Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6554/22.3T8LSB.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DANOS PRÓPRIOS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PERDA TOTAL DO VEÍCULO
SALVADOS
PRIVAÇÃO DO USO
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - O chamado “seguro de dano próprio” na atividade rodoviária, no qual se molda o “seguro de dano em coisa”, tem a sua regulamentação legal específica assim repartida:
- artigos 43.º, n.º 2 e 123.º a 136.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro-RJCS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, com as sucessivas alterações que lhe foram sendo introduzidas; e,
- artigos. 32.º, 33.º, 35.º a 40.º, 43.º a 46.º e 86.º a 89.º (quando os sinistros tenham ocorrido em virtude de choque, colisão ou capotamento), ex vi do artigo 92.º do Sistema do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
II - Neste âmbito, contrariamente ao que ocorre no campo da obrigação de indemnizar, não é aqui aplicável a fórmula da diferença prevista no n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, uma vez que a seguradora não tem, neste tipo de seguro, o dever de reparar um dano, mas tão só o dever de executar a sua prestação em conformidade com o clausulado no contrato de seguro e com a lei, resultando do artigo 128.º do RJCS que a «prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro».
III - Por conseguinte, verificando-se o risco previsto no contrato e salvo estipulação de quantia inferior, o dever de prestar da seguradora circunscreve-se ao delimitado pelas suas cláusulas, normalmente correspondendo à entrega do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro (artigo 130.º, n.º 1, do RJCS).
IV - Assim, verificado o risco de dano e na insusceptibilidade de acionar terceiros, pode o beneficiário do seguro acorrer às coberturas facultativas que hajam sido contratualizadas, reclamando da seguradora uma prestação, o que significa que, nestes casos, quanto à relação entre seguradora e segurado/beneficiário, nos movemos no puro campo contratual.
V - O regime das inspeções periódicas visa a confirmação regular da manutenção das boas condições de funcionamento e de segurança de todo o equipamento e das condições de segurança dos automóveis ligeiros, pesados e seus reboques.
VI - A seguinte cláusula, contida nas condições gerais da apólice de seguro de dano próprio, na qual se afirma que «(...) o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas (...) os sinistros originados pelo veículo quando não tiverem sido cumpridas as disposições sobre inspeção obrigatória (...), exceto se for feita prova de que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau estado do veículo, nem por causa conexa com a falta de homologação», deve ser interpretada no sentido de que ela remete, apenas e só, para o incumprimento do referido regime legal atinente à inspeção de veículos.
VII - A referência ao «mau estado do veículo» visa apenas permitir ao segurado a prova de facto negativo de que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau estado do mesmo, de modo a evitar que a exclusão opere, mantendo-se a garantia da cobertura em apreço.
VIII - É que seria excessivamente desfavorável para o segurado, uma interpretação conducente à exclusão de responsabilidade da seguradora se o veículo não estivesse, sempre e a todo o momento, em condições de poder ser aprovado na inspeção, pois isso penalizaria de forma desrazoável os proprietários de veículos que, sendo cumpridores da lei, até podem nem se aperceber de alguns dos problemas técnicos que a viatura apresenta.
IX - Assim, a expressão «cumpridas as disposições sobre inspeção obrigatória», contida naquela cláusula contratual, resume-se, para efeitos do seu preenchimento, ao dever de apresentação dos veículos mesmos à inspeção periódica obrigatória, nos termos previstos no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 144/2012, de 11 de Julho.
X - O facto de, no momento do sinistro, o pneumático traseiro do lado direito do veículo seguro apresentar «um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade entre 1,00 mm e 1,02 mm», abaixo, portanto, do limite mínimo legalmente estabelecido de 1,60 mm, fixado no n.º 1 do artigo 6.º do Decreto Regulamentar n.º 7/98, de 06 de Maio, não faz presumir o nexo de causalidade quanto à ocorrência do acidente.
