de prova que, pela sua natureza, serão apreciados de formas distintas. Vários critérios, operam neste campo. O do momento da obtenção distingue entre a prova pré-constituída (recolhida no processo em momento anterior ao julgamento) e aquela cuja produção ocorre no decurso da sede de audiência. Na primeira tem sede a “prova científica”, produzida a partir de vestígios recolhidos e que traduz, sobre os mesmos, uma resposta à luz dos critérios científicos vigentes. Igualmente ali se estabelece a “prova documental”, cuja valoração pode estar, ou não, condicionada de acordo com a natureza e suporte do documento (escrito, áudio, vídeo, físico ou virtual/digital). Por último, aqui também se enquadrará a “prova” decorrente dos objetos apreendidos e juntos ao processo, estejam eles examinados ou não. Ao nível da prova produzida em audiência, a mais varela das provas é a “prova testemunhal”, pelo pendor de subjetividade que a sua ponderação acarreta, à qual se junta a apreciação da “prova por declarações” dos sujeitos processuais - Arguidos, Assistentes e Demandantes. Num outro critério, o de proveniência, distingue-se a prova entre prova pessoal (a que emerge da atividade de uma pessoa - declarações e depoimentos), prova real (a que emana da observação ou da própria existência nos autos da coisa em si - documentos ou instrumentos utilizados no crime) - e prova pericial (advém da perceção e apreciação dos factos por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos). Por seu turno, os meios de prova não subtraídos à livre apreciação do julgador são a prova testemunhal (inquirição de pessoa sobre factos de que possua conhecimento direto); as declarações do arguido, do assistente e das partes civis; a prova por acareação; a prova por reconhecimento; a reconstituição do facto; e a prova documental (em geral). Já os meios de prova subtraídos à livre apreciação do julgador são a confissão integral e sem reservas no julgamento; o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados; a prova pericial (esta ainda que com exceção). E daí que se apontem diferentes níveis ao juízo sobre a valoração da prova. A inicial linha mestra de valoração, e também mais reveladora, resulta da credibilidade conferida ao meio de prova em causa. O que aquela concreta testemunha ou declarante disse não é per se bastante para lhe conferir credibilidade. De facto, a lei adjetiva não prevê qualquer regra de corroboração necessária e, exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento do julgado depende de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante. É dizer, para esta surgir essencial é a imediação e o que da mesma resulta através da forma como se sucedem questões e respostas, os tempos e a forma destas, as reações de quem responde, a consistência do dito, as explicações que emergem para discrepâncias, omissões ou certezas, tudo a imprimir no decisor uma convicção que nem sempre assume uma fácil explicação racional. Num segundo momento, cabe ao julgador valorar o resultado da produção desse meio de prova. Aqui, através dum sempre necessariamente correto raciocínio, têm intervenção as deduções, inferências, aplicação das regras da lógica ou dos princípios da experiência, de conhecimentos científicos, das ciências exatas ou sociais, e quais os resultados que essa análise produz, tudo se podendo reduzir à expressão “regras da experiência”. Importa ainda anotar que a objetividade da verdade material dos factos que aqui importa nunca é plena. É sim a objetivamente alcançável. Na expressão de Figueiredo Dias, “a convicção da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável” (in Curso de Processo Penal, II, Verbo, Lisboa, 1993. p. 111) (sobre a questão de verdade material objetivamente pretendida, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, rel. Juiz Desembargador Júlio Pinto, 6dezembro2021, NUIPC 152/21.6PBBGC.G1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg onde se faz completa referência à explicitação de Castanheira Neves in Sumários de processo criminal, 1967 – 1968 edição policopiada, 1968) Distinguindo, diz-nos o Juiz Conselheiro Costa Pereira (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 18janeiro2001, proc. 3105/00-5, acessível in www.stj.pt) que “[o] princípio contido no art. 127.º, do CPP, estabelece três tipos de critérios para a apreciação da prova com características e natureza completamente diferentes: haverá uma apreciação da prova inteiramente objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, já de carácter eminentemente subjectiva e que resulta da livre convicção do julgador. III — É certo que tudo isto se poderá conjugar, e também é certo que a prova assente da livre convicção poderá ser motivada e fundamentada, mas neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão. IV — Seja como for, a motivação probatória compete sempre aos julgadores e não pode ser posta em confrontação com as convicções pessoais do recorrente. Aqui chegados, cientes da forma como tem que laborar o Tribunal em moldes de apreciação da prova, atendendo às provas que em concreto foram produzidas na audiência realizada no Tribunal a quo, considerando o modo como o mesmo fundamentou a prova em sede decisória e cientes que o que o Arguido pretende é impor uma decisão diversa pela via da criação da dúvida sobre a prática dos factos, invocando para tanto e como razão final o desrespeito pelo princípio in dubio pro reo, há que relembrar, como já supra se delineou, que a apreciação por este Tribunal Superior sobre a eventual violação do dito princípio se encontra dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto, designadamente erro notório na apreciação da prova, i.e., deve ser da análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, seguindo o processo decisório, evidenciado pela análise da motivação da convicção, se se chegar à conclusão que o Tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o Arguido. Tal não significa que se pode incluir no erro notório na apreciação da prova a eventual discordância do recorrente quanto ao modo como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si, em audiência, em conformidade com o disposto no art. 127.º do CPP. (sobre a distinção, de forma incisiva diz-nos o Juiz Conselheiro Raul Borges, no já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 8julho2020, NUIPC 142/15.8PKSNT.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg, que “[e]nquanto a valoração da prova, que compete aos julgadores, e só a eles, obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova.(…) Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialéctico das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos. (…) Não se pode confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. Enquanto esta obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova”. (igualmente neste sentido, cfr. Recursos Penais, Manuel Simas-Santos e Manuel Leal-Henriques, 9.