Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA LÚCIA GORDINHO | ||
Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL NOTIFICAÇÃO CONDIÇÃO DE PUNIBILIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/07/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | I. Nos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, pp. no artigo 107.º do RGIT, independentemente de se considerar que a notificação prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do mesmo diploma é uma condição objetiva de punibilidade – como se defende no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 6/2008 (DR I Série, nº 94, de 15mai2008), – ou que se trata de “um elemento de punibilidade”, como refere Tiago Milheiro, é entendimento pacífico que nos processos pendentes, à data da entrada em vigor da Lei, em qualquer fase processual do processo, dever-se-ia notificar os arguidos nos termos do n.º 4, alínea b) do artigo 105.º. II. A jurisprudência e a doutrina têm entendido que, dada a natureza da omissão de pagamento após a notificação, esta tem de ser pessoal e não basta o envio da carta para a morada conhecida, exigindo-se pelo menos uma carta registada com AR devidamente assinado pelo destinatário. III. Na fase da instrução, nos processos posteriores à entrada em vigor da Lei 64.ºA/2008, de 31 de dezembro, não pode o Tribunal ordenar a notificação dos arguidos nos termos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT. IV. Sem esta notificação o crime não é punível e não pode sequer haver acusação, donde decorre que a notificação tem de ser feita antes desse momento. Se tais factos não estiverem descritos na acusação, também não podem vir a ser objeto de aditamento com recurso aos procedimentos previstos nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes da 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I - Relatório Após despacho de arquivamento proferido no final do inquérito, o Instituto de Segurança Social da Madeira requereu a abertura da instrução, que terminou com a prolação de um despacho de não pronúncia. ** Inconformado com esta decisão, o assistente, Instituto de Segurança Social da Madeira, interpôs o presente recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição): “a) Nos presentes autos, foi imputada aos arguidos a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos do artigo 107.º, nºs 1 e 2 do RGIT, com referência ao artigo 105.º, nº 1, do mesmo diploma legal, e artigos 30.º, nº 2 e 79.º, ambos do Código Penal, sendo a sociedade arguida responsável nos termos do artigo 7.º do RGIT. b) Nos termos do disposto na alínea b), do n.º 4, ao artigo 105.º, do RGIT, só o pagamento integral da dívida de quotizações, acrescida de juros e da coima aplicável, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, constitui condição objetiva que obsta à punibilidade. c) O Ministério Público arquivou o inquérito, pois considerou que esta notificação não foi efetuada, não se podendo ter por verificada a condição de punibilidade. d) Por sua vez, a Srª. Juiz de Instrução fundamentou da seguinte forma e no que releva a sua decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos, nos seguintes termos: “(…) no caso dos autos as notificações efetuadas não respeitaram as normas legais aplicáveis, uma vez que não se mostrando assinadas, não tendo os arguidos, de facto, conhecimento do seu conteúdo.” (…) “Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos arts. 283.°, n.° 2, 307.° e 308.° do Código de Processo Penal, decido não pronunciar os arguidos “...” E AA.” e) Decidindo como decidiu, salvo o devido respeito, a M.ª Juiz a quo não fez uma adequada apreciação da prova, nem aplicação do direito. f) Note-se que, nos termos do artigo 19.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, aplicável às notificações e citações, é obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária. g) No caso em apreço, temos que a arguida “...” registou e tem a sua sede na ... e o arguido AA registou o seu domicílio na .... h) Analisando o processo em apreço, verifica-se e está comprovado nos autos que o Instituto da Segurança Social da Madeira, IP-RAM, enviou carta registada com aviso de receção para a morada da sociedade arguida (para a sua sede) e para a morada do arguido seu gerente, que constava do processo dos serviços da Segurança Social, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, nº 4 do RGIT (cfr. documentos juntos aos autos). i) Foi remetida para a sede da referida sociedade comercial uma carta registada com aviso de receção (cfr. registo dos CTT Refª RL206947172PT), veio devolvida porque não foi reclamada e não por qualquer outra razão. Posteriormente, foi remetida nova carta à mencionada arguida, com o registo dos CTT RL206947380PT, que também foi devolvida porque não foi reclamada e não por qualquer outra razão. j) Por sua vez, a carta remetida ao arguido AA, com o registo dos CTT RL206947186PT, veio devolvida porque não foi reclamada e não por qualquer outra razão. Posteriormente, foi remetida nova carta ao mencionado arguido, com o registo dos CTT RL206947393PT, que também foi devolvida porque não foi reclamada e não por qualquer outra razão. k) Tratando-se de notificação a efetuar pela Segurança Social no âmbito do referido procedimento, verifica-se que a notificação deve ser sempre precedida de confirmação da morada constante no sistema, para aferir de eventuais erros ou recentes atualizações de domicílio, aplicando-se as regras dos artigos 38.