Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18730/21.1T8LSB.L1-7
Relator: PAULO RAMOS DE FARIA
Descritores: CONTRATO DE AGÊNCIA
DENÚNCIA
DANOS MORAIS
INCUMPRIMENTO DO PRAZO DE PRÉ-AVISO
CLIENTELA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Ao responder (isto é, ao contestar ou replicar), deve o demandado tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo demandante (arts. 574.º, n.º 1, e 587.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).
2. A posição do demandado perante o facto alegado pelo demandante deve ser uma posição clara perante a verdade, tal como esta é pelo segundo afirmada, devendo o primeiro esclarecer se o facto é falso, total ou parcialmente – identificando a parte falsa –, se é verdadeiro ou se o desconhece.
3. Não deve um demandado despejar num único enunciado diferentes fundamentos possíveis de impugnação (até incompatíveis entre si) e adjudicar ao tribunal a tarefa de os distribuir pertinentemente por cada uma das proposições de facto postas pelo demandante.
4. A declarar que “tudo o vertido no articulado da contraparte, ora porque desconhecido do demandado, ora porque falso, descontextualizado ou meramente conclusivo, vai desde já impugnado para os devidos e legais efeitos”, a parte não satisfaz o ónus de impugnação, não tendo esta declaração, por si só, efeito útil impugnatório, sem prejuízo de se encontrar impugnada toda a matéria alegada pelo demandante inconciliável com a versão dos factos posta pelo demandado nos restantes artigos do seu articulado.
5. Para que se possa reconhecer a uma pessoa incorpórea o direito a uma indemnização por danos não patrimoniais, o facto dito danoso deve ter uma repercussão negativa (ou a sua possibilidade) na prossecução do seu fim (escopo), o que significa, sendo este lucrativo, uma repercussão de âmbito patrimonial (como ocorre com a ofensa à boa reputação da sociedade comercial).
6. A afetação do estado psíquico do legal representante da pessoa coletiva não constitui um dano direto desta.
7. Deve interpreta-se a expressão “ano precedente”, presente no n.º 2 do art.º 29.º do regime jurídico do contrato de agência, como se referindo aos 12 meses de calendário antecedentes, e não ao ano civil imediatamente anterior.
8. O fundamento dogmático da indemnização de clientela poderá ser encontrado na circunstância de a angariação realizada pelo agente visar um proveito económico comum. Destinando-se este proveito, quer ao principal, quer ao agente – este por via do recebimento das comissões devidas por futuros fornecimentos –, a denúncia ad nutum do contrato de agência pelo primeiro representa uma apropriação da vantagem económica que caberia ao segundo.
9. Tratando-se de uma indemnização que visa compensar a perda de um rendimento (cessante) que seria obtido através de uma operação sujeita a IVA, pode entender-se que deve o pagamento de tal indemnização ser sujeito a este imposto.
10. O incidente pós-decisório de liquidação não é uma segunda oportunidade para a parte provar os factos essenciais que constituem a causa de pedir ou a exceção – totalmente pretéritos e plenamente conhecidos na data da formulação do pedido. Não é admissível uma duplicação de instâncias declarativas (uma segunda chance), quando a parte não satisfaz o seu ónus da prova, já tendo disposto na ação (instância principal) de todos os meios de prova (ou da possibilidade de os produzir) de que poderia dispor numa nova instância declarativa incidental de liquidação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A. Relatório
A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
NSAY, L.da, instaurou a presente ação declar\ativa, com processo comum, contra PTOX, L.da, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia global de €115.390,14, “acrescida de juros desde a citação até efetivo e integral pagamento, assim discriminada”:
– a quantia de euros: 22.118,94€ a título de indemnização por danos resultantes da falta de aviso prévio;
– a quantia de euros: 70.670,52€ a título de indemnização de clientela;
– a quantia de euros: 7.600,68€ a título de comissões devidas pelas vendas efetuadas nos meses de agosto e setembro (até dia 5) de 2020, valor esse acrescido do restante valor de comissões em dívida e que se vier a apurar ou em alternativa e caso não seja possível apurar nesta sede, desde já se relega para ser liquidado em execução de Sentença;
– a quantia de euros: 15.000€ a título de danos não patrimoniais.
Para tanto, alegou que, em setembro de 2013, entre a autora e a ré, foi celebrado um contrato de agência, no qual a primeira assumiu a qualidade de agente da segunda. Nos meses de agosto e setembro de 2020, a autora promoveu vendas ainda não remuneradas pela ré. Em agosto de 2020, a ré denunciou o contrato de agência, com violação do prazo de 3 meses de pré-aviso. Durante o período de vigência do contrato, angariou diversos clientes para a ré, aumentando substancialmente o volume de vendas desta e a respetiva clientela. A ré continuou a beneficiar, após a cessação do contrato, da atividade desenvolvida pela autora, sem que esta tenha auferido retribuição ou compensação por tal benefício ulterior. Na sequência da cessação do contrato pela ré, e em virtude da mesma, a autora viu a sua reputação profissional afetada no mercado, ficando o seu gerente profissionalmente lesado.
Citada a contraparte, ofereceu esta a sua contestação, defendendo-se por exceção e por impugnação. A ré aceitou parte da factualidade invocada pela autora e alegou, além do mais, em síntese, que, apesar de existirem valores em dívida (na data da instauração da ação), a autora não teve um desempenho isento de falhas, o que justificou a denúncia do contrato. As comissões devidas foram integralmente liquidadas. O processo negocial para fixação de uma quantia compensatória não foi concluído porque a autora se recusou a devolver um mostruário de produtos pertencentes à ré. Após a data da instauração da ação, liquidou à autora todos os valores contratual e legalmente devidos.
Em reconvenção, pediu o reconhecimento da validade da compensação do valor de uma eventual indemnização devida com o valor dos bens da ré que a autora indevidamente reteve em seu poder – um mostruário e um iPad –, compensação esta já anteriormente declarada (até ao montante de €28.867,63) –.
Na réplica, a reconvinda impugnou o valor dado pela ré aos bens retidos e invocou o direito de retenção destes.
A ré requereu a ampliação do pedido reconvencional, reavaliando o mostruário (composto por centenas de exemplares para amostra dos artigos comercializados) em €106.791,23 (€86.822,14 + IVA), a qual foi admitida.
Após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente e a reconvenção improcedente, concluindo nos seguintes termos:
Pelo exposto, julgando a ação parcialmente procedente, por provada, condeno a ré a pagar à autora a quantia de €95.167,63 (…), acrescida de juros de mora devidos para créditos comerciais, desde a citação até integral pagamento.
Por não provada, julgo a reconvenção totalmente improcedente, absolvendo a autora/reconvinda do pedido.
Custas por autora e ré na proporção do respetivo decaimento, no que respeita aos pedidos principais – artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Custas pela ré/reconvinte, quanto ao pedido reconvencional, atento o seu total decaimento.
Inconformada, a ré apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
III. (…) a recorrente fez o pagamento de €39.858,98 por conta da indemnização global e que esse valor deve ser forçosamente descontado no valor que eventualmente o tribunal venha a fixar, em termos de condenação no pedido. (…)
XII. [Quanto à indemnização por danos não patrimoniais, inexiste] (…) um único elemento probatório concreto donde se possa, objetivamente, extrair a existência de um qualquer dano de natureza não patrimonial que tenha atingido a recorrida, fruto da legítima e legalmente permitida denúncia do contrato. (…)
XLIII. [Quanto à indemnização de clientela] (…) o tribunal a quo entendeu não fazer qualquer ponderação ou juízo equitativo (…), antes optando, pura e simplesmente, de forma extremada, conceder toda a indemnização peticionada, como se as vendas resultassem, única e exclusivamente, do esforço e trabalho do agente. (…)
L. (…) para efeitos de fixação do referencial indemnizatório, a ora recorrida sempre teve por base os valores brutos das remunerações de que auferiu, (…) sem ter tido em conta, conforme seria exigível, qual teria sido o valor líquido de tais remunerações na sua esfera jurídica (…).
LVII. [Quanto à indemnização por falta de pré-aviso, a decisão] (…) viola frontalmente o disposto no artigo 29.º, n.º 2 do RJCA (…).
LXVI. [Quanto ao pedido reconvencional] (…), deveria a recorrida ter sido condenada no pagamento à PTOX do valor real comercial dos óculos, no montante de €106.791,23, ou, subsidiariamente e quando assim não se entenda, no seu valor de aquisição de €28.867,63.
A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.
A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar
São as seguintes as questões a enfrentar:
a) impugnação da decisão respeitante à matéria de facto;
b) qualificação da relação contratual;
c) verificação dos pressupostos da ocorrência de um dano não patrimonial;
d) apuramento do valor da indemnização pela insatisfação do prazo de pré-aviso;
e) apuramento do valor da indemnização de clientela;
f) imputação dos pagamentos efetuados na pendência de ação;
g) verificação dos fundamentos do pedido reconvencional.
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B. Fundamentação
B.A. Factos provados (conforme decidido pelo tribunal “a quo”)
1. Outorga do contrato de agência
1 – A autora é uma sociedade comercial que tem por objeto o comissionamento de vendas e a compra e venda de produtos óticos (…).
2 – A ré está integrada num grupo empresarial multinacional de fabrico, distribuição e comercialização de armações para óculos, óculos de sol e outros acessórios no ramo da ótica.
3 – Em concreto, a ré é uma sociedade comercial que integra o referido grupo empresarial e que representa a atividade do mesmo em Portugal.
4 – Em 16 de setembro de 2023, no exercício das respetivas atividades comerciais, autora e ré celebraram um acordo escrito denominado “Contrato de Agência”, cuja cópia consta dos autos (…).
5 – Nos termos desse acordo, a autora, na qualidade de agente comercial, obrigou-se a promover, por conta da ré, a celebração de contratos de venda de armações para óculos graduados e de sol de determinadas marcas, melhor identificadas no anexo A desse contrato (concretamente, “CCC”, “JJJ”, “BBB”, “MMM” e “NSAY”), nas lojas de produtos óticos localizadas nas zonas de território identificadas no anexo B do contrato (Viana do Castelo, Braga, Vila Real, Bragança, Porto, Aveiro, Viseu, Guarda, Coimbra e Castelo Branco).
6 – O mesmo acordo, para lá de estabelecer uma série de obrigações às ali partes (aqui autora e ré), consignou também que, como contrapartida da prestação do agente (aqui autora) na execução do presente contrato, o principal (aqui ré) pagaria àquele uma comissão calculada de acordo com o disposto no Anexo C, conforme cláusula 7.ª, n.º 1, do contrato.
7 – Resulta do referido anexo C que a comissão seria de 10% sobre o valor da facturação liquida das marcas “CCC”, “JJJ”, “BBB” e “MMM” e de 17% sobre o valor da facturação líquida da marca “NSAY”; que, nos chamados “Clientes Especiais”, a “Comissão” relativa às vendas dos produtos constantes do anexo A seria reduzida para 9% nos franqueados do Grupo VGD; e que, nos chamados “Clientes NSAY Portugal”, a saber, CIL, Grupo VGD, Grupo AUA e Grupo NOA, não haveria lugar ao pagamento de qualquer comissão.
8 – Na aludida Cláusula 7.ª, as partes fizeram também constar, nomeadamente, que:
2 A comissão mencionada no número anterior será calculada e liquidada com base na facturação líquida apurada em função de contratos propostos pelo Agente, e após serem deduzidos todos os empréstimos, prémios, restituição de mercadoria, descontos e tudo o mais que tiver contribuído para a redução dos preços de venda.
3 O Agente adquire o direito à comissão com a emissão da facturação líquida pelo Principal.
4 As comissões serão pagas pela Principal até ao último dia do mês da seguinte ao mês em que se verificar a emissão da facturação líquida.
9 – As partes fizeram também constar do “Contrato de Agência”, na cláusula 8.ª, que o contrato foi celebrado por tempo indeterminado e que:
2. Qualquer das partes poderá denunciar o contrato mediante carta registada com aviso de receção, dirigida à outra parte, com um aviso prévio de:
(i) um mês, se o contrato durar há menos de um ano;
(ii) dois meses, se o contrato já tiver iniciado o segundo ano de vigência;
(iii) três meses, nos restantes casos.
3. O termo do prazo deve coincidir com o último dia do mês.
10 – Na cláusula 12.ª (indemnizações), o contrato dispõe o seguinte:
1. Independentemente do direito de resolver o contrato, qualquer das partes tem direito a ser indemnizada, nos termos gerais, pelos danos resultantes do não cumprimento das obrigações da outra.
2. A cessação do presente contrato não confere direito a qualquer indemnização ou compensação ao Agente, com excepção de uma indemnização de clientela, desde que sejam preenchidos os seguintes pressupostos:
i) O Agente tenha angariado novos clientes para o Principal ou aumentado substancialmente o volume de negócios com a clientela já existente.
ii) O Principal venha a beneficiar consideravelmente, após a cessação do contrato, da actividade desenvolvida pelo Agente.
iii) O Agente deixe de receber qualquer retribuição por contratos negociados ou concluídos, após a cessação do presente contrato, com os clientes referidos em i).
3. Não é devida indemnização de clientela se o contrato tiver cessado por razões imputáveis ao Agente ou se este, por acordo com a outra parte, houver cedido a terceiro a sua posição contratual.
4. Extingue-se o direito à indemnização de clientela se o Agente ou os seus herdeiros não comunicarem ao Principal, no prazo de um ano a contar da cessação do contrato, que pretendem recebê-la, devendo a acção judicial ser proposta dentro do ano subsequente a esta comunicação.

