Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | LAURINDA GEMAS | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO ATROPELAMENTO CULPA DO LESADO RESPONSABILIDADE PELO RISCO CONCORRÊNCIA INDEMNIZAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
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Sumário: | SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC) I – No quadro da responsabilidade civil por facto ilícito emergente de acidente, todo aquele que intenta uma ação de indemnização nela fundada tem de demonstrar que estão verificados os respetivos pressupostos, factos constitutivos do direito que o lesado se arroga (art. 342.º, n.º 1, do CC), salvo se existir uma presunção legal de culpa, com a consequente inversão do ónus da prova (cf. artigos 487.º, n.º 1, e 344.º, n.º 1, do CC). II – Não resultando dos factos provados a prática pelo condutor do veículo automóvel interveniente no acidente (o atropelamento do Autor quando atravessava a faixa de rodagem) de uma contraordenação estradal ou a violação de um dever geral de cuidado, importa indagar se a responsabilidade pelo acidente corre por conta do risco da proprietária do veículo, que se presume que tem a direção efetiva do mesmo e o utiliza no seu próprio interesse (cf. art. 503.º, n.º 1, do CC), estando previsto no art. 505.º do CC que essa responsabilidade é excluída quando se prove que o acidente aconteceu por “culpa”/facto imputável ao peão ou a terceiro, ou que o acidente se deu por caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo. III – No caso dos autos, estando provado que o Autor atravessou a faixa de rodagem sem previamente se certificar de que, tendo em conta a distância que o separava dos veículos (pelo menos dois) que nela transitavam e a respetiva velocidade, o podia fazer sem perigo de acidente, e que, ao realizar o atravessamento da faixa de rodagem, parou e, sem atentar no facto de o veículo segurado (à frente do qual tinha acabado de se atravessar) estar demasiado próximo, recuou, “indo embater na frente esquerda” desse veículo, impõe-se concluir que o acidente se deu em virtude de o Autor – muito provavelmente por a taxa de alcoolémia (1,82 g/l) que apresentava afetar a sua capacidade de discernimento, atenção e reação – ter atravessado a faixa de rodagem de forma temerária, violando os preceitos atinentes à liberdade de trânsito e ao atravessamento da faixa de rodagem por peões (cf. artigos 3.º e 101.º do Código da Estrada). IV – Acompanhamos a corrente jurisprudencial no sentido da interpretação sistemática e atualista dos artigos 503.º, 505.º e 570.º do CC, reconhecendo que não se verifica uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência (causal) entre “culpa do lesado” ou, melhor dizendo, facto a este imputável, por um lado, e risco do veículo causador do acidente, por outro lado, havendo que considerar diferentes cenários, consoante, a par da contribuição causal do risco do veículo para os danos, seja de qualificar a contribuição causal do lesado como: (i) não culposa (não sendo, pois, de convocar o art. 570.º do CC), podendo ser-lhe atribuída uma indemnização de medida correspondente ao valor total dos danos por si sofridos; (ii) com culpa leve, justificando-se então uma redução proporcional (parecendo adequado que não seja superior a 30%) do valor da indemnização; (iii) com culpa igual ou aproximada à da medida da contribuição causal do risco do veículo, determinando a proporcional redução do valor da indemnização; (iv) com culpa grave ou dolo, em que a indemnização deve ser mesmo excluída ou meramente simbólica. V – No caso dos autos, apesar de o atropelamento ter sido “imputável ao próprio lesado”, entendemos que, no contexto fáctico apurado, a responsabilidade pelo risco fixada no n.º 1 do art. 503.º do CC não deverá ser totalmente excluída. Com efeito, a juventude do Autor, a circunstância de à hora do acidente o local ser frequentado por diversas pessoas que circulam, apeadas, provenientes de espaços de lazer e diversão ali existentes, bem como o facto de o Autor, já no decurso do atravessamento da via (que não devia ter iniciado) avistar um outro veículo a grande velocidade e, para evitar o embate com este, ter recuado, leva-nos a considerar que se justifica atribuir-lhe uma indemnização, ainda que de valor simbólico, considerando o pedido formulado e os danos patrimoniais e não patrimoniais que efetivamente resultaram do acidente. VI – O valor da indemnização, sendo simbólico, não deverá ser irrisório, mostrando-se equitativamente adequado fixá-lo num valor próximo do correspondente a 10% do montante do pedido líquido, mais precisamente em 25.000 €, ao qual acrescerão os juros de mora vencidos, à taxa legal, desde a presente data até integral pagamento (cf. artigos 559.º, 805.º, n.º 3, e 806.º, n.º 1, do CC, Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril, e AUJ n.º 4/2002). | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados I - RELATÓRIO AA interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou improcedente a ação declarativa que, sob a forma de processo comum, intentou contra GENERALI SEGUROS, S.A. Os autos tiveram início em 26-03-2021, com a apresentação de Petição Inicial, em que o Autor peticionou que a Ré fosse condenada a: a) pagar ao Autor, a título de indemnização pelos danos causados, a quantia de 238.543,12 € (duzentos e trinta e oito mil quinhentos e quarenta e três euros e doze cêntimos), acrescida dos juros de mora que, à taxa legal anual de 4%, se vencerem desde a data da citação até integral e efetivo cumprimento; b) pagar ao Autor os tratamentos que venham a ser necessários em caso de agravamento das sequelas sofridas no acidente, bem como a indemnizá-lo pelo défice funcional que venha a resultar desse agravamento. Alegou, para tanto e em síntese, que: - O Autor foi vítima de um atropelamento causado por culpa exclusiva do veículo seguro na Ré, no dia 04-04-2018, pelas 01:50 horas, ao atravessar a Avenida 1 após o entroncamento com a Rua 2; - O acidente deu-se quando, após verificação de que a via se encontrava livre e se encontrava a atravessar a faixa de rodagem, de repente, na primeira de três sub-faixas, vislumbrou a presença do referido veículo, vindo, a grande velocidade, na sua direção, junto aos veículos estacionados; - Esse veículo, repentinamente, virou para a sub-faixa (a terceira sub-faixa à direita), sem efetuar qualquer sinalização dessa mudança, pelo que o Autor recuou, mas, ainda assim, foi embatido pelo mesmo veículo, que não logrou travar por rodar a alta velocidade; - O atropelamento deveu-se a culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel segurado da Ré, porque ocorreu na sequência de uma manobra de mudança de direção não assinalada e o condutor do veículo não regulou a sua velocidade às características da via, circulando a mais de 50k/hora; - Por causa disso, o Autor teve várias lesões que lhe deixaram sequelas, sofrendo danos patrimoniais e não patrimoniais. Citada, a Ré apresentou Contestação, em que se defendeu por impugnação motivada e por exceção, rejeitando a responsabilidade do condutor do veículo segurado na produção do acidente e alegando, em síntese, que: - O acidente deu-se por culpa exclusiva do lesado que não se certificou que existia no momento condições de segurança para proceder ao atravessamento da via fora do local próprio para aquele efeito; - O Autor não estaria sequer em condições de poder proceder a essa avaliação uma vez que havia ingerido bebidas alcoólicas; - O veículo segurado circulava a velocidade inferior a 50 km/hora e o seu condutor tentou desviar-se, guinando ligeiramente para a direita e travando, mas nada podia ter feito para evitar o embate, ante a conduta do lesado, inesperada e repentina. Realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, bem como despacho de identificação do objeto do litígio (Da responsabilidade civil emergente do acidente de viação) e enunciação dos temas da prova (1 – Saber da dinâmica do acidente. 2 – Saber da existência de culpa do lesado na produção do acidente. 3 – Saber quais os danos decorrentes do acidente para o Autor.) Realizou-se o exame pericial e a audiência de julgamento, no decurso da qual foram prestados esclarecimentos pelo Sr. Perito e ouvidas as testemunhas arroladas pelas partes. Em 08-04-2025 foi proferida a Sentença ocorrida, que julgou a ação improcedente. É com esta decisão que o Autor não se conforma, tendo interposto o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões: A) A sentença recorrida padece de erro de julgamento porquanto não podia ter julgado provados os factos das alíneas i), jjj) e iii) dos Factos Provados, e devia ter julgado provados os factos das alíneas Jii) [consigna-se que inexiste no elenco dos factos provados a al. Jii), pelo que se deverá ler ii., retificando-se o lapso de escrita], vii) e x) dos Factos não provados. B) A sentença incorre em erro de julgamento ao considerar provado que “o autor foi embatido na faixa do meio” (al. i), por contrariar o croquis da PSP, que posiciona o veículo SZ na via da direita, numa posição ligeiramente oblíqua, sem marcas de travagem ou derrapagem que evidenciem deslocamento da faixa do meio para a direita, e os depoimentos de BB (15-10-2024, 05:03-05:48) e CC (15-10-2024, 03:08, 04:20-04:23), que negam manobra brusca à direita, violando as regras da experiência comum e da lógica da dinâmica rodoviária. C) Do depoimento de DD decorre ainda que o atropelamento não se deu na “faixa do meio” (depoimento gravado a 15/10/2024, entre as 10:15 e as 10:49, de 09:43 a 12:11, 29:07 a29:14 e 29:19 a 32:29). D) É erróneo dar como provado que “no decurso da travessia, o autor avista um veículo a grande velocidade e, para evitar o embate com este, recua, indo embater na frente esquerda do veículo SZ” (al. jjj), por falta de sustentação probatória, face às contradições entre os depoimentos de BB (15-10-2024, 03:55, referindo um “táxi”) e CC (15-10-2024, 03:27, referindo um “BMW branco”), à ausência de menção a outro veículo nas declarações iniciais de BB à PSP (04-04-2018) e ao depoimento de DD (15-10-2024, 08:35-13:48), que confirma, em consonância com as declarações de BB no dia do acidente, a presença exclusiva do SZ no local. E) É logicamente impossível considerar que “o peão vai embater na frente esquerda do SZ” (al. jjj), pois o atropelamento foi frontal, com danos no para-brisas e projeção do peão à direita, conforme fotografias (doc. n.º 4), incompatíveis com a tese de colisão ativa do peão contra o veículo. F) A sentença erra ao afirmar que o autor apresentou uma taxa de alcoolemia de 1,82 g/l (al. iii), sem fundamentação, quando o croquis da PSP indica 1,72 g/l, configurando erro na apreciação da prova. G) O tribunal desvalorizou infundadamente o depoimento de DD (15-10-2024, 09:43-32:29), que situa o embate na via da direita, com base no consumo de álcool, sem prova de comprometimento cognitivo, violando as regras da experiência comum e a análise objetiva da consistência do testemunho com o croquis e a dinâmica do acidente. H) Deveria ter sido provado que “o autor deteve a marcha ao iniciar a travessia, por verificar que na via contígua ao estacionamento circulava o veículo SZ a grande velocidade” (al. Jii) [leia-se ii., retificando-se o lapso de escrita], com base nas declarações de BB à PSP, que omitem a existência de qualquer outro veículo (04-04-2018) e no depoimento de DD (15-10-2024, 08:35-13:48), que confirma a presença exclusiva do SZ a 40-50 metros, justificando a reação do amigo. I) Era imperativo considerar provado que “o condutor do SZ apercebeu-se da presença do autor na via e do seu recuo antes do embate” (al. vii), conforme declarações de BB à PSP (04-04-2018) e em julgamento (15-10-2024, 04:40-10:25), que admitiu ter visto o peão atravessar e recuar. J) O tribunal deveria ter provado que “o condutor do SZ conduzia a velocidade superior à permitida e excessiva para as condições do local” (al. x), pois a projeção do peão a 10 metros indica impacto a 40-60 km/h, e BB afirmou estar em travagem com ABS ativo (15-10-2024, 03:40-20:03), sugerindo velocidade inicial superior a 50 km/h, inadequada para um local com visibilidade reduzida e presença de peões (al. h, j, l). K) Os factos provados são insuficientes para determinar a dinâmica do acidente e a imputação da responsabilidade, pois não esclarecem a trajetória do SZ, a ausência de outros veículos e a adequação da velocidade às condições do local, comprometendo a formação de um juízo fundado sobre a culpa. L) A sentença erra ao atribuir culpa exclusiva ao peão, com base na taxa de alcoolemia e na alegada imprevisibilidade do recuo, pois os factos provados revelam que o autor reagiu legitimamente à aproximação de um veículo que vinha a grande velocidade, conforme ficou provado na sentença (Al. jjj) e conforme depoimento de DD (15-10-2024, 08:35-13:48), não violando qualquer norma de segurança rodoviária. M) O condutor do SZ (BB) violou os artigos 13.