Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRL00023587 | ||
Relator: | RODRIGUES SIMÃO | ||
Descritores: | CRIME DE IMPRENSA DIFAMAÇÃO DE AUTORIDADE PÚBLICA OFENSAS À HONRA DIREITOS FUNDAMENTAIS CONFLITO DE DIREITOS DIREITO AO BOM NOME LIBERDADE DE IMPRENSA MEMBRO DO GOVERNO POLÍTICO ISENÇÃO DE PENA FIGURA PÚBLICA | ||
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Nº do Documento: | RL199805130078643 | ||
Data do Acordão: | 05/13/1998 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE. | ||
Área Temática: | DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS / TEORIA GERAL. | ||
Legislação Nacional: | CONST76 ART2 ART25 ART26 ART37 ART38. CP82 ART172 N1 ART180 N2. CP95 ART31 N1 N2 ART186 N2. DL85-C/75 DE 1975/02/26 ART26 ART28 N1. CPP87 ART127 ART379 ART410 N2 N3 ART513 ART514. CCJ95 ART87 N1 B. | ||
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Sumário: | I - Nem o direito à honra, nem a liberdade de imprensa e de expressão (como os demais direitos fundamentais), são direitos absolutos; mediante critérios de proporcionalidade, hão-de limitar-se reciprocamente para que possam coexistir no mesmo ordenamento jurídico. II - O político ou membro do Governo, como "figuras públicas" que são, sem terem de se sujeitar ao impulso, têm, no entanto, de suportar uma exposição à discussão e critica pública maior do que as pessoas privadas; - o que, por regra, conduz a uma acentuada redução da dignidade penal e da carência de tutela penal da honra. III - O jornalista que se limita a trazer à opinião pública, noticia de manifestação realizada contra a política seguida por determinado membro do Governo, transcrevendo "entre aspas" as afirmações aí produzidas, algumas delas, objectivamente injuriosas, não age com intenção de ofender, mas sim no cumprimento de um dever (de informar). IV - Porém, o autor das expressões injuriosas - chamando corrupto ao membro do Governo e, anunciando ter provas para o "pôr na prisão" - ainda que proferidas no calor da manifestação pública, porque excedeu o direito de critica e até de revolta, acabou por cair no rebaixamento do visado, atingindo-o na sua honra e consideração, cometendo assim crime de difamação, podendo, no entanto, face ao concretismo da acção, ser o arguido isento de pena. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Lisboa: I - Relatório. I. No Pr. C/S n° 8024/94.9TD.LSB, vindo do 1° Juízo Criminal de Oeiras, onde são arguidos (J) e outros, recorrem os arguidos (A), (C), (J) e "PÚBLICO - Comunicação Social, SA", da sentença de fls. 939/968, publicada em 31-10-1997, que a todos condenou em penas de multa {o primeiro, pela prática de um crime de difamação agravada; os dois seguintes, pela prática de um crime de abuso de liberdade de imprensa, com referência a uma difamação agravada; finalmente, o "Público", pela prática de uma contravenção pr. e p. no artº 29°, n° 1 do DL 85-C/75}. 1.1. Verifica-se ainda dos autos que o arguido (M) interpôs recurso a fls 509 (em debate instrutório), admitido para subir diferidamente e com efeito devolutivo a fls. 590. Só que tal recurso foi logo declarado extinto, a fls. 595, por via de esse arguido "...ter sido despronunciado".. 2. O recorrente (A), pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra absolutória ou, se assim não se entender, a suspensão da pena aplicada, motiva o recurso e formula as conclusões que a seguir se transcrevem: 1º - O arguido é vice-presidente da Federação Nacional de Caçadores e Proprietários e nessa qualidade participou em várias manifestações que tiveram lugar em vários pontos do país. 2° - A Lei da Caça foi alvo durante meses a fio de enorme contestação nacional liderada pela Federação de Caçadores e Proprietários- Por todo o país, como é público sucederam-se as manifestações de rua, os bloqueios de estradas, marchas e manifestações á porta do Ministério da Agricultura. 3° - Os direitos dos caçadores foram postos em jogo e sobretudo os direitos dos proprietários de prédios rústicos que viram as suas terras invadidas e exploradas compulsivamente sem autorização dos donos e sem a mínima contrapartida pecuniária. 4°- Os jornais, mormente o "Expresso" fizeram eco ao longo de várias semanas do inúmeras irregularidades praticadas na caça e na floresta por técnicos do então Instituto Florestal, algumas alvo de investigação pelo Ministério Público e pela Policia Judiciária. 5° - Os jornais publicavam e ilustravam os artigos com fotos do membro do governo em caçadas junto de alguns dos visados sendo voz corrente que estava ao corrente das irregularidades denunciadas. 6° - Foi também esta a imagem que o arguido captou da leitura dos jornais, dos recortes que circulavam e a que teve acesso. 7° - Dizer-se, como terá dito o arguido "de que existem provas" mais não foi do que relatar as notícias - e foram muitas - que leu e apareceram relatadas na comunicação social. 8° - O arguido estava envolvido numa luta política, contra a actuação política do Ministério da Agricultura, mormente a do Secretário de Estado (B). 9° - A matéria discutida era de relevo público, de interesse nacional, liderada pela Federação Nacional de Caçadores e Proprietários de que o arguido é o vice-presidente da direcção. 10° - O actual governo alterou radicalmente a política cinegética e de aprovação de zonas de caça em detrimento da prosseguida pelo Sec. de Estado (B). 11° - A conduta do arguido não é punível, porquanto teve como finalidade a defesa do interesse público. 12° - A sentença do tribunal "a quo" violou o disposto no nº 2 do artigo 180 do Código Penal e artigo 28, nº 1 da Lei n° 85-C/75, de 26 de Fevereiro. 3. Os demais recorrentes, pedindo a anulação da sentença ou, se assim não se entender, a sua revogação e substituição por outra absolutória, motivam o seu recurso acabando por formular as conclusões que a seguir se transcrevem: I - Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida no tribunal "a quo" e que condenou os recorrentes como autores do crime de abuso de liberdade e imprensa com referência ao crime de difamação e uma contraordenação prevista na Lei de Imprensa. II - Na sentença sob recurso, existe erro notório na apreciação da prova quanto ao facto dado como provado de que os arguidos "se limitaram a reproduzir as afirmações proferidas" ou, se assim não se entender, que da conjugação dos dois pontos - 1. e 13. - dados como provados, resulta contradição insanável na fundamentação, fundamento de recurso nos termos do art° 410° nº 2 do C.P.. III - A sentença sob recurso padece de vício, nos termos do art° 410° do C.P.P., por insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, já que não se deram como provadas quais as afirmações que foram reproduzidas por um dos arguidos jornalistas e pelo outro, de forma a destrinçar as suas efectivas responsabilidades, apesar de tal ser um dado adquirido na sentença na medida em que incorpora como facto provado o artigo em causa. IV - Nos termos dos art°s 379° a) e 374° nº 2 do C.P., é a sentença nula por nela não se terem enumerado como provados ou não, factos que eram relevantes para a descoberta da verdade e que foram considerados como não provados. V - A sentença sob recurso ao não reconhecer interesse público e legítimo no conhecimento das afirmações em causa produzidas no âmbito das manifestações e do que nelas ocorrera, peca, nos termos do art° 410° nº 2 c) por erro notório na apreciação da matéria de facto, de acordo com as regras da experiência comum e com a própria sentença que incorporou o artigo em causa como aquele que é da autoria dos recorrentes (J) e (C). VI - o interesse legítimo resulta de se estar na presença de manifestações públicas simultâneas em três localidades do país, previamente convocadas pela associação que representava os interesses dos caçadores do regime livre e no âmbito de uma polémica pública que envolvia o secretário de Estado da Agricultura e a política governamental para a caça. VII - Omitir o conteúdo dessa manifestação seria um {SIC} censura inadmissível face ao disposto no art° 37º nº 2 da C.R.P.. VIII - Tal direito á informação tem de ser compatibilizado com o direito à honra e consideração do assistente, em concreto, na sua qualidade de titular de um cargo público, membro do Governo. IX - Faz a