º ed., p. 81) . Uma coisa é o grau de exigência que se coloca no critério de aferição, outra coisa é a inclusão. E não se confundem. Delimitando. O Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou as razões da sua convicção, de forma lógica e global, com o mínimo de consciência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, conjugado com as demais provas, alicerçou uma convicção adequada e suficiente sobre a verdade dos factos? É este, então, o caminho a seguir. Lendo a decisão recorrida, à saciedade se constata que o Tribunal a quo separou a análise dos diferentes conjuntos de factos. Por seu turno, analisando a explanação de convicção que a sentença expressa a conclusão imediata é a de que a mesma expôs de modo claro o raciocínio que seguiu e analisou todos os elementos de prova, fazendo deles uma apreciação crítica, racional, global e conjugada, sequencial e sem hiatos de vazio, sem recorrer, nessa apreciação, ao mínimo uso de qualquer arbítrio, capricho ou preconceito. Vejamos, então, bloco a bloco – de acordo com a exposição do Arguido -, se operou alguma insuficiência nessa apreciação, em moldes violadores das regras de apreciação da prova. Bloco dos factos provados: 3), 4), 7), 8) e 9) (pontos 18 a 59, a p. 11 a 20 da peça de recurso) (o que retoma nas conclusões E) e F) da peça de conclusões corrigidas). Como já se reportou estes descrevem a atuação de desferimento, por parte do Arguido, no corpo do ofendido de 7 (sete) golpes com uma descrita navalha, a razão de cessação de tal atuação, o conhecimento do Arguido sobre a aptidão da sua atuação e intencionalidade concretizada da mesma. A pretensão do Arguido funda-se, no essencial em querer afirmar que à luz das suas declarações – em que admite possuir uma navalha, mas não se recorda do seu uso, muito menos intenção de utilização, do mesmo modo que aceita estar hostil, desde logo pelo seu comportamento barulhento e agressivo -, não podia o Tribunal concluir nos moldes em que concluiu, muito embora só o ofendido apresente lesões que com o uso da navalha são compatíveis. Não está sindicado que o Arguido, o ofendido e a testemunha BB estiveram no local dos factos, os quais ocorreram de madrugada, no interior dum prédio. No mais, é certo que existe, como o Tribunal explicita, uma insanável oposição entre o bloco de depoimento do ofendido e testemunha BB - no pela mesma descrito - e as declarações do Arguido. Na essência, como expressa a fundamentação de facto, o Arguido diz-se ameaçado pelo tom, agressivo, empurrão e apontar de revólver por parte do ofendido, quadro mediante o qual uma vez que tinha uma faca no bolso da mesma uso fez, com intenção de intimidar o ofendido e lhe retirar o revólver, ato em que se envolvem fisicamente até que a testemunha BB com um empurrão põe fim à luta. No mais, ninguém sustenta esta versão, o que não invalida a mesma, diga-se, pois desde logo a presunção de inocência funcionaria, obviamente, a favor do Arguido. Só que, como relata a fundamentação da sentença, a testemunha BB não viu qualquer objeto – leia-se o dito revólver - nas mãos do ofendido, depoimento este com foros de credibilidade. Credibilidade esta que não é afetada pelo facto de a testemunha igualmente não ter visto a navalha aquando do momento preciso dos factos – navalha, repete-se, que o Arguido reconhece ser sua e possuir aquando dos factos - e só ter dado conta da existência da mesma quando agentes policiais, que de imediato chamados, a encontraram no local. Pelo contrário, é reforçada uma vez que a normalidade – como descrita foi pela testemunha – levaria a que tendo visto a navalha - certamente também, com reforçado medo, se tivesse visto um qualquer revólver - talvez não tivesse encetado intervenção. Por seu turno, o ofendido não só negou tal posse, como é certo que agredido pelo Arguido – com 7 facadas – envolvido fisicamente com o mesmo e mesmo quando por debaixo do Arguido estava – assim o era no momento em que a testemunha BB intercedeu – não fez uso do dito revólver. Ora, operando sindicância por parte do Tribunal a quo sobre a inverosimilhança da atitude assaz passiva (mas que nada tem a ver com a especulativa exigência de preparação para um confronto, como o Arguido afirma na sua peça de recurso – ponto 37) que o ofendido invoca ter tido quando abordou o Arguido – quadro em que o Tribunal a quo antes aceitou a versão do Arguido, justificando o porquê de a ter por mais credível -, certo é que é essa mesma sindicância que reforça a veracidade na questão em apreço. De facto, mesmo que se admita que nervoso e agastado estivesse o ofendido, certo é que o mesmo - na versão do Arguido – munido dum revólver que antes lhe apontara, em momento em que usava tom agressivo e até já empurrão efetuara, mesmo quando pluralmente esfaqueado e acabando por debaixo do Arguido no decurso da refrega, nunca do mesmo fez uso. Dir-se-á, pois, que haveria aqui uma dupla sorte: a do Arguido não ter sido baleado; a do ofendido não ter sido atingido em nenhum órgão vital no decurso do reiterado esfaqueamento. Mas igualmente se dirá que o Tribunal a quo descreve e fundamenta, passo a passo, e à luz da prova produzida em audiência o porquê de firmar a convicção no sentido que o fez, não se vislumbrando razão válida que impossibilite tal sentido. Ou seja, perante este quadro, o Tribunal a quo, ciente das divergências apontadas, ponderou outras circunstâncias com vista à formação da sua convicção, e referiu-as. Não se ficou pela base apontada pelo Arguido, o qual tende a expressar que para oferecer credibilidade às declarações do ofendido terá deixado o Tribunal a quo de oferecer credibilidade ao que por si foi dito. Não foi essa ligeireza – própria das convicções pessoais e não de quem tem equidistância na apreciação dos depoimentos e documentos, da sua veracidade, na sua singularidade e contexto - cometida pelo Tribunal. Pelo contrário. De forma fluente, concisa e encadeada, o Tribunal descreveu o caminho que encetou para chegar à conclusão fundamentada a que chegou. Basta ler a convicção para tal se perceber, em especial a lógica ali demonstrada. Desde logo o Tribunal bem deu a entender que exercia a sua função de julgar, o que pressupõe optar, escolher e decidir e, no caso dos autos, fê-lo, escolhendo uma das versões apresentadas na sede de audiência e julgamento. Esta opção, porém, não foi feita de forma caprichosa, tendenciosa ou arbitrária. Pelo contrário, foi feita de forma transparente, mostrando-se perfeitamente descrita e objetivada na fundamentação e exame crítico, uma vez que aí estão expressamente expostos os elementos de facto que fundamentam a decisão, o processo lógico que lhe subjaz, optando o Tribunal por uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, suportada pelas provas invocadas na fundamentação da sentença, não se detetando nenhum erro patente de julgamento ou a utilização de proibida prova. E dai, que – como infra este Tribunal ad quem explicitará em cumprimento de fundamentação – se tenha a decisão por inatacável uma vez que a mesma está proferida de acordo com as regras da livre convicção (art. 127.ºCPP). Retomando a delimitação do texto da fundamentação, vislumbra-se diretamente que o Tribunal explicita as razões de se vincular à perceção decorrente da imediação, utilizando-a ao nível da valoração da credibilidade da prova. E dai que explane as razões de conferir credibilidade à parte do depoimento do ofendido, do mesmo modo que o faz com relação ao depoimento do Arguido, o que faz expressando-o no texto por recurso ao confronto com a demais prova produzida e a credibilidade que à mesma foi conferida. Ou seja, no contexto de confronto entre as declarações prestadas, sempre relativas e sempre pejadas de muitos interesses próprios de certos intervenientes – sejam arguidos, ofendidos/assistentes e até certas testemunhas -, como costume é nestes específicos casos de agressões – sempre em momento de agastamento e quadro desavindo -, soube o Tribunal a quo separar e bem explicar a essência do supérfluo no sentido da necessidade de obtenção da certeza judiciária, ponderando cuidadosamente a sua opção. E este quadro distintivo e valorativo foi essencial ao longo de toda a fundamentação e exame crítico que o Tribunal apresenta. Uma nota particular