º e 39.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) devendo ser efetuada por carta registada com aviso de receção, sendo que a notificação considera-se efetuada na data em que for assinado o aviso de receção. l) Caso o aviso de receção seja devolvido e não tenha havido comunicação da alteração do domicílio do contribuinte, deverá ser efetuada nova notificação nos 15 dias seguintes à devolução, através de carta registada com aviso de receção, presumindo-se que o contribuinte foi notificado se a carta não tiver sido recebida ou levantada. m) Por outro lado, temos que esta segunda missiva não foi assinada. Contudo, tal não afeta a sua validade, uma vez que o facto do notificando não ter assinado o aviso de receção, não invalida a notificação de per si. n) Assim sendo, no caso de recusa de recebimento ou não levantamento da carta, a notificação presume-se feita no 3.º dia posterior ao do registo ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando esse dia não seja útil. o) Assim, a notificação aos responsáveis pelo pagamento das contribuições em dívida, para efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º4, alínea b) do RGIT, deve ser feita por carta registada com aviso de receção para o domicílio do notificando ou, no caso de este o ter escolhido para o efeito, para outro domicílio por si indicado e presume-se feita no terceiro dia útil posterior ao registo ou no 1º dia útil seguinte. Note-se que nos termos da Lei não se impõe no caso a notificação por contacto pessoal. p) A não considerarmos efetuada a notificação nos termos atrás expostos, está aberta a porta para nunca se verificar a condição de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º4, alínea b) do RGIT, sempre que os devedores se furtarem às notificações da Segurança Social, não indo levantar as cartas registadas enviadas para esse efeito. q) Note-se, aliás, que nem a lei tributária, nem o Código de Procedimento Administrativo impõem no caso da notificação por contacto pessoal. Idêntico regime quando a notificação resulta do disposto no artigo 113.º do Código do Processo Penal ou das disposições do Código do Processo Civil (artigos 228.º e 230.º). r) Assim sendo, considera-se que as notificações foram efetuadas de modo correto e, portanto, aptas a produzir os efeitos legais, pois as referidas formalidades foram devidamente cumpridas. s) E, assim, verifica-se que o despacho de não pronúncia enferma de erro de julgamento, pois mostra-se, no caso, assegurado o pressuposto de punibilidade previsto na alínea b), do n.º 4, do artigo 105.º, do RGIT. t) Nos termos atrás explanados, deverá ser revogada a decisão instrutória em apreço que decidiu não pronunciar os arguidos, pois devem retirar-se as devidas consequências legais das notificações efetuadas para efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, pronunciando-se, assim, os arguidos pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social. u) Por outro lado, por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que suscitando-se dúvidas acerca das notificações dos arguidos na fase administrativa, efetuadas pelo Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, nº 4, alínea b), do RGIT, o Ministério Público deveria ter ordenado a repetição dessas notificações durante a fase de inquérito, pois nessa fase processual poderia essa alegada questão ser sanada. v) Com efeito, sendo o crime de natureza pública em causa um crime omissivo puro – que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida – afigura-se-nos que o Ministério Público na fase de inquérito, de forma a suprir a alegada ausência do referido requisito de punibilidade que diz ter ocorrido no despacho de arquivamento, deveria ter ordenado a notificação aos arguidos, ao abrigo do disposto no artigo 105.º, nº 4, do RGIT. w) Nesta medida, não poderia o Ministério Público proferir o despacho de arquivamento do inquérito nos termos em que foi proferido, nem concluir, como foi ali concluído pela inadmissibilidade legal do procedimento criminal, pois se foi detetada uma eventual irregularidade, verifica-se que a mesma poderia ter sido suprida a todo o tempo, isto é, poderia ter sido reparada oficiosamente ou mandada reparar pelo Ministério Público ou pela autoridade judiciária competente. x) Por seu turno, muito embora se considere que as notificações remetidas aos arguidos nestes autos devam ser consideradas efetuadas, por mera cautela de patrocínio e tendo em conta que não consta da alínea b), do nº 4, do artigo 105.º do RGIT ou de qualquer outra norma de quem é a entidade que legalmente tem poder para elaborar a notificação daquele preceito, na fase da instrução e em última instância a Meritíssima Juíza “a quo”, poderia e deveria ter ordenado a notificação aos arguidos, ao abrigo do disposto no artigo 105.º, nº 4, do RGIT. y) Neste contexto, face aos elementos constantes dos autos, a douta decisão instrutória proferida pelo Digníssimo Tribunal a quo, deverá ser revogada integralmente, o que aqui se requer, para os devidos efeitos. NESTES TERMOS, Julgando totalmente procedente o recurso interposto pelo Recorrente, farão V. Exas., Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, o que é de inteira J U S T I Ç A”. ** O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo. ** AA respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição): “A) As notificações a que alude o artigo 105º, n.