sentença sob recurso uma ponderação de interesses em que é dada uma prevalência injustificada à honra e consideração do assistente sobre o direito à informação e a liberdade de informação. X - Este direito à honra e consideração do assistente é comprimido, até porque, como resulta da sentença, as afirmações em causa "foram produzidas em virtude das funções desempenhadas pelo ofendido, funções essas que os arguidos conheciam". XI - A compressão do direito à honra e consideração do assistente sobre as matérias em causa, enquanto titular de um cargo público e no âmbito de uma polémica pública e com fácil acesso aos meios de comunicação social, permite que o direito à informação abranja um relato integral das manifestações públicas em que a sua actividade política é contestada - incluindo as afirmações nela produzidas - sob pena de impedir o pleno debate democrático consagrado na nossa Constituição. XII - Os arguidos jornalistas fizeram o único trabalho de indagação da veracidade das fontes para os leitores que lhes era possível: identificar os autores das afirmações que citaram e relatar o que se passara nas manifestações, estando a sentença sob recurso ferida nesta matéria, de vicio de erro notório na apreciação da prova. XIII - A realização de três manifestações públicas num dia, não se noticia dois ou três dias depois, sob pena de deixar de ser notícia. perdendo actualidade e de já haver uma ou mais respostas às manifestações que, entretanto, ainda não foram noticiadas ! XIV - Aos recorrentes jornalistas, correspondentes locais, não era exigível outra actuação, de acordo com a legis artis, se não a elaboração do artigo relatando o que se passara nas manifestações e identificando os autores das afirmações mais relevantes, assim exercendo o direito à informação face ao direito. XV - A sentença sob recurso viola, assim, o disposto nos art°s 18° nº 2, 26°,37°,38°,45° e 48° da C.R.P., violando também o disposto nos art°s 164° nº 1, 166°, 167 nº 2 e 168° e 174° do Código Penal e 374° nº 2 do CPP, pelo que deverá ser anulada ou, se assim, não se entender, revogada e substituída por outra que absolva os arguidos. 3. Respondendo, o Mº Pº "salientou" a final (também em transcrição): Manifesta improcedência do recurso por do texto da decisão recorrida não resultar nem contradição insanável da fundamentação, nem erro notório na apreciação da prova, nem a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada. Deverá ser julgado improcedente e mantida a decisão recorrida nos seus precisos termos. Caso assim se não entenda, deverão os presentes autos ser reenviados para julgamento. 4. Nesta Relação, o Digno Procurador defende, em douto parecer, o não provimento do recurso. II - Fundamentação. 5. Colhidos os vistos e realizada audiência, cumpre decidir. A questão a resolver no presente recurso) - saber se é de manter a condenação dos recorrentes { a absolvição dos demais arguidos extravasa o seu objecto} - subdivide-se nas seguintes: a) A conduta do arguido (A) não é punível, porquanto teve como finalidade a defesa do interesse público, tendo a sentença violado o n° 2 do artº 180° do C. Penal e artº 28, nº 1 da L 85-C/75, de 26-02? b) Na sentença recorrida, existe erro notório na apreciação da prova, - quanto ao facto dado como provado de que os arguidos" se limitaram a reproduzir as afirmações proferidas"? - ao não reconhecer interesse público e legítimo no conhecimento das afirmações em causa produzidas no âmbito das manifestações e do que nelas ocorrera, de acordo com as regras da experiência comum e com a própria sentença, que incorporou o artigo em causa como aquele que é da autoria dos recorrentes (J) e (C)? - por não reconhecer que os arguidos jornalistas fizeram o único trabalho de indagação da veracidade das fontes para os leitores que lhes era possível: identificar os autores das afirmações que citaram e relatar o que se passara nas manifestações? c) da conjugação dos dois pontos - 1. e 13. - dados como provados, resulta contradição insanável na fundamentação? d) A sentença recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, já que não se deram como provadas quais as afirmações que foram reproduzidas por um dos arguidos jornalistas e pelo outro, de forma a destrinçar as suas efectivas responsabilidades, apesar de tal ser um dado adquirido na sentença na medida em que incorpora como facto provado o artigo em causa? e) Nos termos dos art.s 37º a) e 374° nº 2 do CP, é a sentença nula por nela não se terem enumerado como provados ou não, factos que eram relevantes para a descoberta da verdade? 6. Em devido tempo (cfr. fls. 61/64), não foi feita a declaração a que se refere o art. 364°, n° 1 do CPP, pelo que se entende ter havido renúncia ao recurso em matéria de facto ( cfr. artº 428°, n° 2, do CPP). Assim sendo, o presente recurso versa apenas matéria de direito. 7. Os factos, provados e não provados, da sentença recorrida (em transcrição): "I) Na edição de 11 de Julho de 1994 foi publicado no jornal diário 'Público' um artigo intitulado :Acusações de corrupção em Montemor-o-Novo, Beja e Caldas da Rainha - caçadores contra (B) " da autoria dos arguidos (J) e (C); 2) No início do artigo escreveram os seus autores "Os caçadores não pouparam acusações ao secretário de estado da Agricultura, (B). Chamaram-Ihe "corrupto, mentiroso e conivente com ilegalidades" e afiançaram "ter provas suficientes" para o meter na prisão ". 3) Na sequência do artigo, e com referência a três manifestações de caçadores realizadas em Beja, Montemor-o-Novo e Caldas da Rainha, são transcritas declarações que teriam sido produzidas por participantes dessas manifestações; 4) Assim, refere-se que (I) afirmou que (B) é "conivente com as irregularidades praticadas". 5) Que (M), depois de responsabilizar (B), "...pediu mesmo a prisão do Secretário de Estado... ". 6) Que (A) disse "Temos provas para pôr o (B) na prisão ", e o comparou ao árbitro de futebol (G); 7) Escrevem ainda os arguidos (J) e (C) que vários caçadores denunciaram a existência de "mafia, fraude e corrupção na caça". 8) E que "caçadores querem entregar ao Ministro da Agricultura um abaixo-assinado «para provar que (B) é mentiroso, é corrupto e tem de ser banido»". 9) (V) era, à data da publicação da noticia, director do jornal diário o "Público", cuja proprietária é a sociedade Público, Comunicação social, S.A". 10) Aquando da publicação da noticia o arguido (V) encontrava-se de férias; 11) As afirmações descritas são atentatórias da honra e consideração devidas ao, à data, Secretário de Estado (B), quer como cidadão quer como membro do Governo. 12) Foram produzidas em virtude das funções desempenhadas pelo ofendido, funções essas que os arguidos conheciam. 13) Os arguidos (J) e (C) limitaram-se a reproduzir as afirmações proferidas. 14) Não procederam a qualquer indagação sobre a veracidade das afirmações. 15) O arguido (A) proferiu as declarações reproduzidas no artigo tendo plena consciência de que essas afirmações eram ofensivas da honra e consideração do Secretário de Estado (B). 16) Os arguidos (J) e (C) estavam cientes da natureza ofensiva das afirmações constantes do artigo. 17) O arguido (A) agiu com o propósito de atingir o visado na sua honra e consideração. o que sucedeu. 18) Os arguidos (J) e (C), embora não pretendendo atingir o ofendido na sua honra e consideração, representaram essa ocorrência como uma consequência necessária da sua conduta. 19) Os arguidos actuaram de forma livre e consciente, sabendo que as suas condutas não eram permitidas por lei. 20) Também a sociedade "Público, Comunicação Social, SA", através dos seus legais representantes. ao permitir a emissão de tal noticia, com tal conteúdo, agiu em desconformidade ás regras que regulam a actividade da imprensa. 21) Os arguidos (J) e (C) são delinquentes primários. tendo admitido os factos imputados. 22) Os arguidos (J) e (C) são solteiros e têm uma condição sócio-económica razoável. 23) O arguido (A) não tem antecedentes criminais, é casado, e tem uma situação sócio-económica razoável. 