º, n.º 2, 24.º e 25.º, n.ºs 1 e 2 do Código da Estrada, ao não adequar a velocidade (superior a 50 km/h) às condições do local (visibilidade reduzida, presença de peões, al. h, j, l) e ao conduzir desatento, não se apercebendo de ambos os peões, ao contrário de CC (15-10-2024, 02:36-09:58), configurando culpa no atropelamento. N) Configura atuação culposa aquela em que o condutor, apesar de se aperceber da presença do peão na via por onde circula e, simultaneamente da aproximação de um veículo a grande velocidade na via à sua esquerda e a qual o referido peão quer atravessa, não prevê a possibilidade de interrupção da travessia pelo peão, não parando o veículo. O) A responsabilidade objetiva da ré (art. 505.º do Código Civil) nunca poderia ser excluída, pois não se verifica culpa grave (faute inexcusable) do peão, que iniciou a travessia em segurança e recuou perante um perigo iminente, nem causa exclusiva do lesado ou força maior. P) Mesmo admitindo, por hipótese, imprudência do peão, a desatenção e a velocidade inadequadas do condutor contribuíram para o acidente, configurando concorrência de culpas (art. 570.º do Código Civil, por analogia) e impondo a partilha da responsabilidade, conforme Ac. do STJ de 10/17/2019, Proc. 15385/15.6T8LRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Q) A sentença padece dos vícios de erro de julgamento, impondo-se a modificação da decisão quanto aos factos que foram julgados provados nas alíneas i), jjj) e iii) e aos que foram julgados não provados nas alíneas Jii), vii) e x). [leia-se ii. em vez de Jii., retificando-se o lapso de escrita] R) Em face dos factos provados, impunha-se uma decisão condenatória da ré por responsabilidade do condutor do veículo seu segurado no atropelamento. S) Ao absolver a ré do pedido, a Sentença recorrida viola o disposto nos artigos 483.º, 503.º e 570.º do Código Civil. Terminou o Apelante requerendo que seja dado provimento ao presente recurso e revogada a sentença recorrida. Foi apresentada alegação de resposta, em que a Apelada defendeu que deve ser mantida a sentença recorrida, concluindo nos seguintes termos: (…) 3. Os factos dados como provados em sede de Sentença encontram-se corretamente apreciados. 4. A douta Sentença fez correta, justa a acertada qualificação jurídica dos atos praticados pelos intervenientes Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** II - FUNDAMENTAÇÃO Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC). Identificamos as seguintes questões a decidir: 1.ª) Se deve ser modificada a decisão da matéria de facto no tocante aos factos vertidos nas alíneas i), jjj) e iii) do elenco dos Factos Provados e no tocante aos factos vertidos nos pontos II., VII. e X. do elenco dos Factos não provados; 2.ª) Se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, por facto ilícito ou, pelo menos, pelo risco, não se devendo o acidente a culpa grave do Autor. Dos Factos Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos [para melhor compreensão da ordem cronológica dos acontecimentos, alterámos a ordem dos pontos iii) e jjj); assinalámos com asterisco os pontos visados na impugnação da decisão da matéria de facto]: a) No dia 04-04-2018, pela 01h50, na zona das Localização 2, na Avenida 1, no sentido Nascente – Poente, em Lisboa, ocorreu um acidente de viação envolvendo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-SZ, propriedade de EE e conduzido por BB, e o Autor, AA. b) À data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados pela circulação do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo Toyota Corolla e matrícula ..-..-SZ encontrava-se transferida para a Ré (Logo), através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... celebrado com o proprietário do mesmo. c) Imediatamente antes da zona das Localização 2, a Avenida 1 é composta por uma faixa de rodagem, existindo ao centro da mesma um separador central delimitador dos sentidos de trânsito, sendo que, no sentido Nascente – Poente a referida artéria é composta por duas vias de trânsito, e no sentido Poente-Nascente é composta por três vias de trânsito. d) Logo após a área abrangida pelas Localização 2, a avenida 24 de Julho, no sentido Nascente-Poente, passa a ter três vias de trânsito no mesmo sentido. e) Antes do acidente, o Autor circulava, apeado, no passeio destinado ao trânsito de peões, imediatamente após a zona abrangida pelas Localização 2, acompanhado pelo amigo DD. f) O veículo ligeiro de passageiros matrícula ..-..-SZ circulava no citado arruamento, no sentido Nascente – Poente, e na via de trânsito mais à direita considerando as duas únicas vias existentes imediatamente antes das Localização 2. g) A dada altura, o acompanhante do Autor – DD – iniciou o atravessamento da faixa de rodagem no sentido de Norte para Sul, ou seja, de forma transversal atento o sentido de marcha do veículo, sendo seguido pelo Autor. *jjj) Já no decurso da travessia, [o Autor] avista um veículo a grande velocidade e, para evitar o embate com este, recua, indo embater na frente esquerda do veículo SZ. *i) O Autor foi embatido na faixa do meio que existe no local e ficou imobilizado cerca de 10 metros mais à frente já na faixa mais próxima do passeio. h) Antes do embate o condutor do ..-..-SZ apercebeu-se da presença do Autor na via. j) À hora do acidente o local é frequentado por diversas pessoas que circulam, apeadas, provenientes de espaços de lazer e diversão ali existentes. k) Existe um limite de velocidade de 50 Km/h no local. l) O acidente ocorreu num local com visibilidade limitada atento o estacionamento de veículos e com pouca luminosidade atenta a hora do dia. m) Não existia no local nem a uma distância inferior a 50 metros nenhuma passagem sinalizada para peões. n) Na sequência do embate do veículo ..-..-SZ, o Autor foi projetado pelo ar cerca de 10 metros, tendo sido assistido e estabilizado pelo INEM no local e conduzido, de urgência, para o Hospital de Santa Maria (HSM). o) O Autor bateu com a cabeça, tendo sido admitido nas urgências do HSM com um quadro de “vários episódios de vómitos e flutuação do estado de consciência”, “aparente deformidade do joelho esquerdo”, “escoriações à direita na região dorsolombar” e “hipotérmico”. *iii) O Autor, quando deu entrada nos Serviços de Urgência (“S.U.”) do Hospital de Santa Maria (HSM) foi submetido a testes sanguíneos, tendo acusado uma taxa de álcool no sangue (“TAS”) de 1,82g/l. p) Ficou internado em SO Pediátrico daquele hospital entre o dia 04-04-2018 e o dia 06-04-2018, com soroterapia e analgesia endovenosa, tendo realizado vários exames complementares de diagnóstico. q) Efetuou, no dia 04-04-2018, às 04:55, TC Crânio-encefálica e da Coluna Cervical, de que resultaram as lesões descritas no relatório que se transcreve: “Hematoma epicraniano parietal direito, sem evidência de fraturas subjacentes. Densidades hemáticas cortico-piais fronto-orbitrárias bilaterais, em particular à esquerda. Densificação da vertente anterior da fenda inter-hemisférica, em relação com fina lâmina hemática subsdural, sem efeito de massa. O sistema ventricular e as cisternas da base estão permeáveis. Não há sinais de hidrocefalia. As estruturas medianas estão centradas. Nível líquido no seio maxilar esquerdo, não se excluindo componente hemático, embora não se identifiquem fraturas da parede deste seio. Preenchimento parcial com densidade de partes moles da cavidade otomastoideias à esquerda, que poderá estar em relação com densidades hemáticas, admitindo-se possível traço de fratura da parede postero interna do rochedo.” r) Nesse mesmo dia 04-04-2018, pelas 23:05, efetuou novo exame de TC Crânio-encefálica de que resultaram as lesões descritas no relatório que se transcreve: “Comparativamente à TCCE datada de hoje às 04:04 verificamos aumento da espessura de uma coleção extra-axial occipital esquerda, atualmente com cerca de 7mm, sem significativo edema ou efeito de massa. Aumento do edemea associado ao foco contusional frontal esquerdo e fronto-orbitrários bilaterais. Sem sinais de hidrocefalia ou desvios da linha média. Restantes aspetos sobreponíveis ao exame de referência”. s) No dia 05-04-2018, às 14:19, foi feita reavaliação de TCE, de que resultaram as lesões descritas no relatório que se transcreve: “(...) Mantêm-se sensivelmente sobreponíveis as dimensões e efeito de massa do hematoma epidural occipital esquerdo previamente identificado, referindo-se discreta atenuação da sua densidade. Acentuação da hipodensidade do edema associado ao foco contusional frontal esquerdo, persistindo a dimensão e a densidade da componente hemorrágica. Mantêm-se os focos contusionais fronto-orbitário bilaterais, com as características previamente observadas. Sistema ventricular permeável, sem sinais de hidrocefalia. Cisternas da base permeáveis. Estruturas medianas centráveis. Restantes aspectos sobreponíveis aos do exame de referência”. t) No dia 04-04-2018, efetuou ainda TC do joelho esquerdo, de que resultou evidenciado “Sinais de fratura da vertente lateral do planalto tibial externo, com ligeiro afundamento. Fractura da extremidade proximal do perónio. Sinais sugestivos de fractura da vertente lateral do menisco externo com protusão do mesmo. Pequeno derrame articular com tendência a Baker, com densidade hemática. Espessamento com densificação dos tecidos subcutâneos da vertente ântero-lateral do joelho e proximal da perna”. u) No dia 06-04-2018 foi dada alta ao Autor. v) No dia 11-04-2018, o Autor realizou no Hospital da Luz exame de ressonância do joelho esquerdo em cujo relatório se concluiu o seguinte: “Exuberante edema trabecular ósseo envolvendo o planalto tibial, mais expressivo na vertente externa, estendendo-se à região metadiafisária proximal. Edema trabecular ósseo envolvendo a região metaepifisária proximal do perónio e o contorno posterior do côndilo femoral externo. Derrame articular. Importante edema difuso do tecido celular subcutâneo. Rutura em asa de cesto do menisco externo. Estiramento e edema do LCA, com rutura na inserção proximal do feixe antero-interno. Ligamento lateral interno ligeiramente lobulado, com algum edema periligamentar, traduzindo lesão grau I”. w) Devido à rotura de “asa de cesto” do menisco externo do joelho esquerdo, o Autor teve indicação para cirurgia urgente. x) No dia 19-04-2018 o Autor foi internado, tendo sido “efetuada redução e sutura do menisco externo inside-out com fast-fix Smith-nephew (2) e outsider-in com vicril (1), sob anestesia geral”. y) Esteve internado no Hospital da Luz nos dias 19 e 20 de abril de 2018. z) Foi prescrito repouso com joelho em extensão e manutenção da tala, e locomoção com canadianas, tendo realizado, subsequentemente, 30 sessões de fisoterapia. aa) Em 17-04-2018, o Autor realizou ainda, naquela mesma unidade hospitalar da Luz, TC Crânio-encefálica, que evidenciou “Hematoma subdural parietal posterior/occipital esquerdo, em fase sub-aguda, com 9mm de maior espessura, condicionando moldagem parenquimatosa subjacente. Foco de contusão edematoso cortico-subcortical fronto basal esquerdo. Ventrículos e cisternas permeáveis. Sem evidências de fraturas do crânio”. bb) O Autor teve alta da consulta de Neurologia do HSM no dia 12-06-2018. cc) Teve alta da consulta de ortopedia do Hospital da Luz no dia 24-06-2018. dd) Teve alta do Serviço de C.E de Otorrinolaringologia do HSM no dia 