Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5386/22.3T8LRS.L1-9
Relator: PAULA PENHA
Descritores: CÂMARAS DE VIDEOVIGILÂNCIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
AUTO DE NOTÍCIA
IMPUGNAÇÃO
ACUSAÇÃO
DECISÃO JUDICIAL
NULIDADE
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA COIMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O auto de notícia contra ordenacional não constitui uma acusação e, muito menos, se equipara a uma acusação em processo criminal.
Basta nesse auto constar a descrição das circunstâncias de tempo, modo e lugar da actuação omissiva da arguida e da respectiva infracção consumada por tal omissão, a qual tem inerente o elemento subjectivo da negligência – que se retira da ilicitude material aí descrita.
II – Havendo decisão da autoridade administrativa, também basta nela constar a identificação da arguida, a descrição dos factos imputados, a indicação das provas obtidas, a indicação das normas segundo as quais se pune, a fundamentação da decisão, a respectiva coima e a menção de que se tornará definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada.
III – E, em face da impugnação judicial dessa decisão da autoridade administrativa, caso esta não a revogue e envie os autos para Tribunal, a respectiva apresentação dos autos pelo Ministério Público ao Juiz é que vale como uma acusação.
IV – A culpa da arguida sob a forma negligente está inerente à imputada prática contra-ordenacional por incumprimento/omissão do dever de zelo e de diligência exigíveis.
Tendo a arguida obtido licença para instalar câmaras de videovigilância num estabelecimento comercial deve diligenciar por saber não só o modo funcionamento, como também as respectivas regras a observar aquando desse funcionamento e por cuja observância deve zelar (independentemente de o fazer por si só e/ou por intermédio de outrem).
V – A decisão judicial recorrida não padece de nulidade quando não menciona um facto irrelevante face ao âmbito do processo contra-ordenacional em apreço
Não cabendo no âmbito deste processo aferir quem concretamente e de que modo era feito, ou não era feito, tal controlo do período temporal de conservação das imagens obtidas/captadas nesse sistema de videovigilância – tal situação reportar-se-á a um eventual incumprimento contratual de um terceiro relativamente à arguida, a discutir em sede de eventual responsabilidade civil
VI – A atenuação especial da coima é a sanção mais ajustada face a esta contraordenação muito grave, com culpa negligente e com posterior regularização da situação por parte da arguida.
Excluindo-se a mera admoestação, sob pena de que ficaria comprometido o cariz sancionatório da coima com imposição do inerente sacrifício patrimonial (já atenuado especialmente) e eficaz dissuasor de reincidência e assim se afastando o sentimento de impunidade que constituiria um incentivo à infracção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
A empresa “AA (NIPC ...) havia impugnado judicialmente a decisão da Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (proferida em 12/1/2022 nos autos de contraordenação nº 392/2020) que (para além da pena de admoestação, pela infracção ao disposto no nº 1 do art.º 11º do REASP em conjugação com o disposto nos art.ºs 18º e 51º, nº 1, do Regime Geral das Contra Ordenações) a condenara no pagamento de uma coima, especialmente atenuada, no montante de €7.500, pela infracção ao disposto no nº 2 do art.º 31º do Regime do Exercício da Actividade de Segurança Privada (doravante com a abreviatura REASP) em conjugação com o art.º 72º do Código Penal (doravante com a abreviatura CP) “ex vi” do art.º 32º do Regime Geral das Contra Ordenações e do art.º 59º, nº 9, do REASP.  Em suma, a arguida havia alegado  desconhecer que o gravador do sistema de vídeo vigilância estava a fazer gravações há 75 dias ininterruptamente, dado ter contratado uma empresa de segurança para instalação, manutenção e, quando alertada pelos autos, esta transmitiu-lhe que o sucedido se devera a uma falha de instalação e que foi corrigida, sem que daí adviesse qualquer benefício para a arguida, nem prejuízo para terceiros, nem sequer visualização de qualquer imagem. Terminou a arguida, pedindo a sua absolvição por falta de culpa ou, pelo menos, a substituição da coima por uma admoestação.
 
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Efectuada a audiência de discussão e julgamento, no âmbito do presente processo nº 5386/22.3T8LRS, no Juízo Local Criminal de Loures – J4, foi proferida decisão (em 6/12/2022) a julgar improcedente, por não provada, essa impugnação, mantendo a decisão administrativa e a coima aplicada à arguida, nos seguintes termos e com os seguintes fundamentos (transcrição):
«Decisão
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I - RELATÓRIO
“AA”, NIPC ..., com sede na ..., veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela Secretaria Geral do Ministério da Administração  Interna, no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 392/2020, que a condenou na coima especialmente atenuada de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), pelo facto de o seu sistema de videovigilância conservar imagens obtidas além de trinta dias, prazo legal máximo fixado para o efeito (contra-ordenação muito grave) e ainda, pela circunstância de não apresentar comunicação registo da instalação da sirene para exterior (contra-ordenação leve), a título negligente, contra-ordenações p. e p. pelos Art.ºs 31º nº 2, 11º e 59º nº1 al. i), 3 al. b), 4 al. a) e c), 8 e 9, do REASP (Regime  Exercício da Actividade Segurança Privada – Lei 34/2013 de 16-05),na redacção dada na data dos factos, acrescida de custas do processo.
Tais factos são imputados à recorrente como tendo sido praticados em 21-05-2019, por referência à “...” sita em Odivelas.
As infracções em que incorre a recorrente são muito grave e leve, puníveis a título negligente e respectivamente com coima €15.000 a € 44.500 e com a atenuação especial de €7.500 a €22.250 e ainda, de €1.500 a €7.500, sendo €750 a €3.750 com atenuação especial, atentos os normativos acima enunciados e o disposto nos Art.ºs 17º nº4 e 19º Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas - RGCOC.
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A arguida/recorrente vem impugnar tal decisão no que tange à contra-ordenação muito grave, alegando desconhecer a anomalia, sendo responsável a empresa que tinha contratado para o serviço e tendo diligenciado pela regularização da situação de imediato.
Mais alega que inexiste culpa da recorrente e caso assim não se entenda, não poderá tal sancionamento ir além da mera admoestação.
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Baseia a sua impugnação judicial nas conclusões constantes de fls. 37 e que aqui damos por integralmente reproduzidas.
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O Ministério Público ordenou a apresentação dos autos nos termos do Art.º 62.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, na sua redacção vigente, valendo este acto como acusação.
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A Autoridade Administrativa conhecendo do recurso, nada mais esclareceu.
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O recurso apresentado pela recorrente foi recebido, tendo sido realizada a audiência de julgamento, como decorre da respectiva acta.
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Como vem sendo uniformemente entendido pela jurisprudência, são as conclusões da motivação do recurso que delimitam o seu âmbito, independentemente de na motivação propriamente dita se poderem deduzir outros fundamentos, (cfr. Art.ºs 403.º, n.º 1 e 412.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, aplicáveis por força do disposto no Art.º 41.º, n.º1 do aludido RGCOC), pelo que cumpre apreciar o presente recurso tendo em conta as conclusões formuladas.
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Em sede de alegações a sociedade arguida e recorrente veio invocar a nulidade da decisão posta em crise por falta de fundamentação e ausência de factos que permitam configurar a culpa, ausência de análise crítica, o que que configura a violação da legislação vigente, devendo ser declarada nula.
Consagra o Art.º 32º da CRP “1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. 2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. 3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória. 4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais. 5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório. 6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento. 7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei. 8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. 9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior. 10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”
Analisados os presentes autos e o teor dos aludidos normativos constitucional e processual penal, não vislumbra este Tribunal a violação de qualquer dos seus preceitos, designadamente a utilização de métodos enganosos.
