Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
673/13.4PLSNT-D.L1-9
Relator: MICAELA PIRES RODRIGUES
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
AUDIÊNCIA
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
VIDEOCONFERÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da inteira responsabilidade da relatora)
I. O artigo 472.º do CPP não impõe a presença do arguido na audiência para cúmulo jurídico superveniente de penas, apenas exigindo a presença do defensor e do Ministério Público, determinando o tribunal “os casos em que o arguido deve estar presente” (cf. seu n.º 2).
Contudo, embora não tenha de estar obrigatoriamente presente, sendo sempre ouvido através de defensor, o arguido pode requerer a sua presença na audiência (cf. artigo 61.º, n.º 1, alínea a), do CPP);
II. Inexistindo no CPP norma que preveja expressamente a audição do arguido “com recurso a equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real”, como se verifica com a tomada de declarações ao assistente, às partes civis, às testemunhas, a peritos ou a consultores técnicos em audiência de julgamento- cf artigo 318.º, n.ºs 1 e 5, do CPP, também nenhuma norma o impede, existindo outras normas adjetivas dos nosso ordenamento jurídico que já preveem expressamente a audição por videoconferência de arguido que se encontre fora do território nacional, como o artigo 145.º, n.º 1, alínea d), e n.º 3, da Lei n.º 144/99, de 31.08, e artigo 35.º, n.º 2, da Lei n.º 88/2017, de 21.08.
III. Também o TEDH tem admitido a participação de arguido em julgamento criminal por videoconferência, desde que sirva um interesse legítimo e os procedimentos sejam compatíveis com as exigências de observância de um processo equitativo, o que determina que seja assegurado que o arguido seja ouvido sem impedimentos técnicos e possa comunicar de forma efetiva e confidencial com o advogado;
IV. Não determinando o tribunal que o arguido deva estar presente, a sua presença física na audiência para a realização do cúmulo jurídico é um direito que lhe assiste, pelo que, encontrando-se o mesmo no ..., entendemos ser de admitir a possibilidade de o mesmo prestar declarações por videoconferência, sendo essa a sua vontade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. No âmbito do processo que corre termos no Juízo Central Criminal de Sintra (Juiz 3) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, o condenado AA interpôs o presente recurso da decisão proferida em 24.01.2024, que indeferiu a sua participação na audiência para realização de cúmulo jurídico por videoconferência.
2. Por acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 27.04.2023 foi determinada a prolação de despacho pelo tribunal a quo que admitisse a realização do cúmulo jurídico entre as duas penas, as dos processos n.º 673/13.4PLSNT e 1182/12.4PBSNT, designando data para a audiência prevista no artigo 472.º do Código de Processo Penal.
3. Notificado de que poderia «requerer, por meio de requerimento subscrito pelo próprio, junto aos autos pela sua ilustre Defensora, que a audiência t[ivesse] lugar na sua ausência (cfr. ainda art.º 334º, n.º 2, do Código de Processo Penal)», veio o arguido, por requerimento de 29.12.2023, informar que «pretend[ia] participar na audiência para realização do cúmulo jurídico, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 472.º do Código Penal, por vídeo-conferência (cf. artigo 318.º do Código de Processo Penal, aplicável mutatis mutandis) p.ex. através de Webex, ou outro sistema que V. Exa. considere viável, em virtude de residir no ..., local onde tem o seu emprego e os seus filhos menores, que dependem de si, bem como para impedir os elevados custos que implicaria a deslocação.»
4. Foi então proferida a decisão ora recorrida, com o seguinte teor:
«Veio o condenado AA declarar que pretende estar presente na audiência com vista à realização de eventual cúmulo jurídico de penas, a que alude o art.º 472º do Código de Processo Penal, por videoconferência, através de Webex ou outro sistema, em virtude de “residir no ..., local onde tem o seu emprego e os seus filhos menores, que dependem de si, bem como para impedir os elevados custos que implicaria a sua deslocação”, invocando para o efeito o disposto no art.º 318º do CPP, aplicável, em seu entender, mutatis mutandis.