1.2. FACTOS NÃO PROVADOS a) Que o arguido (I) tenha sido o autor da afirmação que refere ser (B) conivente com as irregularidades praticadas" . b) Que o arguido (V) tinha perfeito conhecimento do teor de todo o artigo e autorizou a sua publicação. c) Que o arguido (V) estava ciente da natureza ofensiva das afirmações constantes do artigo e agiu com o propósito de atingir o visado na sua honra e consideração. d) Que o arguido (A) quis fazer as suas declarações perante os jornalistas para que fossem publicadas no jornal e deste modo divulgadas por um grande número de pessoas, ou que contou com a sua presença e previu tal publicação como efeito necessário da sua conduta, ou ainda que tenha representado tal resultado como possível, conformando-se com ele. e) Que os arguidos (J) e (C) agiram com o propósito de atingir o ofendido na sua honra e consideração". 7.1. Motivando a decisão de facto, diz a sentença recorrida (ainda em transcrição ): "Quanto aos factos dados como provados, resultou a convicção do tribunal dos depoimentos - coerentes e essencialmente coincidentes das várias testemunhas, as quais denotaram rigor e imparcialidade, tendo deposto de forma credível, das afirmações dos arguidos, da análise cuidada dos documentos juntos aos autos, e da global harmonização de todos os meios de prova com as regras da experiência. Em especial, e quanto aos factos dados como provados de I) a 8), foi decisiva a sua admissão pelos arguidos (J) e (C), conjugada com o documento de fls.6. No que concerne aos factos descritos em 9) e 10), a sua aquisição fundou-se nas declarações do arguido (V), conjugadas, quanto à sua ida de férias, com o depoimento da testemunha (L) (cfr. fls.879). Com efeito, esta, enquanto adjunta da Direcção estava em posição privilegiada para conhecer de tal facto. Por outro lado, a sua idoneidade e a isenção do seu depoimento não mereceram qualquer reparo. No que respeita aos factos descritos em 11 ) e 12), 15), 16), 18), 19) e 20), resultam os mesmos no essencial da natureza e tipo de afirmações produzidas, do teor da notícia e da consideração das condutas dos arguidos, por eles admitidas, conjugadas com uma sua apreciação lógico-racional, iluminada pelos dados da vida e as regras da experiência ensina a. O que consta do nº 13, para além de ser directamente assumido pelos arguidos em termos que não suscitaram reservas ao tribunal, desde logo por ser plausível face ao tipo de evento em causa e ao papel interiorizado pelos arguidos (J) e (C), foi no essencial corroborado por várias testemunhas. Com efeito, do depoimento das testemunhas (D), (E), (F), (H) e (N), a .fls. 777, 798 e 824, resulta que todos confirmam as afirmações reproduzidas correspondem no essencial às proferidas, embora sem poderem identificar o autor de tais afirmações. Reportando-nos aos factos não provados, foram tidos em conta os meios de prova disponíveis, harmonizados com os princípios racionais e legais da prova. Assim, quanto aos factos constantes de a), e para além da negação do próprio arguido (I), foram decisivas as testemunhas que, tendo estados presentes na manifestação de Beja e ainda admitindo que tal afirmação possa ter sido produzida por alguém, afirmaram não ter o arguido referido o nome do sr. (B) ou sequer o cargo governamental que ocupava na altura. Assim, as testemunhas (O) e (P). É certo que a testemunha (N) afirmou que (I) lhe disse o que consta da noticia fls. 824). Mas acrescenta que não recorda as palavras exactas, ficando-se sem saber qual o exacto teor da eventual afirmação que (I) lhe teria feito. Acresce que o depoimento das testemunhas acima referidas, efectuado directamente perante o tribunal, se mostrou seguro e coerente, sendo valorado como suficiente para impedir que o tribunal adquira uma certeza prática sobre o facto em causa que ultrapasse o limiar da dúvida razoável. A não afirmação dos factos referidos em b) e c) resulta linearmente da sua tendencial incompatibilidade lógica com o facto dado como provado em 10), bem como da completa ausência de prova que os confirme. Quanto à al. d), por se não ter produzido qualquer prova quanto ao conhecimento pelo arguido da presença de jornalistas, ponto em que, em especial, as declarações dos vários envolvidos, arguidos incluídos, foram omissas. A mera previsibilidade da presença de jornalistas numa manifestação não se vislumbra como suficiente no caso porque se impunha algo mais que esse mero juízo de razoabilidade para se adquirir a convicção do facto. Não se tendo logrado qualquer outro elemento, indiciário que fosse, quanto ao conhecimento pelo arguido da presença de jornalistas, a dúvida que subsista tem que resolver-se em seu favor, não dando como provado tal facto. 8. Apreciemos, antes de mais, as pretensões dos recorrentes (C), (J) e "Público", até porque as decisões tomadas a propósito podem inutilizar a abordagem das demais. Eles alegam a existência de uma nulidade e de todos os vícios do nº 2 do art° 410° do CPP . 8.1. De tudo se pode conhecer neste recurso. Na verdade: as nulidades da sentença podem ser alegadas e consideradas em sede de recurso, nos termos do art° 410°, n° 3 do CPP("); os vícios do art° 410º , n° 2 do CPP são passíveis de conhecimento pelo Tribunal de recurso independentemente de alegação, mas, como se sabe, têm de resultar do texto da decisão. 9. Curando da pretensa nulidade. Ela ocorreria (cfr. pontos 19/23 e 60/63 da motivação de recurso) ao não se enumerarem, como provados ou improvados, factos relevantes para a descoberta da verdade e que seriam: 1º - reproduzir a notícia, no essencial, o ocorrido na manifestação a que ambos os arguidos (C) e (J) assistiram, contendo os factos a que o primeiro esteve presente até ao parágrafo "Foram recolhidas 500 assinaturas para um abaixo-assinado que vai ser enviado ao Procurador-Geral da República, Presidente da República e Primeiro-Ministro" e começando a parte da notícia que relata os factos a que o segundo esteve presente no parágrafo seguinte (tudo alegado nas contestações); 2º - mencionar a notícia (cfr. fls. 6), que o "Público" tentou contactar o ofendido (B), mas não o conseguiu. 9.1. Quanto ao primeiro, afirmou-se na douta sentença recorrida, em sede de matéria de facto provada e logo no respectivo ponto 1, que o artigo foi "da autoria dos arguidos (J) e (C). Assim sendo, o Tribunal recorrido considerou a matéria alegada, tomou até expressa posição final quanto a ela, usando da livre convicção judicial (art° 127° do CPP) na apreciação da prova produzida e expondo aliás com clareza e abundante proficiência as suas motivações. Essa posição final do Tribunal não foi no sentido pretendido pelos arguidos, mas também não tinha que o ser. Por outro lado, ela não implica necessariamente ( ainda que a melhor técnica assim o aconselhasse) que houvesse depois menção desses factos em sede de enumeração dos improvados, pois esta sempre se analisaria aí numa mera e directa contradição dos já provados e, por isso, seria despicienda, no entender de alguns. 9.2. Quanto à parte em que não se curou da menção que consta da notícia (cfr. fls. 6), de que o "Público" tentou contactar o ofendido (B), mas não o conseguiu. Não vemos que o problema assim posto deva colocar-se em sede de nulidade da sentença. Ele tem de ser tratado ao nível do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, pois todo o conteúdo do texto jomalístico em causa tem de ser considerado como integrando o corpus dos factos provados, por força do mais correcto entendimento do facto elencado no n° 1. 9.2.1. É que, como se afigura apodítico mas não será despiciendo afirmar aqui, até porque parece ter sido, de alguma forma, olvidado na douta sentença recorrida, qualquer texto, jornalístico ou não, como até, em sentido mais geral, qualquer discurso (o político, o científico ou mesmo o artístico), tem de ser entendido como um todo e no seu todo, pois só dessa forma será possível entender e surpreender cabalmente o seu sentido. Não podem extratar-se em absoluto expressões contidas num qualquer texto e fazer delas uma análise isolada: sempre têm elas de se reconduzir ao contexto - quer do escrito de que emanam, quer ainda ao mais geral do devir social em que necessariamente se inserem, designadamente quando se está perante uma actividade como a imprensa. 