Na verdade, a verificação da situação em apreço decorreu da análise de documentos e informações remetidas pela arguida e recorrente no cumprimento da legislação vigente e por isso, sabia necessariamente a arguida e recorrente que tal informação era para ser alvo de fiscalização e controlo.
Acresce que a instauração do presente processo decorreu no âmbito de uma fiscalização, estando por isso e necessariamente ciente a arguida e recorrente que as informações remetidas seriam alvo de escrutínio e análise sobre a prática de eventuais infracções às condições de funcionamento das instalações em causa.
A arguida não foi forçada a prestar tal informação por outra forma e nem lhe foi negado o seu direito de defesa.
Veja-se o plasmado no Ac. TRE datado de 07-01-2020 in www.dgsi.pt, ao qual aderimos. Invoca a recorrente a falta de fundamentação, a ausência de factos, mormente atinentes ao elemento objectivo e subjectivo e violação seu direito de defesa.
Vem a recorrente pugnar pela nulidade da decisão posta em crise, porquanto não lhe foi dada a possibilidade do devido exercício do direito de defesa, porque omissa quanto a informação essencial, violando o disposto no Art.º 50º RGCOC (Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas), com referência ao Arts.º 41º do mesmo normativo e Art.º 122º nº 1 do Código do Processo Penal, existindo até uma alteração da qualificação jurídica.
Ao perscrutar o que serve de base à impugnação, deve o Tribunal de recurso detectar e assinalar um qualquer vício que inquine a referida viabilidade (logo o direito de defesa do arguido/recorrente e de fundamentação), dando conta das razões fáctico-jurídicas que a determinam (cfr. artigo 379.º, n.º 2, e 380.º do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas ou RGCOC.).
Estando imputado à arguida e recorrente a prática em concurso de duas contra-ordenações, uma muita grave e outra leve, importa distinguir o tratamento dado a ambas na decisão administrativa posta em crise.
Desde logo e no que tange à notificação em causa se afere que a mesma foi realizada, estando referenciada a ocorrência de fiscalização, o local, data e processo e as normas eventualmente violadas e sanções, bem como a situação constatada.
A doutrina e jurisprudência vêm considerando que nesta fase ainda embrionária não é exigível o mesmo nível de rigor de uma decisão, mesmo em termos de factualidade subjectiva e, mesmo em sede administrativa, as exigências da decisão final não se podem considerar iguais às de uma sentença, importando sim e apenas percepcionar o sentido e alcance da decisão.
V. neste segmento a jurisprudência nesta matéria, à qual aderimos, designadamente o descrito no AC. TRL de 06-12-2017 in www.dgsi.pt, ao consagrar que “No auto de notícia devem ser relatados os factos materiais sensorialmente perceptíveis que constituem a contraordenação, especificando-se o dia, a hora, o local, e as circunstâncias em que foram cometidos, a identificação do arguido, dos ofendidos e do autuante, bem como indicação das disposições legais que preveem e punem a infracção, a coima e, sendo caso, a sanção acessória. O agente autuante não pode o imputar ao arguido os factos a título de culpa, na modalidade de dolo ou na modalidade de negligência, sob pena de contrariar o art.º 32.º, n.º 2, da CRP.”
Não deverá confundir-se a menor exigência formal de uma acusação com a ausência de informação dos factos em causa, não sendo admissível a total falta de percepção da questão que se coloca perante as autoridades.
E neste caso sub judice, para a infracção respeitante à gravação excessiva é manifesta a descrição da ocorrência.
Alega a recorrente e desde logo que a decisão posta em crise carece ainda de fundamentação e de imputação objectiva e subjectiva, sendo nula.
No que tange à prova dos factos, infra nos pronunciaremos, sendo que de momento nada cumpre adiantar, existindo referência nos autos a prova documental e testemunhal, sendo a mesma analisada infra.
Igualmente e pelo recurso apresentado, é manifesto que a recorrente percebeu e compreendeu a situação em causa no que tange à gravação.
Nesta matéria rege o disposto no artigo 58.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 17 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto –Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro.
Estabelece este normativo que:
«1 – A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.»
Como referem Simas Santos e Lopes de Sousa (loc. cit., 2002, página 334), em anotação ao preceito citado, «Os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória do processo contraordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que podem impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos”.
Na senda do entendimento perfilhado pelos já citados autores, no lugar mencionado, considera-se que a consequência processual da falta dos requisitos previstos no artigo 58.º, não resultando do R.G.C.O., deverá ser retirada dos preceitos do processo criminal relativos às decisões condenatórias, em consonância com o preceituado no artigo 41.º, n.º 1, deste diploma.
Assim, a falta dos requisitos previstos no n.º 1, constitui uma nulidade da decisão, de harmonia com o estatuído nos artigos 374.º, n.º s 2, e 3, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
A decisão condenatória administrativa, quando impugnada judicialmente, “... converte-se, para todos os efeitos, numa verdadeira acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial” (cfr. art.º 62.º, n.º 1, do RGCO) – v. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.01.2013, proc. n.º 704/12.5TBCLD.L1-9, Rel. Francisco Caramelo -, com tudo o que esta arrasta e engloba, não só em termos de factualidade dada como provada, mas também de “provas obtidas”, nomeadamente o auto de notícia.
E neste caso nada na decisão posta em crise permite prefigurar a violação do citado normativo e entendimento.
De acordo com o dicionário da língua portuguesa, por fundamentação entende-se o acto de justificar, comprovar, argumentar, visando a necessidade de fundamentação legalmente estabelecida para as decisões convencer os visados e a comunidade do teor decisório e permitir, por outro lado, a sindicância de tais razões (v. Vítor Santos, in Contraordenações Laborais, CEJ, 2ª edição, 2014).
No caso em apreço e do auto de notícia e do segmento decisório em análise é ainda possível aferir a factualidade objectiva e mesmo ao nível da imputação subjectiva, e que consta de tal decisão, no que respeita à contra-ordenação muito grave imputada e respeitante à gravação realizada além dos 30 dias legalmente definidos, imputação essa realizada a título negligente.
Igualmente assenta na indicação da prova e na análise jurídica do caso e nas condições para aplicação de uma coima.
Na verdade e nesta parte, é possível pela análise do auto de notícia e pelo teor da decisão administrativa percepcionar a situação em causa.
Assim, e, não obstante se verificar alguma falta de rigor, a verdade é que a mesma não é de forma que inquine a percepção do leitor sobre os factos em apreço, a conduta da arguida e as razões para a coima aplicada, estando descrita a situação e sendo realizada a indicação subjectiva da imputação e devida explicação.
V. os Acs. TRL de 11-11-2020 e 20-06-2017, ambos in www.dgsi.pt, consagrando-se neste último que “ As exigências formais no processamento das contra-ordenações não se equiparam às do processo penal, apresentando aquelas autonomia decorrente da valoração e opção política do legislador em resultado da diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, da natureza da censura ético-penal correspondente a cada um e da distinta natureza dos órgãos decisores; apesar de, na parte relativa aos factos provados, apenas constarem os que integram o elemento objectivo da infracção, referindo a decisão administrativa na parte decisória que a arguida "... agiu com dolo, ... deve entender-se que da decisão administrativa constam os factos relativos ao elemento subjectivo da infracção imputada; a expressão "dolo" tem um sentido claro no uso vulgar de cada cidadão para que o agente possa saber do que se trata quando uma infracção lhe é imputada a esse título, o que permite ao arguido adequada impugnação do fundamentos da condenação e exercício dos seus direitos de defesa.”
Consideramos, assim, e no que tange à infracção mais gravosa, que a notificação e a decisão administrativa são suficientemente precisas para apreciar a contra-ordenação em causa, cindindo a decisão posta em crise nestas duas partes e aproveitando o demais decidido neste segmento.