12-11-2018. ee) Em 24-02-2021, o Autor realizou exame das Funções Nervosas Superiores para determinar as sequelas neuropsicológicas secundárias ao Traumatismo Crânio-Encefálico sofrido no atropelamento de que foi vítima em 04-04-2018, que concluiu que o Autor apresenta as seguintes sequelas neurológicas: -Défice ligeiro na velocidade de coordenação oculomotora e na velocidade de processamento de informação (flexibilidade cognitiva); - Défice ligeiro na capacidade de recodificação fonológica; - Défice ligeiro na capacidade de retenção e evocação de informação verbal a longo-prazo (com esquecimento); - Défice ligeiro na memória remota (memória semântica); - Défice ligeiro na capacidade de consciência fonológica; - Alteração da funcionalidade quotidiana, com alterações orgânicas da personalidade secundárias a TCE; - Traços compatíveis com ideação paranóide; - “A nível funcional apresenta alterações discretas no desempenho das Atividades da Vida Diária (AVD`s) e no comportamento identificam-se alterações da personalidade, nos interesses e no entusiasmo, salientando-se: flexibilidade diminuída, diminuição do controlo emocional, diminuição da iniciativa, hiperatividade, hábitos etílicos, heteroagressividade verbal, isolamento social, negligência pessoal, anosognosia, ameaças de suicídio e dificuldades de relacionamento interpessoal”. ff) Concluiu-se que “Os achados clínicos da avaliação neuropsicológica são compatíveis com alterações das funções cognitivas dependentes, predominantemente, do lobo frontal em comorbilidade com alterações orgânicas da personalidade. O exame é compatível com Síndroma Orbitofrontal e Dorsolateral”. gg) Na sequência das lesões diretamente sofridas no acidente, o Autor ficou a padecer de sequelas que o afetam de forma permanente. hh) Aquando do atropelamento, o Autor tinha 17 anos de idade. ii) Frequentava o 11.º ano de escolaridade. jj) O Autor foi uma criança e jovem muito saudável, sem importantes ocorrências de saúde física e sem ocorrências de saúde psíquica. kk) A nível escolar, sempre foi um bom aluno, muito autónomo, responsável e seguro de si mesmo. ll) Tinha um pensamento reativo e compreensão rápidos, tendo muita facilidade de aprendizagem, fluente verbalmente e na escrita. mm) O Autor sempre jogou futebol. nn) Sempre teve grande facilidade nos relacionamentos sociais, com os adultos e seus pares, era um jovem versátil, extrovertido, bom conversador, loquaz e com muita vivacidade e alegria pela vida. oo) Alguns meses após o acidente, o Autor manifestou limitações cognitivas e comportamentos antagónicos com aquele que era o seu padrão de personalidade, limitações e comportamentos esses que se foram evidenciando cada vez mais com o passar do tempo e que obrigaram à procura de ajuda profissional. pp) Essas alterações cognitivas e comportamentais são decorrência da afetação do córtex orbitofrontal e do córtex dorsolateral sofrida no TC encefálico, compatíveis com o “Síndrome Orbito-frontal e dorsolateral”. qq) o A apresenta as seguintes sequelas: Membro inferior esquerdo: cicatriz nacarada quase inaparente, longitudinal, na porção anteromedial da patela, medindo 1cm; outra cicatriz quase inaparente e de difícil individualização na porção lateral do joelho; sinais meniscais negativos; sem sinais de instabilidade articular; amiotrofia de 0,5 cm em medição efetuada quinze centímetros acima do pólo superior da rótula (perímetros coxais à direita e esquerda, respetivamente de 53,5 e 53 cm); resistência à flexão e extensão contrariada dentro do normal. rr) A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 04-04-2020, tendo em conta os seguintes aspetos: dois anos para consolidação do quadro neuropsiquiátrico. ss) Foi apurado um Défice Funcional Temporário Total (correspondendo com os períodos de internamento e/ou de repouso absoluto), fixável num período de 7 dias, correspondente aos períodos de internamento e de convalescença no domicílio. tt) Foi apurado um Défice Funcional Temporário Parcial (correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que com limitações), fixável num período 724 dias, correspondentes ao restante número de dias para perfazer o período de tempo entre a data do evento e a data de consolidação médico-legal. uu) Apurou-se uma Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total (correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre outros), fixável num período total de 30 dias, correspondente a um período de recuperação, sendo até agosto de 2019 total para as atividades desportivas (484 dias). vv) Apurou-se uma Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial (correspondendo ao período em que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização destas mesmas atividades, ainda que com limitações), fixável num período total de 701 dias, sendo a partir de agosto de 2019 parcial para as atividades desportivas (247 dias), correspondentes ao restante número de dias para perfazer o período de tempo entre a data do evento e a data de consolidação médico-legal. ww) O Quantum doloris (corresponde à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela vítima durante o período de danos temporários, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões) é fixável no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta a idade do Autor, tipo de evento, tipo de lesões resultantes e tratamentos efetuados, sofrimento psíquico associado às limitações e incerteza do grau de recuperação funcional, potenciado pelo desenvolvimento de quadro neuropsiquiátrico. xx) Das sequelas resultaram um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica: 1. Síndrome frontal (Na0302), desvalorização de 0.5000; 2. Síndrome pós-traumática (Nb1003), desvalorização de 0,0500; 3. Joelho doloroso (Mf1310), desvalorização de 0,0135, num total de 56,25 pontos. yy) As sequelas são compatíveis com o exercício da atividade de estudo, mas implicam esforços suplementares significativos, assim como qualquer atividade profissional que exija esforços mentais. zz) O Dano Estético Permanente (corresponde à repercussão das sequelas, numa perspetiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afetação da imagem da vítima quer em relação a si próprio, quer perante os outros) é fixável no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente, em relação com a cicatriz com que ficou o A. aaa) A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer (correspondente à impossibilidade estrita e específica para a vítima de se dedicar a certas atividades lúdicas, de lazer e de convívio social, que exercia de forma regular e que para ela representavam um amplo e manifesto espaço de realização e gratificação pessoal, não estando aqui em causa intenções ou projetos futuros, mas sim atividades comprovadamente exercidas previamente ao evento traumático em causa e cuja prática e vivência assumia uma dimensão e dignidade significativa) é fixável no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente relativamente a admissíveis limitações no desempenho de atividade desportivas a título lúdico. bbb) O Autor poderá ter de recorrer a medicação antálgica em fases de agudização dolorosa do joelho. ccc) O Autor deverá ter um regular acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico, visando influenciar positivamente (na medida do possível) o prognóstico do seu contexto clínico. ddd) O Autor foi estudante do curso de informática de gestão no ISCTE, licenciatura em que ingressou em setembro de 2020. eee) As sequelas cognitivas e comportamentais não são ainda conhecidas em toda a sua extensão, sendo expectável o agravamento das existentes e aparecimento de outras no futuro. fff) O Autor teve as seguintes despesas de saúde e outras realizadas na sequência do acidente, e que ascendem à quantia de 8.543,12 €: 11-04-2018: 60,00 € (RM joelho) 17-04-2018: 25,00 € (TC Crânio) 17-04-2018: 15,00 € (consulta de neurologia) 17-04-2018: 15,00 € (consulta ortopedia) 17-04-2018: 10,98 € (pensos médicos) 18-04-2018: 6,00 € (RX Tórax) 18-04-2018: 1,25 € (Eletrocardiograma simples) 18-04-2018: 8,73 € (análises clínicas) 19-04-2018 a 20-02-2018: 6.338,69 € (artroscopia) 26-04-2018: 25,98 € (consulta de ortopedia/ pensos médios) 03-05-2018: 25,98 € (consulta de ortopedia/pensos médicos 17-05-2018: 15,00 € (consulta de ortopedia) 21-05-2018: 35,00 € (consulta de fisioterapia) 26-05-2018: 300,00 € (sessões de fisioterapia) 21-06-2018: 15,00 € (consulta de ortopedia) 23-06-2018: 300,00 € (sessões de fisioterapia) 06-04-2018: 9,68 € (medicamentos) 20-04-2018: 11,80 € (medicamentos) 20-04-2018: 19,03 € (medicamentos) 19-04-2018: 90,00 € (certidão PSP) 27-01-2021: 145,00 € (consulta avaliação dano corporal) 10-02-2021: 125,00 € (consulta avaliação dano corporal) 04-03-2021: 250,00 € (exames neuropsicológicos) 15-03-2021: 695,00 € (relatório pericial médico) ggg) O Autor participou o acidente à Ré. hhh) Por carta datada de 05-06-2018, a Ré declinou a responsabilidade do veículo seu segurado pelo acidente. Na sentença foram considerados não provados, no que ora importa (face à impugnação da decisão da matéria de facto), os seguintes factos [substituímos as alíneas (em minúsculas) por numeração romana, como nos parece ter sido pretendido pelo Tribunal a quo; assinalámos com asterisco os pontos impugnados; reproduzimos todos os factos atinentes à dinâmica do acidente]: I. O Autor verificou que existiam condições para atravessar a hemi-faixa de rodagem de sentido de circulação Nascente-Poente, pelo que iniciou o atravessamento junto ao início da terceira via de circulação naquele mesmo sentido. *II. Quando se encontrava a iniciar o atravessamento, o Autor deteve a marcha por verificar que na via de trânsito contígua ao estacionamento circulava um veículo a grande velocidade e que vinha a ser o ..-..-SZ. III. Nesse exato momento, o ..-..-SZ mudou bruscamente a direção para a direita e sem efetuar qualquer sinalização dessa mudança, entrando abruptamente na terceira via de trânsito situada mais à direita daquela em que circulava e onde estava já o autor. IV. Ao aperceber-se da manobra do ..-..-SZ, o Autor tentou recuar, mas foi embatido pela frente sobre o lado esquerdo daquele veículo. V. O Autor foi embatido no início da via de acesso à via interior paralela à Avenida 1 que existe no local, na qual ficou imobilizado cerca de 10 metros mais à frente. VI. O condutor do ..-..-SZ não conseguiu evitar o atropelamento devido à velocidade a que circulava. *VII. Antes do embate o condutor do ..-..-SZ apercebeu-se da presença do Autor na via e do recuo que o mesmo fez ao aperceber-se da sua entrada na via. VIII. O atropelamento só se deu porquanto o condutor do ..-..-SZ mudou bruscamente a direção do veículo para a direita, entrando abruptamente na terceira via de circulação que ali se inicia. IX. O condutor do ..-..-SZ não efetuou qualquer travagem. *X. O condutor do ..-..