9.3. Em conclusão, a douta sentença recorrida não é nula, nos termos e para os efeitos do art° 379° do CPP. 1O. Entrando agora na análise dos alegados vícios, que seriam todos os do n° 2 do art° 410° do CPP (recordando): - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada {ao não se terem esclarecido quais as afirmações que foram reproduzidas por um dos arguidos jornalistas e pelo outro, de forma a destrinçar as suas efectivas responsabilidades} ; - contradição insanável da fundamentação (na conjugação dos pontos 1. e 13. provados); - erro notório na apreciação da prova {existiria nos três pontos atrás referidos em 5. - b)} . 1 O .1. Diga-se desde já que ao não se terem dado como provadas quais as afirmações que foram reproduzidas por um dos arguidos jornalistas e pelo outro, de forma a destrinçar as suas efectivas responsabilidades {cfr . acima 5. - c) } não existe a pretendida insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada. Na verdade e para além do já dito em 9.1., temos de considerar que a decisão da causa é perfeitamente possível com a matéria de facto dada como provada nesta parte pela sentença recorrida, ainda que a consequência seja, porventura, do menor agrado dos recorrentes. 10.2. Existe sim insuficiência para a decisão da matéria de facto provada no que tange à não consideração do completo teor do texto jornalístico em causa. Designadamente, porque nele se refere que "...o 'Público' tentou confrontar (B) com as acusações da Federação Nacional de Caçadores e Proprietários. mas tal revelou-se impossível". Como já deixámos dito, todo o conteúdo do texto jornalístico tem de ter-se como integrante do corpus dos factos provados. Até para melhor entendimento do facto aí elencado como n° 1 e na decorrência do mesmo. Na verdade, assim o impõe a melhor hermenêutica da matéria de facto da sentença e ainda os especiais cuidados que se exigem na análise de um texto jornalístico como o presente, em ordem à valoração penal das expressões que foram tidas como difamatórias. Por outro lado, o ponto ora transcrito, em especial, revela-se importante na solução da causa, por esta se situar no âmbito do livre exercício da informação, entendida no seu sentido mais nobre, isto é como função pública(8). Esta omissão fáctica - ao não considerar reproduzido o completo teor do texto jornalístico em causa - integra pois o vicio da alínea a) do n° 2 do art° 410° do CPP, por se ter criado dessa forma uma clara insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada. 10. 3- Os recorrentes referem uma contradição insanável de fundamentação que, na sua opinião, resultaria da conjugação dos dois pontos - 1 e 13. - dados como provados. Mas não explicitam devidamente o sentido dessa alegação. Pela nossa parte, nada vemos de contraditório ao referir-se no ponto 1. a publicação da notícia e no ponto 13. que os seus autores se limitaram aí a reproduzir afirmações feitas. 10.4. Restam os alegados casos de "erro notório". Antes de mais, duas precisões, quanto à legal definição desse vício: - ele refere-se só à decisão fáctica (erro na apreciação da prova) e não à sua integração jurídica; - ele deve ser "notório", isto é, tem de ser de tal modo evidente e flagrante que pode ser surpreendido pelo observador médio - o comum destinatário dos textos judiciais. 10.4.1. Quanto ao facto provado de os arguidos "se limitaram a reproduzir as afirmações proferidas", esse vício inexiste, manifestamente. Na verdade, nada se impõe ao intérprete em sentido contrário, por forma absoluta, categórica e inequívoca, no texto da decisão recorrida(9). 10.4.2. A sentença recorrida não reconhece o interesse público e legítimo que os recorrentes pretendem que o artigo assumiu. Como ainda quando a sentença, no dizer dos recorrentes, não reconhece que os arguidos jornalistas fizeram o único trabalho de indagação da veracidade das fontes que lhes era possível: identificar os autores das afirmações que citaram e relatar o que se passara nas manifestações Também não existe "erro notório", em qualquer destes casos. Na verdade, e para além das já apontadas razões, o "erro notório" tem de referir-se à decisão em matéria de facto e não, como aqui sucede, quando apenas se pretende conseguir uma outra forma de interpretação e integração jurídica dessa matéria fáctica. Coisa claramente diversa e não recondutível, é bom de ver, ao apontado vício. 10.5. Em resumo: De todos os apontados vícios, apenas consideramos verificado o da alínea a) do n° 2 do art. 410° do CPP - insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada (cfr. 10.2.) - e em ponto não referido pelos recorrentes. 11. Verificada a existência de um dos vícios do art° 410°, n° 2 do CPP, procede-se ao reenvio do processo se "...não for possível decidir da causa..." ( cfr. art° 426° do mesmo Código )- Ora, no caso, não há necessidade de recolher qualquer novo elemento de prova. Por isso, impõe-se usar deste poder, decidindo a causa para evitar o reenvio. 11.1. Desde logo, alargando a matéria fáctica. Para nela dar como integralmente reproduzido o texto da notícia e aí inscrever especialmente a citada referência (o pretendido confronto do ofendido com as ditas expressões). 11.2. Depois, declarando apurado outro facto que, sendo do domínio público, se assume, por isso, como facto notório, não carente de alegação nem de prova, nos termos do art° 514° do C PC: que tudo - manifestações e discursos reportados - se integrava em acesa luta social e política ao tempo desenvolvida contra a aplicação da chamada "Lei da Caça", em que de um lado estava o Governo da altura, de que o aqui ofendido era um dos elementos integrantes e de outro estavam as diversas forças sociais ligadas ao exercício daquele desporto (também indústria), em que avultavam várias forças políticas e associações como a referida "Federação Nacional de Caçadores e Proprietários" (FNCP) e o arguido (A), dirigente desta. 11.3. Ainda na sequência do já dito atrás ( em 9.2.1. ), há que expurgar a matéria de facto de tudo o que lhe é alheio . Ora, diz-se no respectivo ponto 11) - "As afirmações descritas são atentatórias da honra e consideração devidas ao, à data, Secretário de Estado (B), quer como cidadão quer como membro do governo. A nosso ver e salvo o devido respeito, não estamos aqui perante um facto. Estamos sim e apenas perante uma conclusão do julgador que, para a ela chegar, teve necessariamente de entrar em linha de conta com uma valoração jurídica dos demais factos provados, pelo que nunca se pode estar aí sequer perante uma mera conclusão fáctica, essa sim ainda admissível. O julgador pode fazer a dita valoração, tem é de fazê-la em sede própria e não na enumeração dos factos provados. A consequência imperiosa é a de o pretenso facto elencado no ponto 11) da matéria de facto provada (cfr. fls. 941 dos autos) se ter como não escrito. 11.4. Finalmente, ponderando o teor geral da notícia e tudo quanto se dirá posteriormente, há-de considerar ainda provado {em substituição dos factos elencados de 16) a 19) } que: - os arguidos (C) e (J) agiram apenas na intenção de transmitir à opinião pública, na sua função jornalística, as manifestações de caçadores realizadas e as afirmações aí produzidas, enquadrando-as com factos coevos e anteriores; - o arguido (A), ao produzir a frase e a comparação constantes do ponto 6), agiu com o propósito de - como dirigente da FNCP - criticar politicamente o visado, na sua qualidade de responsável político, desafiando-o para um debate público da respectiva matéria e, ainda, de o atingir na sua honra e consideração. 