Consequentemente e pelo exposto, improcede tal argumentação da defesa.
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Após o despacho que recebeu o presente recurso, não ocorreram nulidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer, mantendo-se a validade e regularidade da instância.
II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) Factos Provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão da mesma:
1. No dia 21/05/2019, pelas 10:50h, no âmbito de uma ação de fiscalização à "...", sita na ..., propriedade da arguida, verificando os elementos fiscalizadores que existia um sistema de videovigilância composto por 7 câmaras de videovigilância e um gravador em funcionamento, no entanto este estava a fazer gravações por 75 dias, desde dia 07-03-2019 até à data da fiscalização, sendo que estas deveriam ser conservadas em registo codificado pelo prazo de 30 dias, contados desde a sua captação, findo o qual devem ser destruídas, no prazo máximo de 48horas.
2. A responsável pela ..., BB, confrontada com o sucedido, disse desconhecer a irregularidade detectada, existindo uma entidade responsável pela manutenção do sistema.
3. Mais se apurou que existia alarme de intrusão, com sirene para exterior e que estava instalado desde Julho de 2016, sem que existisse qualquer comunicação e registo de instalação do mesmo junto da autoridade policial local, no prazo de cinco dias úteis após a montagem.
4. A arguida não podia desconhecer a obrigação de conservar as imagens gravadas somente pelo prazo de 30 dias e a obrigação de efectuar o registo do alarme instalado, em imóvel da sua propriedade, e abstendo-se de o fazer, não agiu com o zelo objectivamente devido e de que era capaz, para cumprimento das suas obrigações legais.
5. O comportamento pouco zeloso e diligente da arguida mostra-se desfasado do tipo de actuação que um proprietário do estabelecimento dotado do sistema de videovigilância e sistema de alarme normalmente avisado e cauteloso adotaria, o que revela uma atitude interna específica.
Mais se provou,
6. A recorrente diligenciou pela regularização das questões detectadas.
7. Apresenta resultados líquidos positivos.
B) Factos Não Provados
Não deixaram de se provar quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão da causa.
C) Motivação da Matéria de Facto
O Tribunal gizou a sua convicção tendo por base o auto de notícia fls. 2 e ss. (que faz fé em juízo); fotogramas de fls. 4 a 10; fls. 16 e ss., demais documentação junta aos autos, incluindo em sede de audiência, que não foi posta em crise, bem como a notificação, a decisão da autoridade administrativa e o teor da impugnação e defesa.
Consideramos ainda pelo teor da alegação realizada que a arguida não coloca em causa a prática da aludida infracção e de forma cabal, invocando sobretudo irregularidades e nulidades processuais, sendo que a prova documental e testemunhal arrolada pela acusação e até pela defesa e pelas declarações do seu gerente e responsável, recolhida em julgamento, foi determinante para o apuramento destes factos, sendo concludente entre si, confirmando a sua ocorrência.
Desde logo CC, legal representante da recorrente, admitindo a fiscalização à farmácia e que não presenciou, esclareceu que lhe foi dado a conhecer, posteriormente, pela responsável desta farmácia, BB, a gravação excessiva para o limite temporal previsto. Mais disse que a instalação e manutenção do sistema de videovigilância está atribuído a empresa terceira, que concretiza a manutenção mensal do mesmo. Finalmente relata ser cumpridora, tendo diligenciado pela regularização da situação de imediato, sendo a empresa em causa “saudável” em termos financeiros, sendo os balanços e os exercícios positivos.
Já as testemunhas de defesa e funcionários da empresa de vigilância e da farmácia presente aquando da fiscalização, ... e BB, a primeira confirmou o contrato de videovigilância, negando que a manutenção seja mensal, referindo desconhecer a anomalia mas que foi de imediato regularizada, e a segunda que a recorrente é cumpridora e que na ocasião da fiscalização prestou a colaboração necessária, sendo o sistema implantado da responsabilidade da empresa responsável pela videovigilância, reconhecendo desconhecer a periodicidade de manutenção do sistema. Pela defesa não foi arrolada outra prova.
Os agentes policiais fiscalizadores, ... e ...  confirmaram o teor do auto elaborado, o que fizeram de forma credível, espontânea e com conhecimento directo dos fatos presenciados, confirmando que o período de gravação excedia os trinta dias e indicando não havia sido comunicado o registo da instalação de sirene exterior.
Tais declarações e depoimentos, revelando-se críveis na sua generalidade e com conhecimento dos factos, foram valorados.
Na verdade, a versão da defesa não é incompatível com os depoimentos recolhidos, provando-se a versão acusatória, sendo confirmados por todos os intervenientes e testemunhas e decorrendo ainda da prova documental junta aos autos.
Aliás, a documentação junta aos autos foi igualmente valorada, uma vez que a mesma não foi posta em crise, fazendo fé em juízo o respectivo auto de notícia, sendo confirmado em audiência.
Analisando criticamente a prova, consideramos que é possível aferir e com rigor, que na ocasião, a arguida e recorrente estava em laboração, funcionando enquanto uma farmácia comum, e sendo atestado pela prova documental, testemunhal e ainda, pelas declarações do legal representante da recorrente, que existindo implementação de sistema de videovigilância e de segurança, as gravações realizadas excediam os trinta dias, como até admitiu, justificando a recorrente a situação com uma anomalia técnica e sendo a mesma da responsabilidade da empresa que instalou e efectuava a respectiva manutenção do sistema.
Todavia, tal justificação e argumentação não colhe, porquanto e, não obstante a instalação e manutenção do sistema estar atribuído a um terceiro, não isenta a arguida de responsabilidade enquanto visada e obrigada por lei e bem assim, não a isenta da devida vigilância.
E neste último segmento e não obstante a alegação realizada, as testemunhas de defesa não conseguiram esclarecer da regularidade da manutenção realizada ao sistema de videovigilância, não obstante a alegação do legal representante e até considerando os contratos que foram juntos aos autos em audiência.
E do clausulado do contrato de prestação de serviços em causa não consta nem a periodicidade de manutenção do sistema e nem que a entidade que presta tal serviço assume toda a responsabilidade pelo mesmo, pelo contrário, exclui na maioria das vezes tal responsabilidade e até pela situação em apreço.
Pelo que e tendo presente os depoimentos das testemunhas de defesa e o contrato junto aos autos em audiência, conjugado com as declarações do legal representante da recorrente, é manifesto que a arguida e recorrente tinha conhecimento da necessidade de manutenção do sistema de videovigilância e do legal representante nomeado para o efeito e enquanto responsável da farmácia, não obstante as alterações legislativas ocorridas nesta matéria, o que apenas lhe poderá ser imputável e através dos seus legais representantes.
No que tange à falta de registo da sirene, tal matéria nesta sede mostra-se prejudicada.
Aliás, tal versão acusatória não foi contrariada de modo contundente por nenhuma outra prova, admitindo a gerência legal e técnica da recorrente até ter conhecimento da obrigatoriedade em causa, mas não evidenciando ter diligenciado em tal sentido e na manutenção do sistema.
A demais factualidade acusatória foi apurada com base na prova documental e considerando a globalidade da prova testemunhal produzida em audiência, dado que o factualismo de tempo, modo e lugar não foi posto em crise.
Mais se apurou pela globalidade da prova produzida que a arguida e recorrente, até pela natureza e dimensão da actividade exercida, tinha a obrigação de actuar de forma diligente e de conhecer as regras que lhe eram aplicáveis e no exercício da sua actividade, implementando as mesmas de modo rigoroso e vigilante e visando o normal funcionamento do sistema, o que não fez, sabendo, conhecendo e podendo actuar de outra forma.
