Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1894/21.1T8CSC.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
REVOGAÇÃO DO TESTAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O «contexto do testamento» aludido no n.º 1 do artigo 2187.º do CC é, ainda e apenas, «texto» do testamento; diz a citada norma que, na interpretação das disposições testamentárias, observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento, ou seja, que as disposições testamentárias não devem ser interpretadas isoladamente, cada uma por si, mas sim no âmbito da globalidade do testamento, através do confronto com as demais cláusulas do mesmo.
II. Quando, na interpretação de disposição testamentária, o contexto não permite o claro e inequívoco achamento da vontade do testador, será admitida prova complementar, ou seja, será admitido o recurso a elementos estranhos ao testamento que possam contribuir para o esclarecimento de quanto o testador nele declarou; porém, a interpretação da disposição testamentária obtida por meio de prova complementar apenas será lícita se tiver no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso (este o sentido do n.º 2 do artigo 2187.º do CC).
III. Se um testamento posterior não revogar expressamente o testamento anterior, apenas o revogará tacitamente se for com ele incompatível e na parte em que o for; se um dos testamentos apenas institui legados e o outro herdeiro universal, não há incompatibilidade entre eles.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
«BB», contribuinte fiscal n.º …, ré na ação que lhe é movida por «AA», contribuinte fiscal n.º …, notificada da sentença proferida em 25 de julho de 2023 e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.
Na petição inicial, a autora pede que seja:
a) Declarada a revogação tácita do testamento celebrado em 29.12.1995, a fls. 39 verso e 40 do Livro de Notas para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação n.º 57 do Cartório Notarial de …, por efeito do testamento posterior, de 15.10.2019, lavrado a folhas 107 do livro T-21 do Cartório Notarial do Dr. …;
b) Declarada a falsidade da escritura de habilitação de herdeiros celebrada em 16.11.2020, no Cartório Notarial de … do Dr. …, de fls. 34 a fls. 35 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 115 do indicado Cartório;
c) Declarada a nulidade do registo de aquisição a favor da Ré, com a AP. 7794, de 2021.01.28, do prédio urbano sito na Rua …, freguesia de Alcabideche, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais, sob o n.º …12 da freguesia de Alcabideche, ordenando-se o respetivo cancelamento;
d) Reconhecida a Autora como única e universal herdeira de «CC», nos termos do testamento celebrado em 15.10.2019, no Cartório Notarial do Dr. …, em …, lavrado a folhas 107 do livro T-21 do mencionado Cartório, assistindo-lhe o direito a suceder na totalidade dos bens que integram a herança daquela; e
e) Em consequência, reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre o prédio urbano sito na Rua …, Malveira da Serra, freguesia de Alcabideche, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais, sob o n.º …12 da freguesia de Alcabideche, inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, sob o artigo …94, e respetivo recheio, adquirido por sucessão testamentária de «CC».
A ré contestou e reconveio, pedindo:
1) Que se julgue totalmente improcedente, por não provada, a presente ação; e,
2) Que julgue procedente e provada a reconvenção, e por via dela se decrete nulo ou se decrete a anulação do testamento outorgado por «CC», em 15 de outubro de 2019, outorgado a Fls. 107.° e 107.° v.° do Livro T-21, do Cartório Notarial do Dr. …, sito …, bem como declare a falsidade da escritura de habilitação de herdeiros, outorgada no dia 13 de agosto de 2020, no mesmo Cartório Notarial, condenando-se a autora/reconvinda a entregar à herança todos os bens que desta recebeu e que se encontram na sua posse.
A autora respondeu, pugnando pela improcedência da ação e terminando como na p.i..
O processo seguiu os regulares termos e, após audiência final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo a presente acção intentada por «AA» contra «BB» parcialmente procedente e, consequentemente, declaro:
i) revogado tacitamente o testamento celebrado em 29-12-1995 pela testadora «CC» constante de fls. 39 verso e 40 do livro de Notas para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação n.º 57 do Cartório Notarial de …, por efeito do testamento posterior, de 15-10-2019, lavrado a folhas 107 do livro T-21 do Cartório Notarial do Dr. …;
ii) nulo o registo de aquisição a favor da ré, com a AP. 7794, de 2021.01.28, do prédio urbano sito na Rua …, Malveira da Serra, freguesia de Alcabideche, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais, sob o n.º …12 da freguesia de Alcabideche, e ordeno o respetivo cancelamento;
iii) a autora como única e universal herdeira de «CC», nos termos do testamento celebrado em 15-10-2019, no Cartório Notarial do Dr. …, em …, assistindo-lhe o direito a suceder na totalidade dos bens que integram a herança daquela.