11 – No mercado das óticas, as empresas com a dimensão da ré (…), fazem-se representar por agentes a quem é atribuída uma determinada zona geográfica e (principalmente) um determinado número e tipo de marcas, de tal sorte que pode, por exemplo, a mesma empresa (principal) ter vários agentes para a mesma zona e na mesma cada um desses agentes angariar clientela e promover vendas para as marcas que lhe foram atribuídas; significando isto que agentes comerciais da mesma empresa visitam e promovem junto do mesmo clientes marcas diferentes.
12 – Acresce a isso o facto de muitas vezes, o mesmo cliente, para certas marcas é cliente direto da própria empresa (principal) sem mediação de qualquer agente e para outras, é agenciado pelo respetivo agente.
13 – Até ao ano de 2013, a autora foi agente comercial da multinacional “XPTU” (que atua no mesmo ramo de atividade da aqui ré), para a qual agenciou clientela e negócios durante vários anos.
14 – No ano de 2013, fruto do seu bom desempenho, a autora, na pessoa do seu legal representante FBIL, foi abordada e aliciada pela aqui ré, com vista a assumir o papel de seu agente comercial, tendo sido destacada a experiência, o conhecimento do mercado e a eficiência da autora (na pessoa do seu gerente FBIL).
15 – A ré garantiu à autora que, em pouco tempo, lhe atribuiria marcas com potencial de crescimento, o que lhe permitiria desenvolver um trabalho de longo prazo.
2. Desenvolvimento da relação contratual
16 – Ao fim de alguns meses, a ré atribuiu à autora apenas a sua própria marca (“NSAY”), marca essa que era “difícil” de vender ou de comprar e pouco “trabalhada” pela ré (uma espécie de marca branca), tendo, mesmo assim, a autora aceitado o desafio de agenciar clientes para a ré.
17 – Durante cerca de dois anos, a autora angariou e promoveu vendas da marca “NSAY” para a ré junto do mercado (nas zonas que lhe foram atribuídas contratualmente), vendas essas promovidas, quer junto de clientes já existentes na ré, quer junto de novos clientes angariados pela autora.
18 – Após esses dois anos, a ré, perante o bom desempenho da autora, atribuiu-lhe a promoção das marcas “RRR” e “PPP” e, posteriormente, a “YYY”, nas quais a autora se manteve durante cinco anos.
19 – Enquanto agente comercial da ré, e ao longo de toda vigência do contrato, a autora fez prospeções de mercado, angariou novos clientes para a ré, incrementou as vendas junto dos clientes já existentes na ré, fez visitas a clientes (antigos e novos), visitou potenciais novos clientes, fez campanhas de vendas solicitadas pela ré, colaborou na realização de inúmeras tarefas conexas com o negócio da ré e colaborou com outros agentes desta, ajudando-os a incrementar os respetivos negócios.
20 – Do mesmo modo, a autora agiu no mercado, quer perante os clientes, concorrentes, quer perante a ré, com a maior elevação, dedicação e profissionalismo, garantindo sempre o melhor desempenho comercial possível, em benefício da ré, assim contribuindo para o bom nome e imagem desta.
21 – Em 7 anos de contrato (entre setembro de 2013 e setembro de 2020), a autora, fruto das vendas que angariou para a ré, cobrou à mesma ré (…) €494.694,34, o que equivale a uma média anual de comissões de €70.670,62 (o que equivale a média mensal de €5.889,21).
3. Cessação do contrato de agência
22 – Em 20 de agosto de 2020, o legal representante da autora foi chamado a uma reunião com a ré, que teve lugar no hotel Porto Axis, na qual compareceram, em representação desta, o Sr. LP (gerente) e a Sra. SC (responsável de recursos humanos).
23 – Nessa ocasião, os representantes da ré transmitiram ao legal representante da autora que era propósito daquela fazer cessar o contrato e que, por essa razão, pretendiam negociar um acordo para concretizar os termos dessa desvinculação, mas sem que nenhuma proposta tivesse sido apresentada.
24 – No dia seguinte, já por contacto telefónico de Pedro Lopes, este informou que a ré estaria disponível para entregar à autora a quantia de €30.000,00.
25 – No referido contacto telefónico e, em 27 de agosto de 2020, por mensagem de correio eletrónico, a autora rejeitou o valor proposto e, além do mais, declarou o seguinte, conforme documento 111 junto com a petição:
(…) atento à proposta que me apresentaste telefonicamente no dia a seguir à referida reunião e mediante a qual a empresa estaria “disponível” para me pagar o valor de 30.000€, só posso entender que (…) então o valor a que teria direito andaria na casa dos 60.000€. Pese embora tal facto, em circunstância alguma aquilo que me é proposto se afigura aceitável (…) estou disponível para aceitar o pretendido acordo contra o recebimento de euros: 90.000€ (…).
26 – Em 5 de setembro de 2020, a ré respondeu por mensagem de correio eletrónico, do qual consta, além do mais, o seguinte, conforme documento 112 junto com a petição:
Na sequência da reunião havida (…) e do seu email (…), segue em anexo cópia da carta remetida a 2/9/2020 (por correio registado com aviso de receção), através da qual a PTOX, Lda. denunciou o contrato de agência celebrado a 16 de setembro de 2013 com a NSAY – Sociedade por Quotas, Lda. (“Contrato”). Tendo a denúncia sido comunicada por escrito para a morada que consta do Contrato, e considerando que nunca recebemos qualquer comunicação a proceder à sua alteração, a mesma considera-se validamente realizada ainda que V. Exas. não tenham procedido ainda ao levantamento da carta supra mencionada junto dos correios. Em todo o caso, a NSAY Portugal, Lda. decidiu conferir a Exas. um prazo, até ao dia 8 de setembro de 2020 às 18 horas, para que restituam todas as mercadorias ou outros bens propriedade da NSAY Portugal, Lda., o respetivo mostruário, bem como todos os documentos relativos à execução do Contrato, incluindo, nomeadamente, a relação atualizada dos clientes.
27 – Em anexo ao referido e-mail (e tal como do mesmo consta), seguiu a cópia de uma carta datada de 30 de agosto de 2020, através da qual a ré declarou denunciar o contrato de agência celebrado com a autora e, ainda, que «(…) dada a falta de observância do aviso prévio para a denúncia do Contrato, propomos proceder ao pagamento a V.Exas. de EUR 11.965 a título de compensação, nos termos e para os efeitos do artigo 29.º [do D.L. n.º 178/86, de 03.07]», conforme documento 113 junto com a petição.
28 – A autora respondeu por carta datada de 15 de setembro de 2020 – conforme documento 114 junto com a petição –, à qual se seguiu uma troca de comunicações escritas entre as partes, datadas, respetivamente, de 6 de outubro de 2020 e de 22 de outubro de 2020, conforme documentos 115 116 juntos com a petição.