Nenhuma dúvida foi suscitada quanto ao modo como os factos ocorreram e nenhuma outra prova foi aferida pela defesa e que permita infirmar o entendimento acima explanado.
As condições da arguida decorrem apuradas com base nas declarações do legal representante da recorrente e da testemunha de defesa.
A factualidade negativa decorre da ausência de prova cabal e pela defesa da alegação realizada.
D) Direito e Medida da Coima
Tendo em consideração a prova realizada e as conclusões do recurso, que delimitam o objecto dos autos, passamos a tomar posição quanto às concretas situações suscitadas.
A recorrente veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna, pelo facto de o seu sistema de videovigilância conservar imagens obtidas além de trinta dias, prazo legal máximo fixado para o efeito (contra-ordenação muito grave), a título negligente, p. e p. pelos Art.ºs 31º nº 2 e 59º nº 1 al. i), 4 al. c), 8 e 9, do REASP (Regime Exercício da Actividade Segurança Privada – Lei 34/2013 de 16-05),na redacção dada na data dos factos.
Conforme já aludimos supra e no que tange à infracção leve a recorrente conformou-se com a decisão proferida.
No que concerne às nulidades suscitadas, o tribunal já se pronunciou igualmente.
Resta, no entanto, apreciar a contra-ordenação muito grave que lhe vem imputada e punível com coima de €7.500.
Consagra o Art.º 31º nº2 do REASP, na redacção vigente aquando dos factos e aplicável in casu (porque a redacção actual introduzida pela Lei nº 46/2019 de 08-07, com mais exigências e agravação de algumas coimas não se revela em concreto mais favorável, nos termos do Art.º 3º nºs 1 e 2 do RGCOC) que (...) 2 - As gravações de imagem obtidas pelos sistemas videovigilância são conservadas, em registo codificado, pelo prazo de 30 dias contados desde a respetiva captação, findo o qual são destruídas..”
De acordo com o disposto no Art.º 59º do citado diploma legal, constitui contra-ordenação muito grave “1 - De acordo com o disposto na presente lei, constituem contraordenações muito graves: ... i) O incumprimento dos deveres previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 31.º e no artigo 35.º; ...  4 - Quando cometidas por pessoas coletivas, as contraordenações previstas nos números anteriores são   punidas  com   as  seguintes coimas:
(...) c) De 15.000 (euro) a 44.500 (euro), no caso das contraordenações muito graves. ... 8 - A tentativa e a negligência são puníveis. 9 - Nos casos de cumplicidade e de tentativa, bem como nas demais situações em que houver lugar à atenuação especial da sanção, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade.”
Consagra ainda o Art.º 100º nº 1 als. a) e b) da Portaria nº 273/2013 que “1 - As farmácias e os postos de abastecimento de combustível devem adotar os seguintes sistemas de segurança obrigatórios: a) Sistema de videovigilância por câmaras de vídeo para captação e gravação de imagens; b) Sistemas de deteção de intrusão. 2 - Os sistemas de segurança referidos no n.º 1 devem ser obrigatoriamente instalados em novos estabelecimentos a partir da data prevista no n.º 7 do artigo 68.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e, nos já existentes, a sua implementação deve ocorrer no prazo máximo de cinco anos. 3 - É aplicável aos locais de acesso ao público a obrigatoriedade de afixação da informação prevista no n.º 5 do artigo 31.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio. 4 - A obrigatoriedade do sistema de videovigilância não prejudica a aplicação do regime geral em matéria de proteção de dados previsto na Lei n.º 67/98, de 26 de outubro.”.
Analisando o caso concreto e da prova realizada em audiência decorre que efectivamente a arguida e recorrente, aquando da fiscalização e mesmo posteriormente, laborava enquanto farmácia, e detendo implementado sistema de videovigilância, o mesmo estava a realizar e a manter gravações além dos 30 dias legalmente definidos, mais precisamente por 75 dias.
Apurando-se que a recorrente e os seus responsáveis estavam alertados para a necessidade de implementação de tais sistemas em conformidade com a legislação vigente e aplicável, bem como para a necessária manutenção, o que apenas não fizeram por descuido, actuaram negligentemente, podendo e devendo ter diligenciado pela verificação e manutenção do sistema e pela sua eventual e oportuna reparação.
Assim, impunha-se outra actuação, pelo que deveria a recorrente e através dos seus responsáveis ter equacionado a possibilidade de cometer uma infracção, ainda que sem se conformar com a mesma (v. Art.º 15º al. a) do C. Penal, aplicável ex vi do Art.º 8º nºs 1 e 3 e 32º do RGCOC).
Consideramos que a factualidade em causa é subsumível nos Art.ºs 31º nº 2, sendo sancionada nos termos do Art.º 59º nºs 1 al. i), 4 al. c), 8 e 9 do REASP.
Exercendo a arguida e recorrente actividade profissional e comercial, mediante a exploração de uma farmácia, tendo conhecimento da legislação aplicável e tendo capacidade para actuar de outra forma, consideramos que inexiste qualquer situação de erro a apreciar como previsto pelo Art.º 8º nº2 do RGCOC e 16º e 17º do C. Penal.
Desta forma, inexistem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa e verificam-se todas as condições de punibilidade.
Consideramos assim estar perante uma conduta negligente, como lhe vem imputado pelos Arts.º 7º, 8º nºs 1 e 3 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (RGCOC) e Art.º 15º al. a) do Código do Penal, para onde remete o Art.º 32º do RGCOC, sendo a negligência punível de acordo com o nº8 e 9 do Artº 59º do REASP, mas beneficiando de atenuação especial – v. ainda Arts.º 17º nº 4 e 19º RGCOC.
Por outro lado, nenhuma dúvida assistiu ao julgador na decisão proferida, não só pela Autoridade Administrativa, mas igualmente pelo Tribunal, com referência à fundamentação supra expendida, mostrando-se a prova cabal da ocorrência dos factos descritos e acusatórios nesta parte.
Pelo que e nesta parte, no que tange à contra-ordenação muito grave imputada improcede o recurso.
Pelo exposto, mostra-se verificada tal infracção e conforme imputado.
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Neste momento, concluindo-se pela prática da contra-ordenação muito grave em causa, resta apenas apreciar a medida da coima aplicada.
Há que atender em sede de recurso, no que concerne ao quantum de tal sanção, o disposto no n.º 1 do Art.º 72.º - A do Regime Geral das Contra-ordenações, que proíbe a reformatio in pejus, nos casos em que a decisão da autoridade administrativa é impugnada somente pela arguida ou no seu exclusivo interesse.
No caso dos autos inexiste qualquer fundamento que possibilite a exclusão de tal responsabilidade.
Tendo presente o Art.º 18º do RGCOC não são referidos antecedentes, não se apurou benefício económico, existindo reparação.
A gravidade dos factos é média/alta, uma vez que a actuação da arguida ocorreu, a título negligente, mas tratando-se de uma infracção muito grave.
Segundo o Art.º 59º nºs 1, 4 al. c), 8 e 9 do REASP, os limites mínimos e máximos das coimas estão fixados em €7.500,00 e €22.250, respectivamente, uma vez que a imputação é a título negligente e não doloso, beneficiando de atenuação e redução a metade o valor fixado.
Considerando a factualidade apurada e o próprio critério utilizado pela Autoridade Administrativa, fixando a coima em causa pelo seu mínimo, bem como atendendo às concretas condições da recorrente e ao facto desta farmácia estar em funcionamento, revelar balanços positivos e contas saudáveis, tendo diligenciado pela reparação, consideramos adequado, justo e proporcional manter a coima fixada no que tange à contra-ordenação muito grave e pelo seu mínimo de €7.500 (e até apelando ao principio que proíbe a reformatio in pejus).