final, nesta questão. Não se vislumbra qual seja o interesse, muito menos a base jurídica, inerente à pretensão de valoração de coincidência entre o vertido pelo Arguido no aditamento ao auto de notícia, reportado nos pontos 44 e 45 da motivação, uma vez que foi produzida prova expressa e diretamente valorável em sede de audiência de julgamento, entre a qual o depoimento do Arguido em que admite estar na posse da navalha e desta ter feito uso, do mesmo modo que reporta que o ofendido era possuidor dum revólver. Bloco dos factos provados: 3), 5) e 6) (pontos 60 a 66, a p. 20 a 23 da peça de recurso) (o que retoma nas conclusões G) e H) da peça de conclusões corrigidas). Como já se reportou estes descrevem a atuação de desferimento, por parte do Arguido, no corpo do ofendido de 7 (sete) golpes com uma descrita navalha, e descrevem as consequências da mesma. Nesta parte o Arguido sindica os factos provados, uma vez que entende existir uma contradição entre provas – documental e pericial -, em concreto o auto de exame direto – fls. 74 - dos autos - e o relatório de episódio de urgência - fls. 51 –. Sobre tal matéria, fundamentou-se a sentença – de forma avisada – reportando a inexistência de qualquer incongruência entre o exame pericial de fls. 74 - onde se descrevem 7 cicatrizes provocadas pela agressão do Arguido -, e o relatório de episódio de urgência de fls. 51 - onde se reportam 4 portas de entrada, uma vez que a descrição em causa, de índole cirúrgica, se reporta à intervenção a que o ofendido foi sujeito - laparoscopia exploradora, através da qual é introduzido no corpo do paciente uma câmara e pinças, através de pequenos orifícios, para aferir de eventuais lesões internas que o mesmo possa ter -, e não às lesões provocadas pela atuação do Arguido. Ou seja, faz o Tribunal a quo uma expressa destrinça entre as “facadas” de deram origem a necessidade de intervenção laparoscópica, logo com exploração interna – através das ditas portas de entrada -, e que foram 4, das cicatrizes apresentadas em virtude das “facadas”, num total de 7. Nenhuma contradição existe, pois, as demais 3 “facadas” somente geraram cicatrizes, mas não demandaram intervenção laparoscópica. Diga-se, porém, algo mais: existisse efetiva incongruência, não seria de descurar a força valorativa da prova documental, quando no confronto com a prova pericial, nos moldes já supra enunciados. Por último, já com relação ao ponto 65 da motivação, somente se recordará ao Arguido a sorte supra referida, uma vez que em momento algum da sentença se reporta que o efetivo uso da navalha tivesse gerado lesões que fizessem perigar a vida do ofendido. Fosse essa a situação e dum crime de ofensa à integridade física, mesmo que qualificado, não se etária a falar. Bloco dos factos provados: 10) e 11) (pontos 67 a 77, a p. 23 a 25 da peça de recurso) (o que retoma nas conclusões I) e J) da peça de conclusões corrigidas); Como já dito, estes referem, quanto ao uso da navalha, o conhecimento do Arguido sobre inviabilidade de transporte e uso, bem como a aptidão da sua atuação e intencionalidade concretizada com o uso da mesma. Se bem se percebe, tal a especificidade da questão – uma vez que o Arguido admite a posse da navalha e até admite o seu uso, que diz ter por não intencional – nesta vertente, o Arguido pretende, através do quanto foram as suas declarações informar que a razão da posse da navalha, aquando dos factos, se prendeu com um puro esquecimento: estivera a consumir estupefacientes, momento em que fez uso da navalha, sendo que tendo saído de casa para o local dos factos – onde pretendia ir ao encontro da arrolada, mas não ouvida e, como tal, potencial confirmante, DD – só no percurso se apercebeu da sua posse e até com a mesma brincou. Desde já se diga que não se avista como é que o alegado esquecimento inicial da posse da navalha infirme a vontade de manter a posse após o momento em que o Arguido “re”descobriu que a navalha o acompanhava. É que foi após essa “re”descoberta que o Arguido diz que “brincou” com a navalha, temporalidade à qual se seguiu o uso da navalha como arma de agressão. E daí que, como bem expressa o Tribunal a quo é em face das próprias declarações do Arguido que se sabe que o mesmo “não tinha qualquer motivo para a ter levado consigo para a via pública, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Mais se chama a atenção para o facto de quando primeiro prestou declarações, o arguido referiu que tinha utilizado a faca, em casa, para proceder ao corte de produto estupefaciente e que depois se esqueceu que a tinha, mas num segundo momento já disse que vinha a brincar com a faca no bolso no percurso para casa da sua amiga, pelo que, tendo já procedido ao consumo de estupefacientes em casa, nenhum outro motivo justificava a posse daquele objecto na via pública, o que o arguido bem sabia.” Nenhuma contradição existe, nenhuma ausência de explanação de processo de convicção existe, nenhuma falta de fundamentação opera e, muito menos, opera inexistência de meio de prova que permita ao Tribunal fundar a convicção nos moldes que firmou. Bloco dos factos provados: 12), 13), 15) e 16) (pontos 78 a 80, a p. 25 da peça de recurso) (o que retoma na conclusão K) da peça de conclusões corrigidas); O iniciais traduzem a liberdade atuacional e a consciência criminal inerente a toda a antecedente descrita conduta, sendo que os finais, reportando a remissão para a matéria cível, consolidam os danos e os custos da inerente atuação hospitalar Dir-se-á, neste campo, em sintonia com a própria alegação de economia processual reportada pelo Arguido, que estes factos estão umbilicalmente ligados os factos provados 3) a 11). Sendo pretensão que os ditos factos provados 3) a 11) fossem dados como não provados – com a fundamentação que o Arguido supra aduziu - inexistindo razão para tanto como enunciado está, as razões aí anteriormente firmadas servem aqui para igualmente nesta parte não conceder razão ao arguido. Tal não obsta a que se reporte que da sentença consta expressa afirmação de fundamentação da razão de convicção, fundada nas regras de experiência e senso comum, através do trecho afirmativo de “que é manifesto que, actuando da forma descrita, o arguido o fez livre, voluntária e conscientemente, com perfeito conhecimento do carácter proibido da conduta praticada, não podendo ignorar que usando da sua força física no ofendido, através de uma faca, o molestava fisicamente, o que quis. Também não restam dúvidas que o arguido conhecia as características da faca que transportava e que não tinha qualquer motivo para a ter levado consigo para a via pública, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.” Já quanto ao facto 16), inerente ao facto 3), resulta inequívoca a prova de prestação de cuidados médicos ao ofendido. Quase por último, o facto não provados: E. (pontos 81 a 85, a p. 25 a 26 da peça de recurso) (o que retoma na conclusão L) da peça de conclusões corrigidas) o qual reporta a desnecessidade de acompanhamento médico e terapêutica medicamentosa regular à patologia psiquiátrica por parte do Arguido. Pretende o Arguido – que não coloca em causa a sua imputabilidade, nem sindica a dosimetria da pena – que se considere provado facto invocado em sede de contestação e por si referenciado nas declarações prestadas em audiência, o qual se traduziria em que “padece de patologia do foro psiquiátrico que impõe a necessidade de acompanhamento médico e terapêutica medicamentosa regular.” Para tanto baseia-se no por si afirmado e no teor do relatório que dá azo ao facto provado 24, reportando que