º 4 alínea b) do RGIT elaboradas pela Recorrente não chegaram às destinatárias, não foram assinadas pelas próprias ou por terceira pessoa, acabando devolvidas ao seu remetente. B) Aquelas notificações, além de terem de ser conhecidas pelos destinatários, têm que conter, sob pena de irregularidade de conhecimento oficioso, a indicação concreta das importâncias que as notificadas devem de pagar, bem como a fixação da coima aplicável. C) As notificações não são eficazes, pois não chegaram ao poder dos destinatários ou deles não são conhecidas, nunca se garantido de facto e de direito a oportunidade que a lei prevê de liquidação dos montantes reclamados e de, assim, operar a exclusão de punição. D) As notificações não gozam de eficácia nem produziram os devidos efeitos legais, porquanto, para que a conduta ilícita posso vir a ser punida, é exigido que aquelas notificações se mostrem efectivamente cumpridas e que subsequentemente os seus destinatários não procedam, no prazo de 30 dias após a sua recepção, ao pagamento das quantias devidas a título de quotização à Segurança Social, acrescidas dos juros respectivos e do valor da coima aplicável. E) À data da elaboração do auto de notícia conhecia a aqui Recorrente a falta da condição objectiva de punibilidade e ainda assim requereu a instauração de procedimento criminal. F) Nada veio a ser requerido pela aqui Recorrente visando a remessa pelo Ministério Público de novas notificações, quer feitas pessoalmente, quer por via postal registada com aviso de recepção. G) Só existiria infracção criminalmente punível se o agente tiver sido notificado e não procedesse ao pagamento da prestação tributária/contribuição devida dentro do prazo de 30 dias, sob pena de se verificar um simples ilícito contra- ordenacional (já punível) que não se converteu em ilícito penal. H) Ora, não estando reunida durante o inquérito a condição objectiva de punibilidade pela falta da notificação prevista pelo artigo 105º, n.º 4 alínea b) do RGIT, sendo legalmente inadmissível o procedimento criminal, veio (e bem!) a decisão de o encerrar por arquivamento nos termos do n.º 1 do artigo 277º do C.P.P. I) Se no inquérito se concluir que afinal a notícia investigada não tinha fundamento, designadamente por inexistência de crime e inadmissibilidade do procedimento criminal, impõe-se o respectivo despacho de arquivamento. J) Em fase de instrução requerida pela Recorrente veio a ser proferida decisão instrutória de não pronúncia das arguidas, subscrevendo-se o entendimento manifestado “(…) no caso dos autos as notificações efectuadas não respeitaram as normas legais aplicáveis, uma vez que não se mostrando assinadas, não tendo os arguidos, de facto, conhecimento do seu conteúdo.” K) Não padece o inquérito e a instrução de nenhuma das irregularidades invocadas pela Recorrente. L) Assim e em face do exposto, a decisão recorrida de despacho de não pronúncia deverá ser mantida por mostrar-se devidamente fundamentada e não comportar quaisquer vícios, erros ou irregularidades. ASSIM SE FARÁ A OBJECTIVA E NECESSÁRIA JUSTIÇA!” ** O Ministério Público também respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões: “1. Nos presentes autos encontra-se em tela a prática de factualidade suscetível de integrar um crime de abuso de confiança à segurança Social. 2. O ilícito em apreço consuma-se com a não entrega, total ou parcial, das prestações devidas à segurança social, nos 90 dias seguintes ao terminus do prazo legalmente estabelecido para o efeito. 3. Trata-se de um crime omissivo puro, que se consuma com a não entrega da prestação devida. Cfr. AC TRC, de 11-03-2009, Rel. Ribeiro Martins, in www.dgsi.pt. 4. O AFJ do STJ nº 6/2008, de 9-04-2008, fixou jurisprudência nos seguintes termos: «A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT)». 5. Pode ler-se, ainda no referido AFJ que: « (…) As condições objectivas de punibilidade são, assim, circunstâncias que se situam fora do tipo de ilícito e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto, ou seja, são um pressuposto para que o actuar anti jurídico importe consequências penais. ». 6. “a propósito dos pressupostos adicionais de punibilidade em que se inscrevem as condições objectivas de punibilidade, importa apenas reter o essencial: relativamente a determinados crimes, o legislador faz depender a respectiva punibilidade da verificação de determinadas circunstâncias que, pertencendo embora ao tipo legal (aqui em sentido lato), são adicionais à ilicitude típica e à culpa do agente, constituindo pressupostos ou condições para que a acção antijurídica importe consequências penais.” Não se verificando a condição objectiva de punibilidade, o facto não é punível, não é crime, no sentido lato a que acima aludimos .” (sublinhado e negrito nossos) AC TRL 24-04-2018, in www.dgsi.pt 7. De acordo com o supra explanado, podemos concluir, então, que o não cumprimento de uma obrigação fiscal/contributiva para com o Estado, a verificar-se, não impõe, automaticamente, uma reação penal. 8. Apesar de o ilícito já se ter consumado, só após o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tributária e, ainda, do não pagamento, no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito, da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, poderá desencadear-se a responsabilização criminal do agente. 