No mais, julgo improcedente a reconvenção deduzida pela ré contra a autora e, consequentemente, absolvo a autora reconvinda dos pedidos contra si formulados pela ré reconvinte.
A ré não se conformou e recorreu.
No decurso de 60 páginas sob o título «Conclusões», escreveu:
«A) A Sentença proferida pelo Tribunal a quo, notificada às partes em 1 de setembro de 2023, julgou ação parcialmente procedente e, consequentemente, declarou:
[…]
QQQQQQ) Mas ainda assim e sem texto de testamento, considera e cria a figura incompatibilidade intencional do testamento posterior com o anterior, violando o artigo 2313 do Código Civil, criando um caos jurídico no que se refere à sucessão testamentária.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá ser dado inteiro provimento ao presente recurso, revogando-se, em consequência, a douta sentença recorrida, devendo ser substituída por outra que revogue os pontos i., ii, e iii da sentença e que julgue totalmente improcedente, por não provada, a presente ação e consequentemente ser a Recorrente absolvida dos pedidos, - não revogue o testamento de «CC» outorgado em 29 de dezembro de 1995 e mantenha o registo de aquisição a favor da Recorrente, com as legais consequências; absolvendo a Recorrente das custas e em consequência condenando a Recorrida.
Só assim se fazendo a costumada Justiça!
A autora contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) A matéria de facto deve ser alterada?
b) O testamento de 1995 mantém-se vigente?
II. Fundamentação de facto
[…]

III. Apreciação do mérito do recurso
1. Da impugnação da matéria de facto
A ré impugnou extensamente a decisão sobre a matéria de facto. Fê-lo de forma eficaz, ou seja, com observância dos requisitos legais contidos no artigo 640.º do CPC. Aí se lê que, sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: i) os pontos da matéria de facto de que discorda; ii) os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, incluindo, quando se trate de meios probatórios gravados, a indicação das exatas passagens da gravação em que se funda o recurso; iii) a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Estas normas foram cumpridas pela ré, recorrente nos autos. Na alínea OOOOOO) das suas conclusões, elencou os factos a alterar e a redação que devem passar a ter. Nas precedentes alíneas RRR) a NNNNNN), a recorrente explicita os meios de prova que conduzem às pedidas alterações, no que respeita aos depoimentos, identifica as passagens das gravações que alicerçam a sua pretensão, e analisa detida, crítica e conjugadamente os vários meios probatórios.
Sucede que, mesmo mantendo-se a matéria de facto tal como considerada pelo tribunal a quo, o recurso da ré é procedente, e a ação improcedente.
Por essa razão, o conhecimento da impugnação da matéria de facto seria inútil, pelo que nos abstemos de o fazer (artigo 130.º do CPC).
2. Da vigência do testamento de 1995
Apesar da prolixidade dos autos, em particular da matéria de facto e das alegações de recurso, a questão sub judice é apenas uma e enuncia-se de forma simples: o testamento público outorgado por «CC» em 29-12-1995 mantém-se vigente ou foi revogado pelo testamento de 15-10-2019?
Para lhe responder há que ler/interpretar os dois testamentos e confrontá-los com as normas que o ordenamento jurídico lhes destina.
Porquê?
Porque, no nosso ordenamento, há apenas duas formas de se revogar um testamento:
i. Ou de modo expresso, declarando o testador, noutro testamento ou em escritura pública, que revoga no todo ou em parte o testamento anterior – artigo 2312.º do CC;
ii. Ou de modo tácito, quando um testamento posterior seja incompatível com o precedente e na parte em que o seja – artigo 2313.º do CC.
No caso dos autos, manifestamente, não se verificou revogação expressa, pelo que apenas há que aferir se houve revogação tácita, ou seja, se o testamento posterior (de 2019) é incompatível com o anterior (de 1995).