XI - Inexistindo no ordenamento jurídico português preceito a impor que o salvado fique em poder do lesado, resulta até dos princípios gerais em matéria de indemnização, que o lesado, ainda que indemnizado pela diminuição de valor, não pode ser obrigado a ficar com a coisa (qualitativa ou quantitativamente) destruída em parte, e com o ónus de a transformar em dinheiro se quiser, e puder, adquirir outra equivalente.
XII - Nesse caso, a entrega, pela seguradora ao segurado, do montante correspondente ao capital seguro fica dependente da entrega, por este àquela, do salvado do veículo e da documentação respeitante ao mesmo.
XIII - Naturalmente, se o lesado quiser conservar os restos ou destroços, poderá fazê-lo, preferindo a indemnização pela diferença de valores.
XIV - Deveres acessórios de conduta são deveres que derivam diretamente do princípio da boa fé, que estruturalmente atravessa o direito civil, e que, não estando diretamente ligados à execução da prestação principal contratualizada, antes funcionando em paralelo, estão ao serviço da plena consecução dos interesses globais visados pela relação contratual, dado que o fim do contrato é mais amplo que o interesse creditório na prestação, o que significa que ao credor não basta a realização da prestação, mas que ela deve ter lugar em determinadas condições, nomeadamente, nas que garantam a integridade da sua pessoa e do seu património.
XV - Os deveres acessórios de conduta podem distinguir-se em:
- Deveres de informação: ligados à correta e mútua transferência de conhecimento relevante em todas as fases do contrato, incluindo a necessária colaboração ao cumprimento dos fins prosseguidos com a relação estabelecida;
- Deveres de lealdade: que funcionam como um prius em relação aos deveres de informação, pois consistem numa conduta de honesta cooperação, com vista a minimizar prejuízos ou dificuldades para a contraparte;
- Deveres de proteção: que visam abranger todos os riscos a que as partes se expõem, por causa e por conta da execução do contrato.
XVI - Um contrato de seguro automóvel facultativo, de danos próprios, comporta, para além do capital contratado, o dever de a seguradora indemnizar o segurado por danos acessórios por este sofridos, em consequência da recusa ou retardamento injustificados no cumprimento da prestação principal: a entrega ao segurado do valor do capital contratado.
XVII - Não ocorre tal situação num caso em que a seguradora em nada retardou a averiguação do sinistro, mas finda a qual recusou assumir a responsabilidade pela sua regularização, fundamentando tal recusa, de forma clara e objetiva, na violação, pelo segurado, nos termos referidos em X-, do disposto no artigo 6.º do Decreto-Regulamentar n.º 7/98, de 06 de Maio, o que veio constituir fundamento para a sua absolvição, em 1.ª instância, da totalidade do pedido condenatório contra si formulado pelo autor:
a) entrega do valor do capital seguro; e,
b) reparação do dano por privação de uso do veículo.
XVIII - A norma contida no artigo 805.º, n.º 3, 2.ª parte, do Código Civil, é aplicável aos casos de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, e não aos casos de responsabilidade contratual, pelo que, no caso concreto, os peticionados juros de mora serão contados a partir do trânsito em julgado deste acórdão, pois, só a partir de então, estará definitivamente apurado o objeto da prestação a cargo da ré.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
MC, intentou a presente ação declarativa de condenação contra G, S.A., alegando, em síntese, que é dono do veículo automóvel de marca ____, modelo ____, com a matrícula __-OI-__[1], sobre o qual se encontra registada reserva de propriedade a favor do Banco B, S.A.
No dia 01.02.2021, o autor circulava no IC19, perto do Km 7, no sentido Sintra/Lisboa, quando foi obrigado a efetuar uma travagem devido ao trânsito que subitamente se apresentou parado à sua frente, tendo o OI guinado ligeiramente para a sua esquerda, indo colidir com a sua parte lateral esquerda nos separadores centrais.
À data do sinistro a responsabilidade civil decorrente da circulação do OI encontrava-se transferida para a ré através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ____.