Sem esquecer que a coima a aplicar deve surgir como uma verdadeira sanção, com imposição de certo sacrifício para a arguida, devendo funcionar como um dissuasor eficaz, afastando-se o sentimento de impunidade que constitui um incentivo à infracção e ao desrespeito pelas regras.
Tendo presente a gravidade da infracção (muito grave), não obstante a actuação negligente, a postura da arguida e recorrente, detendo capacidade financeira na data dos factos, a experiência detida e conhecimento, não sendo alegada e nem comprovada qualquer causa ou fragilidade específica, consideramos que não se justifica a aplicação do Art.º 51º do RGCOC, ficando a mesma aquém das exigências de prevenção e sancionamento legal que se impõem, gerando até sentimentos de impunidade.
Veja-se com este entendimento o teor do Ac. TRE datado de 26-01-2021 in www.dgsi.pt, plasmando que “Em matéria de ilícito contra-ordenacional a admoestação é uma medida alternativa para os casos de pouca relevância desse ilícito e da culpa do agente, circunstâncias que têm que verificar-se cumulativamente. 2 - Se apesar de resultarem provados factos relevantes relativos à menor culpa do arguido/recorrente, como sejam a actuação ser qualificada como negligente e a ausência de antecedentes contra-ordenacionais, tendo o arguido sido condenado por uma contra-ordenação que a própria formulação legal do preceito tipificador da conduta classifica como muito grave, fica afastada desde logo a possibilidade da aplicação da medida de admoestação, prevista no artigo 51º, do Regime Geral das Contra-Ordenações, pois que, objectiva e expressamente, trata-se de uma contra-ordenação com especial e muito relevante gravidade.”, bem como Ac. TRP datado de 17-01-2021 in www.dgsi.pt, consagrando “... o instituto da admoestação apenas pode ser aplicado  se, cumulativamente, a infração consistir em contraordenação classificada como leve, ... “ (sublinhado nosso).
Tudo ponderado, mantem-se a decisão administrativa no que tange à infracção muito grave.
Custas pela recorrente.
E) DISPOSITIVO
Pelo exposto, julgo improcedente, por não provado, o recurso interposto pela arguida/recorrente, e em consequência decido manter integralmente a decisão administrativa e a coima aplicadas.
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Custas a cargo da recorrente, com 2 U.C.´s de taxa de justiça (cfr. Art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e Art.º 8.º, n.º 7 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais ex vi do Art.º 92.º, n.ºs 1 a 3 e Art.º 93.º, n.º 3, ambos do Regime geral das Contra-Ordenações), sem prejuízo e eventuais isenções de que possa beneficiar
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Após trânsito, comunique à entidade administrativa – cfr. Art.º 70.º, n.º 4 do Regime Geral das Contra-Ordenações, na sua redacção vigente.
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Notifique, comunique, dê baixa.
D.n.
Deposite.»

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Inconformada com esta decisão judicial, a arguida veio interpor recurso para este Tribunal da Relação, pedindo a revogação da sentença recorrida. Tendo apresentado a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«EM CONCLUSÃO:
a) Ao omitir os factos subjectivos subjacentes á infracção imputada, a acusação é nula, nulidade essa não sanada, antes agravada, pelo facto de a decisão administrativa pretender suprir tal nulidade com a consideração como provados de factos que nem sequer foram aflorados pela acusação/auto de noticia, o que determina, contrariamente ao que a sentença recorrida considera, que a decisão impugnada viole o disposto no art.º 58º do DLCO, ferindo a mesma de nulidade, por aplicação do disposto no art.º 379º, nº 1, al. b) e c) do Cod. Proc. Penal e em obediência ao princípio do contraditório, este de dignidade constitucional, na linha do afirmado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015), de acordo com o qual “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto como sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal”.
b) Sendo que, a considerar-se que a acusação/auto de noticia não carece de conter os elementos subjacentes a uma acusação e está a violar o principio da defesa vertido no art.º 32º da Constituição da Republica Portuguesa, sendo a decisão administrativa impugnada nula, desde logo por aplicação subsidiária dos            preceitos do processo criminal (ex vi artigo 41.º do RGCO), de harmonia com o disposto no artigo 379.º, n.º 1,alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal;
c) Não tendo a sanção relativa aos elementos mencionados em 3 dos factos assentes, é aquele ponto estranho ao objecto do processo, devendo o mesmo ser eliminado;
d) A decisão sobre a matéria de facto omite a existência de um contrato de instalação e manutenção do sistema de videovigilância celebrado entre a recorrente e uma entidade especializada na área de segurança, constituindo aquele elemento um dado essencial na aferição da não responsabilidade contraordenacional que se afirma;
e) Sendo que aquele mesmo facto, que deve ser aditado aos factos provados, é determinante na exclusão da negligencia apontada á recorrente no que concerne á ocorrência determinante dos autos, não podendo subsistir o conclusivamente afirmado nos pontos 4 e 5 dos factos provados na medida em que, atentos os princípios da culpa e da causalidade, não contribuiu a recorrente para a situação anómala detectada, antes preveniu que a mesma não tivesse lugar ao contratar uma entidade especialmente          vocacionada a assegurar os procedimentos regulamentares e legais inerentes a tal actividade;
f) Com efeito, a exigibilidade comportamental da recorrente não pode ultrapassar o seu cuidado em assegurar que a implementação e manutenção do sistema de vídeo vigilância eram realizados por quem esta tecnicamente habilitado para o efeito, sendo que nem a fundamentação dos elementos constantes dos pontos 4 e 5 dos factos provados esclarece qual o comportamento que lhe seria exigível para concluir pela afirmada negligencia;
g) De acordo com o art.º 51º do RGCO, a gravidade da infracção a considerar para efeitos de indagar da possibilidade de aplicar a sanção de admoestação deve ser aferida pela conjugação de todas as circunstâncias concretas do comportamento ilícito, não podendo considerar-se essa possibilidade inelutavelmente arredada pela classificação como contra-ordenação grave, estando todos os demais requisitos que proporcionalmente conduzem á sanção de admoestação reunidos;
h) A sentença recorrida, salvo melhor opinião, violou os comandos legais acima assinalados.»

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Notificado da interposição do recurso, o Ministério Público (junto da 1ª instância) respondeu, concluindo pela improcedência do mesmo e pela manutenção integral da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição):
«a) A recorrente interpôs recurso da douta sentença proferida pelo tribunal a quo que manteve integralmente a decisão administrativa e a coima aplicada e, consequentemente, condenou a sociedade arguida no pagamento de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), pelo facto de o seu sistema de videovigilância conservar imagens obtidas além de trinta dias, prazo legal máximo fixado para o efeito (contra-ordenação muito grave) e ainda, pela circunstância de não apresentar comunicação registo da instalação da sirene para exterior (contra-ordenação leve), a título negligente, contra-ordenações p. e p. pelos Art.ºs 31º nº 2, 11º e 59º nº1 al. i), 3 al. b), 4 al. a) e c), 8 e 9, do REASP (Regime Exercício da Actividade Segurança Privada – Lei 34/2013 de 16-05),na redação dada na data dos factos, acrescida de custas do processo.
b) Com o auto de notícia e depois com a notificação a que alude o artigo 50.º do RGCO, a arguida esta estava em condições de conhecer a factualidade que lhe foi imputada e, deste modo, poder exercer um efetivo direito de defesa. Aliás, tal como fez.
c) Tem sido este o entendimento, unânime, da nossa doutrina, porquanto tal como explica a Relação de Évora, no douto Acórdão proferido no Processo n.º 80/14.1TBORQ.E1, disponível Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (dgsi.pt):
“I - A falta de comunicação, na notificação a que alude o artigo 50º do regime geral das contraordenações, de factos relativos ao elemento subjetivo da infração, não é causa de nulidade do processo administrativo. E a esta conclusão não obsta a doutrina fixada pelo S.T.J., no seu Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003 (publicado no DR, Série I-A, de 25-01-2003).