9. A notificação aos arguidos não foi realizada, de todo. 10. Considerando as consequências da notificação prevista no artigo 105º, nº4 b) do RGIT tornar uma conduta não punível numa conduta punível (crime lato sensu)-, não se podem presumir feitas as notificações. 11. Uma presunção de notificação não pode, em nosso entendimento, equivaler a um facto suficientemente indiciado e, por maioria de razão, facto provado, em sede de audiência de julgamento. 12. Pelo exposto, não está, claramente, verificada a condição objetiva de punibilidade. 13. Inexistindo prévia notificação nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 105º, nº4 b) do RGIT, a matéria objeto do auto de notícia, apesar de constitutiva de um facto ilícito típico, não sendo, ainda, punível, não consubstancia um crime. 14. A notificação nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 105º, nº4 b) do RGIT e o não pagamento subsequente, nos 30 dias posteriores tem que estar verificada antes da comunicação do crime ao MP, sob pena de os factos aí descritos não constituírem crime (entendido como ação típica, ilícita, culposa e punível), como supra expendido. 15. Não se tratando de processo pendente no MP ou no Tribunal à data de entrada em vigor da Lei que introduziu a referida condição objetiva de punibilidade (caso em que deveria proceder-se à notificação, já na pendência do processo criminal, como ocorreu em inúmeros processos), cabe à administração- AT ou ISS, IP, proceder a tal notificação antes de o processo ser enviado para o Ministério Público. 16. O Ministério Público e o JIC não têm o dever de fazer diligências para tornar uma conduta não punível numa conduta punível, como não têm que diligenciar pela conceção dos restantes elementos do crime. 17. “Assim sendo, resulta daqui, desde logo, salvo melhor opinião, que a administração tributária não deverá denunciar o facto ao Ministério Público, para um procedimento criminal que não poderá ter lugar, enquanto não se mostrar verificada a notificação em causa. Denunciar para quê, se, como diz a lei, “os factos só são puníveis se (…)”. Enquanto não se verificar a condição que constitui um pressuposto material da punibilidade esta não poderá, nunca, vir a ter lugar.” AC TRL, de 15-02-2018. 18. O ISSM não está impedido de providenciar pela verificação da condição de punibilidade até à data da prescrição. A adoção dos referidos procedimentos sempre esteve, está e estará na disponibilidade do assistente. 19. Destarte, salvo o devido respeito por melhor opinião, a decisão instrutória não merece qualquer reparo. Porém, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA!”. ** A Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal emitiu parecer, nos seguintes termos (transcrição): “Concordamos com o teor da resposta ao recurso apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância quanto à forma a seguir na notificação para os termos do disposto no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, pois que entendemos que se lhe aplica o regime do processo penal e como tal, a notificação efetuada aos arguidos pela assistente não se mostra válida e eficaz para produzir o efeito pretendido. Porém, mostrando-se a notificação em falta, essencial ao preenchimento da condição de punibilidade do crime, afigura-se-nos que o Ministério Público deveria ter adotado uma de duas atitudes: ou devolvia a participação ao ISS para que procedesse à notificação nos termos do processo penal ou, registando o inquérito, procedia ele próprio a essa notificação. Não foi isso que sucedeu. O Ministério Público não equacionou nenhuma destas possibilidades e decidiu proceder ao despacho de arquivamento, por inadmissibilidade legal do procedimento, uma vez que não se verifica a condição objetiva de punibilidade e como tal os factos não serem criminalmente puníveis. Por sua vez, ao ISS, em face do despacho de arquivamento, competiria reclamar hierarquicamente com a finalidade de que fosse realizada a notificação ou dar continuidade ao procedimento tributário e proceder ele próprio à notificação em falta. Decidiu o ISS reagir ao despacho de arquivamento requerendo a abertura de instrução visando uma de duas finalidades: a validade da notificação por si efetuada e a correspondente pronúncia dos arguidos ou a efetivação da notificação em falta pelo JIC e posterior decisão. Ora, não se nos afigura que compita ao JIC a realização desta notificação, pois a sua necessidade verificou-se em momento anterior à instrução, em sede de inquérito [nesse sentido, veja-se ac. do TRE, de 18/02/2020, P. 481/15.8IDFAR.E1, disponível em www.dgsi.pt]. Assim, em face da decisão instrutória de não pronúncia, deverá o ISS dar continuidade ao procedimento tributário e proceder ele próprio à notificação em falta e, sendo o caso, apresentar nova participação ao Ministério Público. Nestes termos, somos de parecer que o recurso não merece provimento”. ** Foi cumprido disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência. ** II – Questões a decidir Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1. No caso concreto, importa decidir: • Se os arguidos se encontram devidamente notificados nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT; • Se o JIC devia ter ordenado a notificação aos arguidos nos termos dos artigos 113.