4. Danos sofridos
29 – Com a denúncia contratual operada pela ré, a autora perdeu todas as vendas que esperava efetuar nos meses correspondentes ao período de aviso prévio fixado no acordo, que corresponderiam a setembro, outubro e novembro de 2020.
30 – Esses meses correspondem ao período de vendas para a época de Natal e, por isso, tradicionalmente bons.
31 – Mesmo depois da comunicação de denúncia, a ré continuou a beneficiar da atividade desenvolvida pela autora enquanto sua agente.
32 – Após a comunicação de denúncia, a autora não mais auferiu qualquer retribuição por negócios concluídos junto dos clientes que a si eram afetos.
33 – Na vigência do contrato, ao final de cada mês, a ré enviava à autora o mapa das vendas referentes aos negócios por si angariados, mapa esse que era depois validado pela mesma autora, após o que a ré procedia ao pagamento do valor devido de comissões, contra a emissão, pela autora, da respetiva fatura.
34 – Porém, quando procedeu à denúncia do contrato, a ré deixou de fornecer à autora a informação relativa às vendas angariadas e negociadas pela autora durante o mês de agosto de 2020, também não lhe tendo pago as respetivas comissões devidas por esse mês.
35 – A autora, na pessoa do seu legal representante, viu o seu projeto profissional cair repentina e inesperadamente.
36 – A autora viu a sua imagem no mercado afetada, já que sempre foi vista como uma entidade séria e reconhecida pela positiva.
37 – Datada de 13 de agosto de 2021, a ré remeteu à autora a carta a que corresponde o documento 1 com a contestação, na qual, além do mais, declarou o seguinte:
(…) vimos (…) informar que a N/Constituinte procedeu, no passado dia 4 de Agosto de 2021, ao pagamento do montante total de €39.858,98 (conforme atestado pelo comprovativo de pagamento anexo à presente), correspondente às parcelas indemnizatórias que entende como adequadas pela cessação do contrato de agência (…), bem como aos valores relativos às comissões que permaneciam por pagar relativas a vendas realizadas em 2020, o qual se reparte do seguinte modo:
· Comissões pendentes: €3.726,61
· Indemnização de clientela e compensação pela cessação antecipada: €65.000
· Danos causados pela não devolução do mostruário: - €28.867,63
· Total da transferência: €39.858,63 (…).
38 – Na sequência das tentativas das partes de alcançarem um valor consensual pela cessação do contrato com a autora, esta procedeu à retenção de produtos pertencentes à ré, não obstante as interpelações desta para a sua devolução.
39 – Esses produtos correspondem a um mostruário de óculos de sol, que a ré entregou à autora no âmbito do Contrato para que esta pudesse proceder a amostragens junto de potenciais clientes, e um iPad, também pertencente à ré, que a mesma se dispôs a ceder à autora também no âmbito do Contrato.
B.B. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
1. Pagamento efetuado pela recorrente

Alegou a apelante que, “em sede de contestação, a ora recorrente alegou, expressamente, que, na data de 4 de agosto de 2021, realizou a favor da recorrida uma transferência bancária no valor de €39.858,98, já após ter sido proposta a ação judicial”. Acrescentou que, “em sede da réplica, (…) a recorrida aceitou e acusou a receção de tal valor (…)”.
Sobre esta questão, o tribunal a quo deu por provado o teor do ponto 37 – comunicação do pagamento da referida quantia. Sobre ela, nada consta no leque dos factos não provados.
Verifica-se, pois, que o tribunal a quo se pronunciou sobre um facto instrumental – a comunicação de uma transferência –, mas não sobre o facto essencial – a efetiva realização da transferência. Quanto à pronúncia sobre o facto essencial, assiste razão à apelante – cfr. os arts. 95.º a 99.º da contestação, bem como os arts. 12.º e 13.º da réplica e o teor do requerimento da autora com a referência 39659130. Embora não sob a forma de um verdadeiro julgamento de facto – dado que, tendo sido admitido, estava subtraído à instrução e à pronúncia sobre a matéria de facto controvertida –, o tribunal recorrido deveria ter incluído este facto essencial no leque dos factos que constituem a fundamentação de facto da sentença.
Em face do exposto, deve ser aditado aos fundamentos de facto da decisão de mérito o seguinte ponto:
40 – Em 4 de agosto de 2021, a ré transferiu para a conta bancária da autora a quantia de €39.858,98, a título de pagamento de “comissões pendentes”, “indemnização de clientela” e “compensação pela cessação antecipada”.
2. Dano não patrimonial
Insurge-se a apelante contra a decisão do tribunal a quo dando como provados os seguintes enunciados:
35 – A autora, na pessoa do seu legal representante, viu o seu projeto profissional cair repentina e inesperadamente.
36 – A autora viu a sua imagem no mercado afetada, já que sempre foi vista como uma entidade séria e reconhecida pela positiva.

No essencial, a apelante sustenta que inexiste prova sobre esta factualidade e que o segundo enunciado é conclusivo. Novamente, assiste razão à apelante, parcialmente.
O primeiro enunciado encerra, em parte, um julgamento de direito, pois dele resulta que os danos não patrimoniais imediatamente experimentados pelos legais representantes de uma sociedade podem ser imputados ao ente coletivo. É esta uma questão de direito, pelo que deve ser expurgada da decisão de facto.
O segundo enunciado, na sua atual composição, mais do que conclusivo, é imprestável. Por um lado, a afirmação de que “a autora viu a sua imagem no mercado afetada” – e já sem considerar a indeterminação do conceito de “imagem no mercado” – constitui uma conclusão a extrair, designadamente, da relação entre a prova da “imagem no mercado” anterior à denúncia e a prova da “imagem no mercado” subsequente esta. Ora, não resultou provado – e a prova produzida permite mesmo a conclusão contrária – que a “imagem no mercado” da autora se tenha alterado em resultado da denúncia. A autora era “vista como uma entidade séria e reconhecida pela positiva”, antes da denúncia, e assim continuou a ser após a extinção do contrato de agência.
Por outro lado, este enunciado é imprestável porque não indica em que sentido ou medida a “imagem no mercado” da autora foi afetada. Assim, não sabemos se foi afetada negativamente ou, inversamente, se foi afetada positivamente. Aliás, em rigor, o enunciado encerra uma contradição intrínseca, se se considerar que a sua primeira oração leva implícita a ideia de afetação negativa. É que, se se afirma, sem mais, que a “autora (…) sempre foi vista como uma entidade séria e reconhecida pela positiva” – sublinhado nosso –, tal significa que assim foi vista em todo o tempo até à data da propositura da ação, anterior ou subsequentemente à denúncia, não existindo nenhuma repercussão negativa da denúncia sobre a imagem da autora.
Em face do exposto, deve ser alterada a decisão de facto nos seguintes termos:
35 – Em resultado da denúncia operada pela ré, o legal representante da autora viu o seu projeto profissional cair repentina e inesperadamente.
36 –A autora sempre foi vista como uma entidade séria e reconhecida pela positiva
3. Indemnização de clientela
O tribunal a quo deu por não provados os seguintes factos:
c) Que, ao iniciar a relação contratual com a ré, à autora foi atribuída uma zona geográfica de atuação em que a primeira já dispunha de um vasto leque de clientes seus que eram anteriores à colaboração da autora, com os quais a ré já mantinha anteriormente relações comerciais estáveis;
d) Que a autora foi encarregue, em primeira linha, de gerir e manter uma base de clientela pré-existente, com o intuito de, no mínimo, conservar o volume de vendas de tais clientes e, desejavelmente, de contribuir para o incremento das mesmas, bem como de angariar outros clientes.
A apelante pretende que estes dois enunciados sejam dados por provados, julgando-se, ainda, provado que “A PTOX concedeu à autora toda uma estrutura logística e operacional, um suporte comercial e de marketing, que contribuiu para as vendas da autora”.
O tribunal recorrido não fundamentou especificamente a decisão respeitante às citadas alíneas, para além da seguinte fundamentação genérica: “Quanto aos factos não provados, os mesmos derivam, quer da falta de prova efetuada sobre esta matéria por cada uma das partes, respetivamente, quer da circunstância de a autora ter logrado efetuar prova de sentido contrário ao alegado pela ré”.
O segundo facto acima transcrito – descrito na al. d) – não assume relevância na economia desta ação. Diz respeito à intenção típica de um principal com a celebração de um contrato de agência. Esta intenção em nada afeta os direitos e deveres das partes decorrentes da extinção do contrato de agência.
É jurisprudência pacífica das Relações que “não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objeto de impugnação não forem suscetíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º e 138.º, todos do Cód. Proc. Civil)” – assim, entre muitos outros, cfr. os Acs. do TRC de 24-04-2012 (219/10.6T2VGS.C1), de 14-01-2014 (6628/10.3TBLRA.C1) e de 15-09-2015 (6871/14.6T8CBR.C1), do TRG de 15-12-2016 (86/14.0T8AMR.G1) e de 22-10-2020 (5397/18.3T8BRG.G1), e do TRL de 26-09-2019 (144/15.4T8MTJ.L1-2) e de 27-10-2022 (7241/18.2T8LRS-A.L1-2).
Quanto ao primeiro facto – descrito na al. c) –, foi ele alegado nos arts. 40.º e 41.º da contestação. Na réplica, a autora limitou-se a dizer que tudo o vertido na contestação, salvo nos artigos 1.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 14.º e 15.º, “ora porque desconhecido da autora, ora porque falso, descontextualizado ou meramente conclusivo, vai desde já impugnado para os devidos e legais efeitos”.
Estabelece o n.º 1 do art.º 574.º do Cód. Proc. Civil, com a epígrafe “ónus de impugnação especificada”, que, “ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor” – norma esta aplicável à réplica, por força do disposto no n.º 1 do art.º 587.º do Cód. Proc. Civil. Conforme se defende no Ac. do TRP de 25‑01‑2024 (16522/22.0T8PRT.P1), que seguimos de perto, a norma contida no n.º 1 do art.º 574.º do Cód. Proc. Civil representa um afloramento do dever das partes de colaborarem com o tribunal na descoberta da verdade material e na obtenção da justa composição do litígio, assente no entendimento de que “o silêncio pode ser gravemente nocivo à justiça da decisão” (Alberto dos Reis) – cfr. os arts. 7.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil (dever de cooperar para a justa composição do litígio), 7.º, n.ºs 2 e 3, do CPC (dever de prestar esclarecimentos), 417.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil (dever de contribuir para a descoberta da verdade material) e art.º 452.º do Cód. Proc. Civil (dever de prestar depoimento de parte).
A posição de um demandado (como o reconvindo) perante o facto deve ser uma posição clara perante a verdade, tal como ela é alegada pelo demandante. Por assim ser, não pode um demandado despejar num enunciado diferentes fundamentos possíveis de impugnação (até incompatíveis entre si) e adjudicar ao tribunal a tarefa de os distribuir pertinentemente por cada uma das proposições de facto postas pelo demandante.
Note-se, por exemplo, que a afirmação de desconhecimento pode valer como confissão, assim como pode valer como impugnação (art.º 574.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil), pelo que deve reportar-se sempre a um facto concreto, e nunca – sobretudo quando acompanhada da afirmação alternativa de falsidade ou de incorreção da narrativa posta pela contraparte – ao conjunto dos factos alegados pelo demandante, incluindo este factos pessoais. Neste sentido, não deve o demandado limitar-se a usar o conceito jurídico polissémico de “impugnar”; deve, sim, de, claramente, dizer se o facto é falso, total ou parcialmente – neste caso, indicando com precisão a parte falsa e a parte verdadeira –, se é verdadeiro ou se o desconhece.
Nestes autos, a autora reconvinda limitou-se a alegar, como vimos, que, “ora porque desconhecido da autora, ora porque falso, descontextualizado ou meramente conclusivo, vai desde já impugnado para os devidos e legais efeitos”. Como é evidente, estes fundamentos não são cumuláveis, pelo que a autora reconvinda, com esta afirmação, não tomou posição definida sobre os factos alegados pela ré reconvinte, não satisfazendo o seu ónus de impugnação. Não tem esta declaração, por si só, efeito útil impugnatório, sem prejuízo de se encontrar impugnada toda a matéria alegada pela reconvinte inconciliável com a versão dos factos posta pela reconvinda nos restantes artigos da réplica e na petição inicial.
Em qualquer caso, a prova destacada pela apelante – no essencial, as declarações do seu legal representante –, intrinsecamente coerente e sustentada pelas práticas comerciais alegadas pela própria autora, impõe que se dê por provado o conteúdo de facto atualmente descrito na al. c) do leque dos factos não provados. Em face do exposto deve ser alterada a decisão de facto nos seguintes termos:
41 – Ao iniciar a relação contratual com a ré, à autora foram atribuídas uma zona geográfica de atuação e uma carteira clientes com os quais a ré já anteriormente mantinha relações comerciais estáveis.
Quanto à pronúncia omitida sobre o facto que a apelante entende ter resultado provado – “A PTOX concedeu à autora toda uma estrutura logística e operacional, um suporte comercial e de marketing, que contribuiu para as vendas da autora” –, constata-se que a ré não identifica o artigo da contestação no qual alega este facto. E não identifica porque ele não foi alegado – e, acrescente-se, não foi processualmente adquirido durante a instrução. Se não foi alegada esta factualidade essencial, não podia ela ser objeto da instrução nem podia ser, como não foi, objeto da decisão de facto. Não pode deixar de improceder, quanto a este concreto ponto, a impugnação da decisão de facto.
4. Valor dos bens retidos pela autora
O tribunal a quo deu por não provado o seguinte facto:
h) Que o conjunto de produtos pertencentes à ré, que a autora reteve, tem o valor comercial de €28.867,63 ou de €106.791,23.
A apelante pretende que seja dado por provado que a autora reteve bens no valor de €106.791,23 ou, ao menos, de €28.867,63. Sustenta que esta factualidade deveria ter sido julgada provada com base no depoimento do seu legal representante e nas faturas que junta. Vejamos se com razão.
Nas referidas faturas, consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:


TIPO DE DOCUMENTONÚM. DO DOCUMENTODATA DO DOCUMENTO (…)
Fatura
3110021448
22.12.2021 (…)
(…) DESCRIÇÃO DO ITEMQNT. ENVIADA(…) VALOR LÍQUIDO (…)
MERCADORIA ENVIADA PARA
541297
NSAY, LDA, (…)
ENCOMENDADO POR
541297
NSAY, LDA, (…)
GUIA DE REMESSA
8601006074
22.12.2021
NUM. DE DOCUMENTO
1010657598
21.12.2021
(…)
RECAPITULAÇÃO DE ARTIGOS
ARMAÇÕES ÓPTICAS DE METAL
332
18.309,60
ARMAÇÕES ÓPTICAS DE PLÁSTICO
613
32.362,84
ÓCULOS DE SOL
10
712,00
(…)
(…) VALOR LÍQUIDO TOTALVALOR TOTAL DO IVAVALOR TOTAL
(…) 51.384,44 EUR
11.818,42 EUR
63.202,86 EUR



TIPO DE DOCUMENTONÚM. DO DOCUMENTODATA DO DOCUMENTO (…)
Fatura
3110021449
22.12.2021 (…)
(…) DESCRIÇÃO DO ITEMQNT. ENVIADA(…) VALOR LÍQUIDO (…)
MERCADORIA ENVIADA PARA
541297
NSAY, LDA, (…)
ENCOMENDADO POR
541297
NSAY, LDA, (…)
GUIA DE REMESSA
8601006076
22.12.2021
NUM. DE DOCUMENTO
1010657598
21.12.2021
(…)
RECAPITULAÇÃO DE ARTIGOS
ARMAÇÕES ÓPTICAS DE METAL 11
406,50
ARMAÇÕES ÓPTICAS DE PLÁSTICO3
107,00
ÓCULOS DE SOL
509
34.924,20
(…)
(…) VALOR LÍQUIDO TOTALVALOR TOTAL DO IVAVALOR TOTAL
(…) 35.437,70 EUR
8.150,67 EUR
43.588,37 EUR


Em causa estão, de acordo com a contestação, um tablet (iPad) e um conjunto de exemplares dos produtos para venda (mostruário). Quanto ao tablet (iPad), não indica a apelante em que documento ou passagem da prova gravada é referido o seu valor – se é que na data da denúncia tinha algum valor comercial. Não é indicado o seu modelo nem a data de entrega – recorde-se que o contrato já durava há sete anos. Aliás, a recorrente, na sua alegação – e mesmo o seu legal representante, nas declarações que prestou –, refere-se ao valor de €28.867,63 como correspondendo ao valor apenas do mostruário.

Quanto ao mostruário, convém sublinhar que estamos perante uma universalidade de facto (art.º 206.º do Cód. Civil). Trata-se de uma amostra compreendendo exemplares iguais aos produtos comercializados. Estamos, pois, perante uma ferramenta de trabalho, e não perante mercadoria destinada a venda.
Importa ainda notar que, como referem a própria recorrente e o seu legal representante, os bens em questão estão sujeitos a rápida depreciação, pelo que, quando deixassem de ter utilidade expositiva inseridos no mostruário, também deixariam de ter utilidade e valor comercial relevante, depois de já usados no contexto da angariação. O mesmo é dizer que a avaliação do mostruário com recurso à avaliação das coisas singulares que constituem a universalidade, destinadas a exposição – isto é, a integraram a “montra” do agente –, feita com base no valor de venda dos produtos correspondentes comercializados, é desprovida de sentido. De todo o modo, as faturas (unilateralmente) elaboradas pela ré após a cessação da relação contratual não são suficientes, obviamente, para a prova de que todos os concretos bens faturados foram efetivamente entregues à contraparte ou que têm o valor inscrito.
(Entre parêntesis, diga-se que esta questão de facto é, na verdade, relativamente irrelevante. O pedido reconvencional formulado é de reconhecimento da “licitude e validade da compensação do valor de indemnização calculado pela ré/reconvinte com o valor dos bens indevidamente apropriados pela autora/reconvinda”; ou seja, é de reconhecimento da eficácia da prévia e concreta compensação declarada na carta referida no ponto 37 – factos provados. Ora, tal concreta prévia declaração de compensação referiu-se apenas ao valor de €28.867,63 (valor do mostruário enquanto coisa composta e do iPad). Se a reconvinte também pretendia compensar uma diferente quantia/crédito, deveria ter formulado um diferente pedido, declarando uma nova (e atual) compensação deste diferente crédito (não se limitando, pois, a pedir o reconhecimento da eficácia da anterior compensação). Aliás, esta realidade torna duvidosa a admissibilidade da ampliação do pedido reconvencional, nos termos em que foi feita).

Pelo que respeita ao efetivo valor desta universalidade de facto, afirmou o legal representante da recorrente que, “em função da não devolução do mostruário, incorremos numa despesa ao pedir um novo mostruário a Itália, que pelo valor da transferência, nos foi cobrado, à filial de Portugal, cerca de 28 mil euros”. Ou seja, afirmou o legal representante da ré, revelando incerteza sobre o afirmado, que esta não despendeu mais do que (cerca de) €28.000,00 na aquisição de uma nova ferramenta de trabalho (mostruário), para substituir aquela que foi indevidamente retida pela autora.
Nenhum lastro documental comprovativo do alegado foi junto, designadamente, notas de encomenda do novo mostruário (a Itália), faturas aceites, recibos emitidos ou registos de transferências – não obstante o legal represente da ré ter afirmado que “havia guias emitidas”, não esclarecendo o concreto contexto de tal emissão.
Em suma, não pode deixar de improceder, nesta parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
5. Alteração oficiosa da decisão respeitante à matéria de facto
A demandante alegou no art.º 43.º da petição inicial, além do mais, que “(…) ao longo do ano de 2019, a autora faturou à ré, a título de comissões, um valor global de euros 60.947,76€ (…)” e que “(…) ao longo do ano de 2020 (até Setembro), a autora faturou à ré, a título de comissões um valor global de euros 42.164,64€ (…)”. A ré aceitou os valores constantes dos documentos juntos – embora ressalvando desta admissão a efetiva relevância do desempenho da autora para a obtenção das comissões –, tendo mesmo fundado, em parte, a sua impugnação da sentença em tais valores.
É esta uma factualidade essencial, de acordo com uma das soluções plausíveis para a questão de direito, pelo que deveria ter merecido pronúncia pelo tribunal a quo. Impõe-se, pois, quer ao abrigo da norma enunciada no n.º 1 do art.º 662.º do Cód. Proc. Civil, quer por força do disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 662.º do Cód. Proc. Civil, alterar a decisão de facto – sobre a admissibilidade da alteração oficiosa, cfr. o Ac. do STJ de 17-10-2019 (3901/15.8T8AVR.P1.S1), bem como António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 357 e 358.
Os valores indicados pela autora encontram-se, no essencial, demonstrados nos documentos 86 a 110 juntos com a petição inicial, sendo compostos pelas seguintes parcelas líquidas de IVA (não se incluindo aqui os valores respeitantes a “senhas combustível”):