aí é dito “que é acompanhado em consulta de psiquiatria no estabelecimento prisional e faz terapêutica ansiolítica, antidepressiva e anti psicótica”. Dir-se-á, antes de mais, que inexiste qualquer contradição entre os ditos factos. O provado reporta que vem ocorrendo acompanhamento em sede prisional. O não provado reporta a inexistência de padecimento de patologia do foro psiquiátrico a impor regular necessidade de acompanhamento e terapêutica medicamentosa. Tratam-se de realidades diferentes, podendo ler-se a primeira – a provada - como um apoio – que aliás vem a ser correspondido na imposição inerente ao seu problema de adições pela via do PIRS em sede de execução da pena substitutiva não privativa de liberdade firmada - e a segunda – a não provada – como uma necessidade imperiosa. A tudo acresce, o que é olvidado pelo Arguido, que para que fosse possível dar como provado o pretendido facto, necessária era a produção duma especifica prova, de índole pericial, que atestasse o padecimento e a sua necessidade de cuidados no campo da saúde mental, o que não opera. Dir-se-á, ainda, em remate final, que tal não se confunde com a pretensão de avaliação clinico-psiquiátrica reportada, do mesmo modo que inexistindo razão para a invocação de transmissão de doença, e inerente tratamento, nos moldes que o Arguido faz e relação ao seu irmão. Bem andou, consequentemente, o Tribunal a quo, uma vez que inexiste qualquer prova bastante que permitisse trazer o alegado – em contestação – facto E. aos factos provados, e daí a razão da sua não prova. Por último, os de demais – extensos - factos que o Arguido entende deveriam ter sido dados como provados reportam à conceção de factos que o Arguido, na sua apreciação e convicção, entende que deveriam assim constar na sentença sob recurso. Ora, pelas razões supra expostas tais factos não correspondem à verdade processualmente obtida em sede de julgamento, pelo que a sua subsequente transposição para os factos provados não pode operar, desde logo sob pena de manifestas contradições. Tratam-se, isso sim, de meras pretensões subjetivas do Arguido, próprias da interessada leitura dos factos que o mesmo faz e que até cria, conjetura e molda no intuito de os fazer corresponder à sucessivas alegações de institutos de direito que acaba por formular em sede recursiva e que infra se analisarão. Concluindo. Toda a pretensão do Arguido funda-se, no essencial em querer afirmar que à luz das suas declarações não podia o Tribunal concluir nos moldes em que concluiu. Teria o Tribunal a quo fazer fé no quanto o mesmo declarou ou negou, e não acreditar no teor do depor do ofendido, nem na parte, quando mais no pleno do mesmo, mesmo quando associado ao testemunho do BB. Contudo - e ao contrário do que o Arguido quer fazer crer através da sua subjetiva apreciação, em moldes de justiça em causa própria, assim demonstrando que se fosse ele o julgador a prova seria não a de apreciação isenta, sim a de valoração tendenciosa - o Tribunal não errou ao valorar o resultante das declarações globais. Os factos que o Arguido quer por em causa – todos, em bom rigor – como bem resulta do texto da fundamentação da sentença, fundaram-se numa concreta e bem delineada apreciação da prova – as declarações do Arguido e do ofendido e o quanto o confronto das mesmas apresentou -, em pleno cumprimento das regras de experiência comum, sem violação de regras de prova e com respeito pela imediação associada ao seu conteúdo, concretamente analisado, e que – quando foi caso – foi concatenado com documentação e com o depoimento de testemunhas. O mesmo vale para a razão de não prova dos factos pretendidos pelo Arguido. É isto que de forma linear resulta do quanto o Tribunal, na sede de fundamentação e exame crítico revela. O Tribunal, consignou que logrou aceder à prova positiva dos factos imputados ao arguido tal qual os constantes da acusação, através do encaixe em todas as peças que, não se socorrendo, nem o podendo fazer, de situações de presunções ou situações de dúvida sobre factos, mas antes através do concreto e efetivo encaixe de situações que resultam dos elementares raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, elaborados a partir de “indícios” ou factos indiretamente relevantes para alcançar a verificação dos “factos juridicamente relevantes”. A esse patamar chegou o Tribunal a quo. Por isso, tal como refere Karl Engisch (in Introdução ao pensamento Jurídico, p. 87), “como a maioria das ações puníveis, no momento do processo, estas apenas são apreensíveis pelo tribunal através de diferentes manifestações (ou efeitos) posteriores. Daí que são principalmente as regras da experiência e as conclusões logicamente muito complexas que tornam possível a verificação dos factos” Ou seja, o Tribunal, individualmente e em conjunto, atendeu aos meios de prova produzidos em audiência de julgamento e concluiu que, à luz das regas da experiência, devia dar os factos por provados e por não provados nos moldes que o fez. Tudo o Arguido faz, porém, sem que tal seja apto – desde logo pela forma apresentada - à finalidade por si procurada, muito mais quando desprovido está de razão, pois perante a fundamentação da sentença este modo de discordância de nada vale, uma vez se impõe o estatuído no art. 127.ºCPP, tendo sido usado e aplicado tal princípio com efetiva lógica e sustentação, em moldes tais que se pode afirmar que adequada e justificadamente se impõe que se sobreponha às interessadas, infundadas e subjetivas convicções pessoais reveladas pelo Arguido. Lida a decisão em apreço, conforme decorre claramente do texto da motivação, temos para nós que o julgador que presidiu à audiência no Tribunal a quo, no exercício do poder e dever de julgar segundo a sua livre apreciação assentou a decisão numa fundamentação muito consistente e pormenorizada, não deixando azo a dúvidas e afastando o arbítrio. É dizer, no essencial não perpassou pelo espírito do julgador a mínima dúvida: o Tribunal ficou antes seguro na sua convicção, que explanou, explanação essa donde decorre que estabeleceu os factos em harmonia com o disposto no art. 127.ºCPP, tudo a forçar a conclusão de que a decisão sob recurso não patenteia a alegada violação O Arguido não concorda, é certo. Contudo, como já várias vezes foi dito em Acórdãos desta 5.ª Secção “só sabemos que o recorrente, se fosse o julgador, teria fixado os factos de modo diferente”. Só que tal discordância mais não é do que a inadmissível “inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.” (Acórdão do Tribunal Constitucional, 198/2004, rel. Juiz Conselheiro Moura Ramos, 24março22004, acessível in www.tribunalconstitucional.pt) E daí que fazendo jus ao que escreve Souto Moura (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 15julho2008, processo 08P418-5.ª, acessível in www.dgsi.pt/jstj) “I - Uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se faz da prova e outra é detetarem-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório. II - Por outro lado também não pode esquecer-se tudo aquilo que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite: basta pensar no que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir. III - O trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizados em 1.ª instância, e da fundamentação feita na decisão por via deles, traduz-se fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado como provado o que se deu por provado – cf. Acs. de 15-02-2005 e de 10-10-2007, Procs. n.ºs 4324/04 - 5.ª e 3742/07 - 3.ª, respectivamente.” Inexiste, neste campo, fundamento para alterar o bem decidido pela 1.