Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4740/13.6TCLRS.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS
DANO BIOLÓGICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.O dano biológico, num sentido estrito e bastante consensual, consiste na ofensa à integridade física e psíquica, de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, implicando algum grau de incapacidade geral ou funcional do lesado; trata-se de um dano-consequência do dano corporal, a par de outros, como as perdas salariais decorrentes de incapacidade, as despesas suportadas em consequência das lesões físicas ou psíquicas, o dano estético, as dores físicas, o sofrimento psicológico.

II.O dano corporal (por vezes também nomeado dano biológico,num sentido amplo) designa lesões na integridade do sujeito enquanto pessoa, na sua globalidade psicofísica; trata-se de um dano real ou dano-evento, pelo que se situa num patamar mais elevado que os danos-consequência acima referidos.

III.No caso dos autos, a afetação da integridade psicofísica do lesado resultou num período delimitado de doença (“21 dias de doença e 8 dias de incapacidade para as atividades habituais”), sofrimentos físico e psicológico delimitados no tempo, exceto quanto ao dano estético, que é permanente (cicatriz visível de 10 cm na zona da testa); todos estes danos que foram indemnizados a título de “afetação física e psíquica” (temporária), “incapacidade total para o trabalho” (temporária), “compensação por dores (…) e sofrimentos”, “dano estético”. Foi revogada a indemnização arbitrada a título de “incapacidade do A. para toda a vida/dano biológico”, e que tinha acrescido às anteriormente referidas, uma vez não resultou provada qualquer incapacidade permanente.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acórdão


Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:


I. Relatório


Fundo de Garantia Automóvel, réu na ação que lhe foi movida por «A», notificado da sentença proferida em 26 de janeiro de 2024, que o condenou a pagar ao autor, solidariamente com a condutora «B», a quantia total de € 33.050, acrescida de juros moratórios, e com essa sentença não se conformando, interpôs o presente recurso.
Na ação era também ré Generali Seguros, S.A. (anteriormente, Companhia de Seguros Açoreana, S.A.), que foi absolvida de todos os pedidos.