Tendo o Condenado AA declarado que pretende estar presente na audiência a agendar com vista à realização de eventual cúmulo jurídico de penas, a que alude o art.º 472º do Código Civil, consagrando o invocado art.º 318º do Código de Processo Penal, um regime excecional, aplicável à tomada de declarações ao assistente, às partes civis, às testemunhas, a peritos ou a consultores técnicos (e não a arguidos, conforme resulta expresso em tal preceito legal) e estando pendente o cumprimento de uma pena efetiva de prisão no âmbito destes autos (a cujo cumprimento o Condenado se tem eximido), com processo de extradição em curso, indefere-se a requerida videoconferência, por falta de cabimento legal.
5. O recorrente extrai da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
«A. Por despacho de 24-01-2024 o Tribunal a quo indeferiu que o Recorrente participasse na audiência para realização do cúmulo jurídico, por vídeo-conferência em virtude de residir no ..., local onde tem o seu emprego e os seus filhos menores, que dependem de si, bem como para impedir os elevados custos que implicaria a deslocação. Fê-lo por considerar não ser aplicável o artigo 318.º do Código de Processo Penal.
B. Apesar de a letra do artigo 318.º do Código de Processo Penal não referir expressamente o arguido, a verdade é que também não o exclui, como concretamente o faz o artigo 275.º-A do Código de Processo Penal, pelo que se torna válido admitir que a possibilidade conferida no artigo 318.º do Código de Processo Penal é extensível ao arguido, a fortiori.
C. Ainda que não se aceitasse tal argumento, uma vez que o próprio arguido requereu a sua audição por vídeo-conferência – visto que a alternativa, residindo no estrangeiro e não podendo comparecer, seria ser julgado na ausência; ou, como no nosso caso, ser extraditado, pois neste momento não é possível a sua apresentação voluntária, segundo informação obtida pelas ora signatárias junto dos defensores do Recorrente no ..., após a prolação do despacho recorrido – sempre se poderia defender que a norma do artigo 318.º do Código de Processo Penal poderia ser aplicada por analogia.
D. Além do mais, o próprio Código de Processo Penal, ao regular o direito a “estar presente no julgamento” e a ser “ouvido pelo tribunal” sempre que devam tomar qualquer “decisão que pessoalmente o afecte” (artigo 61.º, n.º 1, alínea a) e b) e artigo 332.º, n.º 1), não refere se a presença é apenas “física” ou se pode também ser virtual, pelo que até poderia ser ao abrigo destas normas admitida a referida vídeo-conferência.
E. Mais, se não se considerasse a participação por vídeo-conferência incluída no conceito de presença física, podendo o arguido residente no estrangeiro autorizar a realização da audiência na sua ausência, então não se compreende que não possa também autorizar a respectiva realização com a sua participação por vídeo-conferência.
F. Aliás, tem sido considerado pela jurisprudência que a audição de arguido por vídeo-conferência é equivalente a uma presença “física” do arguido, por contraposição a uma audição por “escrito” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-11-2022, proferido no âmbito do processo n." 478/15.8TXEVR-L.E1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1309-2023, proferido no âmbito do processo n." 57/14.7GAANS.C1).
G. A audição do arguido constitui, na realidade, uma garantia de defesa do arguido e do essencial contraditório, na sua manifestação do direito a estar presente, e de audição sobre “decisão que pessoalmente o afecte”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 61.º, n." 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, e do direito a uma audiência contraditória, bem como dos artigos 32.º, n.º 1, 3 e 5, da Constituição da República, e 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, em virtude de, na audiência de cúmulo superveniente por si requerida, será determinada a sanção que terá de cumprir, sendo-lhe aplicada uma pena única, cuja execução pode ser até suspensa.
H. A norma extraída dos artigos 61.º, n.º 1, als. a) e b), 318.º, n.º 8, 332.º e 334.º, n.º 2, do CPP, no sentido de o arguido residente no estrangeiro não poder participar na audiência de concurso superveniente ou nesta prestar declarações por videoconferência é manifestamente violadora o direito a um processo justo e equitativo e às garantias de defesa e do direito de o arguido participar e estar presente no seu julgamento e do princípio da audiência contraditória (artigo 20.º, n.º 4, e artigo 32.º, n.º 1, 3 e 5, da Constituição da República Portuguesa, e artigo 6.º da CEDH)
I. A propósito da possibilidade de o arguido prestar declarações por vídeo-conferência, em fase de julgamento, é relevante o conteúdo da Directiva 2016/343/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 9 de Março de 2016, relativa ao reforço de certos aspectos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (em particular o artigo 8.º), Directiva que é aplicável directamente na ordem jurídica interna, e tem efeitos directos.