II - É suficiente que seja comunicada ao arguido a conduta naturalística, que pode integrar infração ao direito de mera ordenação social, as sanções que lhe são abstratamente cominadas e o respetivo fundamento normativo.”
d) A obrigação de assegurar o correto funcionamento do sistema é da recorrente. Se transfere essa responsabilidade para um terceiro e esse terceiro incumpre com o contratado, essa situação consubstancia um incumprimento contratual entre prestador e cliente que terá que ser discutido no âmbito da responsabilidade civil, mas não pode, naturalmente, consubstanciar uma causa de exclusão da responsabilidade da recorrente ao nível do regime contraordenacional.
e) Inexiste, assim, qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
f) Conforme decorre da douta sentença proferida, “Tendo presente a gravidade da infracção (muito grave), não obstante a atuação negligente, a postura da arguida e recorrente, detendo capacidade financeira na data dos factos, a experiência detida e conhecimento, não sendo alegada e nem comprovada qualquer causa ou fragilidade específica, consideramos que não se justifica a aplicação do Art.º 51º do RGCOC, ficando a mesma aquém das exigências de prevenção e sancionamento legal que se impõem, gerando até sentimentos de impunidade”.
g) Em face da prova dos elementos objetivos e subjetivos em causa deverá a sociedade arguida ser condenado nos termos em que foi sendo a decisão justa, adequada e proporcional à gravidade da contraordenação.»

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Nesta Relação, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso em apreço com manutenção integral da decisão recorrida. Para o efeito, aderindo ao teor da resposta já apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª instância e, também, (em suma): salientando que a sentença recorrida se mostra devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não ocorrem vícios no seu texto e que, ademais, interpretou corretamente a prova, fundamentou de forma adequada os concretos motivos de apreciação da mesma e procedeu à correta determinação da sanção aplicada.
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A arguida foi notificada deste parecer e nada respondeu.
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 Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Agora, cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO
Âmbito do recurso
Nos recursos interpostos de decisões do tribunal de primeira instância, no âmbito de processos de contra-ordenação, estatui o art.º 75º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (que contém o regime geral das contra- ordenações e das coimas - doravante designado por RGCO):
«Âmbito e efeitos do recurso
1 - Se o contrário não resultar deste diploma, a 2ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
2 – A decisão do recurso poderá:
a) Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo o disposto no artigo 72º-A;
b) Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido».
Quer isto dizer que, no âmbito de processos de contra-ordenação, o Tribunal da Relação apenas conhece, em regra, da matéria de direito, sem prejuízo de poder alterar decisão do Tribunal de 1ª instância recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, desde que não viole a proibição da reformatio in pejus (previsto no art.º 72º-A), ou sem prejuízo de poder aquela decisão ser anulada e devolvido o processo ao Tribunal de 1ª instância.
Por outro lado, também importa não esquecer que, nos processos de contra-ordenação, o âmbito do recurso (para além daqueles  limites, especialmente, consignados) também se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação das questões que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito (cfr. o art.º 41º, nº 1, do RGCO que prevê a aplicação subsidiária das disposições do Código de Processo Penal – doravante designado por CPP).
No caso em apreço, relativamente à parte da decisão recorrida e face às conclusões do recurso apresentado pela arguida/recorrente, as questões a decidir são:
1ª questão – Há nulidade da decisão (na parte impugnada) por falta de factos subjectivos atendíveis e por falta de menção de factos excludentes de culpa da arguida?
2ª questão – A sanção devia ser de admoestação?  
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Conforme já vimos, a arguida aceitara a parte da condenação relativa à pena de admoestação aplicada pela autoridade administrativa, relativamente à imputada contra-ordenação leve, pela existência de uma sirene para o exterior daquele seu estabelecimento sem que tivesse sido comunicada e registada essa instalação à autoridade policial - pelo que esta factualidade e a correspondente prática infracional e respectiva sanção já transitaram em julgado.
Tão somente, a arguida impugnara a parte relativa à condenação na sobredita coima de € 7.500, pela imputada contra-ordenação muito grave relativa à imputada falta de destruição das gravações de imagem obtidas pelos sistemas de videovigilância ali existentes, depois de decorrido o prazo de 30 dias a contar da data da respectiva captação.

1ª questão – Há nulidade da decisão (na parte impugnada) por falta de factos subjectivos atendíveis e por falta de menção de factos excludentes de culpa da arguida?
A arguida alega tal por considerar, por um lado, que o auto de notícia/acusação não continha factos subjectivos subjacentes à imputada infracção e que tal aditamento pela decisão administrativa deve ser eliminado e, por outro lado, que a decisão administrativa omite factos essenciais para a não responsabilidade contra-ordenacional da arguida.
O Ministério Público, quer junto da 1ª instância quer junto Tribunal superior, refuta tal.
Cumpre apreciar e decidir.
Desde já se adianta que não assiste razão à arguida/recorrente.
Passamos a explicar porquê.
Está em causa a prática (pela arguida enquanto empresa/pessoa colectiva proprietária de uma farmácia) de imputada contra-ordenação muito grave e com negligência, prevista e punível pelos art.ºs 31º, nº 2, e 59º, nº 1, al. i), nº 4, al. c), nº 8 e nº 9 da Lei nº 34/2013, de 16-5 (que aprovou o Regime do Exercício da Actividade de Segurança Privada – doravante com a abreviatura REASP), na redacção primitiva ou anterior à actual (dada pela Lei nº 46/2019, de 8-7, que por força do seu art.º 7º só entrou em vigor a 7/9/2019 – enquanto que os factos em apreço nos autos são anteriores, reportam-se ao período de Março a Maio de 2019), segundo os quais: 
«Artigo 31.º - Sistemas de videovigilância
2 - As gravações de imagem obtidas pelos sistemas videovigilância são conservadas, em registo codificado, pelo prazo de 30 dias contados desde a respetiva captação, findo o qual são destruídas.»;
«Artigo 59.º - Contraordenações e coimas
1 - De acordo com o disposto na presente lei, constituem contraordenações muito graves: (…)
i) O incumprimento dos deveres previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 31.º e no artigo 35.º;
4 - Quando cometidas por pessoas coletivas, as contraordenações previstas nos números anteriores são punidas com as seguintes coimas: (…)
c) De (euro) 15 000 a (euro) 44 500, no caso das contraordenações muito graves. (…)
8 - A tentativa e a negligência são puníveis.
9 - Nos casos de cumplicidade e de tentativa, bem como nas demais situações em que houver lugar à atenuação especial da sanção, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade.»

- Em primeiro lugar, importa referir que (contrariamente ao argumentado pela arguida/recorrente e salvo o devido respeito) o auto de notícia não constitui uma acusação e, muito menos, se equipara a uma acusação em processo criminal. Sendo descabida a pretensa aplicabilidade do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 1/2015 de 27-1-2015 reportado a uma acusação.
Conforme a sua designação indica, trata-se de um auto de notícia elaborado por autoridades policiais ou fiscalizadoras dotadas de competência, direitos e deveres equivalentes aos que têm em matéria criminal (conforme a previsão contida no art.º 48º do RGCO) e apenas é equiparado ao auto de notícia criminal (previsto no art. 243º, nº 1, do CPP e por remissão subsidiária do art.º 41º do Regime Geral das Contra Ordenações - aprovado pelo D.L. nº 433/82, de 27-10 com a actual redacção dada pela Lei nº 109/2001 de 24-12, doravante com a abreviatura RGCO).