Descrição
Total Líquido
comissões 01/2019
3.500,00
comissões 02/2019
3.500,00
comissões 03/2019
5.719,54
comissões 04/2019
6.684,77
comissões
37,18
comissões maio 2019
3.387,43
comissões julho 2019
2.489,24
comissões julho 2019
1.921,32
comissões
59,02
comissões setembro 2019
4.562,36
comissões setembro 2019
8.107,10
comissões novembro 2019
3.019,47
comissões dezembro 2019
1.563,42
comissões dezembro 2019
4.238,44
Total
48.789,29




Descrição

Total Líquido

Comissões Fevereiro 2020

4.352,54

Prémio

470,21

Comissões KA

59,77

Comissões Março 2020

3.731,29

Comissões Abril 2020

1.700,00

Comissões Maio 2020

2.712,20

Comissões Maio 2020

6.404,67

Comissões Julho 2020

4.990,41

Comissões Julho 2020

4.057,24

Total

28.478,33


Também a discriminação dos valores abonados à autora no primeiro ano civil em que o contrato vigorou (2013) assume especial relevância, dada a sua natureza indiciária do valor da carteira de clientes preexistente cedida pela ré – embora não se possa exagerar a relevância deste indício, pois, sob a designação de “comissões”, podem nesta fase ser pagos "prémios de assinatura”. Os valores em questão são os seguintes:



designação

valor total

comissões – setembro

6.250,00

comissões – outubro 2013

5.000,00

comissões – novembro 2013

5.000,00

comissões

5.000,00

Total

21.250,00


Em termos paralelos, é útil concretizar as remunerações líquidas auferidas pela autora no quinquénio anterior à denúncia – a partir de agosto de 2015 –, para além daquelas que já constam nas tabelas acima exibidas. Para o efeito, o ponto 21 – factos provados – deve ser alterado, de modo a abranger apenas o referido período relevante, nele passando a constar os seguintes valores:
a) Pagamentos feitos no ano 2015, desde o mês de agosto (ainda que referidos a período anterior):


Descrição
Valor total
Prémio de janeiro a julho de 2015
1.765,60
Comissões 08/2015
1.075,29
Comissões 09/2015
3.721,11
Comissões 10/2015
3.311,31
Comissões 11/2015
4.746,46
Comissões 12/2015
1.673,80
Adiantamento de comissões
3.000,00
Total
19.293,57


b) Pagamentos correspondentes ao ano 2016:


Descrição
Valor total
Prémio
707,32
Comissões 01/2016
1.415,29
Adiantamento de comissões
3.000,00
Comissões 02/2016
1.613,51
Comissões 03/2016
4.283,22
Comissões 04/2016
2.117,22
Comissões
350,65
Comissões 05/2016
3.647,41
Comissões 06/2016
2.121,57
Comissões 07/2016
2.605,26
Comissões 08/2016
1.905,06
Comissões 09/2016
3.523,22
Comissões 10/2016
4.033,65
Comissões 11/2016
7.595,61
Comissões 12/2016
4.578,83
Total
43.497,82


c) Pagamentos correspondentes ao ano 2017:


Descrição
Valor total
Comissões 02/2016[7]
5.000,00
Comissões
350,65
Comissões 03/2016[7]
5.000,00
Comissões 04/2016[7]
6.404,82
Comissões 05/2016[7]
15.351,49
Comissões 06/2016[7]
8.107,94
Comissões 07/2016[7]
4.227,67
Comissões
284,55
Comissões 08/2017
4.513,91
Comissão
2.000,00
Comissões 09/2017
6.627,49
Comissões 10/2017
6.965,91
Comissões 11/2017
5.495,68
Prémio
853,66
Prémio
463,20
Comissões 01/2017
4.000,00
Comissões 12/2017
4.171,30
Total
79.818,27


b) Pagamentos correspondentes ao ano 2018:


Descrição
Valor total
Prémio
1.670,33
Comissões 01/2018
6.473,29
Comissões 02/2018
8.969,10
Remuneração fixa jan/fev 18
2.000,00
Comissões 03/2018
8.075,71
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões
372,21
Comissões 04/2018
4.620,74
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 05/2018
7.185,04
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 06/2018
4.850,47
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 07/2018
1.470,30
Remuneração fixa
1.000,00
Prémio
1.456,05
Comissões 08/2018
1.186,33
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 09/2018
4.278,97
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 10/2018
5.034,85
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 11/2018
1.902,61
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 12/2018
1.686,66
Remuneração fixa
1.000,00
Total
71.232,66


Deverá a factualidade agora analisada integrar os fundamentos da decisão de mérito, nos termos adiante expostos.
6. Conclusão sobre a impugnação da decisão de facto e de conhecimento oficioso
Em resultado da reapreciação da prova produzida, altera-se o ponto 21 – factos provados –, o ponto 35 – factos provados – e o ponto 36 – factos provados –, passando estes a ter o seguinte conteúdo:
21 – Entre agosto de 2015, inclusive, e 31 de dezembro de 2018, a autora auferiu a seguinte remuneração pela sua atividade (sem IVA), satisfeita pela ré:


Descrição [2015]
Valor total
Descrição [2016]
Valor total
Prémio de janeiro a julho de 2015
1.765,60
Prémio
707,32
Comissões 08/2015
1.075,29
Comissões 01/2016
1.415,29
Comissões 09/2015
3.721,11
Adiantamento de comissões
3.000,00
Comissões 10/2015
3.311,31
Comissões 02/2016
1.613,51
Comissões 11/2015
4.746,46
Comissões 03/2016
4.283,22
Comissões 12/2015
1.673,80
Comissões 04/2016
2.117,22
Adiantamento de comissões
3.000,00
Comissões
350,65
Total
19.293,57
Comissões 05/2016
3.647,41
Comissões 06/2016
2.121,57
Comissões 07/2016
2.605,26
Comissões 08/2016
1.905,06
Comissões 09/2016
3.523,22
Comissões 10/2016
4.033,65
Comissões 11/2016
7.595,61
Comissões 12/2016
4.578,83
Total43.497,82



Descrição [2017]
Valor total
Descrição [2018]
Valor total
Comissões 02/2016[7]
5.000,00
Prémio
1.670,33
Comissões
350,65
Comissões 01/2018
6.473,29
Comissões 03/2016[7]
5.000,00
Comissões 02/2018
8.969,10
Comissões 04/2016[7]
6.404,82
Remuneração fixa jan/fev 18
2.000,00
Comissões 05/2016[7]
15.351,49
Comissões 03/2018
8.075,71
Comissões 06/2016[7]
8.107,94
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 07/2016[7]
4.227,67
Comissões
372,21
Comissões
284,55
Comissões 04/2018
4.620,74
Comissões 08/2017
4.513,91
Remuneração fixa
1.000,00
Comissão
2.000,00
Comissões 05/2018
7.185,04
Comissões 09/2017
6.627,49
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 10/2017
6.965,91
Comissões 06/2018
4.850,47
Comissões 11/2017
5.495,68
Remuneração fixa
1.000,00
Prémio
8.53,66
Comissões 07/2018
1.470,30
Prémio
463,20
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 01/2017
4.000,00
Prémio
1.456,05
Comissões 12/2017
4.171,30
Comissões 08/2018
1.186,33
Total
79.818,27
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 09/2018
4.278,97
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 10/2018
5.034,85
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 11/2018
1.902,61
Remuneração fixa
1.000,00
Comissões 12/2018
1.686,66
Remuneração fixa
1.000,00
Total
71.232,66


35 – Em resultado da denúncia operada pela ré, o legal representante da autora viu o seu projeto profissional cair repentina e inesperadamente.
36 –A autora sempre foi vista como uma entidade séria e reconhecida pela positiva.
Aditam-se ao leque de factos provados os seguintes pontos:
40 – Em 4 de agosto de 2021, a ré transferiu para a conta bancária da autora a quantia de € 39 858,98, a título de pagamento de “comissões pendentes”, “indemnização de clientela” e “compensação pela cessação antecipada”.
41 – Ao iniciar a relação contratual com a ré, à autora foram atribuídas uma zona geográfica de atuação e uma carteira clientes com os quais a ré já anteriormente mantinha relações comerciais estáveis.
42 – Durante o ano de 2019, a autora auferiu a seguinte remuneração pela sua atividade (sem IVA), satisfeita pela ré:

Descrição
Total Líquido
comissões 01/2019
3.500,00
comissões 02/2019
3.500,00
comissões 03/2019
5.719,54
comissões 04/2019
6.684,77
comissões
37,18
comissões maio 2019
3.387,43
comissões julho 2019
2.489,24
comissões julho 2019
1.921,32
comissões
59,02
comissões setembro 2019
4.562,36
comissões setembro 2019
8.107,10
comissões novembro 2019
3.019,47
comissões dezembro 2019
1.563,42
comissões dezembro 2019
4.238,44
Total
48.789,29

43 – Durante o ano de 2020, a autora auferiu a seguinte remuneração pela sua atividade (sem IVA), satisfeita pela ré (até ao mês de julho):


Descrição

Total Líquido

Comissões Fevereiro 2020

4.352,54

Prémio

470,21

Comissões KA

59,77

Comissões Março 2020

3.731,29

Comissões Abril 2020

1.700,00

Comissões Maio 2020

2.712,20

Comissões Maio 2020

6.404,67

Comissões Julho 2020

4.990,41

Comissões Julho 2020

4.057,24

Total

28.478,33

44 – Durante o ano de 2013, a autora auferiu a seguinte remuneração pela sua atividade (sem IVA), satisfeita pela ré:



designação

valor total

comissões – setembro

6.250,00

comissões – outubro 2013

5.000,00

comissões – novembro 2013

5.000,00

comissões

5.000,00

Total

21.250,00


No mais, deve ser mantida a decisão de facto do tribunal a quo, improcedendo a sua impugnação.