-SZ conduzia a velocidade superior à legalmente permitida e excessiva para as condições do local. O Tribunal recorrido motivou a decisão da matéria de facto, referindo designadamente, quanto dinâmica do acidente, que: «alicerçou a sua convicção com base na apreciação conjugada dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos das testemunhas, os quais mereceram as seguintes considerações: DD, hoje com 24 anos, era o amigo do A que o acompanhava naquela noite infeliz, referindo conhecê-lo desde o 7º ano. Estiveram juntos num bar no topo das Localização 2 e dirigiam-se para o Urban, uma discoteca que fica do outro lado na Avenida 1. Referiu que iam a conversar ao descer as escadas e foram em frente para atravessar a avenida, sendo que atravessou uns segundos à frente do A e recorda-se que, quando atravessou olhou para a sua esquerda e referiu ter visto um carro relativamente distante, não mencionando qualquer outro. Referiu também que a sua marcha era rápida, porque “era uma estrada, era noite, por precaução”. Confirmou que tinham estado a beber e que o A bebeu tanto quanto a testemunha e que “estava tão bem quanto eu”, o que desde logo lança dúvidas sobre a capacidade de a testemunha avaliar as condições em que procedeu à travessia da avenida e a sua percepção da realidade que o rodeava ser reduzida ou pelo menos afectada de alguma maneira. Trata-se de um jovem de 17 anos, numa noite de amigos, a circular de uma forma relaxada típica da idade e das circunstâncias, mas temos que admitir que também fruto de muito álcool consumido, pelo que as suas afirmações – para além da distância temporal das mesmas: já passaram vários anos – não podem ser tomadas por certas sem hesitação. Para além disso, a memória que temos de eventos traumáticos distantes vai sendo toldada pelas impressões várias que fomos recolhendo e é afectada também pelos eventos posteriores: um acidente numa noite de diversão que afecta um melhor amigo não é algo que se consiga ultrapassar com ligeireza. Assim, no que diz respeito à dinâmica do acidente, o depoimento desta testemunha não se mostra suficiente para alicerçar a convicção do tribunal. BB, hoje com 27 anos, era o condutor da viatura interveniente no acidente que circulava na avenida da direcção da casa da então namorada que ia deixar. Reconheceu desde o início que o evento foi um pouco traumático: “não se lembra, nem sequer se quer lembrar”, mas fez um esforço ao longo do depoimento para transmitir do que se lembrava: que vinha da Estrela com a namorada e tinham de passar por Santos, que estiveram parados no semáforo, vinham na faixa mais encostada à direita, ao lado dos carros estacionados e que arrancou e uns miúdos atravessaram, não se recordando de onde os mesmos saíram, referiu achar ter travado por o instinto ser esse mas não ter conseguido evitar. Confirmou, vendo as fotos do veículo após o embate, que este ocorreu do lado do condutor. Confirmou também as declarações que prestou que constam de fls.23. declarou o condutor do veículo que “[s]eguia de Santos-o-Velho, na 24 de Julho em direcção a alcântara, na faixa mais à direita, colada a uma linhas de carros estacionados, quando um sujeito sai da linha de carros estacionados a correr a atravessar a rua. Com o susto travei e guinei o carro para a direita de modo a evitar o sujeito, mas este parou a corrida e voltou para trás e aí se deu o embate.” Do documento nº4 junto pela ré, no que concerne à averiguação que esta fez do sinistro, a testemunha havia declarado que “(...) circulava na faixa de rodagem da direita, quando, a determinada altura, foi “surpreendido” pelo surgimento do sinistrado (peão), vindo do lado direito do sentido em que seguia, e que passava pelo meio dos carros que ali se encontravam estacionados, a correr, atrás de um amigo seu, a atravessar a estrada, sendo que o dito sinistrado (peão) após ter passado á frente do VS, ao aperceber-se que vinham outros veículos a circular na faixa de rodagem da esquerda, voltou para trás e foi nesse momento que ocorreu este atropelamento.” O depoimento em audiência em nada contrariou o que já tinha afirmado num momento em que a sua memória estaria mais presente. No que diz respeito à velocidade, admite não estar a circular a mais de 40km/hora na medida em que tinha saído do semáforo onde esteve parado a cerca de 100m atrás. CC, hoje com 27 anos, era a namorada do condutor do veículo interveniente, que seguia ao lado deste naquela noite quando se dirigiam para sua casa. Conseguiu perceber que era dois rapazes, lembrava-se até da cor das suas roupas e viu-os a atravessar a estrada, a correr, sendo que o primeiro o fez e o segundo, ao perceber que vinha um carro com velocidade, tentou recuar e bateu no carro onde a testemunha seguia. Não se lembrava se deu tempo para o condutor travar, mas recordava-se de este tentar guinar para direita, mas não o conseguiu a tempo de evitar o embate, concluindo que “não havia nada que o BB pudesse fazer para”. Esta já havia antes declarado que “circulava na 24 Julho, no veículo acima referido, em direcção Santos-o-Velho / Alcântara na faixa da direita. Quando, vindo também da direita, surgiu o peão a correr. Este já a meio das faixas rodoviárias apercebeu-se que vinham carros e voltou para trás. Foi então que se deu o embate.” O seu depoimento prestado de forma segura e serena em sede de julgamento não acrescentou muito mais ao que tinha dito, confirmando de alguma forma a sua credibilidade. No que diz respeito a velocidade com que seguiam, referiu não se recordar, mas considerar que seria uma velocidade normal. Destas duas versões nenhum facto surgiu que justificasse qualquer mudança de direcção para a faixa mais à direita, sendo verosímil que ao tentar evitar o embate, o instinto do condutor seja o de guinar para a direita, o que só faz sentido se o obstáculo estiver à sua esquerda e recuar, daí a projecção ser também direccionada para a direita. O autor não foi ouvido. Todavia, no que concerne ao acidente, já quando o perito averiguador tentou entrar em contacto a mãe deste havia transmitido que este não se recordava de nada, o que voltou a afirmar em sede de julgamento, pelo que o seu depoimento neste momento bem mais distante não se mostraria útil à apreciação dos factos. Assim, no que concerne à dinâmica do acidente, a versão que o Tribunal consignou como provada resulta desta análise critica dos depoimentos que foram prestados conjugados com o que resulta da participação policial, representando aquela que o Tribunal considere ser a mais lógica e aproximada com a realidade dos factos.” Da modificação da decisão da matéria de facto Al. i) do elenco dos factos provados Deu-se como provado que: O Autor foi embatido na faixa do meio que existe no local. O Apelante entende que este facto não deveria ter sido dado como provado, considerando o croquis da participação policial do acidente, bem como os depoimentos das testemunhas BB (condutor do SZ), CC e DD. Vejamos. Neste Tribunal da Relação foi ouvida, na íntegra, a gravação da prova produzida em audiência de julgamento. Analisámos os pertinentes documentos juntos aos autos, designadamente: - a participação do acidente (doc. 1 junto com a PI), atentando em especial no croquis, sublinhando que no mesmo está assinalado o local de circulação do Autor no passeio, atravessando a faixa de rodagem, onde esta tinha (ainda) duas hemi-faixas de rodagem no sentido de marcha do veículo, bem como na descrição do acidente feita pelo condutor e na referência aos danos no veículo serem na “Parte dianteira: Capot e para-brisas”; - as fotografias juntas com a PI como docs. 2 a 6; - os documentos juntos com a Contestação, em particular as fotografias, a declaração amigável de acidente automóvel e o relatório de averiguação elaborado pela testemunha FF, com especial destaque para as fotografias juntas com o mesmo, já que nestas é bem visível a zona do carro em que o embate se deu, precisamente no para-brisas do lado esquerdo (lado do condutor) e, no capot, junto ao farol esquerdo; - os relatórios da perícia médica médico-legal (juntos aos autos designadamente a 23-09-2022, 24-10-2022, 11-04-2023, 03-11-2023 e 14-03-2024). As testemunhas BB e CC deram conta do acidente, de forma que se nos afigurou sincera, sem divergências relevantes, parecendo-nos compreensível e normal que, dada a forma como o acidente aconteceu e o tempo decorrido, a sua perceção e o relato dos acontecimentos não fosse 100% coincidente. Do que disseram resultou claro que o veículo circulava na hemi-faixa mais à direita e aí se manteve, que o Autor, subitamente, atravessou essa hemi-faixa, mas depois parou, quando avistou um outro veículo na hemi-faixa esquerda – veículo que BB disse ser um táxi e CC um “BM branco” – e “voltou para trás”, tendo sido nesse momento que se deu o embate. O depoimento da testemunha FF também nos mereceu credibilidade, reportando as diligências que fez e as conclusões a que chegou, apontando, no que ora importa, no sentido de o embate se ter dado entre as duas hemi-faixas de rodagem; referiu também que, na sua perspetiva, a posição final em que o Autor ficou não resultará de ter sido projetado vários metros, parecendo-lhe que terá cambaleado até ao local onde se imobilizou. Foram evidentes as fragilidades do depoimento da testemunha DD, o qual, como reconheceu, também havia ingerido uma quantidade considerável de bebidas alcoólicas na ocasião, o que explicará que não tenha sido identificado como testemunha pela PSP na altura em que tomou conta da ocorrência. Apesar disso, o seu depoimento, no essencial, não diverge dos demais, dizendo que atravessou em frente, apesar de ter visto um carro “relativamente distante” (mais adiante, no seu depoimento, referiu uns 40,50 m de distância), vindo do seu lado esquerdo, sentiu que podia atravessar, que o fez, andando num passo ligeiramente mais rápido do que o normal, e que, quando olhou para trás o AA estava a atravessar e foi atropelado; do que disse, ficámos convencidos que não viu o momento em que o AA iniciou o atravessamento da faixa de rodagem, nem a forma como o fez, nem sequer o atropelamento, pois estava de costas. De salientar que, no croquis, está assinalado que: o veículo atropelante ficou imobilizado imediatamente antes de a via passar a ter três sub-faixas, numa posição muito ligeiramente oblíqua, mas que sugere precisamente que se tentou desviar do peão quando este “voltou para trás”; e que o ponto onde o Autor atravessou, entrando na semi-faixa de rodagem à frente do último de uma fila de veículos estacionados, se situa também antes de a via passar a três sub-faixas; é também aí assinalada a existência de “matéria vomitada pelo peão”, num local em frente e do lado direito ao do local onde o veículo ficou imobilizado. Ora, posto isto, tudo aponta para que o embate se tenha dado, não na “faixa do meio”, que não existia no local, mas aproximadamente ao meio da faixa de rodagem pela qual circulava o veículo SZ, isto é, na semi-faixa do lado direito, junto à linha que a separa da semi-faixa do lado esquerdo. Assim, neste particular, procede parcialmente a impugnação da decisão de facto, alterando-se a redação da al. i) dos factos provados, a qual passa a ter o seguinte teor: O Autor foi embatido na via de trânsito mais à direita, pela qual circulava o veículo SZ, junto à linha descontínua de separação da outra única existente no local. Al. jjj) do elenco dos factos provados Deu-se como provado que: Já no decurso da travessia, [o Autor] avista um veículo a grande velocidade e, para evitar o embate com este, recua, indo embater na frente esquerda do veículo SZ. O Apelante defende que o facto deve ser dado como não provado, argumentando, em síntese, que: há contradição entre o que foi dito em julgamento por BB e por CC; aquele alterou a versão dos factos que deu no dia do acidente, o que evidencia uma construção posterior destinada a excluir a sua responsabilidade pelo atropelamento; o depoimento da testemunha DD contraria esta versão dos acontecimentos. Vejamos. Reiteramos as considerações suprarreferidas a propósito do facto vertido na al. i). Não detetámos contradições suscetíveis de retirarem credibilidade aos depoimentos das testemunhas BB e CC, a qual, referiu inclusivamente que embora à data fosse namorada do primeiro, já não mantêm qualquer relação. Parece-nos normal, dada a sucessão rápida dos acontecimentos e o facto de ser noite, que o primeiro tenha pensado que se tratava de um táxi, pois existem táxis de cor bege-marfim, que, sendo muito clara, pode ser confundida com a cor branca; e obviamente pode haver táxis da marca referida. A testemunha BB disse que várias vezes reviu mentalmente os acontecimentos, tentando perceber o que podia ter feito para evitar o acidente. Parece-nos compreensível que, na altura em que preencheu a “Declaração manuscrita do acidente”, esse aspeto fáctico não lhe tenha parecido relevante; aliás, essa declaração não é “exemplar”, apresentando, por exemplo, uma passagem riscada, evidenciando um raciocínio em construção. Por outro lado, o que a testemunha DD disse não invalida o que foi dito, de forma segura, por estas duas testemunhas, já que aquele podia não se ter apercebido da presença de outro veículo, tanto mais porque o mesmo circulava na faixa mais à esquerda e a uma velocidade elevada; a testemunha DD, fosse pelo consumo de bebidas alcoólicas que reconheceu ter feito, facto que pode ter alterado a sua capacidade de perceção, fosse pela posição em que se encontrava, quando