A compatibilidade ou incompatibilidade entre testamentos afere-se depois de interpretado cada um deles, não devendo confundir-se a aferição da (in)compatibilidade com a interpretação de cada testamento.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 2187.º do CC, na interpretação das disposições testamentárias, observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento. Tanto significa que se adotou uma regra interpretativa de pendor subjetivista, dando relevância e prioridade à intenção do testador, conforme ao testamento globalmente considerado. Ou seja, «a disposição testamentária não deve ser interpretada isoladamente, mas sim no âmbito do contexto do testamento, através do confronto com as restantes cláusulas do mesmo, cuja letra e espírito a podem esclarecer» - Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Sucessões, Almedina, 2021, p. 230 (v. também autores aí citados na nota 421).
Adiante-se que os testamentos sub judice são de uma singeleza que não permite dúvidas sobre cada disposição, nem fricção ou divergências de interpretação das suas disposições. Aliás, o segundo testamento limita-se a uma disposição testamentária, pelo que nele existe total coincidência entre contexto do testamento e texto da disposição a interpretar.
Quando, na interpretação de disposição testamentária, o contexto não permite o claro e inequívoco achamento da vontade do testador, será admitida prova complementar. Assim se afirma no n.º 2 do artigo 2187.º do CC. Porém, continua o mesmo número, não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso. Prova complementar, nas palavras de Inocêncio Galvão Telles, reporta-se aos «elementos estranhos ao testamento que possam contribuir para o esclarecimento de quanto o testador nele declarou» (Sucessão testamentária, Coimbra Editora, 2006, p. 24). Quando, obviamente, esclarecimentos sejam necessários perante o texto de cada disposição no contexto global do testamento.
Sendo os testamentos constituídos por declarações não recetícias, justifica-se a procura da vontade real do testador sem o espartilho da impressão do destinatário. Porém, a vontade real encontrada após recurso à dita prova complementar só produzirá efeito se tiver apoio no contexto do testamento.
Por que razão, na interpretação de cada disposição testamentária, manda a lei atender ao contexto do testamento e permite, até, recorrer a prova complementar para descortinar a vontade real do testador? Pires de Lima e Antunes Varela explicam da seguinte forma: «o pavor da proximidade da morte, a precipitação com que o ato é muitas vezes realizado, a esclerose provocada pela idade e as pressões que a cada passo se exercem sobre a vontade debilitada e a memória confusa do disponente, fazem que muitas disposições testamentárias, à luz do seu simples texto, se tornam verdadeiramente indecifráveis», incluindo amiúde «confusões de nomes, as repetições de nomes, as aparentes contradições e as omissões de palavras» (Código Civil Anotado, VI, Coimbra Editora, 1998, p. 305). Não obstante, a interpretação da disposição testamentária obtida por meio de prova complementar apenas será lícita se tiver no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso. Afinal, o testamento é um negócio necessariamente formal.
Vamos, então, olhar para cada um dos testamentos, lê-los, interpretá-los.
Entretanto, lembramos que a testadora nasceu em Lisboa em 23-06-1930 e faleceu em 06-08-2020, com 90 anos de idade, no estado de divorciada, sem descendentes ou ascendentes.
Tinha, portanto, 65 anos de idade quando outorgou o primeiro testamento e 89 aquando do segundo.
Na década de 1970, então divorciada do seu primeiro (e único) marido, passou a viver em união de facto com «DD», conhecido por …, à data já divorciado, e pai da ré «BB», sua única filha.
A testadora e «DD», pai da ré, viveram em união de facto até à data do falecimento dele, em 25-12-2018, portanto, durante mais de 40 anos.
Dessa vivência fez inevitavelmente parte a filha de «DD», que contava 14 anos de idade aquando do início da relação entre o pai e a testadora; disso é dada alguma nota nos factos 46 a 49. Importante, ainda, referir que a testadora nunca teve filhos e que, não obstante a carreira artística da testadora e os proventos que com ela auferia, o pai da ré era o principal sustento do agregado (facto 50).