º do Código de Processo Penal e 105.º, n.º 4 do RGIT. ** III – Apreciação do recurso IIIa) Conteúdo da decisão instrutória(transcrição parcial): “Segundo o disposto no art.º 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. O art.º 283.º, n.º 2, ex vi art.º 308.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, estipula que “consideram-se suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”. Sobre este conceito legal escreve o Prof. Figueiredo Dias - os indícios só seráo suficientes e a prova bastante quando já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. Acrescenta este autor que logo se compreende que a falta delas (provas) não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova..., tem de ser sempre valorado a favor do arguido. - Direito Processual Penal,1º, 1974, 133, citado no Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T. II, p. 65. Na jurisprudência, a interpretação desse conceito é resumida pela Relação de Coimbra (Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T.II, p.65) da seguinte forma - para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que é imputado. Neste sentido se pronunciou o S.T.J. (Ac. de 10.12.92, citado no Código de Processo Penal Anotado, de Manuel Silva Santos e outros, Ed. de 1996, p.131), que definiu “indiciação suficiente” como aquela que resulta da verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em audiência de julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção porque os agentes virão a responder. Deve assim o juiz de instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida em sede de inquérito e de instrução e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, consequentemente, remeter ou não a causa para a fase de julgamento. * O assistente imputa aos arguidos a prática em co-autoria material, e sob a forma continuada, um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos artigos 107.º n.º 1 e 2, 105.º, n.º 4, alínea a) e b), em conjugação com os art. 6.º e 7.º do Regime Geral das Infracções Tributárias. De acordo com o referido artigo 107.º, n.º 1, “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.º 1 e 5 do artigo 105.º”. Por sua vez o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), estabelece que “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500 deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”. Nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se, tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (alínea a) e a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (alínea b). Assim, até à notificação nos termos do disposto no art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, não obstante o facto ilícito estar consumado, a respectiva conduta não é punível, sendo clara a jurisprudência de que a efectivação de tal notificação e a omissão do pagamento na sequência da mesma constitui condição objectiva de punibilidade. Perante a omissão relevante de pagamento que constitui facto ilícito típico ainda não punível, deve a Segurança Social proceder à notificação referida e, omitido o pagamento devido acrescido de juros e coima, desencadear o procedimento criminal, pois só nessa data se mostra verificada a existência do crime no que ao processo crime respeita. Na verdade, não obstante, haver já um facto ilícito e típico a existência do processo penal apenas se reporta à existência de um crime tal como definido no art. 1.º, alínea a) do Código de Processo Penal, ou seja, ao conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança. Sem que o facto seja punível, em rigor, não deve sequer haver lugar ao levantamento do auto de notícia e à abertura de inquérito. No caso dos autos, entendeu o Ministério Público que as notificações efectuadas nos termos do referido preceito são inoperantes, considerando o assistente que as mesmas foram regularmente efectuadas e que, como consequência deveria o Ministério Público deduzir acusação quanto aos arguidos. Dos autos resulta – quer do inquérito, quer dos documentos juntos em sede de instrução – que o assistente como alegou remeteu para a sede da referida sociedade comercial uma carta registada com aviso de recepção, que foi devolvida por não reclamada e que a carta remetida ao arguido AA, veio igualmente devolvida porque não foi reclamada e posteriormente, foram remetidas novas cartas registadas aos mencionados arguidos, que também foram devolvidas porque não foram reclamadas, considerando por isso que foram regularmente efectuadas nos termos dos arts. 38.º e 39.º do Código de Procedimento e Processo Tributário. Ora, da notificação em causa depende a punibilidade do crime de abuso de confiança à segurança social, não estamos no âmbito de interpelação administrativa ou de cobrança de dívida – embora esta possa de aí resultar. Como tal, a notificação em causa respeita a matéria criminal e não existindo norma no RGIT que preveja a forma destas notificações, importa determinar o meio para a efectivar. Não nos parece que essa notificação deva observar as normas invocadas. Com efeito, o próprio RGIT determina que quanto aos crimes e ao seu processamento são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Penal, reservando-se as do Código de Procedimento e Processo Tributário para a matéria relativa à execução das coimas (cfr. Art. 3.