ª instância. 4.ª qualificação jurídica dos factos: A) estão preenchidos os elementos típicos do crime de detenção de arma proibida? Seguindo a ordem de apresentação que o Arguido faz no seu recurso, ao nível dos pontos 109 a 118 da motivação, retomado nas conclusões corrigidas Q) e R), comecemos pelo crime de detenção de arma proibida. Condiciona o Arguido a sua alegação à questão do preenchimento dos elementos do tipo na virtualidade de serem dados como provados os factos nos moldes que o mesmo apresenta. É isso o quanto resulta expresso da introdução à questão, como se alcança expressamente dos pontos 106 e 108 onde expressa que “Crê o Arguido/Recorrente, contudo, que a subsunção jurídica a operar se impõe diversa da alcançada pelo Tribunal “a quo”; Pois que, (h)averá que atender à consideração dos factos (como provados e não provados) nos precisos termos antes alegados; E ponderá-la no enquadramento que o Tribunal “a quo” afastou.”, delimitação de intenção de apreciação que continua a afirmar nos pontos 109, 110 e 114 onde nos diz que “Dando por provada a justificação apresentada pelo Arguido para a circunstância de fazer transportar consigo, na data dos factos, a navalha descrita (que utilizava no âmbito do consumo de produto estupefaciente). – como se impõe; Entendemos, diversamente daquela que foi a conclusão alcançada pelo Tribunal “a quo”, que necessariamente se terá de concluir pelo não preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreço; Voltando ao caso em apreço, é evidente que ficou demonstrado que o Arguido mantinha na sua posse a navalha descrita, para efeitos de preparação e consumo de produto estupefaciente, não a tendo transportado, no dia dos factos, com qualquer propósito de agressão, mas sim porque a tinha na sua posse quando saiu da residência (fruto do consumo que havia realizado no momento)” E dúvidas não existem que assim delimitado o é, pois a conclusão corrigida R) igual argumentação repete. De toda a pretensão recorrente supra, percebe-se que a finalidade da mesma só foi, e sempre foi, a de perante ganho da tese de erro de julgamento se alterarem os factos provados, seguindo-se o disposto no art. 431.º CPP. Só que o Arguido não encetou tal técnico caminho o que não permitiu a este Tribunal ad quem qualquer apreciação, quão mais modificação factual à luz de fatores externo à sentença. No mais, por último, analisada a questão de direito de reporte ao cumprimento das regras de valoração de prova, não se encontrou qualquer razão para discordar do Tribunal a quo. Tudo para dizer que os factos em apreço – provados e não provados - são processualmente imutáveis, restando – em respeito pela delimitação de objeto do recurso - uma breve nota sobre o seu enquadramento jurídico, o que cumpre fazer independentemente de ser certo que a pretensão do Arguido parte sempre do pressuposto da queda dos factos provados e da eleição dos factos não provados. O que poderá determinar o retirar de objeto ao recurso nesta parte. Não tendo o Arguido logrado ganho neste seu objeto de recurso, resta dizer que a subsunção dos factos ao direito feita na sentença de 1.ª instância é linear. Merece a nossa inteira adesão o raciocínio exposto pelo Tribunal a quo e, como tal, quase seria desnecessário – por nada haver a acrescentar – aqui mais dizer. Somente relembrando ao Arguido a norma do art. 86.º/1d)-RJAM, desta resulta que “quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, com pena de” (…) Por seu turno resulta do art. 2.º/1m)-RJAM que “«Arma branca» todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões.”. Já no art. 3.º/2ab)-RJAM diz-se que “as armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse, como armas de classe A.” Por fim, o art 4.º/1-RJAM proíbe, para além do mais, a detenção de armas da classe A. Deu-se como provado na sentença do Tribunal a quo o Arguido transportava - tinha na sua posse – a descrita navalha sem que tivesse justificado a sua posse, fora da sua casa. E fê-lo, após expressamente explicitar que antecedente uso o Arguido dera à navalha, bem como explanando a admissão dum inicial momento de distração sobre a posse, momento esse que passou a concreto estado de consciência de posse, até seguido de ato de “brincadeira” e posteriormente de objeto de agressão. Ora, se por um lado não se têm como provados os factos nos moldes propugnados pelo Arguido recorrente, por outro lado, mesmo que os mesmos se provassem ainda assim não se mostrava excluída a não justificação de posse aquando da agressão, momento esse que é o importante para a questão em apreço. Por isso mesmo, ainda que se recorresse ao citado, pelo Arguido, Acórdão da Relação de Coimbra (rel. Juiz Desembargador Paulo Valério, 30junho2010, NUIPC 1229/08.9GBAGD.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrc) Coimbra, na parte em que no mesmo diz que “ou a posse de tal arma tem uma aplicação e justificação concreta, e então não há crime, ou o seu portador não consegue justificar a posse, e assim há crime” certo é que já desde algum tempo antes do momento da agressão o Arguido não detinha a navalha para os ditos fins de consumo, sim deteria por esquecimento no bolso, depois por conhecimento, para brincar e, por fim, para agredir, sendo que nenhuma circunstância destas justifica a sua posse. Como tal, independentemente de prejudicada estar a análise e conhecimento da questão, sempre se dirá oficiosamente que a condenação do recorrente pela prática do crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo art. 3.º/2ab);86.º/1d)-RJAM (Lei 5/2006-23fevereiro) deve, pois, manter-se, nada havendo, também nesta parte, a alterar na decisão recorrida. B) estão preenchidos os elementos típicos do crime de ofensa à integridade física qualificada? Dispõe o art. 143.ºCP que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Dispõe o art. 145.º/1a) CP que “se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com pena de prisão até 4 anos no caso do art. 143.ºCP”, sendo que “são suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias” previstas no art. 132.º/2CP. Por seu turno, dentre as alíneas em causa, e com interesse para os autos, diz o art. 132.º/2h;i) CP que é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: h) praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum; i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso. Este tipo comporta como elementos constitutivos da ação típica, objetivamente, a ação adequada à produção de um resultado que se consubstancie na ofensa do corpo ou na saúde de outrem. Acrescenta-se ao tipo base, pela via qualificativa da alínea h), a exigência de participação no facto de pelo menos três agentes em coautoria, participação essa da qual resulte em concreto uma especial censurabilidade ou perversidade dos agentes na atuação, ou a utilização de meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é suscetível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excecional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente, estando, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão; ou que se traduza na prática de crime de perigo, tal qual como previsto e classificado na sistemática do CP nos art.s 272.º a 286.º, e especialmente, o incêndio, a explosão, e outras condutas especialmente perigosas, ou danos em instalações, ou assim qualificado em legislação especial. Já pela via da alínea i) acrescenta-se ao tipo base a utilização de veneno ou qualquer outro meio insidioso, o qual é todo aquele que assume um carácter enganador, dissimulado, oculto, sub-reptício, ou seja, meio traiçoeiro que elimina qualquer possibilidade razoável de defesa por parte da vítima. 