Apenas no verão subsequente à morte do companheiro, concretamente em agosto de 2019, a testadora deixou a sua casa e instalou-se na residência …, no Estoril, onde a autora, sua irmã, e alguns familiares, já residiam. A testadora viveu na referida residência desde então, agosto de 2019, até à data da sua morte em agosto de 2020 (perto de um ano), tendo sido nesse período que outorgou o segundo testamento – pelo qual instituiu a sua irmã, ora autora, como “sua única e universal herdeira”. A relação entre a testadora e a sua irmã (ora autora, com 93 aquando do segundo testamento), e com o seu sobrinho, filho da mesma irmã, apenas se intensificou após a morte de «DD» (factos 57 a 61 e 29). A testadora tinha outras sobrinhas, filhas de irmãos pré-falecidos, e com quem tinha mais afinidade do que com o filho da autora (factos 58 e 60).
De alguns factos ficamos com muitas dúvidas sobre as reais intenções e sentimentos da testadora após o óbito do seu companheiro e em relação ao segundo testamento. Se, por um lado, a testadora estava no uso pleno das suas faculdades mentais (factos 63, 64 e 66), por outro lado, declarou que o testamento de 2019 era o primeiro que fazia… Não se lembrava ou não quis dá-lo a conhecer? A testadora era nessa altura uma senhora com 89 anos a testar a favor da sua irmã de 93, ambas vivendo num lar. Viria a falecer meses volvidos. Tinha tido até aos seus 88 anos uma vida tão diferente  daquela que, por força da idade, estava a levar…
Verdade é que, pouco importam a maioria dos factos consignados, nomeadamente aqueles que a recorrente impugnou no seu recurso.
Vejamos os testamentos, que estão sumariamente descritos nos factos 9 e 13, e cujas certidões estão nos autos, juntas com a petição e com a contestação. Adiantamos que a leitura deles não suscita qualquer dúvida hermenêutica, sendo, por isso, ilegítimo alterar o seu texto com recurso a supostas intenções/vontades percecionadas ou transmitidas pelas testemunhas ouvidas em audiência.
Do primeiro, testamento público de 29-12-1995, consta que a testadora, «CC», disse «que faz o seu testamento pela seguinte forma:
- Lega ao Sr. «DD», divorciado, consigo habitualmente residente na morada acima indicada, os seguintes bens:
a) um prédio urbano composto de casa de habitação, sito à Rua …, em Malveira da Serra, freguesia de Alcabideche, concelho de Cascais, inscrito (…), com todo o seu recheio; e
b) O veículo automóvel de que seja proprietária à data do seu falecimento
«Legar» é deixar em sucessão a um terceiro bens determinados, o legatário é um sucessor de bens determinados, o legado é constituído por bens determinados. A interpretação deste testamento não oferece dificuldades, a qualificação das descritas deixas (em particular, o imóvel, que é o que se discute nos autos) como legados é cristalina – extensamente sobre o tema, v.g., Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões, Noções fundamentais, 5.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 162-168 e passim; Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1984, pp. 70-96.
«DD» faleceu antes da testadora, deixando em sua representação a única filha, ora ré.
Com efeito, gozam do direito de representação na sucessão testamentária os descendentes do que faleceu antes do testador ou do que repudiou a herança ou o legado, se não houver outra causa de caducidade da vocação sucessória (artigo 2041.º, n.º 1, do CC).
No caso, não se verifica nenhuma «outra causa de caducidade da vocação sucessória» - lembramos que estão previstas no artigo 2317.º do CC -, nem nenhuma das exceções à representação listadas no n.º 2 do artigo 2041.º O direito de representação de que a ré goza também não oferece dúvidas. Sobre os requisitos do direito de representação da sucessão testamentária, v.g., Rabindranath Capelo de Sousa, Lições…, cit., pp. 318-321, ou Jorge Augusto Pais do Amaral, Direito da Família e das Sucessões, 3.ª ed., Almedina, 2016, pp. 310-311.
Em suma, à luz do testamento de «CC» de 1995, o legado constituído pela «Casa da Malveira» destina-se à ora ré, em representação de seu pai, pré-falecido.
Questão litigiosa entre as partes é se o dito testamento de 1995 foi revogado por um outro que a mesma testadora fez em 2019.
No seu segundo testamento, em 15-10-2019, «CC» declarou:
«1. Institui sua única e universal herdeira «AA», irmã dela testadora.