12. Assim e em resumo. A matéria de facto a considerar é a da sentença atrás transcrita, mas assim corrigida: a) o pretenso facto elencado no seu ponto 11) tem-se como não escrito; b) todo o texto da notícia publicada se dá como reproduzido; c) prova-se que "...o 'Público' tentou confrontar (B) com as acusações da Federação Nacional de Caçadores e Proprietários, mas tal revelou-se impossível'; d) e que tudo - manifestações e discursos reportados - se integrava em acesa luta social e política ao tempo desenvolvida contra a aplicação da chamada "Lei da Caça", em que de um lado estava o Governo da altura, de que o aqui ofendido era elemento integrante e de outro estavam as diversas forças sociais ligadas ao exercício da caça, onde avultavam várias forças políticas e associações como a referida "Federação Nacional de Caçadores e Proprietários" (FNCP), e onde se integrava o arguido (A), dirigente desta; e) em substituição dos factos aí elencados de 16) a 19), prova-se que - - os arguidos (C) e (J) agiram apenas na intenção de transmitir à opinião pública, na sua função jornalística, as manifestações de caçadores realizadas e as afirmações aí produzidas, enquadrando-as com factos coevos e anteriores; - o arguido (A), ao produzir a frase e a comparação constantes do ponto 6), agiu com o propósito de - como dirigente da FNCP - criticar politicamente o visado, na sua qualidade de responsável político, desafiando-o para um debate público da respectiva matéria e, ainda, de o atingir na sua honra e consideração. - os arguidos actuaram de forma livre e consciente, sabendo o (A) que a sua conduta não era permitida por lei. 13. Passando agora à integração jurídica desta matéria fáctica assim corrigida. Antes de mais, e dado o melindre da questão, há que alinhavar breves reflexões: Manifestamente e como já se disse, está aqui em causa a sempre difícil problemática do direito à honra e à consideração alheia no confronto com o direito à livre expressão do pensamento e ao exercício da informação. Ora, em matéria de informação e de liberdade de expressão, o intérprete tem de usar do máximo cuidado, na busca dos respectivos limites, sob pena de cair na sua anulação prática. É que as atávicas pulsões limitadoras são aí, e por natureza, muito fortes. Deve pois rejeitar-se o apelo a uma visão da instância judicial como mera depositária e pressurosa intérprete das mesmas: isto é, os Tribunais não podem constituir-se como o último reduto censório da sociedade, assumindo práticas há muito rejeitadas pelo todo social. No campo da luta política, então, devem eles exercitar ao máximo a prudente reserva que lhes é natural, até porque as lógicas de actuação de uma e outra instância são diversas. E a actividade da instância judicial deve ser aí tanto quanto possível residual. Isto é: devem ser os agentes políticos a definir os precisos contornos da sua acção e há que deixar fluir os diversos discursos com a máxima liberdade possível, sob pena de se desvirtuar a mais adequada concepção do poder judicial e, ainda, de se coarctar o desejável pluralismo, claramente um dos mais importantes comandos constitucionais (cfr. art°s 2º, 37º/46º, 51º e117º, da CRP). 14. Continuando, para referir agora os mais importantes princípios. Diz o n° 1 do art° 37° da Constituição da República Portuguesa (CRP), que "A todos é garantido o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar. de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações". Acresce que, nos termos do art° 2° da CRP ( e antes da última revisão de 1997), "A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular. no pluralismo de expressão e organização polillca democráticas e no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais...". De outra parte, porém, dispõem os art° 25° e 26° da CRP , respectivamente, " 1. A integridade moral e física das pessoas é inviolável" e " 1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação..." Temos assim que a liberdade de expressão e de informação e o direito ao bom nome e reputação têm consagração constitucional e no Título II ("Direitos Liberdades e Garantias"). Existindo - como é o caso concreto dos autos - um confronto de bens ou valores de dignidade constitucional idêntica, como compatibilizá-los? 14.1. Este é o verdadeiro problema que, já se disse, aqui se nos coloca e se vai enfrentar. Deve desde logo dizer-se que não será legitimamente defensável assegurar ao exercício dos direitos fundamentais uma valoração tal que lhes conceda absoluta oponibilidade a terceiros, sob pena de perigar o próprio direito fundamental à liberdade. Ou seja, não obstante tratar-se de direitos fundamentais que, designadamente, o artigo 18° da CRP reveste de força jurídica traduzível em aplicabilidade directa e imediata, acautelando interpretações restritivas, nem por isso se quer dizer, como poderá decorrer de uma leitura mais apressada, que inexistam limites, antes se devendo concebê-los num contexto de coerência e integração. A liberdade de expressão não pode, na verdade, assim como os demais direitos e liberdades fundamentais, ser entendida absoluta e ilimitadamente. Tendo de conviver com outros direitos fundamentais, como já observou o Tribunal Constitucional, «há-de sofrer desde logo os limites que decorram das necessidades impostas por uma convivência social ordenada. A ideia de limite vai, assim, implicada no próprio conceito de direito, decorrendo das necessidades que as várias esferas jurídicas têm de se limitar reciprocamente, a fim de poderem coexistir no interior do respectivo ordenamento jurídico». Existem, pois, limites imanentes dos direitos fundamentais, só determináveis por via interpretativa, dado estarem apenas implícitos no ordenamento constitucional. E sucede, como escreve Vieira de Andrade, que, se é fácil surpreender o bem protegido, já muitas vezes se torna difícil determinar os contornos a esses direitos, «sobretudo quando o seu exercício se faça por modos atípicos ou em circunstâncias especiais afectando, de uma maneira ou de outra, valores ou direitos também constitucionalmente protegidos» . 14.2. Há que adoptar uma interpretação não meramente fixada numa leitura hierarquizada de valores constitucionais, optando pela conjugação do critério da proporcionalidade com os ditames da necessidade e da adequação, de tal modo que o conflito de bens ou valores possa ter composições diferentes consoante estes se revelem no concreto caso. Segundo J. J. Gomes Canotilho: «todos os direitos fundamentais têm, em principio, igual valor devendo os seus conflitos solucionar-se preferentemente mediante o recurso ao principio da concordância prática». Diz ainda este autor, "Sempre que existam contradições normativas, concorrência ou colisão de vários direitos fundamentais, não deve o intérprete proceder a uma abstracta ponderação e confronto dos direitos constitucionalmente garantidos...sacrificando uns aos outros, mas sim estabelecer limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre esses direitos...os bens jurídicos constitucionalmente protegidos devem ordenar-se e combinar-se na solução dos problemas juridico-constitucionais de forma a conseguir a sua máxima oprimização". 14.3. Este princípio da concordância prática, tendo embora o seu campo de aplicação primacial em direito constitucional, tanto mais que visa "...estabelecer uma ordem e um sentido entre várias normas constitucionais. (é um critério de racionalidade normativa). delimitar proporciona/mente (conforme os casos) as grandezas entre variáveis (as normas em colisão ou concorrência) e não extrair. dedutivamente, através da ponderação e confronto dos bens protegidos por essas normas. a solução para o -caso concreto...."(para citar o mesmo autor), não se restringe, parece-nos evidente, a esse campo, pois que nos permite também procurar o melhor caminho para resolver casos concretos, como o presente. É que, adiantamos nós na decorrência do exposto, face a ele, há que ponderar muito bem, à luz da proporcionalidade, não qual dos valores em conflito deve ser sacrificado mas apenas de que modo e em que medida ambos devem ser salvaguardados (eventualmente, através da redução apenas ao seus núcleos essenciais), em ordem à "máxima oprimização" de todos. 14.4. No campo específico do direito penal e quanto à colisão de deveres, que genericamente se analisa num aspecto do problema geral de colisão da interesses ou de bens jurídicos, ensina Eduardo Correia) que "quando colidam deveres jurídicos de importância diferente, se impõe sacrificar o menos valioso...Nesta avaliação da importância dos deveres em conflito, naturalmente que há-de ser decisiva a importância dos valores jurídicos que aqueles servem, sem aliás deixar de ter presentes as particulares razões que os especializam ou autonomizam como deveres de acção" e, estando em causa específicos deveres de acção da mesma natureza e importância, "...em tais hipóteses é impossível resolver os problemas de conflito de deveres no plano da ilicitude e...portanto, nesses casos a intervenção é sempre ilícita. Por isso, quando se não queira, nos casos referidos, conc/uir pela punição de terceiro, parece que só resta o caminho da não exigibilidade". 