B.C. Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Da ação
1.1. Tipificação da relação contratual
1.2. Indemnização pelo dano não patrimonial
1.3. Indemnização pela insatisfação do prazo de pré-aviso
1.4. Indemnização de clientela
1.5. Imputação dos pagamentos efetuados pela recorrente
2. Da reconvenção
3. Responsabilidade pelas custas
Da ação
1.1. Tipificação da relação contratual
Agência é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da outra a celebração de contratos em certa zona ou determinado círculo de clientes, de modo autónomo e estável e mediante retribuição – cfr. o art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, que regulamenta o contrato de agência ou representação comercial (RJCA). Por regra (como regime supletivo), o agente não tem poderes de representação, não podendo celebrar contratos em nome da outra parte (art.º 2.º, n.º 1, do RJCA).
Dentro da mesma zona ou do mesmo círculo de clientes, nem o agente pode exercer atividades que estejam em concorrência com as da outra parte, nem esta pode utilizar outros agentes para o respetivo ramo de atividade, exceto havendo convenção em contrário formulada por escrito (art.º 4.º do RJCA). O agente deve proceder de boa fé, competindo-lhe zelar pelos interesses do principal e a desenvolver as atividades adequadas à realização plena do fim contratual (art.º 6.º do RJCA). Sem prejuízo da sua autonomia, o agente está obrigado a, designadamente, respeitar as instruções da outra parte e a prestar contas sempre que se justifique (art.º 7.º RJCA)
As partes e o tribunal a quo qualificaram o negócio jurídico formalizado no escrito intitulado “Contrato de Agência” como sendo um contrato de agência. Esta qualificação é de acompanhar, apenas estando em discussão a existência e o alcance dos direitos emergentes da relação de liquidação, nascida da denúncia contratual operada pela ré.
1.2. Indemnização pelo dano não patrimonial
O tribunal a quo julgou procedente o pedido da autora de indemnização por danos não patrimoniais sofridos com base nos factos descritos no ponto 35 – factos provados (alterados) –, bem como no ponto 36 – factos provados (alterados) –, nos seguintes termos:
35 – Em resultado da denúncia operada pela ré, o legal representante da autora viu o seu projeto profissional cair repentina e inesperadamente.
36 – A autora sempre foi vista como uma entidade séria e reconhecida pela positiva.
Na fundamentação de direito, sustenta-se na sentença apelada:
Recordando a matéria de facto provada no que a este pedido diz respeito, demonstrou-se que a autora (ainda que na pessoa do seu gerente) viu o seu projeto profissional cair de forma abrupta, devido à inesperada (e ilegítima) denúncia do contrato operada pela ré, com todo o impacto que uma situação desse cariz normalmente acarreta. Também por efeito dessa cessação contratual, a autora ficou prejudicada no meio comercial em que se movimenta, já que, até aí, era considerada uma entidade séria e com uma imagem positiva (pontos 35. e 36. dos factos provados).
Ponderados estes aspetos à luz dos normativos supra citados, crê-se que se trata de danos indemnizáveis – considerando, primordialmente, a brusca e inusitada alteração na vida da empresa, por motivos que lhe foram totalmente alheios (cf., também, as alíneas e) a g) dos factos não provados).
A lei prevê que a capacidade das pessoas coletivas “abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins”, ressalvando “os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular” (art.160.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil). O mesmo é dizer que não é configurável a violação da integridade física e psíquica (estado psicológico, emocional e anímico) da pessoa coletiva, por serem estas características privativas dos animais sencientes. Deve, pois, entender-se que, para que se possa reconhecer a uma pessoa incorpórea o direito a uma indemnização por danos não patrimoniais, o facto dito danoso deve ter sempre uma repercussão negativa (ou a sua possibilidade) na prossecução do seu fim (escopo), o que significa, sendo este lucrativo, uma repercussão de âmbito patrimonial (como ocorre com a ofensa à boa reputação da sociedade comercial) – cfr. os Acs. do STJ de 09-07-2014 (366/12.OTVLSB.L1.S1), do TRG de 16-02-2017 (364/12.3TCGMR.G1), do TRC de 27-04-2017 (289/14.8T8FND.C1), do TRL de 18-02-2014 (366/12.0TVLSB.L1-7) e do TRE de 28-09-2017 (772/12.0TBMMN.E1).
Ora, dos factos provados não resulta que um direito absoluto ou interesse juridicamente tutelado da autora tenham sido ofendidos pela ré e, por consequência, que uma putativa ofensa a uma posição jurídica não patrimonial da demandante tenha tido uma repercussão de âmbito patrimonial. Tanto basta que se conclua pela improcedência deste pedido.
Convém, antes de encerrarmos este capítulo, sublinhar que a afetação do estado psíquico do legal representante da pessoa coletiva não constitui um dano desta – cfr. o Ac. do TRG de 08-04-2021 (5282/19.1T8GMR.G1). Seria absurdo admitir que, pelo sofrimento causado ao administrador ou gerente, a sociedade embolsasse uma indemnização, para depois a distribuir aos titulares de participações sociais como dividendos. Note-se que não consta sequer dos factos provados que o legal representante da autora seja também sócio na mesma – o que, ainda assim, não relevaria: Ac. do TRP de 05-04-2011 (530/08.6 TBBAO.P1).
Poder-se-á equacionar, no limite, a atribuição de um direito de indemnização ao legal representante (terceiro), nos quadros da invocação de danos indiretos ou puramente patrimoniais. Mas este não é o caso tratado nos autos.
Em suma, é manifestamente improcedente o pedido em análise.
1.3. Indemnização pela insatisfação do prazo de pré-aviso
O n.º 1 do art.º 29.º do RJCA (falta de pré-aviso) dispõe que “quem denunciar o contrato sem respeitar os prazos referidos no artigo anterior é obrigado a indemnizar o outro contraente pelos danos causados pela falta de pré-aviso”. Por seu turno, o n.º 2 do mesmo artigo reza: “O agente poderá exigir, em vez desta indemnização, uma quantia calculada com base na remuneração média mensal auferida no decurso do ano precedente, multiplicada pelo tempo em falta; se o contrato durar há menos de um ano, atender-se-á à remuneração média mensal auferida na vigência do contrato”.
O contrato de agência subscrito pelas partes foi celebrado por tempo indeterminado, conforme consta da sua cláusula 8.º, n.º 1, referida no ponto 9 – sobre esta problemática, cfr o Ac. do STJ de 27-10-2016 (7313/13.0T2SNT.L1.S1). As partes fixaram o prazo de três meses (considerando a duração que o contrato atingiu, conforme decorre do ponto 9 – factos provados) para o pré-aviso da denúncia, em termos paralelos aos previstos no art.º 28.º do RJCA. Resulta claro dos factos provados a inexistência de pré-aviso na denúncia operada pela ré.
A autora pediu uma indemnização nos termos previstos no n.º 1 do art.º 29.º do RJCA, e não nos termos contemplados no n.º 2 do mesmo artigo. Neste sentido, sustenta que a indemnização deve corresponder à remuneração do “período homólogo dos anos anteriores (2015 a 2019)” – isto é, ao período composto pelos meses de setembro, outubro e novembro dos anos 2015 a 2019.
Entendeu o tribunal a quo deferir o pedido de indemnização da autora pela insatisfação do prazo de pré-aviso. Fixou esta indemnização em €17.667,63. Para tanto, sustentou:
No caso sub judice, provou-se que, devido à denúncia intempestiva, a autora deixou de auferir os valores das comissões que, previsivelmente, receberia no âmbito das vendas que concretizaria nos três meses de vigência mínima do contrato após a declaração de denúncia (reportada a 05.09.2020) – setembro, outubro e novembro – e, também, dos valores referentes às vendas realizadas ainda em agosto, que não foram transmitidos. Considerando que, no mesmo período dos anos anteriores (2015 a 2019) a autora auferiu, a título de comissões, o valor médio mensal de €5.889,21 – cf. ponto 21. dos factos provados – o valor a título de indemnização, por lucros cessantes relacionados com a inobservância do prazo mínimo de denúncia será (ainda que recorrendo a uma ponderação à luz de um critério de equidade) de três vezes aquele valor médio, ou seja, €17.667,63.
Desta fundamentação, extrai-se que o tribunal a quo respeitou o pedido formulado pela autora, no sentido de a indemnização ser calculada com base na prova produzida sobre o dano efetivo, e não liquidada por método relativamente forfaitaire. No entanto, entendeu que o critério apropriado não seria o pretendido pela autora – da média do período homólogo (setembro, outubro e novembro dos anos 2015 a 2019) –, mas sim o da média anual durante toda a vigência do contrato (entre setembro de 2013 e setembro de 2020). Com efeito, ao convocar o valor referido no ponto 21 – factos provados –, o tribunal recorrido afasta-se do valor efetivo obtido “no mesmo período dos anos anteriores (2015 a 2019)”, adotando o valor mensal médio correspondente a toda a duração do contrato (entre setembro de 2013 e setembro de 2020: €5.889,21), como que ficcionando que o valor mensal médio do período (setembro, outubro e novembro dos anos 2015 a 2019) é igual.
Da circunstância de o tribunal recorrido se ter suportado em lucros pretéritos para calcular os lucros cessantes efetivos não decorre, como sustenta a apelante, que tenha adotado (e corrompido) o critério previsto no n.º 2 do art.º 29.º do RJCA. Mesmo com base naquele critério (extrapolação a partir de rendimentos pretéritos), ainda nos movimentamos nos quadros da prova do dano efetivo, embora através da extração de ilações a partir de factos indiciários (art.º 564.º, n.º 2, do Cód. Civil).
A apelante assenta a sua impugnação num outro equívoco: parte do princípio que “ano precedente” referido no n.º 2 do art.º 29.º do RJCA é o ano civil anterior. No entanto, deve interpreta-se a expressão “ano precedente” como se referindo aos 12 meses de calendário antecedentes, e não ao ano civil imediatamente anterior. Solução interpretativa diferente leva a resultados absurdos se, por exemplo, o contrato for celebrado no dia 26 de dezembro de um ano e denunciado no dia 28 de dezembro do ano seguinte – considerando os 12 meses de calendário anteriores, embora sem problematizar ou debater a questão, cfr. os Acs. do TRC de 09-01-2024 (1089/22.7T8CBR.C1) e do TRL de 18-04-2024 (486/23.5T8PDL.L1-8); em sentido oposto, também sem discussão do problema, cfr. os Acs. do TRP de 12-07-2023 (26004/18.9T8PRT.P1) e do TRL de 07-05-2020 (1894/13.5TBVFX.L1-6).
O critério adotado pelo tribunal a quo não ofende o disposto nos arts. 564.º, n.º 2, e 565.º, n.º 2, do Cód. Civil. A adoção do critério preferido pela recorrida é, nesta instância, inadmissível, por força do disposto no art.º 635.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil – proibição da reformatio in pejus. O critério referido no n.º 2 do art.º 29.º do RJCA (média dos 12 meses de calendário imediatamente anteriores) leva a um resultado significativamente mais favorável à ré (€ 4 169,01 de média mensal, acrescido de IVA), mas não corresponde ao direito à indemnização pelo dano efetivo concretamente exercido pela autora.
Devemos sublinhar que está aqui em discussão a indemnização pela perda dos rendimentos que a autora auferiria naqueles concretos meses de setembro, outubro e novembro de 2020, no específico contexto socioeconómico efetivamente vivido. Não se trata, pois, de fazer um exercício especulativo ou assente em realidades totalmente abstratas ou hipotéticas. Do que se trata é, repisa-se, de estimar o que autora seguramente auferiria naqueles exatos meses, com todos os efeitos da crise pandémica, mas também considerando a sobreposição com a época das encomendas dos estabelecimentos comerciais para o Natal.
Porque está em causa o apuramento de um rendimento referende a um curto período claramente identificados no calendário, devemos procurar um termo de comparação, isto é, um período de referência o mais próximo possível. Este período é, obviamente, aquele que é composto pelos meses de setembro, outubro e novembro de 2019 – durante o qual foram pagas comissões no valor total de €15.688,93, a que corresponde uma média mensal de €5.229,64 (acrescida de IVA).
Poder-se-ia aqui dizer, com propriedade, que não se pode afirmar que, se a ré tivesse denunciado o contrato para o fim de novembro de 2019, a autora teria auferido este rendimento mensal (€5.229,64, acrescida de IVA). Considerando a crise pandémica vivida (que constitui um facto notório), dever-se-ia, sim, considerar que os rendimentos auferidos seriam inferiores.
No entanto, se compararmos os resultados de 2019, até julho, com os resultados de 2020, até mesmo mês, constatamos que aqueles foram ligeiramente inferiores. O mesmo é dizer que a crise pandémica não afetou os rendimentos da autora ou, se os afetou, tal efeito foi compensado por outros fatores de crescimento das remunerações.
De acordo com o critério agora adotado, a média mensal, incluindo IVA, a considerar seria a de €6.432,46 – ou seja, superior à considerada pelo tribunal a quo. Também o acolhimento de tal valor, resultante da adoção deste critério, é, nesta instância, inadmissível, por força do disposto no art.º 635.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil – proibição da reformatio in pejus. Ainda que o critério sufragado possa ser adotado, estamos sempre limitados pelo valor inferior considerado pelo tribunal a quo
Em suma, a judiciosa decisão impugnada não merece a censura defendida pela apelante, notando-se que a condenação nesta indemnização, até pelo modo como foi calculada – apoiando-se no valor total da faturação no período considerado –, já inclui o pagamento de IVA.
1.4. Indemnização de clientela
A natureza da relação contratual de agência justifica que o agente tenha direito, após a cessação do contrato, a uma indemnização de clientela, verificados que estejam determinados pressupostos – designadamente, que o agente tenha angariado clientes para a outra parte e que deixe de receber qualquer retribuiçãopor contratos negociados ou concluídos, após a vigência do contrato de agência, com os clientes angariados para o principal (art.º 33.º do RJCA). Esta dita “indemnização” é, na verdade, uma compensação pelos benefícios duradouros que o agente trouxe ao negócio do principal, resultantes do aumento da clientela deste, que dela continuará a beneficiar, também proveitosa para o agente durante a vigência do contrato, por força da remuneração acordada – cfr. António Pinto Monteiro, Contrato de Agência, Coimbra, Coimbra Editora, 1993 (2.ª ed.), pp. 103-104, e José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Coimbra, Almedina, 2017, p. 445.
O fundamento dogmático desta dita indemnização poderá ser encontrado na teoria do “conteúdo de afetação” – de “atribuição” ou da “destinação” –, desenvolvida no contexto do enriquecimento sem causa – cfr. Júlio Vieira Gomes, O Conceito de Enriquecimento, O Enriquecimento Forçado e os Vários Paradigmas do Enriquecimento Sem Causa, Porto, Universidade Católica Portuguesa, 1998, p. 200, bem como Luís Menezes Leitão, O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil – Estudo Dogmático Sobre a Viabilidade da Configuração Unitária do Instituto, Face à Contraposição Entre as Diferentes Categorias de Enriquecimento sem Causa, Coimbra, Almedina, 2005, p. 785 e segs.. O agente angaria novos clientes para o principal, é certo, mas para que ambos possam beneficiar de modo duradouro com tal angariação – motivo compreendido no escopo da angariação. Neste sentido, a vantagem económica resultante da angariação destina-se à sua repartição por ambas as partes, nos termos acordados – sendo a parte do agente correspondente à sua comissão. A denúncia ad nutum do contrato de agência traduz-se, assim, numa apropriação pelo principal da vantagem económica que caberia ao agente, isto é, de um conteúdo que a este estava contratual e legalmente destinado.
Dos factos provados extrai-se que a autora angariou novos clientes para a ré –  ponto 19 –, que esta beneficiou consideravelmente da atividade desenvolvida pela demandante – ponto 20 –, mesmo após a data de cessação do contrato – ponto 31 –,  e que, após tal data, esta deixou de receber retribuições por contratos negociados ou concluídos com os clientes por si andarilhados – ponto 32 –, pelo que se encontram preenchidos os pressupostos do nascimento do direito de indemnização de clientela (art.º 33.º do RJCA). O mesmo é dizer que a autora tem o direito de que se arroga.