J. A questão de interpretação do direito da União Europeia aqui suscitada é uma questão nova, não sendo totalmente clara a interpretação do direito da União Europeia, pelo que desde já se requer o reenvio prejudicial da mesma para apreciação pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, nomeadamente para clarificar se:
a. Se, para efeitos do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Directiva 2016/343/UE, a participação do arguido, por meio de vídeo-conferência, em julgamento, pode ser equiparada à sua presença física na audiência no tribunal do Estado-Membro que conhece do processo;
b. Se, para efeitos do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Directiva 2016/343/UE, o direito de o arguido comparecer no próprio julgamento compreende um direito deste a comparecer por vídeo-conferência;
c. Se, para efeitos do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Directiva 2016/343/UE, o direito de o arguido comparecer no próprio julgamento compreende um direito deste a prestação de declarações, por meio de vídeo-conferência, em julgamento;
d. Se é compatível com o disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Directiva 2016/343/UE, interpretado à luz dos artigos 47.º e 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, uma norma nacional segundo a qual é permitido ao arguido residente no estrangeiro consentir no seu julgamento na ausência, mas não é permitido ao arguido consentir que a sua participação no seu julgamento por vídeo-conferência;
e. Se é compatível com o disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Directiva 2016/343/UE, interpretado à luz dos artigos 47.º e 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, uma norma nacional segundo a qual é permitido ao arguido residente no estrangeiro consentir no seu julgamento na ausência, mas não é permitido ao arguido consentir na sua prestação de declarações no seu julgamento por vídeo-conferência;
f. Em caso de resposta afirmativa às questões (a) a (c), ou negativa às questões (d) a (e), a norma do artigo 8.º, n.º 1, da Directiva 2016/343/UE, é suficientemente incondicional e precisa para ter efeito directo, i.e. poder ser invocada pelo arguido junto das instâncias nacionais para requerer a sua participação no seu julgamento ou a sua prestação de declarações neste por vídeo-conferência?
g. Em caso de resposta afirmativa às questões (a) a (c), ou negativa às questões (d) a (e), se participação do arguido ou a sua prestação de declarações no seu julgamento por vídeo-conferência apenas pode ser realizada por intermédio das autoridades competentes do Estado onde o arguido se encontra? Ou pode o tribunal do Estado-Membro que conhece do processo contactar directamente o arguido noutro Estado e enviar-lhe uma ligação para participar numa vídeo-conferência?
K. Da reposta às referidas questões decorrerá o sentido do direito da União aplicável ao caso do Recorrente, sentido esse que poderá significar que as normas de direito interno supra identificadas, do Código de Processo Penal, apenas são compatíveis com o direito da União se for escolhido o sentido interpretativo que a este se conforme.
L. Ou, se tal sentido não for enquadrável no direito interno, então poderá significar a desaplicação deste direito e a invocação directa das disposições do Direito da União perante os tribunais portugueses, em concreto por este Venerando Tribunal, revogando a decisão recorrida.
M. Não sendo a interpretação do direito da União clara e evidente tendo em conta a inexistência de decisões do TJUE sobre esta questão e face a legislação idêntica à vigente em Portugal, e sendo este Venerando Tribunal de última instância, o reenvio é obrigatório, nos termos do disposto no artigo 19.º, n.º 1, parte final, e n.º 3, al. b), do TUE e 267.º do TFUE, devendo a formulação precisa das questões ser objecto de contraditório, também em função da apreciação dos demais fundamentos deste recurso e da posição que o Ministério Público vier a tomar sobre as questões suscitadas.
N. Torna-se evidente e essencial para a formação da convicção do Tribunal a quo, quer sobre a medida da pena a aplicar quer sobre a sua eventual suspensão, que o arguido preste declarações, e que as faça por vídeo-conferência, dadas as circunstâncias já explicadas, porque só assim poderá o mesmo, na primeira pessoa, informar e demonstrar ao Tribunal que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O. Com efeito, não é possível decidir sobre a proporcionalidade da pena face à culpa e às necessidades de prevenção geral e em particular especial, bem como à adequação da suspensão da sua execução, sem ter em conta a situação presente do arguido.