O recorrente concluiu as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«A) O Douto Tribunal “a quo” condenou solidariamente o Fundo de Garantia Automóvel e a Ré «B» a pagarem ao Autor a quantia global de € 33.050,00.
B) Tendo para tanto discriminado os Danos não patrimoniais da seguinte forma:
-12.000,00 €, para compensação das dores, lesões, desgostos e sofrimentos infringidos ao Autor;
- 250,00 €, a título de danos morais com o internamento;
- 4.000,00 €, dano estético pela cicatriz;
- 6.000,00 €, Afetação Física e Psíquica.
Num total de 22.250,00 €
C) Embora se aceite que, o entendimento de não aplicação dos valores fixados pela Portaria 377/2008, de 26 de maio, por estabelecerem valores mínimos de proposta razoável, o que é certo é que cada vez mais se verifica uma grande aproximação de valores face á jurisprudência superior mais recente.
D) Com o devido respeito, e não querendo, de todo, minimizar o sofrimento do Autor, mas face às lesões dadas como provadas que, face à matéria dada como não provada, não nos parecem de especial gravidade:
Factos Não Provados:
- O A. gozava de muito boa saúde.
- O A. ficou afetado para toda a sua via.
- O A. sofreu dores durante o tratamento a que esteve sujeito e ainda sofre presentemente.
- O A. continua a necessitar de tratamentos, exames médicos e consultas.
- o A. teve e tem necessidade de tratamentos no Hospital Júlio de Matos.
- O A., por causa do acidente, sofre de depressão e vive de forma introvertida.
- O A., devido ao seu estado psíquico, teve de recorrer a consultas de psiquiatria, tendo gasto a quantia de € 300,00. - (...)
- O A. ficou a padecer de uma incapacidade física para toda a vida.”
E) Ora, não se compreende, face à matéria dada como Não Provada, em que não se provou que o autor tenha ficado afetado para toda a sua vida, nem que tenha sofrido dores durante o tratamento nem presentemente, e não tenha ficado a padecer de uma incapacidade física para toda a vida, se contempla um valor de 12.000,00 €, pelas dores, lesões Desgostos e sofrimentos infringidos ao Autor e 6.000,00 € pela afetação física e psíquica, que não ocorreu!
F) Posto isto, estamos em crer que o valor global dos Danos não Patrimoniais, deverá ser reduzido para valor que não exceda os 5.000,00 € ao invés dos 22.250,00 € sentenciados, por forma mais justa e igualitária às diversas decisões proferidas pelos nossos tribunais superiores.
G) Por outro lado, a título de Danos Patrimoniais, entendeu o Mm.º Juiz “a quo”, condenar os Réus a pagarem ao Autor a quantia de € 10.000,00 título de incapacidade do A. para toda a vida / Dano Biológico.
H) Saliente que a doutrina e a jurisprudência vêm considerando como integrantes do dano biológico diversas vertentes, parâmetros ou modos de expressão, entre eles avultando, pelo seu significado ou relevância o “quantum doloris” – que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária –, o “dano estético” – que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima –, o “prejuízo de afirmação social” – dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado nas suas variadíssimas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural e cívica) – o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” – aqui avultando o dano da dor e o défice de bem estar, valorizando-se os danos irreversíveis na saúde e no bem estar da vítima e corte na expectativa da vida – e, por fim, o “pretium juventutis” – que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a primavera da vida. - Cfr. Acórdão STJ, datado de 18-10-2018.
I) Ora, se a indemnização por Dano Biológico já contempla todos os parâmetros pelos quais o Autor já foi indemnizado de forma discriminada a título de Danos Não Patrimoniais, então a sua condenação, agora em Dano Biológico, ocorre em duplicado! Pelo que o valor atribuído a título de Dano Biológico ao Autor, não deverá ser atendido.
J) Por último, de salientar o facto de terem sido sentenciados os danos patrimoniais, no valor de 10.000,00 €, também a título de incapacidade do Autor para toda a vida, quando resulta claramente dos Fatos Não Provados que o A. ficou a padecer de uma incapacidade para toda a vida! Pelo que, salvo o devido respeito, tal valor não deverá ser atendido.
K) A douta sentença recorrida ao fixar os montantes indemnizatórios em termos de danos não patrimoniais, Dano Biológico e Danos Patrimoniais, violou, assim, o disposto nos art.ºs 496º, 562º, 564º e n.º 3 do art.º 566º todos do Código Civil.»