atravessou a estrada e após concluir o atravessamento, ficando de costas perante a passagem de outro veículo, podia não se ter apercebido do mesmo, dando conta apenas da circulação do veículo SZ. Aliás a testemunha não disse que não circulavam outros carros, mas apenas que só viu aquele carro. O depoimento da testemunha CC foi especialmente relevante, depondo com segurança e isenção, descrevendo como dois rapazes se atravessaram à frente do carro (viu-os passar a correr), um atravessou tudo, o outro/o Autor ao chegar à via da esquerda, deu meia volta e voltou para trás, porque vinha um carro mais rápido à nossa esquerda e o jovem voltou; o BB/condutor tentou guinar para a direta, não conseguiu evitar o embate, apesar disso e de ter acionado os travões; o embate dá-se no vidro do carro do lado esquerdo, tendo o AA batido com a cabeça e a anca, do seu lado direito. De salientar que as lesões assim descritas se mostram compatíveis com a factualidade vertida em o). Tudo ponderado, improcede, neste particular, a impugnação da decisão da matéria de facto. Al. iii) do elenco dos factos provados Foi dado como provado que: O Autor, quando deu entrada nos Serviços de Urgência (“S.U.”) do Hospital de Santa Maria (HSM) foi submetido a testes sanguíneos, tendo acusado uma taxa de álcool no sangue (“TAS”) de 1,82g/l. O Apelante defende que este facto não ficou provado, já que o Tribunal não fundamentou a decisão quanto ao mesmo e do croquis resulta que a taxa é de 1,72g/l. Apreciando. Da nota de alta do Hospital de Santa Maria (doc.8 junto com a PI) consta expressamente, na parte relativa à história e evolução da doença, que dos exames complementares que foram realizados ao Autor resulta que apresentava uma alcoolémia de 1,82 g/l. Por isso, não se vê razão para atender ao que, de forma pouco precisa e incompleta (por não estar acompanhado do relatório a que faz referência) consta da participação policial junta com a PI (doc. 1), referindo-se na mesma, como “Aditamento n.º 1”, ter sido recebido o resultado da análise toxicológica, conforme relatório que (não acompanha a dita participação), acusando o mesmo “TAS positiva de 1,70 ± 0,22 g/l”. Não vemos razão para divergir do que consta do aludido relatório hospitalar, conforme expressamente mencionado no ponto fáctico em apreço, não se podendo considerar verificado um erro de julgamento a este respeito. Improcede, neste particular, a impugnação da decisão da matéria de facto. Ponto II. do elenco dos factos não provados Foi dado como não provado que: Quando se encontrava a iniciar o atravessamento, o Autor deteve a marcha por verificar que na via de trânsito contígua ao estacionamento circulava um veículo a grande velocidade e que vinha a ser o ..-..-SZ. O Apelante defende que deve ser dado como provado este facto, invocando, para tanto e em síntese, as declarações prestadas à PSP pelo condutor do SZ no dia do acidente, conjugadas com o depoimento da testemunha DD. Vejamos. Conforme decorre do suprarreferido, não lhe assiste razão. Na verdade, se o Autor, logo ao iniciar o atravessamento, tivesse detido a sua marcha por se aperceber da aproximação do veículo ..-..-SZ a grande velocidade, parece-nos evidente que o embate não se teria dado com o lado esquerdo do veículo, como é manifesto que aconteceu, apontando inequivocamente nesse sentido as fotografias constantes do relatório junto com a Contestação e os depoimentos das testemunhas FF, CC e BB. Ficámos convictos de que o acidente se dá precisamente porque o Autor não se apercebeu da aproximação do veículo SZ, tendo-se limitado a seguir atrás do amigo DD, que previamente atravessara a via, estando a visibilidade da via prejudicada pela presença de veículos estacionados, sendo muito mais provável que o Autor não se tenha apercebido da presença do veículo SZ, iniciando o atravessamento, e que, depois, já a meio da via, tenha avistado um outro veículo que circulava na faixa mais distante do passeio e dos veículos estacionados (a da esquerda) a velocidade elevada, assustando-se e recuando, sem ter a noção de que não o podia fazer. Improcede, neste particular, a impugnação da decisão da matéria de facto. Ponto VII. do elenco dos factos não provados Foi considerado não provado que: Antes do embate o condutor do ..-..-SZ apercebeu-se da presença do Autor na via e do recuo que o mesmo fez ao aperceber-se da sua entrada na via. O Apelante pretende que este facto seja dado como provado, invocando, em síntese, as declarações prestadas pelo condutor BB no dia do acidente e na audiência de julgamento. Apreciando. Em primeiro lugar, importa salientar que a primeira parte deste ponto fáctico se encontra provada, estando essa factualidade vertida na al. h), embora sem o sentido que o Autor/Apelante lhe pretende atribuir, dada a sucessão dos factos. O ponto ora em apreço relaciona-se com a versão dos acontecimentos apresentada pelo Autor, da qual, conforme suprarreferido, não ficámos convencidos. Parece-nos importante lembrar o facto de o acidente ter ocorrido num local com visibilidade limitada atento o estacionamento de veículos e com pouca luminosidade atenta a hora do dia – cf. al. l). Não há prova nenhuma de que o condutor BB se tenha apercebido da presença do Autor, quando este iniciava o atravessamento, muito menos de que se tenha apercebido do (alegado) recuo por parte deste peão aquando da sua entrada na via. Na verdade, a presença de veículos estacionados (assinalados no croquis) por certo, retirava/prejudicava a visibilidade dos peões que estivessem no passeio, prestes a iniciar o atravessamento da faixa de rodagem. Os depoimentos das testemunhas BB e CC foram claros no sentido de só se terem apercebido da presença do Autor quando o mesmo estava a atravessar a via, parecendo-nos que o Apelante retira do contexto o que foi dito pela testemunha BB, o qual apenas disse que se apercebeu do recuo por parte do peão quando o mesmo já tinha atravessado a semi-faixa da direita e estava prestes a atravessar a semi-faixa esquerda, não referindo nenhum recuo no início do atravessamento, início de que não logrou aperceber-se. Nem mesmo as declarações prestadas por BB na declaração manuscrita que faz parte da participação policial permitem concluir que o facto ora apreço se tenha verificado, antes pelo contrário, já que BB afirmou ter visto um sujeito sair da linha de carros estacionados a correr a atravessar a rua e que isso lhe causou um susto, o que, manifestamente, não é compatível com a versão de um condutor que se apercebe da presença de um peão no passeio, a iniciar o atravessamento da faixa de rodagem e a recuar por dar conta da aproximação do veículo que conduzia. Improcede, neste ponto, a impugnação da decisão da matéria de facto. Ponto X. do elenco dos factos não provados Foi dado como não provado que: X. O condutor do ..-..-SZ conduzia a velocidade superior à legalmente permitida e excessiva para as condições do local. O Apelante pretende que este facto seja dado como provado, invocando, em síntese, a conjugação dos factos assentes pelo Tribunal nas alíneas k), i) e n), segundo os quais o limite de velocidade no local é de 50 Km/hora (k) e o Autor foi projetado pelo ar a 10 metros [i) e n)] e das regras da experiência comum e da lógica dos acontecimentos, bem como o depoimento da testemunha BB. Vejamos. Está provado, é certo, que na sequência do embate do veículo ..-..-SZ, o Autor foi projetado pelo ar cerca de 10 metros - cf. al. n) -, pese embora também esteja provado que ficou, sim, imobilizado, cerca de 10 metros mais à frente - cf. al. i). A testemunha BB disse que não vinha a mais de 40 km/hora. Na participação policial consta que não era visível nenhum rasto de travagem no pavimento. O croquis e o depoimento da testemunha FF sugerem que o Autor terá cambaleado até ao local onde ficou imobilizado (onde se encontrava “matéria vomitada pelo peão”). Posto isto, tendo em atenção as lesões sofridas pelo Autor e as circunstâncias de facto acima referidas, em particular, o local e a hora do acidente, bem como a forma inopinada como efetuou o atravessamento da faixa de rodagem, não nos parece possível, com base em regras de experiência, concluir que o veículo circulava a mais de 50 Km/hora. Assim, improcede, neste particular, a impugnação da decisão da matéria de facto. Dos pressupostos da responsabilidade civil do condutor do veículo Na fundamentação de direito da sentença recorrida constam designadamente as seguintes considerações e citações: «Intenta o Autor a presente acção alegando que o evento de que resultou o atropelamento que o vitimou se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel segurado da ré, porque ocorreu na sequência de uma manobra de mudança de direcção não assinalada e porque o condutor do veículo SZ não regulou a sua velocidade às características da via e circulava a mais de 50k/hora. Ora, após o julgamento, não se apurou que o condutor do SZ na ocasião estivesse a efectuar uma manobra de mudança de direcção, nem se apurou que este circulasse a uma velocidade superior a 50km/hora. É verdade que um condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (artº 24º n° 1, do CE). Como também é certo que quando circulam nas localidades, os condutores de automóveis ligeiros não podem exceder a velocidade instantânea de cinquenta quilómetros por hora (artº 27º do CE), sendo que a velocidade deve ser especialmente moderada, designadamente, nas localidades ou vias marginadas por edificações (artº 25º nº 1, alínea c), do CE), sendo que constituiu contraordenação grave - na al. e) do artigo 145.º do Código da Estrada - “O trânsito com velocidade excessiva para as características do veículo ou da via, para as condições atmosféricas ou de circulação, ou nos casos em que a velocidade deva ser especialmente moderada”. Assim, o facto de não se ter apurado que o condutor seguia a mais de 50km/hora não impede que se conclua que a velocidade a que seguia, apesar de inferior, era excessiva para as características da “via, para as condições atmosféricas ou de circulação, ou nos casos em que a velocidade deva ser especialmente moderada”. A este respeito provou-se, no entanto, que à hora do acidente o local é frequentado por diversas pessoas que circulam, apeadas, provenientes de espaços de lazer e diversão ali existentes, e que o local tem visibilidade limitada atento o estacionamento de veículos e era de noite, mas não se demonstrou mais do que isso. Não se demonstrou que o estacionamento ali existente fosse diferente do habitual, nem que a visibilidade fosse diminuída por outro factor que não o facto de ser de noite. Mas mais, não se provado qual a velocidade a que o SZ seguia, muito dificilmente se poderia concluir pela excessividade da mesma, sendo certo que não se alegou nem se demonstrou qualquer outra condição atmosférica ou de circulação que aconselhasse a circulação a uma velocidade mais moderada. De qualquer forma, o atravessamento de peões fora das passadeiras não é algo que deva ser considerado uma circunstância para efeitos de apuramento da velocidade a que o trânsito deve circular. A verdade é que não se provou que o autor iniciou o atravessamento da faixa de rodagem em condições de segurança, tendo desistido do seu propósito à aproximação do veículo interveniente no acidente. Não, o Autor iniciou o atravessamento e quase o concluiu, apenas desistiu de o fazer porque terá avistado um outro veículo que, esse sim, circularia a uma velocidade superior. O reflexo do Autor foi recuar e por isso embateu no carro que circulava na faixa que já tinha percorrido e fê-lo na parte esquerda frente do veículo. Por isso, é que a versão da petição não faz sentido: se o Autor tivesse avistado o SZ, ao iniciar o atravessamento e detivesse a sua marcha teria sido embatido pela frente direita e não esquerda. Acresce que nada justificaria, ou nada resultou provado que justificasse, a mudança abrupta de direcção do SZ que na petição se alega. Acresce que nem sequer se demonstrou que o autor verificou que existiam condições para atravessar a hemi-faixa de rodagem de sentido de circulação Nascente-Poente, pelo que iniciou o atravessamento. Os dois amigos, de 17 anos, decidiram a determinada altura da noite, e depois de terem ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para já no Hospital o A acusar uma taxa de álcool no sangue de 1,82, atravessar uma estrada fora da passagem para peões e fizeram-no a correr. Um deles conseguiu fazê-lo o outro não. Torna-se difícil acreditar que ambos verificaram que existia condições para atravessar a faixa de rodagem, pois o mais certo é não estarem em condições de o fazer correctamente. O álcool, como é conhecido de todos, afecta quer a coordenação motora quer visual, quer ainda a noção de distância e altera sensação de perigo, levando a actos mais descontrolados, pouco reflectidos, desinibidos e mesmo temerários. O autor tinha uma taxa de 1,82g/L de alccol no sangue: não é uma taxa que, num adolescente, represente pouca diferença. Se o álcool, acima de certo limite, reduz, consideravelmente, as faculdades psicológicas e físicas elementares e absolutamente necessárias à condução, mais ainda o faz num rapaz de 17 anos, pelo que o discernimento que o Autor era capaz de ter naquela situação não é igual ao que teria sem aquela ingestão. A conduta exigida ao Autor, como peão, é a de respeitar os deveres de cuidado quando atravessa a via pública em passadeira, deveres esses que são acrescidos quando da travessia de via pública em local não destinado à passagem de peões. Esses cuidados não foram observados pelo A e, provavelmente, não estaria condições de o os observar. Em face da dinâmica do acidente, temos, pois, de necessariamente excluir a culpa do condutor do veículo, pois não pode ser-lhe exigível que tivesse cumprido qualquer outro dever de cuidado, na medida em que a circunstância do peão atravessar a via e recuar não é sequer previsível. O artigo 570.