2. E tem assim concluído este testamento, o primeiro que faz
Mais uma vez, um testamento cuja interpretação não dá azo à mais leve dúvida. Instituiu a irmã como universal herdeira, e nada mais. Tivesse a testadora alguma vontade de alterar o legado da casa da Malveira da Serra (centro do litígio sub judice) da enteada de facto para o sobrinho (via mãe deste, ora autora), não referia a sua irmã como sua única e universal herdeira ou, mesmo que o fizesse, introduzia um "designadamente", para referir a casa da Malveira da Serra. Dizer-se que, com as declarações constantes deste testamento, a testadora quis revogar o primeiro, é algo que não tem qualquer correspondência no texto, considerando cada parte ou o conjunto do mesmo. Tal interpretação do testamento de 2019 não é, portanto, válida.
A autora foi instituída única e universal herdeira no segundo testamento. A ré é legatária, em representação de seu pai, falecido antes da testadora, por força do primeiro testamento. Ambos os testamentos são de tal forma simples e claros que não há forma de dizer que a testadora quis por força deles algo de diferente do que deles consta, muito menos que quis algo que não tem na letra dos mesmos um mínimo de correspondência.
Há duas espécies de sucessores: herdeiros e legatários (n.º 1 do artigo 2030.º do CC). O herdeiro sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e o legatário sucede em bens ou valores determinados (n.º 2 do mesmo artigo). Os significados legais de herdeiro e de legatário são imperativos, não podendo ser abalados por qualificação dada pelo testador em contravenção do disposto nas normas referidas (n.º 5 do mesmo artigo). No caso dos autos, as qualificações feitas em ambos os testamentos são condizentes com as deixas deles constantes: no de 1995, legatário, bens determinados; no de 2019, herdeira, universalidade da herança.
Lidos ou, dito de outro modo, interpretados os testamentos, há que passar à aferição da sua compatibilidade.
Indubitavelmente, o testamento de 1995 é compatível com o de 2019, e este com aquele.
São absolutamente compatíveis: o legado retira-se da herança; o herdeiro único e universal recebe o que restar da herança, cumpridos os legados e outros ónus ou obrigações. Assim o estabelece o artigo 2068.º do CC: «A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados».
De dizer a latere que, na mesma data do primeiro testamento, em 29-12-1995, «DD», companheiro de «CC», outorgou testamento público pela forma seguinte:
«Lega a «CC», divorciada, consigo convivente, os seguintes bens:
a) Uma casa de habitação com dependência e pátio, sita ao Pelourinho, limite da freguesia de Travancinha, deste concelho […], inscrita (…), com todo o seu recheio;
b) A fracção autónoma designada pela letra “U”, correspondente ao quarto andar - B do prédio urbano sito na Praça …, limite da freguesia e concelho de …, inscrita (…).
Estes bens poderão ser vendidos pela legatária se e na medida em que disso necessite, mas o que restar à sua morte reverterá para a filha do testador e sua única herdeira legitimária, «BB», nos termos do art.º 2295.º n.º 1 alínea b) e n.º 3 do Código Civil.
Que este é o primeiro testamento que faz.»
Mais tarde, em 06-03-2007, «DD», por testamento público no qual manteve todos os legados do anterior testamento, legou, ainda, a «CC», por conta da sua quota disponível, metade de todos os seus bens móveis (facto 10).
Obiter dictum, deixamos expresso que o estudo do testamento outorgado por «DD», na mesma data do primeiro da testadora, 29-12-1995, tranquiliza-nos no sentido de que o regime jurídico aplicável aos testamentos da testadora em causa nos autos honra o que é lógico que ambos os membros do casal tenham desejado quando realizaram os seus testamentos de 1995: que tudo se passasse como se casados fossem e que, no limite, os bens relevantes que à data tinham no seu património revertessem, quando ambos fossem falecidos, para a filha de «DD».
O tribunal a quo declarou tacitamente revogado o testamento celebrado em 29-12-1995 pela testadora, por efeito do testamento posterior, de 15-10-2019 (al. i) do dispositivo da sentença, as demais alíneas são consequência da declarada revogação). Por tudo quanto exposto, os testamentos de 1995 e de 2019 são plenamente compatíveis, pelo que o segundo não revogou o primeiro. Consequentemente, impõe-se julgar procedente o recurso e revogar a sentença recorrida.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, na parte objeto de recurso, e, em consequência, julgando a ação totalmente improcedente, absolvendo a ré do pedido.
Custas pela autora.                                                                    

Lisboa, 26/09/2024
Higina Castelo
Paulo Fernandes da Silva
António Moreira