1 – elemento subjetivo Começa o Arguido por afirmar – pontos 118 e 119 da motivação, o que retoma na conclusão corrigida S) – que se impõe a sua absolvição, uma vez que o elemento subjetivo do tipo em causa não se mostra preenchido pois não agiu pretendendo ou conformando-se com a possibilidade de ofender a integridade física do ofendido através da utilização da navalha. Apreciando. Subjetivamente, exige o tipo penal em causa o dolo, - em qualquer das suas modalidades - por referência aos art.s 13.º;14.ºCP, constituído pelo conhecimento dos elementos objetivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los. Na sentença sob recurso, pronunciando-se sobre tal matéria, expressa-se que “encontra-se provado que o arguido agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente o ofendido, o que fez de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei, pelo que agiu com dolo directo, preenchendo-se este elemento subjectivo do tipo.”, sendo que tal está em plena consonância com os factos tidos como provados. Tudo para dizer que face à já explicitada falta de razão para alteração dos fatos provados, entre estes os da vertente subjetiva do tipo penal em análise, a consequência é a de inexistência de vero substrato e objeto do recurso nesta parte, desde logo porque o Tribunal a quo julgou e apreciou tal matéria em moldes que merecem a nossa inteira adesão, e, como tal, quase seria desnecessário – por nada haver a acrescentar – aqui mais dizer. Deve, pois, manter-se a decisão sob recurso, nada havendo, também nesta parte, a alterar na decisão recorrida. 2 – legítima defesa Debruça-se agora o Arguido – pontos 120 a 130 da motivação, o que retoma na conclusões corrigidas T) e U) – com mais uma argumentação de pretensão de absolvição, agora dizendo que se viu na “iminência de um disparo de arma de fogo, que tentou reprimir primeiramente com a exibição da Navalha que trazia consigo e depois através da remoção dessa mesma arma da posse do ofendido (…), o que determinou a contenda física em que ambos se envolveram mutuamente.”; sendo que o “recurso a diferente meio (fugir do local) para o propósito visado, não se mostrava, então, disponível para o Arguido, e nessa na circunstância, a sua ação se revelou minimamente necessária e idónea.; pelo que “foi no decurso dessa contenda – e não de modo directo e propositado – que o Ofendido veio a ser atingido pela navalha do Arguido.” Com tal alegação – que mais uma vez baseia na alteração de factos que pretendia ver como provados e como não provados – enquadra a sua atuação em legítima defesa. Apreciando. O nosso direito penal baseia-se no facto de, para ser passível de punição, esse mesmo facto deve ser voluntário, típico, ilícito e culposo. No que ora se cuida, diga-se que a ilicitude consiste, não só, na conduta contrária ao direito e à ordem jurídica em geral - desvalor do resultado da conduta - mas também no desvalor da ação do agente. (...) Daí que o “juízo de ilicitude seja um juízo valorativo sobre a falta de preparação de uma pessoa para se comportar de acordo com os valores defendidos numa certa ordem jurídica.” (neste sentido, cfr. Teresa Beleza in Direito Penal, 2.º Vol., p. 81). Esta é a chamada ilicitude material. Todavia, a ilicitude pode não se verificar se in concreto existir uma causa que exclua o carácter ilícito da conduta. Tal é o caso da legítima defesa. Nos termos do art. 31.º/1/2a) CP “1 - O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade; 2 - Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado: a) Em legítima defesa;” Nos termos do art. 32.ºCP “Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.” Como se disse e aflorou, o tipo penal é mera expressão de um sentido de ilicitude, e a causa justificativa, paralelamente, é também uma concretização limitadora dum sentido de ilicitude. Assim a ilicitude detém na construção do crime o primado, dado que todo o tipo é tipo de ilícito. Dado que as causas de justificação detêm em si um sentido de ilicitude - quanto mais não seja através da anulação do sentido do tipo de ilícito - fica justificado que elas sejam também verdadeiros tipos, tipos de sentido contrário ou limitador. Por isso se fala de tipos incriminadores e de tipos justificadores. Escreve Maia Gonçalves, em anotação ao art. 32.º CP (Código Penal Português, 18.ª ed., p. 377) que "Do que ficou exposto se deduz que são requisitos da legítima defesa: a) A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter o direito de a fazer; não se exige que ele actue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legitima defesa contra actos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro; b) Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio. Trata-se do afloramento do princípio de que deve ser a força pública a actuar, quando se encontra em posição de o poder fazer, sendo a força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela CRP. Não pode, porém, ser imposto ao agredido defendente o uso de meios desonrosos, v.g. a fuga, quando seja meio adequado para evitar a agressão, tanto mais que isso precludiria também a função de prevenção geral da legítima defesa. Assim entende a doutrina autorizada (cfr. Direito Penal do Prof. Figueiredo Dias, Parte Geral, tomo 1, 396-397), havendo também jurisprudência neste sentido; c) Animus defendendi, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente.” Note-se que a exigência do requisito do animus defendendi não acolhe unanimidade na doutrina e na jurisprudência. No sentido do entendimento de que a vontade de defesa (animus defendendi) constitui um requisito da causa exclusória da ilicitude em apreço referem M. Simas Santos e M. Leal Henriques, "a defesa tem que restringir-se a uma mera defesa, que, de resto, está claramente expressa na lei, quando o legislador se refere a «...facto praticado como meio necessário para repelir a agressão»” (cfr. Noções Elementares de Direito Penal, 2.ª ed. p. 91). Outros (Taipa de Carvalho in A Legítima Defesa, p. 375/387, assim como in Direito Penal, Parte Geral, p. 398ss e Cavaleiro de Ferreira in Direito Penal, p. 189/191), por seu turno, aventam que o elemento subjetivo da ação de legítima defesa se restringe, e como tal se satisfaz, com a consciência da “situação de legítima defesa”, isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objetivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a afirmação de um direito e na circunstância do sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado objetivamente como o mais valioso, a significar que, em face de uma agressão atual e ilícita, se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os atos que, objetivamente, se mostrem necessários para a sua defesa. Neste sentido, igualmente, Figueiredo Dias quando nos diz que “o conhecimento pelo agente dos elementos do tipo justificador há-de constituir a exigência subjetiva mínima indispensável à exclusão da ilicitude, o mínimo denominador comum de toda e qualquer acusa justificativa”. (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 371) Num sentido de tempero destas vertentes Fernanda Palma (in Legítima Defesa - Casos e Materiais de Direito Penal - Coordenação de F. Palma/José Manuel Vilalonga e Carlota Pizarro de Almeida, Almedina, 2000, p. 167ss.) diz-nos que: “A legítima defesa exige uma efetiva consciência pelo defendente da situação defensiva. Não se configura como defesa nem uma proteção inconsciente e causal do agente relativamente a uma agressão nem a provocação pré-ordenada pelo defendente de uma situação de legítima