Não foram oferecidas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

OBJETO DO RECURSO
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) Considerando a fundamentação de facto, que a recorrente não discute, a indemnização fixada em primeira instância a título de danos não patrimoniais é excessiva?
b) Ao arbitrar indemnização por dano biológico, o tribunal duplicou parcela que já tinha considerado no capítulo de danos não patrimoniais?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos (que o recorrente não discute):
1.–No dia 20 de novembro de 2005, cerca das 20 horas, ocorreu um acidente de viação na Rua ... ..., ..., S... ... T___.
2.Foram intervenientes nesse acidente o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Renault Clio, com a matrícula …GS, e o peão «A», ora A.
3.–O veículo era conduzido por «B», que seguia no sentido São ... T___ / C____.
4.–A 1.ª R. celebrou em 2003, com «C», à data proprietário do veículo de matrícula …GS, um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice …28.
5.–Em janeiro de 2005, a condutora do veículo, «B», comprou o veículo de matrícula …GS a «C».
6.–O acidente resultou do atropelamento do A. quando este atravessava a passadeira para peões.
7.–No local do acidente, a Rua ... ... apresenta-se como uma reta, com ligeira curva à esquerda, com cerca de 7,80 m de largura e boa visibilidade, tendo dois sentidos de marcha.
8.–À hora do atropelamento era de noite e chovia.
9.–No local do acidente, a via tinha desenhadas no pavimento as marcas longitudinais de uma passadeira de peões, antecedida de sinalização vertical (passagem para peões), situando-se próximo da porta da residência do A.
10.–A intensidade de trânsito era reduzida e existia iluminação pública junto à passadeira.
11.–A condutora «A» conduzia o veículo de matrícula … GS a uma velocidade não concretamente apurada.
12.–O A. estava a atravessar a passadeira, seguindo a sua mulher ligeiramente atrás, da esquerda para a direita, atendendo ao sentido de marcha do veículo.
13.–O A. tinha percorrido mais de metade da passadeira quando foi atingido pelo veículo, tendo sido projetado a uma distância de, pelo menos, 8 metros, caindo desamparado no chão.
14.–O veículo imobilizou-se, depois do embate, a mais de 20 metros da passadeira.
15.–O A. deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Lisboa - Zona Central (Hospital de São José), na noite do acidente, pelas 22h33m, como “vítima de atropelamento de que resultaram traumatismos vários”.
16.–Em 21 de novembro de 2005, na 1.ª observação por neurocirurgia, pelas 01h15m, o A. encontrava-se com “Score 15 GCS2 e é relatada fratura frontal direita linear, sem lesões encefálicas, tendo sido mantido em vigilância clínica”.
17.–Na observação de neurocirurgia, em 21 de novembro de 2005, pelas 18h20m, o A. mantinha “Score 15 GCS, sem queixas ou défices do sistema nervoso central, tendo sido afirmado que, por Neurocirurgia, não carecia de internamento”.
18.–Do ponto de vista ortopédico foi-lhe diagnosticada “uma distensão do ligamento lateral interno do joelho, uma contusão do ombro esquerdos. Foi-lhe prescrito repouso e isso de canadianas durante três semanas”.
19.–O A. foi submetido a exame médico em 16 de janeiro de 2008, determinado no âmbito do Processo n.º …06.3TALRS, do qual consta, na parte relevante: “(…) Afirma que se encontra curado, referindo dores ocasionais no ombro e membro superior direito e alterações na audição e visão à direita, tendo na altura sofrido uma ferida cuja cicatriz se verifica entre a orelha direita e a região parietal do crânio que foi suturada, afirmando que levou 35 pontos. Esta situação provocou cerca de 21 dias de doença e 8 dias de incapacidade para as atividades habituais (…)”.
20.–O A. nasceu a … 1945 e, na data do acidente, tinha 60 anos de idade, tendo presentemente (2024) 78 anos.
21.–Antes do acidente, o A. não apresentava qualquer defeito físico e era uma pessoa ativa e dinâmica.
22.–O A. sofreu muitas dores no momento do acidente.
23.–O A. ficou triste e desgostoso desde a altura do acidente, isolando-se dos amigos.
24.–O A. adquiriu e utilizou canadianas depois do acidente e usa uma canadiana.
25.–Na sequência do atropelamento, o vestuário e o calçado do A. ficaram inutilizados.
26.–Na sequência do atropelamento, o relógio do A. desapareceu.
27.–As lesões decorrentes do acidente provocaram 21 (vinte e um) dias de doença, com 8 (oito) dias de incapacidade para as atividades individuais.
28.–Na presente data (2024), o A. tem uma cicatriz visível com sensivelmente 10 centímetros na região parietal junto à testa.
29.–Aquando do acidente, o A. estava reformado da Polícia de Segurança Pública e dedicava-se à exploração de uma pequena horta caseira.
30.–Quando foi assistido no Hospital, o A. apresentava uma taxa de etanol de 199 mg/dl.

III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
No presente recurso está em causa a qualificação dos danos e o justo valor da indemnização (o facto gerador de responsabilidade não é discutido).

Nas suas primeiras conclusões, até à F), o recorrente, sem colocar em causa a bondade da matéria de facto selecionada em primeira instância, pede a redução do valor atribuído para ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial, que considera exagerado «face às lesões dadas como provadas que, face à matéria dada como não provada, não [lhe] parecem de especial gravidade».

Nas conclusões G) e seguintes do seu recurso, o recorrente conclui haver duplicação da indemnização, na parcela de € 10.000, arbitrada a título de dano biológico. Alega, em suma, que as vertentes do dano biológico relativas ao dano estético e às dores sofridas já se mostram ressarcidas na indemnização de € 22.250 conferida por danos de natureza não patrimonial.