14.5. Voltando a Costa Andrade, "a eminente e igual dignidade constitucional dos valores em confronto (honra e liberdade de expressão e imprensa) cometem a equacionação e superação dos problemas a uma ponderação global de interesses na perspectiva do caso concreto. Enquanto isto deve reconhecer-se uma presunção de licitude às ofensas típicas que resultem da discussão de questões de interesse comunitário. Como limite da moldura da ponderação está sempre a 'Schmahkritik: por força dela hão-de valorar-se como ilícitas as ofensas exclusivamente motivadas pelo propósito de caluniar, rebaixar e humilhar o ofendido", sendo que depois acrescenta, a propósito da doutrina e da jurisprudência alemãs, mas daí retirando evidentes consequências a nível da ponderação e aplicação do nosso direito interno, "a Lei Fundamental reserva um significado prevalecente à garantia jurídica da liberdade de expressão da opinião, o que tem subjacente a representação de que o cidadão adulto e chamado a tomar posição no debate de ideias numa democracia livre é, ele próprio, capaz de reconhecer o que é de reter de uma critica que renuncia á fundamentação e se limita a atacar a opinião contrária de forma ruidosa-chocarreira ou irónica-maliciosa. Face a esta 'ousadia da liberdade' (Arndt) compreende-se que o direito não assegure ao ofendido a protecção contra todas as opiniões desmesuradamente agrestes. Não será assim arriscado concluir que, postas entre parênteses as hipóteses de 'Schmahkritik', dificilmente se excogitarão constelações típicas de formulações criticas cuja ilicitude possa escapar à eficácia dirimente do exercício de um direito". 14.6. Acresce que, quando o ofendido exerce um cargo político e com responsabilidades governamentais, embora não veja, por esse lado, diminuída a protecção da sua honra, no que tange à sua esfera privada, "o quadro é já outro do lado da esfera pública. Isto é, quando se trata de criticar e combater o pensamento, as palavras as atitudes e as condutas das public figures' no âmbito da publicidade, por exemplo, no campo da acção política. Dito ainda com Mahrenholz: 'quando alguém pisa o palco público com a finalidade de se impor na publicidade, então ele participa e quer participar naquela relação de efeitos recíprocos que é própria do actor político e do público politico...ele quer intervir na publicidade, quer afirmar a sua imagem, mas numa sociedade assente na liberdade ele não pode ter esse processo na mão. O controlo público das public figures' é o fundamento irrenunciável da vida política em liberdade'. Tudo aqui se conjuga no sentido de uma mais acentuada redução da dignidade penal e da carência de tutela penal da honra". Por outro lado, "...é nesta área problemática que ganha um relevo arquétipo a 'terceira dimensão' da liberdade de expressão, de critica...Na verdade, este é um dos domínios em que de forma mais instante se reclama aquele 'breathing space' de que fala ainda o supremo tribunal americano...Só assim se podendo esconjurar o fantasma duma atmosfera de intimidação capaz de induzir uma auto-censura da imprensa, que seria particularmente perigosa para a subsistência da democracia". 15. Regressando ao caso concreto. Há que apurar em primeiro lugar se são difamatórias as expressões contidas na notícia, como se concluiu na douta sentença recorrida. A tal tarefa não pode opôr-se a consignação feita na sentença, em sede de matéria de facto provada (no seu ponto 11), pois tal nem sequer pode ser considerado um "facto" e tem de ter-se como não escrito, como já se disse e decidiu atrás (cfr. 11.4.). 15.1. Ora, para apurar se essas expressões contidas na notícia são difamatórias e ainda antes de as analisar têm de considerar-se previamente cinco incontornáveis realidades: - o texto completo da notícia; - o contexto social e político em que ela surgiu; - a qualidade do visado; - a forma pela qual as expressões foram concretamente exprimidas; - a forma pela qual as expressões foram difundidas. 16. Vendo em primeiro lugar o texto completo da notícia. Temos que nela, depois da sua apresentação resumida (o chamado "lead"), se faz um relato de três manifestações realizadas, em Beja, Montemor-o-Novo e Caldas da Rainha, realçando uma "tónica comum" - "a acusação de corrupção dirigida ao Secretário de Estado da Agricultura e responsável pelo ,sector da caça, (B) . Para tanto, referem-se: - aproximadamente, os números de pessoas presentes em cada uma dessas manifestações; - factos a elas anteriores (como um corte de estrada antes verificado em Montemor-o-Novo), nelas verificados ( a recolha de 500 assinaturas para enviar ao PGR, ao PR e ao PM) ou mesmo posteriores (a realização de mais protestos e a entrega de um abaixo-assinado); - a forma como foram preparadas ( citam-se apoios de várias Câmaras Municipais, através do fornecimento de autocarros aos caçadores manifestantes); - as várias afirmações feitas aí - a maioria através da sua reprodução literal e entre comas -enquadrando parte delas com a referência a factos e/ou queixas aí relatados; - termina-se com a afirmação de que o jornal tentou confrontar (B) com as acusações, sem o conseguir . Deve realçar-se ainda que todas as expressões tidas por difamatórias na sentença recorrida, excepção feita à comparação com um árbitro, foram grafadas entre aspas na notícia. 17. Já se disse o que parece importante quanto ao contexto social e político envolvente. Agora e aqui resta concluir que era de evidente interesse comunitário" ( como diz a jurisprudência alemã atrás transcrita, por reporte ao claro ensinamento de Costa Andrade ),a discussão então em curso na sociedade - com muitos intervenientes, em vários palcos (no parlamento e fora dele) e pelos mais diversos meios, a propósito da questão da caça e respectiva regulamentação - ainda hoje não encerrada, apesar das várias alterações entretanto operadas no respectivo regime jurídico (cfr. atrás 11.2. e 11.4.). Assim sendo, tem sempre de procurar garantir-se a mais livre expressão de opiniões a propósito, punindo apenas quem "se limita a atacar a opinião contrária de forma ruidosa-chocarreira ou irónica-maliciosa" ou use de crítica caluniosa ("Schmahkritik"'), para nos reportarmos aos passos doutrinais e jurisprudência atrás transcritos. 18. Quanto à qualidade do visado. Ele exercia então o cargo de Secretário de Estado da Agricultura, sendo nessa qualidade que apresentou a queixa que deu origem aos autos (cfr. fls. 2/5). Ora, sendo ele uma "public figure" das mais gradas - porque membro do Governo da República - e estando aqui em causa apenas o combate à sua «esfera pública» isto é, ao "pensamento, as palavras, as atitudes e as condutas das public figures' no âmbito da publicidade, por exemplo, no campo da acção política", acentua-se a necessidade de "controlo público das public figures '...o fundamento irrenunciável da vida política em liberdade' (e tudo) se conjuga(rá) no sentido de uma mais acentuada redução da dignidade penal e da carência de tutela penal da honra". Tanto mais que deve garantir-se "aquele 'breathing space' de que fala ainda o supremo tribunal americano...Só assim se podendo esconjurar o fantasma duma atmosfera de intimidação capaz de induzir uma auto-censura da imprensa, que seria particularmente perigosa para a subsistência da democracia" ( tudo em reporte ao acima dito em 14.5. e 14.6.). 