P. Além do mais, segundo informação obtida pelas ora signatárias junto dos defensores do Recorrente no ..., após a prolação do despacho recorrido, o arguido não pode deslocar-se voluntariamente a Portugal, visto que foi emitido um Mandado de Detenção e que o mesmo se encontra a cumprir medida de coacção de permanência na habitação em períodos determinados, tendo ainda tido que entregar ao Tribunal o seu passaporte, pelo que não pode simplesmente vir a Portugal para participar na audiência de concurso. Em ..., onde reside, apresentou-se voluntariamente no Tribunal competente, após ter sabido da emissão do Mandado de Detenção.
Q. Acresce ainda que da audiência de cúmulo superveniente pode resultar a aplicação de pena não privativa da liberdade, nomeadamente a pena suspensa, pena essa que o arguido iria cumprir (como aliás já fez no processo que vai ser objecto de cúmulo jurídico, com o n.º 1182/12.4PBSNT) mantendo a sua residência no ....
R. Mesmo que resultasse uma pena privativa da liberdade, o ora Recorrente pondera requerer o cumprimento da pena no ....
S. Com efeito, a remoção física do Recorrente de território inglês para território português e a sua privação de liberdade em Portugal terá efeitos altamente danosos para a si, para a sua família e para a sociedade, visto a sua contrariedade aos fins de reintegração.
T. Se ficar preso por um longo período em Portugal, o requerente ver-se-á impedido de regressar ao ... para ali continuar a sua actividade laboral, por força das leis de imigração naquele país, o que implicará, igualmente, que toda a sua família venha para Portugal, pois não conseguirá subsistir naquele país sem o apoio e contributo do trabalho do Recorrente.
U. Tudo por força de erros do ora Recorrente que – ainda que graves, e este não o nega – foram erros de juventude, praticados há mais de dez anos, quando o arguido tinha dezanove anos de idade.
a. O primeiro, o próprio crime, o dano moral e patrimonial causado à vítima e à sociedade. Mas quanto a este, o Recorrente desde logo admitiu, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, a sua responsabilidade, estando amargamente arrependido dos actos então praticados, tendo, inclusive, indicado quem eram os co-autores do factos praticados e tendo, em Outubro de 2021, quando já tinha possibilidades económicas para o efeito e conseguiu juntar o valor, reparado o dano causado à vítima, tendo pago a quantia em que foi condenado no presente processo, no valor de 1319 EUR.
b. O segundo, não ter comparecido no seu julgamento e como tal não ter podido reiterar a admissão de factos feita em primeiro interrogatório (cuja leitura não foi requerida, facto ao qual o Recorrente é alheio cuja leitura não foi requerida ou determinada, apesar da lei o permitir, do arguido ter sido advertido disso mesmo e do juiz de instrução ter referido que o a postura que adoptar em sede de primeiro interrogatório era importante para o resto do processo) e demonstrar ao Tribunal a sua mudança de vida para uma atitude conforme ao direito, uma vida de trabalho e de família.
V. Esta falta de comparência não deve ser puro fundamento da sanção, com um teor retributivo, e menos ainda de uma sanção que se estenda à actualidade, e à realização da audiência de cúmulo jurídico superveniente já determinada por este Venerando Tribunal, e com consequências colaterais para crianças inocentes que nem sequer tinham vindo a este mundo quando o Recorrente praticou os actos de que tanto se arrepende.»
Termina, peticionando a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que defira a participação do arguido na audiência de cúmulo ou a sua tomada de declarações por videoconferência.
6. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso no sentido do seu não provimento, formulando as seguintes conclusões:
«1.O art.º 318.º, n.º 1, do CPP respeita a tomada de declarações ao assistente, às partes civis, às testemunhas, a peritos ou a consultores técnicos.
2.E não pode ser aplicável ao arguido, mutatis mutandis, como pretendido, atento o disposto no art.º 332.º do mesmo diploma legal que refere, expressamente, que é obrigatória a presença do arguido na audiência (n.º 1).
3. De salientar que, actualmente, já não se encontrava em vigor a redacção do art.º 7.º da Lei n.º I-A/2020- que criou medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-Co V-2 e da doença COVID-19.