º alíneas a) e d) do RGIT). Embora numa fase prévia ao processo crime, é inequívoco que este já se consumou e que a notificação em causa ao mesmo respeita. Dir-se-á que esta configuração legal traz resultados indesejados, designadamente, a possibilidade do sujeito passivo do tributo se esquivar às notificações e obstaculizar a verificação da condição de punibilidade do crime já consumado. Porém, essa matéria poderá ser objecto de alteração legislativa e não rectificada por via da preterição de direitos. Daqui se conclui que, no caso dos autos as notificações efectuadas não respeitaram as normas legais aplicáveis, uma vez que não se mostrando assinadas, não tendo os arguidos, de facto, conhecimento do seu conteúdo. Ainda que se considerasse que estas omissões constituem irregularidade susceptível de sanação, a notificação em causa não pode ocorrer nesta fase processual, dada a sua natureza, pois não cabe à instrução substituir-se à Administração ou ao Ministério Público nem se mostraria viável a pronuncia dos arguidos pois, ainda assim haveria de proceder aos actos de inquérito como sejam o interrogatório dos mesmos, junção de documentos relativos aos trabalhadores e eventual inquirição de testemunhas. À instrução cabe a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e não fazer ou refazer um inquérito que não deve correr sem a existência de um facto punível. Assim sendo, considero que não estão reunidos os pressupostos para que os arguidos sejam submetidos a julgamento pela prática dos factos que lhes foram imputados. * Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos arts. 283.º, n.º 2, 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, decido não pronunciar os arguidos “...” e AA. * Custas a cargo do assistente fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (arts. 515.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal e art. 8.º do Regulamento das Custas Processuais). * Notifique. * Oportunamente, arquivem-se os autos”. * IIIb) Das questões suscitadas no recurso A instrução é uma fase processual facultativa que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter (ou não) a causa a julgamento (artigo 286.º do Código de Processo Penal). A instrução é, assim, uma fase processual autónoma, de caráter facultativo (só tem início quando requerida), que visa a comprovação judicial (por um juiz diverso daquele que irá efetuar o julgamento) da decisão final do inquérito, seja ela de acusação ou de arquivamento. Escreve Maia Gonçalves2 “a instrução não se destina, pois, a repetir ou a “completar” o inquérito ou a sindicar a investigação, apenas fiscalizar a decisão que põe termo ao inquérito. É esta a conceção que respeita e coaduna com a natureza acusatória do processo penal” – realce nosso. A instrução pode, deste modo, ser requerida pelo arguido quando o Ministério Público ou o assistente (em crimes de natureza particular) tiverem deduzido acusação ou pelo assistente quando o Ministério Público tiver arquivado o processo, quando estiverem em causa crimes públicos ou semipúblicos. Finda a instrução, é proferida decisão instrutória. Se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, é proferido despacho de pronúncia. Existem indícios suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Caso contrário, é proferido despacho de não pronúncia – cf. artigos 308.º, n.º 1 e 2 e 283.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal. Escreve o mesmo autor3 “haverá pronúncia quando forem recolhidos indícios suficientes da prática do crime por parte do arguido. Será proferido despacho de não pronúncia em duas situações: quando os indícios forem insuficientes; ou quando se conheçam e declarem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa”. Existem indícios da prática de uma infração quando há elementos (sérios e credíveis) que permitam a sua imputação a determinado agente. Num juízo de prognose, em julgamento, perante os elementos probatórios disponíveis, o agente não deixará de ser condenado ou de lhe ser aplicada uma medida de segurança. Assim, o juiz de instrução criminal, dentro dos limites da sua intervenção, tem que proceder à apreciação dos elementos probatórios dos autos, obtendo um grau de convicção semelhante ao julgamento. Analisemos, então, a situação concreta dos autos. Sabemos que o Ministério Público, no final do inquérito, proferiu despacho de arquivamento, tendo considerado que não estava verificada a condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 1, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias ex vi artigo 107.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma, entendendo que os factos (sem esta notificação) não eram criminalmente puníveis. A decisão instrutória teve igual entendimento. De acordo com o artigo 107º do R.G.I.T. “(…) as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos números 1 e 5 do artigo 105.º”, sendo aplicável o disposto nos números 4 e 7 do artigo 105º. O artigo 105º, por sua vez, refere o seguinte: “1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. (…) 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: (…) b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (…)”. São, assim, elementos deste tipo legal de crime: a dedução, pelas entidades empregadoras, no valor das remunerações devidas aos trabalhadores, das quantias por estes legalmente devidas à Segurança Social; a não entrega, total ou parcialmente, desses montantes às instituições de Segurança Social, no prazo de 90 dias; a apropriação dessas quantias pelas entidades empregadoras e, por fim, o dolo (trata-se, efetivamente, de um crime doloso, uma vez que não está prevista a sua prática por negligência). Tendo em consideração o disposto na alínea b) do n.