º, nº 1 do Código Civil dispõe que, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída; o nº 2 prevê que se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar. Não vemos, no caso dos autos, que a conduta do condutor possa ser censurada ou censurável. Não vemos, em face das circunstâncias, o que este poderia ter feito de diferente. Em face do que ficou provado, não vemos como poderia evitar o embate. O acidente verificou-se apenas por facto imputável ao Autor, sendo a sua conduta a única que violou as regras de circulação aplicáveis aos peões numa via pública e a única à qual podemos imputar a violação de deveres de cuidado. A sua actuação foi, na verdade absolutamente imprevisível e não estava na capacidade de qualquer condutor, incluindo o da viatura segurada, por mais capaz que fosse impedir e evitar o embate. Na verdade, o que transparece da factualidade que se demonstrou é que, apesar da conduta irreflectida e irresponsável do A, esteve ainda teve um instinto de sobrevivência último de evitar o embate com a uma outra viatura que, esta sim, circulava a maior velocidade, pois – se não fosse esse reflexo de recuar – teria sido embatido por aquela e as consequências daquele embate poderiam ser fatais. As consequências do embate com o SZ não foram efectivamente piores exactamente porque o veículo não circulava com a mesma velocidade que aquele outro. Afastada que está a responsabilidade civil por facto ilícito, haverá sempre que apurar se não poderá – ainda assim – existir responsabilidade pelo risco. Como se escreve no Acórdão da Relação de Lisboa de 5 de Dezembro de 2024, disponível em www.dgsi.pt (relatado pela Sra. Juiz Desembargadora Gabriela Marques), “(…)” (in endereço da net aludido). A propósito da responsabilidade pelo risco do artº 503º e a concorrência de culpas, importa ainda ter presente o decidido no Acórdão do STJ de 28/03/2019, quer na decisão, quer na doutrina que a sustenta: “(...)”. Donde, ainda que possamos discutir a responsabilidade pelo risco que advém do artº 503º do CPC, haverá que considerar o disposto no artº 570.º do CC, que dispõe que: 1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. Sobre esta problemática importa ter presente a argumentação exposta no Acórdão do STJ, de 11/01/2018 ( endereço da net aludido): “(...) passou a defender-se uma solução alternativa que se traduz na admissibilidade daquela concorrência, desde que o sinistro ainda tenha uma conexão relevante com os riscos próprios do veículo, isto é, desde que o acidente não seja de imputar exclusivamente a factores externos integrados na órbita do lesado, de terceiro ou de casos de força maior estranhos ao veículo.” (…) Neste contexto, ensinava Antunes Varela (in manual “Das Obrigações em Geral”, Almedina, vol. I, 4.ª edição, págs. 597 a 599) que, o facto de “os veículos serem portadores de perigos especiais obriga a determinados cuidados ou prevenções, não só parte de quem os possui ou os conduz, mas por parte de todos em geral, principalmente quando se transita a pé nas vias públicas. Se o desastre...se verifica porque o lesado ou terceiro não observaram as regras de prudência exigíveis em face do perigo normal do veículo ... cessa a responsabilidade do detentor, porque não obstante o risco da coisa, os danos provêm do facto de outrem”. Para, mais adiante, acrescentar, que quando se alude a acidente imputável ao lesado, quer-se dizer, antes de mais nada, acidente devido a facto culposo do lesado, acidente causado pela conduta censurável do próprio lesado: “É o peão que inadvertidamente atravessa a rua fora da faixa destinada à sua passagem, ou que atravessa distraidamente a faixa numa altura em que os sinais luminosos indicavam a passagem livre para os automobilistas, dando lugar com a sua imprudência ao acidente que o condutor já não pode evitar.” Como alude Calvão da Silva citado no último Acórdão referido “a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro ...” (RLJ 1347115). E ainda que em comentário posterior ao Ac. do STJ, de 4-10- 07, tenha tecido considerações que o levam a admitir a responsabilização do detentor do veículo noutras situações, “na base de uma apreciação individual no caso específico pelo julgador” (RLJ 137760), assevera que “só havendo prova certa e segura do facto da vítima ou de terceiro (ou de força maior) como causa única e exclusiva do acidente é que não haverá lugar a concurso do risco próprio do veículo como facto do lesado”. Esta foi igualmente a solução já preconizada no Ac. do STJ, de 4-10-07 (www.dgsi.pt – Santos Bernardino, publicado e comentado na RLJ 137º, págs. 35 e segs.), no qual se assumiu, de forma precursora em termos jurisprudenciais, que “o texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro”. Logo, considerando esta terceira via, que considera a responsabilidade da seguradora independentemente da exclusividade da imputação do acidente ao lesado, importa ter presente a argumentação constante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01/06/2017: “(…)” (…) Logo, admite-se o concurso de culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco, e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. Só não será desta forma se o facto do lesado tenha sido a causa única do dano, aí a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503º é afastada (tal foi ainda o entendimento sufragado no Acórdão subscrito pela mesma Relatora destes autos e proferido no proc. nº 1852/18.3PDL.Ll, de 7/11/2019, publicado in www.dgsi.pt, o qual seguimos igualmente de perto). Em conclusão, a ressalva do art. 570.º feita na 1.ª parte do art. 505.º é para aplicar à responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503.º; a responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503.º é a responsabilidade objectiva; logo a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570.º) e o risco da utilização (art. 503.º) resulta do disposto no art. 505.º, que só exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável (leia-se unicamente devido, com ou sem culpa) ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (leia-se, exclusivamente) de causa de força maior. (...) Como deixámos referido mesmo a considerar-se a imputabilidade objectiva decorrente dos danos próprios da circulação automóvel, mesmo no caso de culpa do lesado, aquela não poderia ser de molde a ser a única e exclusiva fonte da ocorrência do dano, pelo que sempre será de excluir a responsabilidade quando para a relevância causal para o acidente este seja apenas imputável à culpa do lesado. Como se decidiu no Ac. STJ de 05/05/2022(Proc. 5080/18.0T8MTS.P1.S1, endereço da net aludido) “Face à interpretação actualista do art. 505.º do Código Civil, a exclusão da responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503.º restringe-se aos casos em que haja dolo ou por culpa grave do lesado, ou em que o facto do lesado deva considerar-se como causa exclusiva do acidente” (Ac. STJ de 05.05.2022, proc. 5080/18.0T8MTS.P1.S1).” (negrito nosso) Na mesma senda, aplicando todos este raciocínio e ensinamentos, no caso concreto destes autos, não se vislumbra qualquer facto que possa permitir configurar a possibilidade de o risco próprio da circulação do veículo (também) ter contribuído para a verificação do acidente. Lamentavelmente, temos de considerar como grave a culpa do Autor, que decidiu atravessar subitamente a faixa de rodagem sem verificar que existiam condições de segurança para tal, colocando em risco a sua própria integridade e a integridade dos outros utentes da faixa de rodagem (incluindo o condutor da viatura em que embateu), nada se encontrando provado que justifique o seu erro de avaliação ou a incapacidade de avaliar correctamente as circunstâncias (a não se a presumível afectação pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas que só ao mesmo também é imputável), com que se deparava e que lhe impunham um outro comportamento. Perante isto, temos de concluir que a conduta do A foi de tal forma censurável que consubstanciando uma culpa grave, impõe-nos a exclusão do direito a indemnização também pelo risco. O Apelante discorda deste entendimento, pois considera que o condutor do veículo segurado na Ré incorreu em responsabilidade civil, argumentando, em síntese, que: existiu erro de julgamento na aplicação do disposto nos artigos 483.º, 503.º e 570.º do CC; o condutor do SZ atuou culposamente, violando os artigos 13.º, n.º 2, 24.º e 25.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, ao não adequar a velocidade às condições do local e ao conduzir desatento; a responsabilidade objetiva da Ré (art. 505.º do CC) nunca poderia ser excluída, pois não se verifica culpa grave do peão, que iniciou a travessia em segurança e recuou perante um perigo iminente, nem causa exclusiva do lesado ou força maior; mesmo admitindo, por hipótese, imprudência do peão, foram a desatenção e a velocidade inadequadas do condutor que contribuíram para o acidente, configurando concorrência de culpas (art. 570.º do CC, por analogia). A Apelada, por sua vez, defende, em síntese, que: a culpa exclusiva na produção do sinistro foi do Autor, que atravessou a faixa de rodagem, fora da passadeira, de noite, em passo de corrida e com uma TAS de 1,82 g/l; não se provou qualquer facto que permita imputar qualquer responsabilidade no sinistro ao condutor do veículo seguro. Vejamos. Importa apreciar se estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, começando por analisar se o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo segurado, a culpa exclusiva do Autor ou a facto imputável a este, à concorrência de culpas de ambos ou a uma situação dita de “concorrência de culpa e risco”. O princípio geral no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos está consagrado no n.º 1 do art. 483.º do CC, segundo o qual “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Assim, para que alguém incorra em responsabilidade civil extracontratual, suportando a respetiva obrigação de indemnizar, é necessário que estejam verificados os seguintes pressupostos: a) o facto voluntário do agente, conduta humana (que pode traduzir-se numa ação ou numa omissão) dominada ou dominável pela vontade; b) a ilicitude desse facto, que pode revestir a modalidade de violação de direito alheio (direito subjetivo) ou de violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios; c) o nexo de imputação do facto ao lesante, ou culpa do agente, em sentido amplo, que se traduz num juízo de censura ou reprovação da sua conduta, e que pode revestir a forma de dolo ou de negligência; d) o dano ou prejuízo; e) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima. Quanto a este último pressuposto, está consagrada no nosso ordenamento jurídico a doutrina da causalidade adequada: “a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” (art. 563.