4. Pelo que também por esta razão não se encontra prevista a prática de actos processuais através de meios de comunicação à distância adequados, além das previstas no Código de Processo Penal, mais concretamente no referido art.º 318.º, não aplicáveis ao arguido e sua presença em julgamento.
5. Pelo que a ausência do arguido à audiência de julgamento e sua intervenção na mesma – quando este não autoriza a realização da audiência de julgamento na sua ausência -, exclusivamente por meios de videoconferência implica uma nulidade insanável nos termos do art.º 119.º al, c) do CPP (neste sentido vd. Acórdão do TRE, de 08.06.2021,
disponível em dgsi.pt).
6. Por outro lado, ao contrário do alegado pelo Recorrente, não resulta da invocada Directiva 2016/343/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 9 de Março de 2016, que o arguido, quando se encontra no estrangeiro, possa/deva ser ouvido, em audiência de julgamento, através de qualquer meio tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real.
7. Pelo que o despacho recorrido deverá ser mantido.»
7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exm. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos:
«O signatário revê-se por inteiro na assertiva resposta, que sintetiza a melhor abordagem das questões trazidas a este tribunal pelo recorrente.
O reenvio prejudicial, no caso de reinterpretação, é facultativo para o juiz nacional – art.º 267.º n.ºs 3 e 4, T.F.U.E.
A propósito, seria de citar o Ac. STJ n.º 2462/21.7T8VCT-C.S1 segundo o qual “É entendimento jurisprudencial pacifico (quer a nível nacional quer do Tribunal Europeu) que o reenvio prejudicial não é obrigatório, mesmo quando o tribunal decide em última instância, desde que a norma a aplicar for de tal modo clara e evidente que não deixa qualquer dúvida razoável quanto à sua interpretação quer para o tribunal que aprecia quer para os demais tribunais dos Estados Membros.
V- A obrigação de reenvio prejudicial decorrente do artº. 267º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia cede quando a interpretação dos dispositivos em causa seja clara e não suscite, por isso, dúvida razoável.”.
In casu, não se vislumbra dúvida, obscuridade ou insuficiência das normas aplicáveis que justifiquem o reenvio – que deve assim ser rejeitado.
Deve o recurso ser indeferido.»
8. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal (doravante CPP), o arguido apresentou resposta, reiterando o peticionado no recurso.
9. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso
Conforme doutrina e jurisprudência sedimentada, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (vd., por todos, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335, e Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1).
Assim, atentas as conclusões apresentadas, cumpre decidir se é de admitir a participação do recorrente na audiência para realização de cúmulo jurídico por videoconferência e se deve ser deferido o pedido de reenvio prejudicial.
2. Apreciação do mérito do recurso
A factualidade relevante para a apreciação do recurso é a que consta do relatório que antecede.
A decisão recorrida indeferiu o pedido do arguido/recorrente de participar na audiência para realização de cúmulo jurídico, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 472.º do CPP, por videoconferência, por falta de cabimento legal.
Adiante-se que, conforme Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 08.11.2022, Processo n.º 478/15.8TXEVR-L.E1 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2023, Processo n.º 57/14.7GAANS.C1), citados pelo recorrente, não se vislumbra qualquer impedimento legal a que o condenado seja ouvido por videoconferência.
O artigo 472.º do CPP não impõe a presença do arguido na audiência para cúmulo jurídico superveniente de penas, apenas exigindo a presença do defensor e do Ministério Público, determinando o tribunal “os casos em que o arguido deve estar presente” (cf. seu n.º 2). Contudo, embora não tenha de estar obrigatoriamente presente, sendo sempre ouvido através de defensor, o arguido pode requerer a sua presença na audiência (cf. artigo 61.º, n.º 1, alínea a), do CPP). Foi o que se verificou no caso em apreço; o arguido, notificado de que poderia «requerer (…) que a audiência t[ivesse] lugar na sua ausência», veio informar que «pretend[ia] participar na audiência para realização do cúmulo jurídico, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 472.º do Código Penal, por vídeo-conferência (cf. artigo 318.º do Código de Processo Penal, aplicável mutatis mutandis) (…), em virtude de residir no ..., local onde tem o seu emprego e os seus filhos menores, que dependem de si, bem como para impedir os elevados custos que implicaria a deslocação.».