Conforme salienta Manuel Ferreira Antunes em “Contra-Ordenações e Coimas Regime Geral” (2ª edição Petrony, págs. 210 e 274): Na fase administrativa vigora o princípio do inquisitório e o princípio da oficiosidade do conhecimento do ilícito contra-ordenacional de que resulta a natureza pública das contra-ordenações.
Compulsados os autos, constata-se que autoridade policial, no exercício das suas funções, levou a cabo a fiscalização a um estabelecimento de farmácia pertença da arguida e, uma vez efectuadas as várias diligências aí descritas, elaborou o respectivo auto de notícia (nos termos constantes de fls. 1-B a 11 aqui dadas por reproduzidas), dos quais consta, nomeadamente: a descrição das circunstâncias de tempo, modo e lugar da actuação omissiva da arguida e da respectiva infracção consumada por tal omissão, a qual tem inerente o elemento subjectivo da negligência – que se retira da ilicitude material aí descrita. A este propósito (entre muitos outros na dgsi) os Acórdãos do TRE de 26/4/2016 no processo 463/15.0T8SRC e TRL de 8/3/2022 no processo 344/18.5ECLSB.  
Tendo a arguida sido notificada (nos termos constantes de fl. 14  e verso aqui dada por reproduzida) para, querendo apresentar defesa escrita e/ou comparecer junto da entidade policial, no prazo de 20 dias úteis, com a cominação de ser enviado o processo para a autoridade administrativa, conforme veio a suceder, sem que a arguida tivesse optado por exercer esse direito (nos termos constantes de fls. 15 a 22 aqui dadas por reproduzidas).
Por isso, foi dado cumprimento ao disposto nos arts. 46º e 50º do RGCO, isto é, dada possibilidade de audição e defesa por parte da arguida. Tendo esta optado por não exercer tal direito, mesmo sabendo, nomeadamente dos factos em causa e das respectivas normas aplicáveis. Sendo descabido vir, agora, invocar falta de garantias do seu direito de defesa.
E, depois, foi proferida decisão pela autoridade administrativa (nos termos constantes de fls. 25-28 aqui dadas por reproduzidas) contendo todas as menções exigidas pelo art.º 58º do RGCO – nomeadamente, a identificação da arguida, a descrição dos factos imputados, a indicação das provas obtidas, a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão, a respectiva coima, a menção de que se tornaria definitiva e exequível se não fosse judicialmente impugnada.
E, em face da impugnação judicial desta decisão da autoridade administrativa que não a revogou e enviou os autos para Tribunal (nos termos constantes de fls. 1 a 1-A aqui dadas por reproduzidas), a respectiva apresentação dos autos pelo Ministério Público ao Juiz é que vale (e valeu) como uma acusação (nos termos previstos pelo art. 62º do RGCO).
Mas, ainda assim, tal equiparação será com as necessárias adaptações, inerentes à natureza contra ordenacional e respectivo regime especial contido no RGCO que não é, nem pode ser equiparado, exactamente, a um processo criminal. Desde logo porque o ilícito criminal, tendo maior ressonância ética/mais desvalor, também exige regras procedimentais mais rigorosas – neste sentido, entre muitos outros, cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 537/2011 (em dgsi).
Por conseguinte, carece de fundamento a alegada nulidade quer do auto de notícia quer da decisão proferida pela autoridade administrativa.

- Em segundo lugar, importa referir que (contrariamente ao argumentado pela arguida/recorrente e salvo o devido respeito) a culpa da arguida sob a forma negligente está inerente à imputada prática contra-ordenacional.
Pois, conforme já vimos, os supra-transcritos art.ºs 31º, nº 2 e 59º, nº 1, al. i), do REASP, expressamente preveem que as gravações de imagens obtidas por sistemas de videovigilância são conservadas em registo codificado, pelo prazo de 30 dias contados da respectiva captação, findo o qual são destruídos. Sob pena de o incumprimento deste dever constituir uma infracção contra-ordenacional muito grave.
Desta forma, o legislador pretendeu evitar que tais imagens captadas e gravadas [através de um sistema de videovigilância licenciado e registado junto da Direcção Nacional da PSP com vista à protecção de pessoas e bens] se mantivessem guardadas, no respectivo gravador desse sistema, indefinidamente – atentando contra os princípios da adequação e da proporcionalidade a que estão sujeitos os sistemas de videovigilância, apenas, utilizáveis nos termos que regem as normas legais relativas à recolha e tratamento de dados pessoais (cfr. o art.º 31º , nºs 1 a 10, do REASP).
 Por isso, qualquer pessoa (singular ou colectiva) que pretenda instalar e instale um sistema de videovigilância com câmaras de vídeo para captação e gravação de imagem, com o objectivo de proteger pessoas e bens, sabe ou tem de saber da necessidade de obter prévia licença para a respectiva instalação e, uma vez obtida tal licença, instalado tal sistema e efectuada a captação e a gravação das respectivas imagens, que tem de destruí-las no prazo de 30 dias a contar da respectiva captação.
O incumprimento de qualquer um desses deveres configura uma omissão do dever de zelo e de diligência exigíveis a quem pretende aproveitar-se da inerente restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, em prol da defesa de pessoas e bens no respectivo local da instalação do respectivo sistema de videovigilância (com câmaras que captam e gravam imagem de tudo e todos nesse local sem prévio consentimento destes).
Aliás, uma eventual ignorância dessa lei tão pouco justificaria a falta do seu cumprimento – cfr. o art.º 6º do Código Civil.
Voltando ao caso em apreço, já resultava dos autos administrativos a forma negligente de culpa inerente à actuação omissiva desta arguida e a decisão administrativa fez constar os respectivos dizeres a propósito da forma negligente dessa actuação omissiva da arguida e que a decisão judicial reiterou (e bem).
Pois, se arguida, pura e simplesmente, omitiu o dever que a lei lhe impunha, não realizando o acto omitido [mais concretamente, deixando gravadas imagens captadas, durante 75 dias consecutivos, sem destruir as que tinham mais de 30 dias], depreende-se a forma negligente dessa actuação e nem havia necessidade de mais alegações, explicitadoras (à luz das regras de experiência comum ou verosimilhança dos factos) da objectiva/concreta e indesmentível omissão do respectivo dever de zelo e diligência – contrariamente ao que sucederia no caso de uma forma dolosa de actuação, essa sim, que exigiria a explicitação do elemento subjectivo em qualquer uma das modalidades do dolo.
Como sabemos, a negligência é a forma mais leve de culpa (prevista nos art.ºs 13º e 15º do Código Penal) e que é punível em termos contra-ordenacionais (nos termos previstos pelo art.º 8º, nºs 1 e 3, do RGCO e, no caso em apreço, também nos termos do art.º 59º, nº 8, do REASP).
Por isso, carece de fundamento a pretendida eliminação dos respectivos factos a que correspondem os factos provados com os itens 4 e 5 da decisão impugnada.

Aliás, a propósito destes mesmos factos não podemos deixar de salientar que eles, também, incluem factos relativos ao elemento subjectivo da contraordenação leve que a arguida aceitara ter cometido, sem sequer questionar a validade de tal imputação subjectiva e nem sequer alegar o seu cariz conclusivo e nem tão pouco alegar o cariz vago das respectivas menções aí contidas. 

Para além disso, o teor da motivação e das respectivas conclusões recursivas desta mesma arguida/recorrente desmente que a arguida não tenha percepcionado o teor exacto de tais menções/imputações factuais.