º 4 do citado artigo 105.º, a punibilidade dos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, para além do preenchimento do comportamento omissivo consagrado no tipo legal, depende ainda da verificação da condição estabelecida na alínea em apreciação, ou seja, que “a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. Cumpre conhecer da argumentação do recurso apresentado pela assistente que coloca em causa não só o arquivamento dos autos como a decisão instrutória que o confirmou, por considerar que as notificações por si efetuadas são válidas e as devidas. A arguida “...” registou e tem a sua sede na ... e o arguido AA registou o seu domicílio na .... O Instituto da Segurança Social da Madeira, IP-RAM, enviou carta registada com aviso de receção para a morada da sociedade arguida (para a sua sede) e para a morada do arguido seu gerente, que constava do processo dos serviços da Segurança Social, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, nº 4 do RGIT. Foi remetida para a sede da referida sociedade comercial uma carta registada com aviso de receção (cfr. registo dos CTT Refª RL206947172PT), veio devolvida porque não foi reclamada e não por qualquer outra razão. Posteriormente, foi remetida nova carta à mencionada arguida, com o registo dos CTT RL206947380PT, que também foi devolvida porque não foi reclamada e não por qualquer outra razão. Por sua vez, a carta remetida ao arguido AA, com o registo dos CTT RL206947186PT, veio devolvida porque não foi reclamada e não por qualquer outra razão. Após, foi remetida nova carta ao mencionado arguido, com o registo dos CTT RL206947393PT, que também foi devolvida porque não foi reclamada e não por qualquer outra razão. Estas notificações foram efetuadas de acordo com o disposto nos artigos 38.º e 39.º Código de Procedimento e Processo Tributário. No entanto, o artigo 3.º, alíneas a) e d) do RGIT determina que quanto aos crimes e ao seu processamento são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Penal, reservando-se as do Código de Procedimento e Processo Tributário para a matéria relativa à execução das coimas. Acresce que a jurisprudência4 e a doutrina têm entendido que, dada a natureza da omissão de pagamento após a notificação e a necessidade de, da mesma, se poder retirar também o elemento subjetivo do agente quanto a essa omissão, tal notificação tem de ser pessoal e não basta o envio da carta para a morada conhecida, exigindo-se pelo menos uma carta registada com AR devidamente assinado pelo destinatário. A este propósito escreve Tiago Milheiro5 “A norma vertida no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT tem uma componente adjectiva, ou seja, uma formalidade, um acto processual que consiste na feitura da notificação, cujo cumprimento é exigido por lei, e uma componente substantiva, ou seja, a prática daquele formalismo do processo implicará a extinção da responsabilidade criminal e arquivamento do processo em caso de pagamento, operando uma causa de exclusão de punibilidade, ou caso contrário, o prosseguimento do processo para julgamento ou decisão de recurso, por operar o segundo requisito para a punição do facto (o primeiro, como vimos, é o decurso do prazo de 90 dias). Sendo, portanto, aquela notificação um acto de processo penal deverá seguir-se o formalismo imposto no artigo 113.º do Código de Processo Penal para as notificações, ou seja, por contacto pessoal, via postal registada ou por via postal simples com prova de depósito (artigo 113.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal). (…) Portanto, em regra, se os arguidos prestaram termo de identidade e residência, será remetido notificação por via postal simples com prova de depósito, nos termos do artigo 196.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal. Caso contrário, deverá tentar-se uma notificação por via postal registada ou por contacto pessoal, estando vedada a notificação edital, por não estar expressamente prevista (artigo 113.º, n.º 11, do Código de Processo Penal)”. A ser assim, como nos parece claro que é, não ocorreu a notificação dos arguidos, não estando os mesmos notificados nos termos do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT. Independentemente de se entender que tal notificação é uma condição objetiva de punibilidade – como se considerou no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 6/2008 (DR I Série, nº 94, de 15mai2008), – ou que se trata de “um elemento de punibilidade”, como defende Tiago Milheiro, é entendimento pacífico que nos processos pendentes, à data da entrada em vigor da Lei, independente da fase processual do processo, dever-se-ia notificar os arguidos nos termos da norma que temos vindo a fazer referência. “Trata-se da emanação do dever do tribunal aplicar a lei mais favorável ao arguido, não padecendo esta interpretação de qualquer inconstitucionalidade. Tal questão foi objecto de decisão pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 409/2008, publicado no DR, 2.