º do CC). Ou seja, “determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar” (Galvão Telles, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 578). No quadro da responsabilidade civil por factos ilícitos, todo aquele que intenta uma ação de indemnização nela fundada tem de demonstrar que estão verificados todos os pressupostos acima referidos para que o Tribunal possa concluir pela titularidade do direito à indemnização, constituindo tais pressupostos factos constitutivos do direito que o lesado se arroga (art. 342.º, n.º 1, do CC). Nesta conformidade, preceitua o art. 487.º, n.º 1, do CC que é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo se existir uma presunção legal de culpa, com a consequente inversão do ónus da prova (art. 344.º, n.º 1, do CC). No caso dos autos não se descortina que possa ser aplicável uma presunção legal de culpa, parecendo-nos que se deverá continuar a seguir a jurisprudência firmada no Assento n.º 1/80, de 29 de janeiro (com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência cf. art. 17.º do DL n.º 329-A/95, de 12-12), de que “O disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre”. O Apelante imputa ao condutor do veículo a prática de contraordenações estradais, designadamente as previstas no art. 13.º do código da Estrada, atinente à posição da marcha, e nos artigos 24.º e 25.º do Código da Estrada, respeitantes à adequação e moderação da velocidade. Parece-nos evidente, ante a improcedência da impugnação da decisão da matéria de factos, que os provados não permitem concluir nesse sentido, nem sequer pela violação de um dever geral de cuidado ou pela prática da contraordenação prevista no art. 3.º do Código da Estrada, que, sob a epígrafe “Liberdade de trânsito”, tem o seguinte teor: “1 - Nas vias a que se refere o artigo anterior (atinente ao âmbito de aplicação do Código da Estrada) é livre a circulação, com as restrições constantes do presente Código e legislação complementar. 2 - As pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis. 3 - Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300. 4 - Quem praticar atos com o intuito de impedir ou embaraçar a circulação de veículos a motor é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500, se sanção mais grave não for aplicável por força de outra disposição legal.” Não se diga que a circunstância de, antes do embate, o condutor do SZ se ter apercebido da presença do Autor na via, impunha que dele se tivesse conseguido desviar. Na verdade, é evidente que o condutor se apercebeu da presença do Autor, mas, tudo indica que isso sucedeu apenas quanto ele se atravessou à frente do carro, e não quando estava no passeio, em frente às Localização 2. Note-se que o acidente ocorreu num local com visibilidade limitada atento o estacionamento de veículos e com pouca luminosidade atenta a hora do dia. E que foi o Autor, após recuar (pelo receio da aproximação de um outro veículo), a embater no veículo SZ (e não o contrário). Aliás, por assim considerarmos, não nos parece que seja indispensável a ampliação da decisão da matéria de facto, ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 3, al. c), do CPC, em ordem a poderem ser considerados (provados ou não provados) alguns factos alegados na Contestação, quanto à condução do veículo seguro na Ré e que não constam do elenco dos factos provados e não provados da sentença. Não se descortina, pois, qualquer erro de julgamento na sentença recorrida na parte em que afastou a aplicação ao caso do disposto no art. 483.º do CC, não se podendo concluir que o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo segurado ou mesmo a uma concorrência de culpas (deste e do Autor). O Tribunal recorrido, na esteira da doutrina e da jurisprudência citadas, entendeu, e bem, que se impunha apreciar se existia responsabilidade civil objetiva, tendo em atenção o disposto nos artigos 503.º, n.º 1, 505.º e 570.º do CC, interpretados de forma atualista, na esteira da doutrina e da jurisprudência citadas, citações para as quais, por se nos afigurarem apropriadas, remetemos, por economia. Na verdade, conforme decorre da conjugação destes preceitos legais, e tem sido pacificamente reconhecido, no caso de um acidente de viação entre um veículo automóvel e um peão, sem que se prove a “culpa” do peão ou de terceiro (ou que o acidente se deu por caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo), a responsabilidade pelo acidente corre por conta do risco do proprietário do veículo, que se presume que tem a direção efetiva do mesmo e o utiliza no seu próprio interesse – cf. art. 503.º, n.º 1, do CC (neste sentido, a título exemplificativo, ac. da Relação de Lisboa de 09-06-2022, no proc. n.º 1896/20.5T8FNC.L1, disponível em www.dgsi.pt). No entanto, preceitua o art. 505.º do CC que: “Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.” Importa ainda ter presente o disposto no art. 570.º do CC, nos termos do qual: “1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. 2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.” Para ilustrar a evolução da doutrina e da jurisprudência a respeito da interpretação conjugada destas normas, remetemos, por economia, para as citações constantes da sentença recorrida e para o artigo de Maria da Graça Trigo, “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação”, publicado em Direito e Justiça, 2015, “Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier”, Vol. II, págs. 467-497, bem como para o recente acórdão do STJ de 27-02-2024, proferido no proc. n.º 313/18.5T8GMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, afirmando-se precisamente no respetivo sumário que: “I - Deve seguir-se a orientação jurisprudencial do STJ quanto à interpretação actualista do art. 505.º do CC, no sentido de acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo automóvel. II - Porém, admissibilidade da concorrência não é automática só porque o interveniente no acidente tenha sido um veículo, exigindo-se um juízo de adequação sobre a imputação objectiva do acidente. III - Provando-se a culpa exclusiva do lesado na produção do acidente e não se verificando qualquer contribuição causalmente adequada proveniente dos riscos próprios do veículo, fica afastada a possibilidade de ponderar a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do veículo interveniente no acidente.” Acompanhamos esta corrente jurisprudencial, no sentido da interpretação atualista do art. 505.º do CC, conjugado com os referidos artigos 503.º e 570.º do CC, reconhecendo que aquele normativo não consagra uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência (causal) entre “culpa do lesado” ou, melhor dizendo, facto a este imputável, por um lado, e risco do veículo causador do acidente, por outro lado, havendo que considerar diferentes cenários, consoante, a par da contribuição causal do risco do veículo para os danos, seja de qualificar a contribuição causal do lesado como: (i) não culposa (não sendo, pois, de convocar o art. 570.º do CC), podendo ser-lhe atribuída uma indemnização de medida correspondente ao valor total dos danos por si sofridos; (ii) com culpa leve, justificando-se então uma redução proporcional (parecendo adequado que não seja superior a 30%) do valor da indemnização; (iii) com culpa igual ou aproximada à da medida da contribuição causal do risco do veículo, determinando a proporcional redução do valor da indemnização; (iv) com culpa grave ou dolo, em que a indemnização deve ser mesmo excluída ou meramente simbólica. No caso dos autos, releva a circunstância de o Autor, apesar da sua juventude, já ter 17 anos de idade (o que significa que era imputável, no plano do direito penal e das contraordenações). No enquadramento da sua conduta, importa considerar, além do citado art. 3.º do Código da Estrada, o disposto no art. 99.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código da Estrada, nos termos do qual os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas, podendo, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, quando efetuem o seu atravessamento, bem como o preceituado no art. 101.º do Código da Estrada, cujo teor é o seguinte: “1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente. 2 - O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível. 3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem. 4 - Os peões não devem parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito. 5 - Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) 10 a (euro) 50.” Transpondo estas considerações para o caso dos autos, parece-nos forçoso concluir que o acidente se deveu ao facto de o Autor – muito provavelmente por a taxa de alcoolémia que apresentava afetar a sua capacidade de discernimento, atenção e reação – ter realizado o atravessamento da faixa de rodagem de forma temerária, violando os citados preceitos legais atinentes à liberdade de trânsito e ao atravessamento da faixa de rodagem por peões. O Autor atravessou a faixa de rodagem sem previamente se certificar de que, tendo em conta a distância que o separava dos veículos (pelo menos dois) que nela transitavam e a respetiva velocidade, o podia fazer sem perigo de acidente; ao realizar o atravessamento da faixa de rodagem, parou e, sem atentar no facto de o veículo segurado - à frente do qual tinha acabado de se atravessar - estar demasiado próximo, recuou, “indo embater na frente esquerda do veículo SZ”. A situação é lastimável e poderia porventura ter sido evitada se, naquele local da cidade, tão frequentado à noite por diversas pessoas que circulam, apeadas, provenientes de espaços de lazer e diversão ali existentes, existissem passagens sinalizadas para peões; enfim, se aquela avenida, na zona, tivesse caraterísticas diferentes, facilitando, tanto a circulação de veículos, como a circulação dos peões, incluindo o atravessamento da via. Mas apesar de o atropelamento do Autor ter sido “imputável ao próprio lesado”, entendemos que, no contexto fáctico apurado, a responsabilidade pelo risco fixada no n.º 1 do art. 503.º do CC não deverá ser totalmente excluída. Com efeito, a juventude deste, a circunstância de à hora do acidente o local ser frequentado por diversas pessoas que circulam, apeadas, provenientes de espaços de lazer e diversão ali existentes, bem como o facto de o Autor, já no decurso do atravessamento da faixa de rodagem (que não devia ter iniciado) avistar um outro veículo a grande velocidade e, para evitar o embate com este, ter recuado, leva-nos a considerar que se justifica atribuir-lhe uma indemnização, ainda que de valor simbólico, considerando o pedido formulado e os danos patrimoniais e não patrimoniais que efetivamente resultaram do acidente, conforme se retira dos factos vertidos nas alíneas n) a fff). A este respeito, parece-nos inútil proceder à concreta quantificação de todos os danos sofridos pelo Autor e que emergem do conjunto dos factos provados. Mas não deixaremos de tecer algumas considerações a esse respeito, seguindo de perto o explanado no acórdão de 11-05-2023, proferido no proc. 9283/17.6T8ALM.L1, relatado pela ora relatora e com a intervenção do ora 1.º Desembargador-adjunto, disponível em www.colectaneadejurisprudencia.com. Começando por lembrar que o nosso ordenamento jurídico consagra o princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito (art. 496.º, n.º 1, do CC), surgindo as maiores dificuldades maiores na fixação do seu quantum, por não ser possível a reconstituição in natura nem funcionar aqui a teoria da diferença, já que, em regra, não é possível reconstituir a situação que existiria se o evento danoso não tivesse ocorrido, sendo de atribuir ao lesado uma compensação pecuniária. A fixação dos danos não patrimoniais é assim feita segundo juízos de equidade, tendo em conta a culpabilidade do lesante e as demais circunstâncias do caso (arts. 496.