A redacção de tais menções afigura-se clara e objectivamente suficiente, à luz das regras de experiência, da normalidade dos factos e qualquer comum (medianamente diligente/zeloso) entende que, antes ou aquando da instalação de um qualquer sistema de videovigilância dotado de câmaras e de um gravador em funcionamento, deve diligenciar por saber não só o modo funcionamento, como também as respectivas regras a observar aquando desse funcionamento e por cuja observância deve zelar – independentemente de o fazer por si só e/ou por intermédio de outrem.
Sempre que não seja cumprido um dos deveres inerentes ao funcionamento do respectivo sistema de videovigilância a operar com captação e gravação de imagens , mais concretamente, sempre que não sejam destruídas as respectivas imagens de pessoas e bens captadas e gravadas há mais de 30 dias e tal seja comprovado por entidade policial e/ou fiscalizadora no exercício das suas funções e por causa delas, o respectivo titular desse sistema de videovigilância incorre na prática, pelo menos negligente e consumada, da sobredita infracção contra-ordenacional muito grave.

Sendo irrelevante um alegado/eventual desconhecimento desse dever, pois a arguida/recorrente podia e devia saber de tal dever inerente ao funcionamento de tal sistema de videovigilância de que tira proveito no seu estabelecimento comercial.
Não tendo ficado demonstrado que uma eventual falta de consciência da ilicitude contra-ordenacional deste facto, por parte da arguida/recorrente, tivesse sido devido a um eventual erro não censurável, sendo que tal ónus da prova lhe cabia – cfr. o art.º 9º do RGCO.

- Em terceiro lugar, importa referir que (contrariamente ao argumentado pela arguida/recorrente e salvo o devido respeito) a alegada contratação de uma entidade vocacionada para assegurar tais procedimentos relativos à videovigilância, mesmo a ter existido com os deveres contratuais alegados pela arguida/recorrente, não releva para a decisão da causa em apreço.
Conforme referem os Dignos Procuradores do Ministério Público, tal situação reportar-se-á a um eventual incumprimento contratual de um terceiro relativamente à arguida, a discutir em sede de eventual responsabilidade civil (que esta lhe poderá assacar por eventuais prejuízos causados, nomeadamente, correspondentes ao valor das coimas sofridas). Mas, tal não consubstanciando causa de exclusão da responsabilidade contra-ordenacional desta.
Pois, como sabemos, sendo a arguida/recorrente a proprietária daquele estabelecimento comercial de farmácia, dotado de um sistema de videovigilância composto por 7 câmaras de videovigilância e um gravador em funcionamento, recaía sobre si a respectiva responsabilidade de zelar (por si só ou por intermédio de outrem) pela observância das respectivas normas inerentes ao funcionamento desse sistema de videovigilância.
Sendo que, à semelhança do que sucedera aquando da sua instalação em que, seguramente, a arguida incumbira outrem para o efeito, também, aquando do funcionamento e/ou da manutenção desse sistema de videovigilância, é legítimo que a arguida tenha incumbido e/ou venha a incumbir outrem para o efeito.
Não cabendo no âmbito deste processo aferir quem concretamente e de que modo era feito, ou não era feito, tal controlo do período temporal de conservação das imagens obtidas/captadas nesse sistema de videovigilância.
Por conseguinte, não relevando esta matéria para efeitos daquela responsabilidade contra-ordenacional da arguida/recorrente, carece de fundamento a invocada omissão da sua menção na decisão.


2ª questão – A sanção devia ser de admoestação?
A arguida/recorrente alega que a classificação desta impugnada infracção contra-ordenacional, como muito grave, não pode arredar a possibilidade de lhe ser aplicada, apenas, uma correspondente admoestação por escrito.
O Ministério Público, quer junto da 1ª instância quer junto Tribunal superior, refuta tal.
Cumpre apreciar e decidir.
Desde já se adianta que não assiste razão à arguida/recorrente.
Vejamos porquê.
O Artigo 51.º do RGCO, com o título “Admoestação” consigna o seguinte:
«1 - Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.
2 - A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação.»
Ora, voltando ao caso em apreço, o legislador classificou esta contra-ordenação como muito grave.
Precisamente porque tal captação e gravação de imagens, naquele estabelecimento comercial da arguida/recorrente, sem consentimento das pessoas filmadas, contém dados da “vida privada” destas.
Por isso mesmo, tendo em conta, por um lado, a protecção dos sobreditos direitos e interesses constitucionalmente protegidos (com são o direito à imagem e à reserva da vida privada, previstos no art.º 26º da Constituição da República Portuguesa) e, por outro lado, a respectiva compressão (consentida pelo sobredito regime contido no REASP), esta só se justifica (em prol da protecção de pessoas e bens que se encontrem no respectivo local dotado de sistema de videovigilância), desde que, sejam cumpridas as sobreditas exigências legais (tais como de obtenção de prévio licenciamento e de destruição das imagens gravadas logo que decorram 30 dias contados da respectiva captação).
No caso em apreço, é inquestionável que a arguida/recorrente obtivera o licenciamento para esse sistema de videovigilância, em funcionamento no respectivo estabelecimento comercial da arguida/recorrente, sistema este constituído por 7 câmaras de videovigilância e 1 gravador. E, aquando da acção de fiscalização, levada a cabo por entidade competente, foi constatado que a arguida/recorrente mantinha as respectivas imagens captadas e gravadas, desde há 75 dias consecutivos sem as destruir – isto é, por um período que excedia o dobro do permitido legalmente.
Por isso mesmo, conforme já vimos, a arguida/recorrente incorreu na prática dessa contra-ordenação muito grave, sob a forma consumada e com culpa negligente.
E tendo sido, precisamente, esta forma de culpa negligente, bem como a posterior regularização da situação por parte da arguida, que haviam justificado a atenuação especial da coima aplicada pela autoridade administrativa.
Mais concretamente, a arguida/recorrente já beneficiara de tal atenuação especial da coima que implicara a redução dos limites abstractos para metade (ao abrigo do disposto no art.º 59º, nº 9, do REASP , em conjugação com art.º 72º do Código Penal “ex vi” do art.º 32º do RGCO), passando os limites abstractos da coima (fixados na alínea c) do nº 4 desse art. 59º do REASP) de €15.000 e €44.500, respetivamente, a ser de €7.500 e €22.500.
E tendo em conta estes últimos limites abstractos da coima (especialmente atenuada) fora-lhe fixada a coima correspondente ao valor mínimo de €7.500.
Ora, conforme tão bem referiu a Exmª Juiz da 1ª instância, esta é a sanção mais ajustada ao caso em apreço, sob pena de que ficaria comprometido o cariz sancionatório da coima com imposição do inerente sacrifício patrimonial (embora já atenuado especialmente) e eficaz dissuasor de reincidência e afastando-se o sentimento de impunidade que constituiria um incentivo à infracção.
Em suma, sendo esta uma contra-ordenação muito grave exclui-se a possibilidade de lhe ser aplicada uma mera admoestação.
Por conseguinte, carece de fundamento a pretensão da arguida/recorrente no tocante à natureza da sanção que lhe foi aplicada nos autos.

DECISÃO
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, em conferência, acordam os Juízes que integram a 9.ª Secção deste Tribunal da Relação, em negar provimento ao recurso interposto pela arguida, AA, confirmando a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs (art.º 513º, nº 1, do CPP, ex vi do art.º 74º, nº 4, do D.L. nº 433/82, de 27 de outubro, art.º 93º, nº 3, deste último diploma, e art.º 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo).
Notifique.
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Lisboa, 25 de Maio de 2023
(Texto elaborado pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Paula de Sousa Novais Penha
Carlos da Cunha Coutinho
Raquel Correia de Lima