defesa. Não será, exigível, propriamente, um animus defendendi, no sentido de a defesa ser a exclusiva motivação do defendente, mas é necessário que a conduta que se opõe à agressão ilícita seja explicável como defesa na linguagem social – o que impõe uma ação conscientemente dirigida à defesa, em que a agressão seja motivo determinante do agir”. E daí que a ausência dessa consciência impeça a justificação por legítima defesa. Em suma, a propósito exclusão da ilicitude da conduta por legítima defesa exigir-se-á a presença de cinco requisitos objetivos e um elemento subjetivo, a saber: (i) a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, (ii) a atualidade da agressão, (iii) a ilicitude da agressão, (iv) a necessidade da defesa, (v) a necessidade do meio e (vi) o conhecimento da situação de legítima defesa – os três primeiros requisitos objetivos referem-se à situação em que o agente atua e os dois últimos à ação de defesa. Descendo ao concreto, dir-se-á que vista a factualidade como definitivamente provada se mostra, é manifesto que o facto de não se ter apurado como a contenda física se iniciou em concreto não permite per se firmar que tenha sido o ofendido a iniciar a mesma, assim “legitimando” o Arguido a uma agressão face ao atualismo. Nada nos factos provados permite concluir essa “subsequente necessidade” para o Arguido. Do mesmo modo em nada resultou provado que na contenda – essa sim efetivamente operada – entre o ofendido e o Arguido o meio por este utilizado – a navalha – fosse um meio necessário – quão mais proporcional - a paralisar e cessar a agressão. E daí que, em concreto, o uso da navalha por parte do Arguido com relação ao ofendido - desprovido que estava este de proporcional, igual ou superior, meio de defesa – demonstre uma não verificação do requisito da circunscrição vontade de defesa, mas sim a verificação duma pura e singular intenção de agressão qualificada pelo uso do meio que na posse detinha. Concluindo, não há nenhum facto provado que revele o que ora o Arguido pretende enquadrar na causa de exclusão de ilicitude invocada. Há sim, e só, limitados trechos das declarações do Arguido, as quais, como já se explanou foram valoradas no quanto se mostraram credíveis, o que não operou neste trecho, trecho no qual a convicção se formou à luz de diferenciadas provas produzidas em sede de audiência, o que se mostra plenamente expresso na fundamentação e exame crítico efetivada na sentença sob recurso. Também aqui, face ao supra delineado quanto à imutabilidade dos factos tidos como provados e não provados na sentença sob recurso, a consequência é a de inexistência de vero substrato e objeto do recurso nesta parte. Mantem-se, consequentemente, a decisão sob recurso, nada havendo, também nesta parte, a alterar na decisão recorrida. 3 – da desqualificação a) passagem a crime de ofensa à integridade física simples; Segue o Arguido – pontos 131 a 149 da motivação, o que retoma nas conclusões corrigidas V) a Z) – com mais uma argumentação, agora não de pretensão de absolvição, sim de desqualificação da conduta, com passagem da mesma ao tipo de ilícito simples do art. 143.ºCP e com a especificidade de pretensão de dispensa de pena. Para tanto invoca que “ante a dinâmica dos factos, o ofendido não podia desconhecer que saíra de sua casa (em outro prédio) para confrontar alguém” (o próprio Arguido, leia-se) “que tinha uma actuação e comportamento hostil no interior daquele outro prédio, pontapeado portas no interior do mesmo (conforme descrição que lhe fora feita por quem ali o chamara); Em face de tal, poder-se-ia concluir estarmos perante uma forma enganosa, fraudulenta ou de surpresa do Arguido? “; sendo que” uma navalha, como o que foi utilizada pelo Arguido, é um objecto de uso corrente e, como arma branca que também é, pode servir, frequentemente, como arma de agressão, mas, a todas as luzes, não pode integrar-se no conceito jurídico-penal de "meio insidioso”.” A propósito de tal matéria o Tribunal a quo refere na sentença que “o arguido fez uso de uma faca que trazia consigo, que é um objecto particularmente perigoso e insidioso e coloca o ofendido numa posição que torna a defesa muito difícil, o que é especialmente censurável e perverso, pelo que, se preenche esta circunstância qualificativa.” Dir-se-á que esta fundamentação é sintética. Mas não só não é inexistente, como é bastante para o que o Tribunal a quo entendeu ser simples: nas circunstâncias concretas, à noite, no interior dum prédio, no quadro em causa, através do modo – também plúrimos - de utilização do objeto feita pelo Arguido permitiu-lhe um ascendente que que eliminou qualquer possibilidade razoável de defesa por parte da vítima. E tal em nada cai pela argumentação de “exigência” de previsibilidade que o Arguido agora quer imputar ao ofendido, quando este perante a ajuda que estava a prestar a terceiro tinha que contar não só com alguém nervoso (o Arguido) – situação normal face ao descrito como razão da chamada do ofendido -, mas também com alguém com quem se envolveria fisicamente e por quem viria a ser agredido com uma pluralidade de navalhada. Sim porque o nervosismo não transforma nem a posse, muito menos o uso, de navalhas em algo normal e que um cidadão tenha que conjeturar como tal. Sobre a questão da qualificativa pela via da alínea i) do n.º 2 do art. 132.ºCP, já supra se delineou qual a posição deste Tribunal Superior, restando concluir para o concreto, que a insidia não se situa no tipo de arma que foi utilizada pelo Arguido – navalha -, mas sim no circunstancialismo que envolveu a sua utilização. E daí a verificação do exemplo padrão, ao que não obsta o facto de o ofendido estar de frente para o Arguido aquando do início do esfaqueamento, uma vez a surpresa está no ápice de utilização, assim se eliminando qualquer possibilidade razoável de defesa por parte da vítima – para a primeira, que é a delimitadora temporal inicial da insídia, como para as demais facadas. Mantem-se, consequentemente, a decisão sob recurso, nada havendo, também nesta parte, a alterar na decisão recorrida. Passando à questão da qualificativa pela via da alínea h) do n.º 2 do art. 132.ºCP, certo é que pouco ou nada o Arguido sobre a mesma se debruça. No entanto, sendo certo que doutrinal e jurisprudencialmente se discute se o efetivo uso duma arma – no caso uma navalha – se traduz num específico meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, certo é que o exemplo padrão da norma admite o seu preenchimento quando a atuação se traduza na prática de crime de perigo comum. Ora, na sentença do Tribunal a quo, o que sufragamos, é citada doutrina que ali coloca a atuação, quando nos diz que “o crime de detenção de arma proibida é um crime de perigo comum, na medida em que as “… condutas descritas por este tipo legal não lesam assim de forma directa e imediata qualquer bem jurídico, apenas implicam a probabilidade de um dano contra um objecto indeterminado, dano esse que a verificar-se será não raras vezes gravíssimo. Por isso mesmo se usa também para qualificar estes crimes a expressão de «crimes vagos» ou «crimes com objecto de agressão indeterminado» …” (Paula Ribeiro de Faria in “Comentário Conimbricense do Código Penal” – Parte Especial, Tomo II (artigos 202.º a 307.º), dirigido por Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 1999, pág. 889).” Quadro este que não se confunde com a agravante do art. 86.º/3-RJAM. De facto tal agravante encontra fundamento num maior grau de ilicitude, pelo que tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, só afastada nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via (como é o caso pela via da alínea h) do n.