º, n.º 3, e 494.º, ambos do CC). Há ainda que ter em consideração os critérios usualmente seguidos nas decisões dos nossos tribunais (cf. art. 8.º, n.º 3, do CC), sem olvidar que a jurisprudência tem vindo a reconhecer progressivamente a necessidade de atribuir indemnizações significativas por danos não patrimoniais. A título meramente exemplificativo, veja-se o seguinte trecho do acórdão do STJ de 24-05-2005, proferido no processo n.º 05A819, disponível em www.dgsi.pt. Diga-se, ainda, que a jurisprudência é absolutamente pacífica no sentido de considerar que nada obsta a que possam ser fixadas indemnizações de valor superior para ressarcimento de danos não patrimoniais distintos da perda do direito à vida, mormente quando está em causa o ressarcimento do dano biológico e das suas consequências não patrimoniais em situações de considerável gravidade e elevado sofrimento físico-psíquico. Quanto ao denominado dano biológico, tem justificado amplo tratamento da parte da doutrina e da jurisprudência, sobretudo a partir da publicação da Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio (alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25-06), em cujo artigo 3.º se prevê que são indemnizáveis, em caso de danos corporais de que não advenha a morte do lesado, as seguintes situações: a) Os danos patrimoniais futuros nas situações de incapacidade permanente absoluta, ou de incapacidade para a profissão habitual, ainda que possa haver reconversão profissional; b) O dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil; c) As perdas salariais decorrentes de incapacidade temporária havida entre a data do acidente e a data da fixação da incapacidade; d) As despesas comprovadamente suportadas pelo lesado em consequência das lesões sofridas no acidente. Estando ainda prevista no art. 4.º da mesma Portaria n.º 377/2008, na redação da Portaria n.º 679/2009, a indemnização de outros danos, ditos “danos morais complementares”, incluindo as situações em que resulte para o lesado uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da actividade habitual, explicitando-se no Preâmbulo que se pretendeu, em concreto, alargar o direito indemnizatório por esforços acrescidos a lesados ainda sem actividade profissional. Na doutrina, sobre esta temática, destacamos o estudo da Senhora Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo “Adopção do Conceito de “Dano Biológico” Pelo Direito Português”, disponível online, em https://portal.oa.pt/, em que a autora, depois de lembrar que o dano biológico é um dano-evento que não se confunde com os denominados “danos-consequência” que hão-de ser ponderados no cálculo da indemnização pecuniária, explica que as consequências do dano biológico podem ser diferentes, de ordem patrimonial ou não patrimonial, havendo que distinguir, além do mais, a redução da força de trabalho, a perda de rendimentos profissionais e, por fim, o aumento da penosidade no exercício da actividade laboral sem relevância para o nível de remuneração da mesma. nexo causal o que constitui a dimensão mais complexa do processo.» Mais destacamos, pelo seu interesse, o artigo do Senhor Juiz Conselheiro João Bernardo, “O dano biológico: Sua quantificação na vertente patrimonial e diferenciação relativamente ao dano não patrimonial”, incluído no e-book CEJ “NOVOS OLHARES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL”, edição atualizada em setembro de 2019, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil_2018.pdf, em que, salientando a inexistência em Portugal das razões que em Itália levaram à consagração indemnizatória autónoma do dano biológico, critica a falta de adequada resposta por parte do legislador e a insatisfatória dada pela Portaria n.º 377/2008, de 26-05. Em nosso entender, o dano biológico (em sentido amplo) pode, consoante os casos, ser qualificado como um dano patrimonial ou um dano não patrimonial; aliás, sempre assumirá esta última vertente (dano biológico em sentido estrito), pois trata-se de uma ofensa à integridade física e psíquica, podendo (ou não) afetar a capacidade de ganho do lesado, isto é, determinar (ou não) rebate profissional ou, como vem sendo referido um tal parâmetro do dano, inexistir um rebate das sequelas no exercício da atividade profissional habitual do lesado. Assim, haverá lugar, consoante os casos, à atribuição de parcelas indemnizatórias distintas, uma atinente ao dano biológico propriamente dito, outra ao dano patrimonial futuro, que assume relevância autónoma quando resulte do défice funcional permanente de integridade físico-psíquica uma perda de capacidade de ganho, isto é, aquele tenha também (o que nem sempre sucederá) uma repercussão permanente na atividade profissional habitual do lesado (rebate profissional); isto não invalida naturalmente que possam já existir, à data da propositura da ação e/ou até à data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, danos patrimoniais na vertente de lucros cessantes, considerando o lapso temporal decorrido desde a data da consolidação médico-legal das lesões. Essa repercussão permanente na atividade profissional habitual do lesado constitui matéria de facto cuja prova não é fácil, sendo certo que com frequência apenas fica demonstrado que as sequelas são compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares. Parece-nos, todavia, ser consensual que a exigência de tais esforços para o desempenho da profissão se poderá traduzir num dano patrimonial futuro desde que os factos provados permitam suportar um juízo de previsibilidade ou prognose a esse respeito; por exemplo, quando é de antever, pela natureza das funções profissionais, que deixará de ser possível realizar trabalho suplementar. Nesta linha de pensamento, veja-se, a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 30-06-2016, na Revista n.º 161/11.3TBPTB.G1.S1 - 7.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt. Quando se conclua pela existência de danos patrimoniais decorrentes do dano corporal de que adveio uma incapacidade permanente absoluta ou uma incapacidade para a profissão habitual, em particular danos patrimoniais futuros, surgem as dificuldades na quantificação dos mesmos, sendo com frequência possível lançar mão de cálculos matemáticos, partindo de fórmulas como as da referida Portaria n.º 377/2008 ou propostas pela doutrina (em que avulta Sousa Dinis, com diversos artigos, desde “Dano corporal em acidentes de viação”, publicado na Colectânea de Jurisprudência, STJ, Ano IX, T1, p. 5 e ss.), e jurisprudência, com destaque para o acórdão do STJ de 04-12-2007, no processo n.º 07A3836, e para o acórdão da Relação de Lisboa de 13-09-2018, no processo n.º 3181/14.2TBVFX-2, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, aceitando-se a fórmula proposta neste último acórdão, em que teve intervenção o ora 1.º Adjunto, mas assim representada: C = [(1 + i)N – 1] / [(1 + i)N x i] x P em que C = capital; P = prestação a pagar no 1.º ano; N = o n.º de anos de esperança de vida; e i = taxa de juro, sendo esta, por sua vez, calculada da seguinte forma: i = (1 + r) / (1 + k) - 1 considerando, para que a variável i não seja a taxa de juro nominal líquida da aplicação financeira, mas sim a taxa de juros real líquida, que: r = taxa de juro nominal líquida. k = taxa anual de crescimento de P (inflação + ganhos da produtividade + promoções profissionais). Sobre esta problemática, destacamos ainda, na jurisprudência, o acórdão do STJ de 23-11-2017, proferido na Revista n.º 3930/06.2TBLRA.C1.S1, sumário disponível em www.stj.pt, o acórdão da Relação de Lisboa de 26-09-2017, proferido no proc. 10421/14.T2SNT-7, disponível em www.dgsi.pt, e o acórdão do STJ de 01-03-2018, no proc. n.º 773/07.0TBALR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Transpondo estas considerações para o caso dos autos, atentando no conjunto dos factos provados, em que avulta o facto de o Autor, então com 17 anos de idade, ter ficado com um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixado num total de 56,25 pontos, sendo tais sequelas compatíveis com o exercício da atividade de estudo, mas implicando esforços suplementares significativos, assim como qualquer atividade profissional que exija esforços mentais, parece-nos inevitável concluir que a sua capacidade de ganho ficou afetada, o que se traduz em danos patrimoniais futuros atinentes ressarcíveis, num juízo equitativo, que não descuraria, como ponto de partida, o recurso a fórmulas matemáticas, designadamente a prevista na Portaria n.º 377/2008, de 26-06 ou as propostas, com algumas nuances, pela jurisprudência em diversos acórdãos, mormente na adotada no aludido acórdão da Relação de Lisboa de 13-09-2018. No tocante à fixação do valor indemnizatório quanto ao dano biológico em sentido estrito, socorrendo-nos, como mero ponto de partida, dos critérios objetivos considerados na Tabela do anexo IV da referida Portaria (idade do lesado e n.º de pontos), a qual prevê, para uma desvalorização entre 56 a 60 pontos e um lesado com idade com 20 anos ou menos, os valores de 1923,7 a 1949,40 por ponto; multiplicando tais valores por 56 pontos, obtem-se, uma indemnização daquele dano na ordem dos 108.208,12 € € a 109.653,75 €. Tendo presente que os valores da Portaria foram fixados com referência à remuneração mínima mensal garantida (RMMG) em 2007 - referindo-se que “(A) indemnização pelo dano biológico é calculada segundo a idade e o grau de desvalorização, apurado este pela Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, e com referência inicial ao valor da RMMG (retribuição mínima mensal garantida”) -, a qual, na altura, era de 403,00 € (cf. nota 1 ao anexo IV), sempre se imporia, por mais justo e equilibrado, atender à remuneração base média nacional na data mais recente que pode ser considerada - cf. artigos 566.º, n.º 2, do CC e 611.º, n.º 1, do CPC -, que, face aos dados atualmente disponíveis (datando a última atualização de 17-07-2025), é de 1.368,00 € (informação disponível em https://www.pordata.pt), o que, observando uma regra matemática de três simples, e considerando apenas aquele valor inferior resulta num valor compensatório na ordem dos 367.316.89 €, que, por si só, é muito superior ao montante peticionado de 238.543,12 € (considerando o pedido líquido formulado). Resta afirmar que o valor da indemnização, sendo simbólico, não deverá ser irrisório, parecendo-nos, por tudo o exposto, que se mostra equitativamente adequado fixá-lo num valor próximo do correspondente a 10% do montante do pedido líquido, mais precisamente em 25.000 €, ao qual acrescerão os juros de mora, à taxa legal, que se vençam desde a presente data até integral pagamento (cf. artigos 559.º, 805.º, n.º 3, e 806.º, n.º 1, do CC, Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril, e AUJ n.º 4/2002). Nesta conformidade, será concedido provimento parcial ao recurso. Vencidas ambas as partes, são responsáveis pelo pagamento das custas processuais, na proporção do decaimento, que se fixa em 10% (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). O Autor/Apelante não será, todavia, condenado no pagamento das custas do recurso, uma vez que beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (conforme ofício junto aos autos em 05-03-2025) – cf. artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP. *** III - DECISÃO Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida na parte em que julgou a ação totalmente improcedente e, em substituição da mesma, julga-se parcialmente procedente a ação, condenando a Ré GENERALI SEGUROS, S.A. a pagar ao Autor AA a quantia indemnizatória de 25.000 € (vinte e cinco mil euros), acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, que se vençam desde a presente data até integral pagamento, absolvendo a Ré do mais peticionado. Mais se decide condenar a Ré/Apelada no pagamento das custas da ação e do recurso, na proporção de 10%, não se condenando o Autor/Apelante no pagamento das custas da ação e do recurso, na restante proporção, atento o apoio judiciário de que beneficia. D.N. Lisboa, 25-09-2025 Laurinda Gemas António Moreira João Paulo Raposo |