Reza o art.º 34.º do RJCA que “A indemnização de clientela é fixada em termos equitativos, mas não pode exceder um valor equivalente a uma indemnização anual, calculada a partir da média anual das remunerações recebidas pelo agente durante os últimos cinco anos; tendo o contrato durado menos tempo, atender-se-á à média do período em que esteve em vigor”. A este respeito, o tribunal a quo decidiu
Seguindo este critério, levando em conta os dados relativos a remunerações antes referidos e mantendo-se o mesmo fator de ponderação [a equidade], entende-se adequado fixar a indemnização de clientela em causa um valor de €70.000, aproximado ao correspondente ao valor de remuneração média anual do agente, considerando como base equitativa, além dos valores de retribuição média acima referidos, o facto de ter prestado serviços durante sete anos e, portanto, correspondendo o valor fixado a um mês de retribuição por cada ano de serviço prestado pelo/a agente.
A apelante insurge-se contra este entendimento, quer por ter sido considerado o rendimento bruto da autora – não se descontando os custos de operação –, quer por a base de cálculo não incluir o ano de 2020 – entendendo que, se a crise pandémica afetou negativamente o rendimento da autora, também afetou as vendas pela ré aos clientes por aquela angariados ou incluídos na sua carteira. No essencial, esta argumentação é procedente, sobretudo no que toca à imposição de não contabilização direta do valor do IVA – sem prejuízo de este tributo também poder incidir sobre a compensação que seja devida –, dado que este imposto não se destina a ser embolsado pelo agente, mas sim a ser entregue ao Estado.
Conclui-se dos pontos 21 – factos provados (alterado) –, 42 – factos provados (aditado) e 43 – factos provados (aditado) – que, no quinquénio anterior à denúncia – entre agosto de 2015 e julho de 2020 –, a autora auferiu uma remuneração total de €291.109,94. O mesmo é dizer que a média anual (sem IVA) corresponde a €58.221,988. É este o valor máximo que resulta da aplicação do art.º 34.º do RJCA ao caso dos autos.
Menos impressiva é afirmação de que a autora teria custos de operação a serem deduzidos aos rendimentos apurados. No essencial, as despesas do agente dizem respeito às suas deslocações – já o material de exposição e publicitário, por exemplo, era cedido pelo principal. Ora, não resulta dos documentos juntos que estas despesas fossem efetivamente suportadas pela autora – veja-se, designadamente, a fatura junta como documento n.º 46 com a petição, respeitante ao pagamento pela ré à autora de “senhas combustível”.

Apurado o valor máximo da compensação devida, e em ordem a fixar a indemnização de clientela “em termos equitativos”, como prevê a lei, temos, ainda, de ter em consideração que os resultados obtidos pela autora não decorrem apenas do seu esforço, mas também do facto de ter recebido da ré uma carteira de clientes preexistentes – o que lhe permitiu obter rendimentos significativos logo nos primeiros três meses e meio de atividade – e de beneficiar com o modelo de negócio desenvolvido pela ré – tendo vários agentes os mesmos clientes, mas comercializando marcas diferentes, conforme resulta do ponto 18 –, aproveitando os diferentes comerciais da prévia atividade dos restantes.
Em face do exposto, afigura-se ser equitativo fixar a compensação de clientela devida à autora em €50.000,00, ainda sem IVA. Quanto ao pagamento da quantia correspondente a este imposto, afigura-se ser ele devido, conforme passamos a expor.
Por força do disposto na al. a) do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA, as quantias recebidas a título de indemnização declarada judicialmente, por incumprimento total ou parcial das obrigações, não são tributadas em sede de IVA. No entanto, tratando-se de uma indemnização que visa compensar a perda de um rendimento (cessante) que seria obtido através de uma operação sujeita a IVA, pode entender-se que deve também ela ser sujeita a este imposto. A tributação tem lugar, neste caso, à taxa normal em vigor para a operação subjacente (substituída).
Ora, quer na indemnização por falta de pré-aviso, quer na indemnização de clientela, o legislador surpreende o dano na perda de um rendimento que seria obtido através de uma operação sujeita a IVA – a prestação do serviço pelo agente. No primeiro caso, compensa-se a perda de um rendimento que, previsivelmente, seria obtido durante o período de pré-aviso não satisfeito; no segundo caso, é compensada a perda da participação, por via do pagamento da remuneração (máxime, de uma comissão), nos proveitos decorrentes da angariação de clientes. A operação subjacente é, assim, uma prestação de serviço (art.º 4.º do CIVA), pelo que a indemnização substitutiva estará sujeita a IVA – cfr. a informação vinculativa veiculada no Processo n.º 1090 2003001, com despacho concordante do Diretor-Geral dos Impostos, de 11 de maio de 2004.
1.5. Imputação dos pagamentos efetuados pela recorrente
Como vimos, a autora goza dos seguintes créditos:


Descritivo
Montante
Desrespeito pelo prazo de pré-aviso (IVA incluído)
17.667,63
Indemnização de clientela (sem IVA)
50.000,00
Total
67.667,63


Considerando a tributação de IVA à taxa de 23%, sobre a indemnização de clientela, temos um valor devido pela ré à autora de €79.167,63.