º 2 do art. 132.ºCP, no exemplo padrão de prática de crime de perigo comum), a uma agravação mais elevada. Tanto basta para se mantém a decisão sob recurso, nada havendo, também nesta parte, a alterar na decisão recorrida. b) dispensa de pena; Não desqualificada a conduta típica criminal encetada pelo Arguido, mantendo-se a mesma no corpo do art. 145.ºCP, nunca poderia ser aplicada a cláusula de fim utilitário e subsidiário com preocupação final de justiça contida no art. 143.º/3CP, a qual conduziria a pode dispensar o arguido da pena que lhe é aplicada pela prática do crime. É que se é certo que tal só se pode aplicar quando tiverem operado lesões recíprocas – e no Arguido nenhumas se provaram – igualmente se exige a não prova de dos contendores agrediu primeiro, o que in casu colhe fundamento no facto provado 3. Uma outra hipótese seria a de o Arguido ter unicamente exercido retorsão sobre o agressor, quadro que não se aplica à situação em discussão. Porém, para que tal operasse ainda se exigiria a chamada à colação o art. 74.º/3CP, normativo que dispõe que quando uma norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do n.º 1, quais sejam a de a ilicitude do facto seja diminuta e a culpa diminuta, o dano, em concreto, se mostrar reparado e razões de prevenção não se oporem à situação. Assim, porque em concreto e de modo cabal tal não se verificaria mesmo perante integração da conduta no art. 143.ºCP jamais haveria lugar a dispensa de pena. Mantém-se, assim, a decisão sob recurso, nada havendo, também nesta parte, a alterar na decisão recorrida. 4 – legítima defesa putativa A finalizar diz-nos o Arguido – pontos 150 a 164 da motivação, o que retoma na conclusões corrigidas AA) a DD) – com mais uma argumentação, agora de construção dogmática, que reconduz ao que apoda de figura da legitima defesa putativa, com as invocadas consequências de erro como causa de justificação a determinar alteração de qualificação de acusação para o campo da negligência, a firmar crime de ofensa à integridade física negligente – art. 148.º/1CP – a punir com pena de multa próxima do mínimo legal. Para tanto invoca que “Acaso se concluísse, como por hipótese antes se admitiu, na não demonstração da existência de uma arma de fogo (do tipo revolver) na posse do ofendido (…); Antes se dando por provado, tão somente, haver sido apenas essa uma convicção do Arguido, potenciada pelo estado alterado em que se encontrava no momento dos facto; Então (…) houve uma falsa representação dos pressupostos objectivos necessários à legítima defesa, quando foi confrontado e se envolveu na contenda com o Ofendido; (…) o erro sobre os pressupostos fácticos de uma causa justificativa deve considerar-se erro sobre a factualidade típica; (…) No caso, e tal como antes se alegou, encontram-se reunidos todos os requisitos da figura de legítima defesa putativa, como causa de exclusão prevista na lei (…); O arguido agiu, pois, com animus defendendi e na errónea suposição de que se verificavam todos os pressupostos da legítima defesa, sendo o seu erro desculpável, verificando-se, portanto, um caso de exclusão do dolo; (…) impondo-se a condenação do Arguido não pela prática do crime de vinha acusado de Ofensa à Integridade Física Qualificada, p.e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, 26.º, 143.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, alíneas h) e i) do CP; Mas antes pela prática do crime de Ofensa à Integridade Física por negligência, p. e p. pelo n.º 1 do art. 148.º do Código Penal; E, em concreto, numa pena de multa, a fixar próximo do mínimo legal (…)” Apreciando. Sobre o instituto da legítima defesa vale aqui o supra elencado. A esta “normal” legitima defesa pode acrescer a especial situação de excesso de legítima defesa - art. 33.ºCP -, como a legitima defesa putativa. Diferenciam-se as mesmas, uma vez que no excesso se está perante quadro de legítima defesa efetiva, mas em que opera um uso de meios que extravasa a proporcionalidade, logo a legitimidade, necessária a impedir ou repelir a agressão. Sendo que a irracionalidade, imoderação ou falta de temperança nos meios empregues na defesa, resultante de um estado afetivo (perturbação, medo ou susto, na definição do art. 33.º/2CP) com que o agente atua, reportam ao excesso dos meios empregados em legítima defesa. Ou seja, só há excesso para efeitos da norma se legítima defesa estiver operante. Diferentemente na legítima defesa putativa esta pressupõe um erro sobre a existência de uma agressão atual e ilícita com base no qual o agente desencadeia a defesa (legítima defesa putativa). É desta última que se cuida. Nesta, inerente ao plano subjetivo da ação do arguido, o mesmo terá que atuar com base numa representação falsa da existência dos pressupostos objetivos necessários à legitima defesa e, como tal, num quadro em que a situação se lhe equipara à existência real daqueles pressupostos. É dizer, a legítima defesa putativa traduz-se na errónea suposição de que se verificam, no caso concreto, os pressupostos da defesa, o quanto terá que operar por erro desculpável sobre os ditos pressupostos da defesa, não havendo, então, uma causa de exclusão da ilicitude, mas sim uma causa de exclusão da culpa – art. 16.º/2CP. Provados os factos nos moldes que a sentença sob recurso fixou, que este Tribunal Superior não altera, está perfeitamente configurado o dolo direto, tanto no seu elemento intelectual como no seu elemento volitivo, nos termos do art. 14.º/1CP. Da factualidade provada não resulta um intuito defensivo, sim um intuito agressivo por parte do Arguido. Tal intuito agressivo, expresso na factualidade apurada determinou que se concluísse como supra se fez: que não ocorreu uma situação enquadrável na legítima defesa tout court como não operou na legítima defesa putativa. É que para esta seria necessária a prova da representação duma agressão atual e ilícita por parte do ofendido, em moldes que fizesse o Arguido desculpavelmente pensar que teria que atuar defensivamente. Nada disso resulta provado. E daí que necessariamente também haja que concluir que não operou tal causa desculpável, o quanto impede que haja que discorrer sobre possibilidade de negligência do tipo e sobre pena a aplicar. Deste modo resta manter a decisão sob recurso, nada havendo, uma vez mais, a alterar na decisão recorrida. III – DECISÃO Nestes termos, em conferência, acordam os Juízes que integram a 5.ª Secção Penal deste Tribunal da Relação de Lisboa: a. em rejeitar o recurso interposto pelo Arguido AA no que respeita a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto; b. em negar provimento ao demais constante do recurso interposto pelo Arguido AA, no que versa sobre matéria de direito e, consequentemente, confirmar na íntegra a decisão do Tribunal a quo. c. em fixar custas criminais a cargo do Arguido AA, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS, nos termos dos art.s 513.º/1;514.º/1;524.ºCPP e Tabela III anexa de reporte aos art.s 1.º;2.º;3.º/1;8.º/9, acrescidas dos encargos previstos no art. 16.º, ambos RCP (DL34/2008-26fevereiro e alterações subsequentes). Notifique (art. 425.º/6CPP). D.N. Lisboa, 10-09-2024 • o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários; com datação eletrónica – art. 153.º/1CPC – e com aposição de assinatura eletrónica - art. 94.º/2CPP e Portaria 593/2007-14maio Relator: Juiz Desembargador Manuel José Ramos da Fonseca 1.º Adjunto: Juiz Desembargador Manuel Advínculo Sequeira 2.º Adjunto: Juiz Desembargador Carlos Espírito Santo |