Apenas não foram postos em crise, não sendo, por isso objeto deste recurso, os seguintes valores atribuídos para ressarcimento de danos patrimoniais:
- emergentes, € 350 referentes a vestuário e calçado danificados no infortúnio, relógio desaparecido na mesma ocorrência, aquisição de canadianas subsequente ao acidente e por causa das lesões por ele causadas; e
- lucros cessantes, € 450 pelos dias de incapacidade temporária total para o trabalho.

Para percebermos se, ou em que medida, assiste razão ao recorrente, há que ter em mente alguns conceitos gerais relativos à catalogação de danos, em especial, os conceitos e posicionamento do dano corporal, dano biológico, afetação da capacidade de ganho, e dano de natureza não patrimonial.
Como pano de fundo, tenhamos presente o regime da obrigação de indemnizar constante dos artigos 562.º a 564.º, 566.º e 570.º do CC.
Tradicionalmente, os danos subsumem-se numa das seguintes categorias jurídicas: danos patrimoniais, ou de natureza patrimonial, e danos não patrimoniais, ou de natureza não patrimonial (também designados, danos morais, embora, de acordo com certa nomenclatura, os morais também sejam tidos apenas como uma parcela dos não patrimoniais).
Nos danos patrimoniais, distingue-se o dano emergente e o lucro cessante ou, nas expressões do artigo 564.º, n.º 1, do CC, o prejuízo causado e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. O dano emergente compreende o prejuízo causado nos bens ou direitos existentes na titularidade do lesado à data da lesão; o lucro cessante, os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas que ainda não tinha na sua titularidade à data da lesão.
De há uns anos a esta parte tem sido trabalhada a noção de dano corporal, que, de acordo com certa terminologia, e sobretudo numa fase inicial, também foi designado por dano biológico. O dano corporal (ou dano biológico, sinónimos de acordo com certa nomenclatura) designa lesões na integridade do sujeito enquanto pessoa, na sua globalidade psicofísica. Trata-se de um dano real ou dano-evento, pelo que se situa num patamar mais elevado e a montante dos danos-consequência, sendo estes últimos que são suscetíveis de se reconduzir às categorias antes referidas. Sobre o conceito de dano corporal (ou biológico, quando sinónimos) no direito português, nomeadamente sobre a sua adoção pela jurisprudência, v. Maria da Graça Trigo, «Adopção do conceito de “dano biológico” pelo direito português», ROA, Ano 72, I (jan-mar de 2012), pp. 147-178. A autora defende e conclui que «O dano biológico [conceito que ali utiliza como sinónimo de dano corporal], sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais» (p. 177, ênfases e frase entre parênteses retos nossos).
Como dano-evento que é, do dano corporal podem decorrer danos patrimoniais e/ou danos não patrimoniais, podendo os primeiros assumir feição de danos emergentes ou de lucros cessantes.
O dano corporal pode, portanto, refletir-se de várias maneiras na esfera patrimonial do lesado, nomeadamente:
-Pode provocar perdas diretas de retribuição;
-Pode provocar uma diminuição efetiva, mas indireta, da remuneração porque o lesado produzirá menos e, por via disso, receberá menos;
-Pode, alternativamente, sem provocar perda efetiva de remuneração (pelo menos imediata e face à relação laboral ou profissional vigente), impor ao lesado um esforço acrescido para manter o nível de produtividade anterior ao dano.
Para além destas situações, em conjunto com alguma delas ou isoladamente, o dano corporal pode causar ao lesado dificuldades acrescidas em atos correntes do dia-a-dia. É relativamente a esta decorrência que se tem colocado a questão de saber se se trata de dano patrimonial ou de dano não patrimonial.
Como quer que se entenda, o dano corporal pode ter também, e normalmente tem, (outros) reflexos não patrimoniais.