Ora, se nenhuma norma prevê expressamente a audição do arguido “com recurso a equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real”, como se verifica com a tomada de declarações ao assistente, às partes civis, às testemunhas, a peritos ou a consultores técnicos em audiência de julgamento- cf artigo 318.º, n.ºs 1 e 5, do CPP-, também nenhuma norma o impede.
Se o artigo 334.º, n.º 2, do CPP prevê, como exceção à obrigatoriedade-regra da presença física do arguido na audiência de julgamento, que este requeira ou consinta que a audiência tenha lugar na sua ausência, sempre que “se encontrar praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por idade, doença grave ou residência no estrangeiro”, o que nos leva a defender que também poderá requerer, pelo menos nas situações aí elencadas, que a sua participação seja feita através de videoconferência, por maioria de razão, assim entendemos nos casos, como o dos autos, em que a audiência não obriga à presença do arguido, embora este tenha requerido estar presente.
A propósito, diga-se que outras normas adjetivas dos nosso ordenamento jurídico já preveem expressamente a audição por videoconferência de arguido que se encontre fora do território nacional, como o artigo 145.º, n.º 1, alínea d), e n.º 3, da Lei n.º 144/99, de 31.08, e artigo 35.º, n.º 2, da Lei n.º 88/2017, de 21.08. Mais, conforme assinala Luís Filipe Pires de Sousa (“Julgamento presencial versus julgamento com telepresença. A pandemia e o futuro”, Julgar, 4, p. 21 e ss), o TEDH tem admitido a participação de arguido em julgamento criminal por videoconferência, desde que sirva um interesse legítimo e os procedimentos sejam compatíveis com as exigências de observância de um processo equitativo, o que determina que seja assegurado que o arguido seja ouvido sem impedimentos técnicos e possa comunicar de forma efetiva e confidencial com o advogado.
Não determinando o tribunal que o arguido deva estar presente, a sua presença física na audiência para a realização do cúmulo jurídico é um direito que lhe assiste, pelo que entendemos ser de admitir a possibilidade de o mesmo prestar declarações por videoconferência, sendo essa a sua vontade - cf. Comentário Judiciário do CPP, tomo IV, p. 133 e 312-313, para os casos de audiência de julgamento.
Acresce que, conforme se pode ler no identificado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, «não se vislumbra qualquer diferença relevante entre a audição do arguido em tribunal ou (à distância) por vídeo conferência, desde que se entenda (como normalmente se entende) que esta implica a sua realização em direto (isto em simultâneo com a realização da diligência no tribunal), e com recurso a equipamento tecnológico que permita a simultânea comunicação visual e sonora (ou seja, permitindo que o arguido veja e ouça o tribunal e vice-versa), em boas condições técnicas de transmissão. Note-se que quando a lei fala em audição presencial, o que se prende essencialmente é distinguir da “audição” por escrito, resultante de uma notificação, uma vez que esta não permite ao arguido o confronto completo nem a fácil compreensão das razões de facto e direito que precedem determinada decisão jurisdicional, não permitindo ainda que se pronuncie de forma oral e imediata; como se escreve no Ac. da Rel. de Évora de 8-11-2022 (processo n.º 478/15.8TXEVR-L.E1), “a audição presencial não se opõe a audição por vídeo-conferência, que não deixa de ser uma audição presencial, embora com presença à distância, em “directo”.»
No caso, o recorrente reside no ..., foi o próprio o requerer a sua participação por videoconferência e não se nos afigura existir qualquer prejuízo para a decisão sobre a pena única a sua audição por esse meio, pelo que é de admitir a participação do recorrente na audiência a realizar para cúmulo jurídico de penas por videoconferência.
Tanto basta para se mostrar prejudicado o conhecimento do pedido de reenvio prejudicial e julgar procedente o recurso.
III. DECISÃO
Pelo exposto, as Juízas que integram a 9.ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, revogam o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que admita a participação do recorrente na audiência a realizar para cúmulo jurídico de penas por videoconferência.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 27 de junho de 2024
As Juízas Desembargadoras,
Micaela Pires Rodrigues (Relatora)
Paula Cristina Bizarro (1.ª Adjunta)
Cristina Luísa da Encarnação Santana (2.ª Adjunta)