Emerge da fundamentação de facto que, em 4 de agosto de 2021, a ré transferiu para a conta bancária da autora a quantia de €39.858,98, a título de “comissões pendentes”, “indemnização de clientela” e “compensação pela cessação antecipada”, conforme referido no ponto 40 – factos provados. Note-se, por um lado, que este montante não inclui o valor do IVA – valor este que ré, na carta referida datada de 13 de agosto de 2021, se dispôs a liquidar. Por outro lado, inclui o valor de uma dívida não abrangida pela condenação proferida pelo tribunal a quo, por entender este que ficou ela assim saldada (€3.726,61) – questão excluída do objeto da apelação. (Note-se que ao valor desconsiderado pelo tribunal a quo (€3.726,61, já liquidados) acresce o valor do IVA (ainda não liquidado), conforme admite a ré na referida carta).
Se tivermos presente a circunstância de a ré ter abatido à quantia que admitiu dever o montante de €28.867,63, obtemos um valor admitido, com IVA e sem compensações, de €80.807,12 (excluídos, ainda, os referidos €3.726,61). Um valor notavelmente próximo daquele que resulta da fundamentação deste aresto acima exposta.

A ré liquida as “Indemnização de clientela e compensação pela cessação antecipada” em €65.000,00. Os valores efetivamente devidos são os seguintes:


Descritivo
Montante
Desrespeito pelo prazo de pré-aviso (sem IVA)
14.363,92
Indemnização de clientela (sem IVA)
50.000,00
Total
64.363,92


Isto significa que a ré já teria liquidado à autora a totalidade da sua dívida – já tendo mesmo pago em excesso o montante de €636,08 –, e apenas lhe faltando liquidar o valor do IVA – respeitante a estas duas indemnizações e à remuneração de €3.726,61, esta não abrangida pelo objeto da apelação –, se não tivesse feito o abatimento de €28.867,63. Mas fez este abatimento.
O valor efetivamente pago pela ré foi de €39.858,98 (e não €65.000,00). Se a este valor subtrairmos o montante já adjudicado a outro fim pelo tribunal a quo – €3.726,61 –, obtemos o valor de €36.132,37. É este valor que devemos abater à dívida de €64.363,92. Está, pois, em dívida o montante de €28.231,55.
Não resulta dos factos provados que a autora tenha faturado as quantias devidas pela ré na data da propositura da ação. O mesmo é dizer que não entregou ao Estado o valor do IVA devido, pelo que inexiste qualquer dano moratório, no que a este valor diz respeito.
No que toca às indemnizações de clientela e de omissão de pré-aviso, no montante ainda em dívida de €28.231,55, são devidos juros moratórios nos termos determinados pelo tribunal a quo (não contestados).
2. Da reconvenção
O tribunal a quo considerou provado que, “na sequência das tentativas das partes de alcançarem um valor consensual pela cessação do contrato com a autora, esta procedeu à retenção de produtos pertencentes à ré, não obstante as interpelações desta para a sua devolução” e que “esses produtos correspondem a um mostruário de óculos de sol, que a ré entregou à autora no âmbito do Contrato para que esta pudesse proceder a amostragens junto de potenciais clientes, e a um iPad, também pertencente à ré, que a mesma se dispôs a ceder à autora também no âmbito do Contrato”. Esta decisão não foi impugnada nem oficiosamente alterada.
O tribunal recorrido julgou improcedente o pedido reconvencional, sublinhando que este pedido é de “reconhecimento de ‘licitude e validade’ da compensação do valor de indemnização com o valor dos bens retidos”, e não de restituição imposta pela cláusula 11.ª do contrato de agência subscrito nem de reivindicação de tais bens. Lê-se na decisão impugnada: “Porém, sendo certo que sobre a reconvinda impende aquela obrigação contratual de entrega, não é menos certo que a reconvinte não demonstrou, como lhe incumbia, que os bens a que corresponde tal obrigação teriam o valor que alegou, por forma a poder operar a pretendida compensação de créditos”. O objeto mediato do pedido reconvencional não é, pois, constituído pelos bens retidos, em si mesmos, mas sim por uma quantia pecuniária ressarcitória.
A impugnação da sentença neste ponto é especialmente inconsequente, pois entende a apelante que “deveria a recorrida ter sido condenada no pagamento à PTOX do valor real comercial dos óculos, no montante de €.106.791,23, ou, subsidiariamente e quando assim não se entenda, no seu valor de aquisição de €28.867,63”. Ora, nunca a sentença poderia concluir com a condenação da autora a pagar à ré um determinado valor, pois o pedido reconvencional não foi de condenação da autora a pagar à ré qualquer valor.

Não obstante a iliquidez da dívida não impedir a compensação (art.º 847.º, n.º 3, do Cód. Civil), a procedência do concreto pedido reconvencional formulado está dependente da prova dos diferentes pressupostos da responsabilidade civil – com exceção da culpa (art.º 799.º do Cód. Civil), se fundado no incumprimento do contrato (art.º 798.º do Cód. Civil). Ora, a reconvinte fracassou na prova de que a conduta da reconvinda lhe causou danos com expressão pecuniária. A decisão impugnada não merece censura.
Para terminar, sublinhamos que, ainda que se entendesse ser, em abstrato, aplicável o disposto no art.º 609.º do Cód. Proc. Civil ao pedido reconvencional – o que é duvidoso, já que não se trata de um pedido de decisão condenatória (art.º 10.º, n.º 3, al. b), do Cód. Proc. Civil) –, tal regime não é, em concreto, aplicável. O incidente pós-decisório de liquidação não é uma segunda oportunidade para a parte provar os factos essenciais que constituem a causa de pedir ou a exceção – totalmente pretéritos e plenamente conhecidos na data da formulação do pedido (ou da sua ampliação) –; não é, sequer, um meio redundante para a parte liquidar danos, quando já dispôs na ação declarativa de todos os meios de prova (ou da possibilidade de os produzir) que poderia dispor numa nova instância declarativa.
Não há uma duplicação de instâncias declarativas (uma segunda chance) quando a parte não satisfaz o seu ónus da prova. Se a parte fracassa na prova da ocorrência de um dano ou do seu valor, podendo dispor de todos os meios de prova de que poderia dispor num incidente pós-decisório de liquidação, o pedido deve improceder. Diferente solução mais não seria de que uma ostensiva violação da proibição de non liquet acerca dos factos em litígio – cfr. o art.º 8.º, n.º 1, do Cód. Civil; cfr., ainda, o art.º 3.º, n.º 2, do EMJ e o art.º 414.º do Cód. Proc. Civil.
3. Responsabilidade pelas custas
A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art.º 25.º do Reg. Cus. Proc.).
A responsabilidade pelas custas da apelação cabe à apelante e à apelada, na proporção de 63% para a primeira e de 37% para a segunda (art.º 527.º do Cód. Proc. Civil). Assim é porque a decisão impugnada, por não ter relevado, parcialmente, o valor do pagamento efetuado na pendência da ação, representa um decaimento de €131.300,00 (€95.167,63 + €36.132,37). O decaimento final da ré, resultante deste acórdão, corresponde ao valor que já pagou na pendência da ação (€39.858,98), acrescido do valor que lhe falta pagar (€28.231,55 + €11.500,00 + €3.303,71 = €43.035,26), isto é, o decaimento é de €82.894,24. Na diferença entre estes dois valores (€131.300,00 e €82.894,24) está o decaimento na apelação. A expressão económica do decaimento no pedido reconvencional, cuja decisão também é objeto da apelação, não acresce à expressão económica do decaimento no pedido de indemnização no mesmo valor.
A responsabilidade pelas custas da ação cabe às partes, na proporção de 70% para a ré e de 30% para a autora (arts. 527.º, 536.º, n.ºs 1 e 4, 611.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil). Com efeito, o pedido tem o valor de € 115 390,14, sendo o decaimento da ré, como vimos, de €82.894,24
A responsabilidade pelas custas da reconvenção cabe à ré, por ter ficado vencida (art.º 527.º do Cód. Proc. Civil).
C. Dispositivo
C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na procedência  parcial da  apelação, acorda-se em revogar a sentença recorrida, quanto ao julgamento da ação, decidindo-se:
a) condenar a autora a pagar à ré a quantia de €28.231,55 (vinte e oito mil, duzentos trinta e um euros, cinquenta e cinco cêntimos), acrescida de juros contados desde a data de citação e até efetivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento venha a vigorar por força da portaria prevista no § 3.º do art.º 102.º, do Cód. Com.;
b) condenar a autora a entregar à ré o valor do IVA devido pela liquidação da indemnização de clientela (sendo esta no montante de €50.000,00: cinquenta mil euros), contra a entrega da fatura respetiva;
c) condenar a autora a entregar à ré o montante de €3.303,71 (três mil, trezentos e três euros, e setenta e um cêntimos) – correspondente ao valor do IVA devido pela liquidação da indemnização pela omissão de pré-aviso (sendo esta no montante de €14.363,92: catorze mil, trezentos e sessenta três euros, noventa e dois cêntimos) –, contra a entrega da fatura respetiva.
Quanto ao julgamento da reconvenção, acorda-se em manter a sentença recorrida, negando-se aqui provimento ao recurso.
C.B. Das custas
Custas da apelação a cargo de apelante e apelada, na proporção de 63% para a primeira e de 37% para a segunda
Custas da ação a cargo de ambas as partes, na proporção 70% para a ré e de 30% para a autora.
Custas da reconvenção a cargo da ré reconvinte.
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Notifique.
Lisboa, 21-05-2024
Paulo Ramos de Faria
Edgar Taborda Lopes
Cristina Coelho