Com o tempo, tem vindo a reservar-se a expressão dano corporal para o acima referido dano real ou dano-evento e a designar-se por dano biológico uma das suas possíveis decorrências.
É claramente essa a terminologia adotada na  Portaria 377/2008, de 26 de maio – que regulamenta o DL 291/2007, de 21 de agosto, que, por sua vez, aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel –, com as alterações introduzidas pela Portaria 679/2009, de 25 de junho. Esta portaria designa por dano corporal o dano real ou dano-evento ao qual destinámos até agora indiferentemente as expressões “dano corporal” e “dano biológico”. A mesma Portaria 377/2008 destina a expressão “dano biológico” para um dos danos-consequência do dano corporal.
O que acabamos de escrever torna-se claro da leitura dos seguintes artigos ou trechos:
-Pela presente portaria fixam-se os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal (artigo 1.º, n.º 1);
-Nos termos do disposto no artigo 3.º, são indemnizáveis em caso de danos corporais, fora do caso de morte, os seguintes:
a) Os danos patrimoniais futuros nas situações de incapacidade permanente absoluta, ou de incapacidade para a profissão habitual, ainda que possa haver reconversão profissional;
b) O dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil;
c) As perdas salariais decorrentes de incapacidade temporária havida entre a data do acidente e a data da fixação da incapacidade;
d) As despesas comprovadamente suportadas pelo lesado em consequência das lesões sofridas no acidente.
Nos termos do disposto no artigo 4.º, além dos direitos indemnizatórios previstos no artigo anterior, o lesado tem ainda direito a ser indemnizado por danos morais complementares, autonomamente, nos termos previstos no anexo I da presente portaria, nas seguintes situações:
a) Por cada dia de internamento hospitalar;
b) Pelo dano estético;
c) Pelo quantum doloris;
d) Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente absoluta para a prática de toda e qualquer profissão ou da sua profissão habitual;
e) Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da atividade habitual;
f) Quando resulte uma incapacidade permanente absoluta para o lesado que, pela sua idade, ainda não tenha ingressado no mercado de trabalho e por isso não tenha direito à indemnização prevista na alínea a) do artigo anterior.

Na Portaria 377/2008, o “dano biológico” é, pois, um dano-consequência do “dano corporal”; consiste no dano pela ofensa à integridade física e psíquica, de que resulte ou não perda da capacidade de ganho. Esta aceção corresponde essencialmente àquela que se afigura ser atualmente predominante na jurisprudência do STJ: “dano biológico” enquanto consequência patrimonial da incapacidade geral ou funcional do lesado (assim se conclui no Ac. do STJ de 24/02/2022, proc. 1082/19.7T8SNT.L1.S1, Cons. Maria da Graça Trigo).

A lógica das normas da Portaria 377/2008 está explicada no seu preâmbulo, após ali se afirmar que parte significativa das soluções adotadas está ancorada em estudos sobre a sinistralidade automóvel do mercado segurador e do Fundo de Garantia Automóvel, bem como na experiência partilhada por estas entidades.
Lê-se, então, nos prolegómenos que «[u]ma das alterações de maior impacte será a adoção do princípio de que só há lugar à indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua atividade profissional habitual ou qualquer outra. No entanto, ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica» (ênfases acrescentadas).
Dando corpo a este “princípio”, a alínea a) do artigo 3.º (artigo que regula a indemnização por dano corporal fora dos casos de morte), estabelece que são indemnizáveis «[o]s danos patrimoniais futuros nas situações de incapacidade permanente absoluta, ou de incapacidade para a profissão habitual». O artigo 7.º e o Anexo III pormenorizam os critérios e o cálculo.
Logo ocorre a pergunta: se assim é (se apenas de calcula indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua atividade profissional habitual ou qualquer outra) como será, então, ressarcida a situação de incapacidade permanente parcial?
Por duas vias:
a) pela indemnização do dano biológico, que «é calculada segundo a idade e o grau de desvalorização, apurado este pela Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, e com referência inicial ao valor da RMMG (retribuição mínima mensal garantida)» (trecho do preâmbulo, normatizado nos artigos 3.º, alínea b), 8.º e anexo IV); e
b) pela indemnização por danos morais, nos termos previstos no anexo I da Portaria, quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da sua atividade profissional habitual (artigo 4.º, alínea e)).