19. Curando agora da forma pelas quais as expressões foram concretamente exprimidas. Elas foram-no por opositores da concreta orientação política do visado, oralmente e no calor próprio de manifestações convocadas e realizadas contra a execução dessa política. Ora, para citar mais uma vez Costa Andrade, "a intervenção espontânea, isto é, ora/ e directa, deve gozar de um regime distinto e mais favorável do que o reservado às tomadas de posição mais reflectidas e amadurecidas. Como sucede com os juízos de valor formulados por escrito. E isto porquanto a intervenção espontânea é portadora de um coeficiente de imediatismo e emotividade que não se esperará já de tomadas de posição mais distanciadas. Na formulação do mesmo Tribunal: a espontaneidade do discurso livre é pressuposto da força e da pluralidade do debate público, que por sua vez são uma condição basilar de uma comunidade organizada sobre a liberdade. A entender-se que esta força e esta pluralidade devem ser preservadas, então será forçoso aceitar manifestações concretas de acrimónia e exagero ou tolerar mesmo uma utilização da liberdade de expressão que em nada possa contribuir para uma fundada formação da opinião pública". A última parte do passo ora transcrito merece-nos algumas reservas, na medida em que até pode conter uma contradição nos seus próprios termos. No entanto tudo o mais se aplica, a nosso ver e sem qualquer restrição, à situação sub judice. Na verdade e manifestamente, no caso dos autos, não estamos perante uma utilização da liberdade de expressão que em nada possa ter contribuído para uma fundada formação da opinião pública. Bem ao contrário, estava aí em causa assunto de evidente interesse público, mobilizador da opinião pública e afectante de vários interesses sociais e económicos, dizendo directamente respeito a centenas de milhares de portugueses (já que diz-se haver mais de 300 mil caçadores entre nós). 20. Ainda e finalmente a forma de difusão das ditas expressões. Elas foram difundidas pelos arguidos jornalistas, através da publicação da notícia no jornal "Público". Antes de mais, tem de ponderar-se que esta notícia procurou reportar manifestações públicas e que para delas dar correcta e cabal informação não bastaria ter referido a sua realização. Bem andaram por isso os arguidos, em termos jomalísticos e no uso do seu direito de informar, ao concretizar e reproduzir as afirmações feitas pelos oradores nas referidas manifestações, . Aliás, estes sempre grafaram as expressões entre aspas ( mesmo no inicial resumo apresentativo, ou "lead"). Uma outra constatação se nos impõe: em lado algum da notícia os arguidos jornalistas emitiram juízos de valor sobre o visado, ou sobre os intervenientes nessas manifestações. Ora, assim sendo e independentemente do carácter concreta e subjectivamente ofensivo de algumas das expressões transcritas pelos arguidos jornalistas e pelo "Público", parece que sempre e no mínimo "será forçoso aceitar manifestações concretas de acrimónia e exagero", uma vez que "a espontaneidade do discurso livre é pressuposto da força e da pluralidade do debate público, que por sua vez são uma condição basilar de uma comunidade organizada sobre a liberdade". Os arguidos jornalistas e o "Público", limitaram-se a trazer à opinião pública notícia de manifestações realizadas, transcrevendo as afirmações aí produzidas. Temos de aceitar que essas notícias não eram "boas" para o visado - o então Secretário de Estado da Agricultura. Não se vislumbra, porém, que eles tenham tido qualquer intenção de ofender a honra ou a consideração social devidas ao visado, mesmo que seja na forma "atenuada" de dolo meramente eventual pela qual se optou na sentença recorrida. Contudo, na decorrência de tudo o já dito temos de considerar que mal iríamos como sociedade livre, que se quer avançada e do primeiro mundo, se resolvêssemos punir o "mensageiro" das más notícias. Aí, há que ponderar e afirmar valores civilizacionais e modernos, designadamente de respeito pela liberdade de informação. E ainda que evitar práticas atávicas, sempre passíveis de se assemelhar (pelo seu arcaísmo) às de censura ou de simples e injustificada defesa de meros privilégios pessoais ou funcionais: é que, para recordar a já citada e muito expressiva frase de Harry Truman, "quem não suporta o calor não deve trabalhar na cozinha". 21. A sentença recorrida não faz a análise específica de cada uma das afirmações que transcreve. Antes aceita e reafirma o carácter ofensivo de todas para a honra e consideração do visado. Pela nossa parte e dentro dos parâmetros já definidos, comungamos da orientação da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão que, segundo Costa Andrade, "...corre abertamente a favor da maximização do campo da intervenção licita da actividade jornalística e, reversamente, de um estreitamento da tutela penal da honra". Maxime, como é aqui o caso, quando os agentes não tiveram qualquer intuito ofensivo da honra ou da consideração alheia, movendo-se, no que respeita designadamente aos autores das frases em causa, no campo estrito da esfera pública do visado e no âmbito do problema de interesse público de que se curava então. No entanto, pensamos que há distinções a fazer entre as várias expressões da notícia. 22. O primeiro grupo de expressões realçado pela douta sentença recorrida é o do ponto 2) da matéria fáctica - "os caçadores não pouparam acusações ao secretário de estado da Agricultura, (B). Chamaram-/he "corrupto, mentiroso e conivente com ilegalidades" e afiançaram "ter provas suficientes" para o meter na prisão". Elas surgem integradas no "lead" da notícia e não são mais, como já dissemos várias vezes, que a apresentação resumida da mesma, através do realce daquilo que ela tem de mais importante ou apelativo, estando grafadas entre aspas, pelo que são a mera reprodução de afirmações alheias. Assim e com o devido respeito, mal se compreende que na sentença recorrida elas se atribuam aos arguidos jornalistas (ao dizer "No inicio do artigo escreveram os seus autores"). Aliás, na sequência, também se nos afigura menos adequado o uso da forma condicional e dubitativa - "teriam" - a propósito das transcrições feitas na notícia { cfr . ponto 3) da matéria de facto provada} . Assim sendo e desde logo, temos que neste primeiro caso é impossível ver algo de penalmente relevante: ele é a mera chamada de atenção para a notícia e transcrição de parte dela. 23. Chamar a um político "mentiroso e conivente com ilegalidades", dizer que ele é "conivente com as irregularidades praticadas", denunciar "a existência de 'mafia, fraude e corrupção na caça" e, finalmente, anunciar que se quer "entregar ao Ministro da Agricultura um abaixo-assinado «para provar que (B) é mentiroso, é corrupto e tem de ser banido'), constitui evidentemente uma forma violenta de se referir a alguém. Desde logo, porém, há-de notar-se que o ponto 4) da matéria de facto da sentença recorrida ( onde se diz "...(I) afirmou que (B) é conivente com as irregularidades praticadas") constitui uma referência truncada, pois esqueceu que imediatamente a seguir a notícia, no seu 4° parágrafo, refere "uma vez que das 62 reservas turísticas existentes apenas 12 estão a funcionar de acordo com a lei" e anota uma outra queixa do manifestante orador quanto ao abate e envenenamento de predadores Depois, não pode dizer-se que tais expressões sejam "desmesuradamente agrestes", nem, por outra parte, que fossem "motivadas pelo propósito de caluniar, rebaixar e humilhar o ofendido". Para além disso, "o cidadão adulo e chamado a tomar posição no debate de ideias numa democracia livre é, ele próprio, capaz de reconhecer o que é de reter de uma critica que renuncia á fundamentação e se limita a atacar a opinião contrária de forma ruidosa-chocarreira ou irónica-maliciosa". É o que Arndt (no passo atrás transcrito) chama de "ousadia da liberdade", que, acrescentamos nós, não deve tolher-se. E, a este nível, será bom recordar , ainda que não possamos aprofundar a referência a esse quadro, aliás sobejamente conhecido, ter sido sempre bem vivo e até violento o ambiente das polémicas culturais e sociais entre nós, apesar dos muito glosados mas nem sempre praticados "brandos costumes" nacionais (vejam-se as polémicas do "Bom Senso e Bom Gosto",o "Manifesto Anri-Dantas", as disputas religiosas da 1 a República, ou, quiçá a outro nível, os vários debates televisivos que nos últimos anos têm animado as nossas estações televisivas, como os recentes acontecimentos no Parlamento Regional da Madeira, noticiados pelo "Diário de Notícias", de 28-01-98, na pág. 5). Isto é: se pessoas responsáveis e socialmente importantes escritores, intelectuais, políticos e deputados - se permitem usar de expressões e modos de reagir muito vivos, directos e até violentos, fazendo-o por vezes de forma escrita (logo mais reflectida), como não aceitar que outros, como os arguidos/manifestantes se pronunciem aberta e claramente na defesa de princípios que têm por relevantes e até do seu património pela forma que vem de analisar-se? Pode assim sem qualquer esforço ter-se como socialmente admissível num