ª série, n.º 185, em 24 de Setembro de 2008, que entendeu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, interpretado no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista”6. Questão diversa é saber se tal notificação deve ser ordenada pelo juiz em sede de instrução relativamente a factos posteriores à lei que veio introduziu a condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 4 do RGIT. Parece-nos evidente que sem tal notificação o crime não é punível e não pode sequer haver acusação, donde decorre que a notificação tem de ser feita antes desse momento. Se tais factos não estiverem descritos na acusação, também não podem vir a ser objeto de aditamento com recurso aos procedimentos previstos nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal. “Saber se o arguido foi ou não notificado para fazer um pagamento, se pagou ou não e se o prazo que lhe foi concedido era o certo e foi ultrapassado, é matéria de facto que tem de ser discutida no julgamento, que o arguido pode querer contrariar e relativamente à qual pode querer apresentar provas. Uma acusação que omita a alegação de tais factos não permite o exercício do direito ao contraditório em julgamento, com o alcance e finalidades resultantes dos artigos 32º nº 5 da CRP e 323º al. f) e 327º nº 2 do CPP e viola de forma grave os direitos de defesa e o princípio do processo equitativo, consagrados nos artigos 32º nºs 1 e 5 e 20º nº 4 da CRP, no artigo 6º nº 3 da CEDH e nos artigos 47º e 48º nº 2 da CDFUE”7. Permitir que o juiz de instrução ou do julgamento promovesse a verificação de uma condição de punibilidade que não constava da acusação, alterando a factualidade imputada ao arguido, transformando uma acusação com factos que não integram a prática de um crime numa condenação ou despacho de pronúncia, seria uma violação grave princípio do acusatório que vigora no nosso processo penal. O Ministério Público quando exerce a ação penal tem de elaborar uma acusação que seja suficiente para permitir a condenação do arguido, assegurando a efetiva possibilidade de defesa, o que naturalmente pressupõe o conhecimento preciso dos factos imputados e a sua suficiência para integrar o tipo de crime e permitir a sua punição. Posto isto, parece-nos evidente que, na fase da instrução, não poderia o Tribunal ordenar a notificação dos arguidos nos termos do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT, como defende o recorrente. Em sede de recurso, veio a assistente defender que o Ministério Público podia ter ordenado a notificação dos arguidos nos termos do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT, como defende a Exma. Procurador-Geral Adjunta no seu parecer. Verificamos, no entanto, que esta questão não foi suscitada no RAI e, consequentemente, também não foi analisada no despacho recorrido. É consabido que os recursos não servem para discutir questões novas, ou seja, questões que não foram suscitadas perante o Tribunal a quo e decididas por este. Escreveu-se, neste sentido (entre muitos outros) no Ac. da RP de 09.10.20238 “Os recursos, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, em termos gerais, apenas, podem ter como objecto questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o Tribunal “ad quem” com questões novas (…); e no Ac. do STJ de 05.06.20249, “Os recursos, enquanto meios de impugnação das decisões judiciais, apenas se destinam a reapreciar decisões tomadas pelo tribunal a quo e não a decidir questões novas que perante eles não foram equacionadas.” No mesmo sentido, podemos ler no Ac. STJ de 08.10.202010, “I. Os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão mas não para obter decisões de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido. II. As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos: destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida”. Posto isto, está vedado a este Tribunal apreciar se o Ministério Público, em sede de inquérito, devia ter ordenado a notificação nos termos do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT. Aqui chegados e analisadas as questões suscitadas em recurso, concluímos que não há qualquer reparo a fazer à decisão recorrida, devendo ser julgado não provido o recurso. * IV – Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos. Custas a cargo da assistente, com taxa de justiça que se fixa em 4 Uc. Lisboa, 7 de outubro de 2025 Ana Lúcia Gordinho Manuel Advínculo Sequeira Paulo Barreto ____________________________________________ 1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89. 2. In Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 999. 3. Ob. Cit., pág. 1023. 4. Ac. RL de 05.03.2024 https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/be2664bd2b478c4c80258ada004aff86?OpenDocument 5. Tiago Milheiro, revista Julgar 2015/10 chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/059-096-Abuso-de-confian%C3%A7a-fiscal.pdf 6. Tiago Milheiro, ob. Cit. 7. Ac RP 28.01.2025 https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/bfcba932df95df5980258c2d004b0130?OpenDocument 8. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7a4e0d5d6acf74f080258a6100383af1?OpenDocument 9. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/250477a318cfed3f80258b340038a1ef?OpenDocument 10. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cee4751329d337f980258634005f4627 |