Por razões de justiça relativa e de segurança jurídica, entendemos ser de tomar como ponto de partida a indemnização resultante da aplicação dos critérios e formas de cálculo da Portaria, com as adaptações que, no caso, se justifiquem. Os montantes indicados pela Portaria «não são vinculativos para os tribunais, mas indicam um valor mínimo inultrapassável por defeito» - Ac. do TRL de 12/09/2017, proc. 3310/11.8TBALM.L1-7 (Luís Filipe Pires de Sousa). A própria Portaria, em sede preambular, frisa que o seu objetivo não é a fixação definitiva de valores indemnizatórios, mas, nos termos do n.º 3 do artigo 39.º do DL 291/2007, de 21 de agosto, o estabelecimento de um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação de propostas razoáveis, possibilitando ainda uma avaliação, tão objetiva quanto possível, pela autoridade de supervisão, da razoabilidade das propostas apresentadas.

Interessam-nos, para a apreciação do caso sub judice, os artigos 3.º e 4.º que enumeram danos-consequência do dano corporal (que não seja a morte), patrimoniais (3.º) e não patrimoniais (4.º), e que já acima transcrevemos, no essencial.
Relembramos os factos assentes e relevantes para as questões ainda em litígio (desconsideramos os factos não provados, pois eles, ao contrário do pretendido pela recorrente, não podem ser atendidos, não podendo da sua não prova inferir-se o seu contrário):
a) Em 20/11/2005, o autor foi vítima de atropelamento de que resultaram traumatismos vários, dando entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Lisboa – Zona Central (Hospital de São José), na noite do acidente, pelas 22h33m (15);
b) Apresentava fratura frontal direita linear, sem lesões encefálicas, nem queixas ou défices do sistema nervoso central, não carecendo de internamento (16 e 17);
c) A fratura foi suturada acabando por gerar cicatriz com sensivelmente 10 centímetros, na região parietal junto à testa, entre a orelha direita e a região parietal do crânio, ainda visível (em 2024) (19 e 28);
d) Do ponto de vista ortopédico, sofreu distensão do ligamento lateral interno do joelho esquerdo e uma contusão do ombro esquerdo, com prescrição de repouso e uso de canadianas durante três semanas (18);
e) Cerca de dois meses depois (em 16/01/2008) encontrava-se curado, com dores ocasionais no ombro e membro superior direito e alterações na audição e visão à direita (19);
f) Por causa do acidente sofreu 21 dias de doença e 8 dias de incapacidade para as atividades habituais (19 e 27);
g) O autor nasceu em …1945, contando, na data do acidente, 60 anos de idade, presentemente, 79 (20).
h) Antes do acidente, não apresentava qualquer defeito físico e era uma pessoa ativa e dinâmica (21);
i) O autor sofreu muitas dores no momento do acidente (22);
j) Ficou triste e desgostoso desde a altura do acidente, isolando-se dos amigos (23);
k) Aquando do acidente, estava reformado da Polícia de Segurança Pública e dedicava-se à exploração de uma pequena horta caseira (29).