quadro de luta política e social, como o que então se vivia, que tais frases tenham sido publicamente proferidas. E sem que a comunidade de cidadãos livres tenha visto intoleravelmente manchada a reputação do visado ou diminuída a consideração que lhe dispensa. Designadamente, quando essas afirmações são feitas por opositores da sua orientação política concreta, oralmente e no calor próprio de manifestações convocadas e realizadas contra essa política. Assim sendo, essas expressões - evidentemente "pesadas" - nem sequer à partida por si mesmas serão de considerar injuriosas ou difamatórias. É que a tal se opõe, após a consideração concreta dos valores envolvidos, nos termos até aqui expostos, a própria "ordem jurídica considerada na sua totalidade" e, bem assim, a circunstância de se estar "no exercício de um direito", tudo nos termos dos art°s 31 o, nos 1 e 2- b) do C. Penal, conjugado com os art°s 37º (liberdade de expressão e de informação ), 38° (liberdade de imprensa e meios de social) e 45° (direito de reunião e manifestação), todos da CRP na sua última versão. E tal é válido para as frases ora consideradas e para todos os arguidos. Na verdade: os arguidos jornalistas e o "Público" exercitaram o seu direito de informar correcta e cabalmente a opinião pública de eventos de evidente interesse público; por outra parte, o arguido (A) (único já aqui em causa, pois os demais foram absolvidos) exercitou os seus direitos à livre expressão do pensamento e de crítica de posições alheias. 24. Resta apreciar a última expressão, a do ponto 6) da matéria fáctica da sentença - "Que (A) disse 'Temos provas para pôr o (B) na prisão " e o comparou ao árbitro de futebol (G). Antes de mais, tem de atentar-se que, mais uma vez, ela foi ali retirada do seu contexto próximo: com efeito, ela surge no 10° parágrafo, 4ª coluna, da notícia, onde se acrescenta, logo de seguida, que o arguido (A) - "dirigente da FNCP" - ainda "desafiou (B) para um debate público nacional e o primeiro-ministro a demitir o secretário de estado". Mas O arguido (A) ao referir "provas" e "prisão" remete para algo não identificado - ainda referente ao problema da caça - que a generalidade dos cidadãos facilmente associará à prática de factos criminosos. Por outro lado, ao comparar o vísado a alguém, como o referido árbitro de futebol, que é ou era tido como corrupto, atribuiu-se àquele, indirectamente, a mesma qualidade. E, como as duas referências surgem associadas, natural seria ao ouvinte ou o subsequente leitor associar corrupção a "provas" e "prisão". 24.1. De qualquer forma, o arguido, como dirigente de uma organização social, intervinha oralmente em manifestação, contestando uma política governamental - a da caça -, colocando-se em oposição frontal ao que considerava ser o responsável pela respectiva execução. É que, como é sabido, nessas manifestações, além de cimentar a unidade dos adeptos procura-se ganhar ainda outros para a causa ou causas defendidas. Na sua qualidade de dirigente de uma associação de caçadores - a FNCP - o arguido tinha seguramente especiais responsabilidades nessa tarefa. É nesse quadro que surgem as afinnações transcritas, onde, para além do pass referido na sentença e com não menor importância, se formula o desafio para um "debate público nacional". Com este enquadramento, desde logo feito na notícia - esquecido na sentença recorrida, mas que os cidadãos responsáveis e livres que ouviram o discurso, ou leram depois a notícia seguramente souberam fazer - já o passo transcrito perde muito do seu valor objectivo ofensivo, mas não o perde totalmente. 24.2. Como defende o Tribunal Constitucional Alemão, citado por Costa Andrade, "Só poderá falar-se de «schmahung» quando o juizo de valor ou a critica perdem todo o contacto com...o problema que os motiva ou com a discussão das questões de interesse comunitário. E, em vez disso, passam a obedecer apenas ao propósito de rebaixamento de uma pessoa. Atingindo-a no sentimento de auto-estima ou ferindo-a na sua dignidade pessoal e consideração social". Ainda aqui e no caso sem o mero propósito de achincalhar ou de rebaixar o visado mal se compreenderia até que o arguido, presumuindo-se homem de bem, quisesse algo debater com o visado se apenas o considerasse um criminoso de direito comum - o certo é que o comportamento do arguido excedeu aí o penalmente admissível (nos termos dos já referidos art°s 31º o, nos 1 e 2- b ) do C Penal, 37°,38° e 45° da CRP na sua última versão). Para chegar à conclusão de que se ultrapassou a ténue fronteira entre o direito de crítica e até de revolta por parte dos administrados - cidadãos livres e conscientes e não meros súbditos - perante o poder ou poderes e a ofensa relevante à honra e ao bom nome alheios, colocamo-nos ainda aqui e necessariamente na postura do cidadão comum minimamente esclarecido, até porque a tal constitucionalmente obrigados. Além disso, continuamos a ter presentes os princípios atrás expostos, designadamente o da concordância prática, na busca da melhor harmonia para todos os direitos em causa. Contudo, já não é possível privilegiar aqui as necessidades de salvaguardar a livre expressão da crítica, que se considera, em bom rigor, ter sido excedida. 24.3. De todo o modo, tem de ponderar-se que, como resulta da notícia e matéria de facto inscrita na sentença com as correcções atrás feitas que o ofendido - ao tempo Secretário de Estado do Governo da república - sustentava então uma acesa luta política pela imposição da sua política de caça e respectivas leis, em que da outra parte se encontravam muitos cidadãos anónimos e várias associações de proprietários e caçadores. O arguido (A) - um desses - considerava, como os seus apoiantes, que excediam em muito os manifestantes presentes, que essa política governamental ofendia gravemente os direitos pessoais e de propriedade de uma generalidade de cidadãos - maxime dos associados da FNCP , organização da qual era dirigente. O ambiente era de polémica acesa, com intervenções de ambos os lados - quer do poder, de que o aqui ofendido era o principal agente, quer das ditas organizações e grupos de cidadãos - e de vária ordem, artigos de jornal, propostas e contrapropostas, manifestações públicas. O arguido (A) e os seus apoiantes consideravam a conduta do ofendido nessa polémica pública como altamente repreensível e exprimiram-se da forma que souberam para expor a gravidade e repreensibilidade dessa conduta. É pois neste contexto que tem de ver-se a frase do arguido que vimos analisando, integrante, repete-se, de intervenção oral em manifestação pública. 24.4. Dispunha o art° 172°, n° 1 do CP/82 "1. Quando a difamação ou injúria for provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido, pode o agente ser isento de pena" { dispondo hoje o art° 186°, n° 2 do CP/R "2. O tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido" O caso presente insere-se precisamente nesta previsão legal, como resulta de quanto se disse no ponto anterior . Isto é: pelo menos subjectivamente, o arguido (A), limitava-se a retorquir a afirmações e propostas do ofendido que tinha por "repreensíveis"; fez a afirmação em causa, como as demais, em virtude dessa repreensibilidade, política e social e também na pretensão, convém tê-lo sempre presente, de o obrigar a um debate público, onde esperava poder afastá-lo de tais posições, chamando-o àquilo que tinha como a razão. Houve, como já se disse, excesso da sua parte e excesso que é penalmente relevante. Contudo, no uso dos poderes que ao poder judicial conferem os transcritos art°s 172°, n° 1 do CP/82 e 186°, n° 2 do CP/R - no fundamental idênticos - haverá que decretar a isenção de pena em relação ao arguido (A), III - Decisão. 25. Nos termos de tudo o exposto e declarando parcialmente procedente o recurso: a) vai o arguido (A) isento de pena; b) vão os demais arguidos - (C), (J) e "PÚBLICO -Comunicação Social, SA " - absolvidos das infracções imputadas. 25.1. Custas pelo recorrente (A), fixando-se a taxa de justiça em uma Uc {art°s 513°, n° 1 e 514° do CPP e 87°, n° 1- b) do CCJ}. 25.2. Arbitram-se 14.000$00 (quatorze mil escudos) de honorários ao defensor oficioso do recorrente (A), a adiantar desde já pelo C.G. dos Tribunais. Lisboa, 13 de Maio de 1998 |