Relativamente à al. f), a indemnização do dano ali mencionado foi ressarcida como dano patrimonial e não se discute nesse aspeto, pelo que apenas recordámos o facto por ser atendível também na vertente não patrimonial.
No que respeita à al. j) («Ficou triste e desgostoso desde a altura do acidente, isolando-se dos amigos»), à luz das regras da normalidade estatística e da experiência comum não há nexo de causalidade adequada entre o acidente com as consequência que teve no corpo e no património do sinistrado e tristeza e afastamento dos amigos que perdure até ao presente. Tais tristeza, desgosto e isolamento apenas podem ser considerados limitados a um período de alguns meses.
Posto isto, conjugados todos os factos que contribuem para a análise das questões ainda em discussão e que acabámos de elencar, estão apenas em causa os seguintes danos: lesões físicas e mal-estar psicofísico (dores, tristeza) que se prolongaram, as primeiras, com evidência clínica, durante 21 dias, e o mal-estar psicofísico durante alguns meses, com exceção do dano estético (que tanto constitui uma lesão física, como tem implicações psicológicas), que é permanente.
Todos os referidos danos são indemnizáveis, in casu, como danos de natureza não patrimonial, pois, estando o autor reformado e sem atividade remunerada, não houve incidência, direta ou indireta nos seus proventos. A incidência patrimonial dos dias de doença – porque o autor explorava uma horta pessoal e não o tendo feito durante aquele período poderá ter tido de adquirir bens que de outra forma teria colhido da horta, ou poderá ter-se visto na contingência de deixar estragar bens da mesma horta – foram ressarcidos pela sentença em parte que não é objeto de recurso.
Não há, na situação sub judice, dano biológico ainda por indemnizar; ou seja, não se verifica, não se provou, qualquer défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais (além, como dissemos, do défice funcional delimitado no tempo, e indemnizado sem discussão, e do que se possa considerar compreendido nos danos acima listados).
Na fixação da indemnização devem ser atendidos os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artigo 496.º, n.º 1, do CC. Estão aqui em causa todos os danos de natureza não patrimonial reconduzíveis ao teor do citado artigo, incluindo aqueles que decorrem do dano corporal. Não sendo os danos não patrimoniais suscetíveis de quantificação, o seu ressarcimento tem uma função essencialmente compensatória: permitir ao lesado dispor de uma soma de dinheiro que lhe permita adquirir bens ou serviços que lhe deem alguma satisfação, compensando, ainda que sofrivelmente, o mal padecido. O montante pecuniário será fixado com recurso à equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente (que, no caso, foi enorme – atropelamento em passadeira, em local de plena visibilidade e tendo o peão atravessado já mais de metade da estrada), a sua situação económica e a do lesado, e as demais circunstâncias do caso (artigo 494.º, ex vi do artigo 496.º, n.º 4, ambos do CC).
Como tem sido reiteradamente dito nas decisões dos tribunais superiores, a indemnização por danos não patrimoniais não pode ser meramente simbólica, sob pena de não se mostrar adequada aos fins a que se destina – atenuação da dor sofrida pelo lesado e reprovação da conduta do agente – v. a título meramente exemplificativo, Acs. do STJ de 07/07/2009, proc. 1145/05.6TAMAI.C1, e de 20/11/2003, proc. 03B3528.
Para a quantificação da compensação pelos danos de natureza não patrimonial, há que ter presente que os danos foram causados em 2005 (quando o autor foi atropelado ao atravessar a rua numa passadeira para peões), há cerca de 19 anos, e apenas agora vão ser ressarcidos. Estes 19 anos repercutem-se (devem repercutir-se) na indemnização a arbitrar por danos de natureza não patrimonial de duas formas: relativamente aos sofridos naquela altura e delimitados no tempo, há que ter em consideração a depreciação monetária; relativamente aos restantes, há que considerar o prolongamento do sofrimento durante todo o tempo decorrido.
No que respeita à depreciação monetária, veja-se este pequeno exercício, considerando a quantia de € 16.000 em 2005 atualizada a 2023 (último ano com dados disponíveis) realizado no atualizador do Instituto Nacional de Estatística, em
https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ipc


Um valor de € 16.000 em 2005 corresponderia, atualizado a 2023, a € 21.967,16, hoje, aproximadamente € 22.250, como arbitrado pelo tribunal a quo a título de danos de natureza não patrimonial, e que se nos afigura adequado aos factos provados.
O valor de € 10.000 arbitrado em primeira instância a título de dano biológico (além do valor acima mencionado) revoga-se pela razão acima exposta.
Mantém-se, por não ser objeto de recurso, a indemnização de € 800, a título de danos patrimoniais.

IV. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, substituindo a al. a) do dispositivo da sentença pelo seguinte:
a) Condenam-se os réus Fundo de Garantia Automóvel e «B» a pagar ao autor, «A», a quantia total de € 23.050 (vinte e três mil euros e cinquenta euros), acrescida de juros moratórios a calcular nos seguintes termos:
(i) Sobre a quantia de € 22.250 (vinte e dois mil duzentos e cinquenta euros), desde a presente data e até integral pagamento;
(ii) Sobre a quantia de € 800 (oitocentos euros), desde a citação até integral pagamento.

Custas por recorrente e recorrido em partes iguais.

Lisboa, 11/07/2024


Higina Castelo (relatora) - Laurinda Gemas - Carlos Castelo Branco