A ré recusou-se a suportar o custo da reparação do OI com o argumento de que o valor do veículo à data do acidente era superior ao montante necessário à sua reparação, tendo entanto, colocado condicionalmente à disposição do autor a quantia de € 13.055,70.
Posteriormente, a ré declinou qualquer responsabilidade inerente à reparação do OI com o fundamento de que o sinistro estava excluído da cobertura abrangida pela apólice, pois no momento em que o mesmo ocorreu, o veículo circulava com os pneus em mau estado de conservação, o que não corresponde à verdade.
O autor pretende que a ré o indemnize pelos prejuízos que sofreu em consequência do acidente, concluindo assim a petição inicial:
«TERMOS EM QUE,
Requer a V. Exa. que julgue a presente acção procedente, por provada e, consequentemente:
- Condene a R. no pagamento de danos patrimoniais, no valor de 25.349,70 euros, a título de indemnização pela perda total da viatura OI;
- Condene a R. no pagamento de 11.430,00 euros, a titulo de indemnização pela privação de uso, contabilizado desde a data do acidente até à presente data, acrescido do valor diário de 90,00 euros até integral e efectivo pagamento da perda total da sua viatura.
- Condene a Ré nos juros de mora desde a data da citação até integral e efectivo pagamento das quantias ora peticionadas».
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A ré apresentou exageradamente extensa contestação, na qual alega, no essencial e em síntese, que o sinistro em causa não está coberto pela apólice do seguro contratado com o autor, concluindo no sentido da improcedência da ação e, consequentemente, da sua absolvição do pedido.
Além disso pede que o autor seja condenado em multa e indemnização, a título de litigância de má-fé.
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Com o singelo argumento de que «ao abrigo do artº 593º, nº 1 do CPC, dispensa-se a realização de audiência prévia», foi tal diligência dispensada e proferido despacho saneador, no qual, além do mais, se identificou o objeto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
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Na subsequente tramitação do processo realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Pelo exposto, decide-se:
A) Julgar a presente ação totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência disso, absolver a Ré G, S.A. de todo o peticionado.
B) Julgo o incidente de litigância de má-fé deduzido pela Ré G, S.A. contra o Autor MC totalmente improcedente, e, em consequência disso, absolver o Autor da totalidade do pedido.»

Inconformado, o autor interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim, no essencial e com interesse, as respetivas alegações:
«B) Considera o Apelante incorrectamente julgado como provado o Ponto 9 dos Factos Provados da Sentença, que no seu entendimento deveria ter sido julgado como não provado e como incorrectamente julgado como não provado a alínea B) Factos Não Provados da Sentença que no seu entender deveria ter sido julgado como Provado.
J) Atento à factualidade assente, resulta que a responsabilidade pelo pagamento dos danos patrimoniais que o Apelante sofreu em consequência do acidente cabe exclusivamente à Apelada.
EE) O Tribunal a quo ao decidir como decidiu violou o disposto nos art. 405º, 406º e 563º, todos do Código Civil.»
Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial.»[2].
No presente recurso, após a formulação das conclusões, o apelante deduz o seguinte pedido revogatório:
«Nestes termos, e face ao supra exposto deverão V.Exas proceder à substituição da decisão do douto tribunal “a quo” substituindo-a por outra que se coadune com a pretensão ora exposta, fazendo assim a tão Costumada
JUSTIÇA»
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A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
a) se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b) se o sinistro a que se reportam os presentes autos está abrangido pela apólice de seguro acima identificada; e, em caso afirmativo,
c) acerca do dever de a ré indemnizar o autor.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
3.1.1 – A sentença recorrida considerou provado que:
1. O Autor é proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca ____, modelo ____, com a matrícula __-OI-__ (doravante veículo __-OI-__), com reserva de propriedade a favor do Banco B, S.A..
2. No dia 01/02/2021, pelas 20:20, no IC19, ao Km 7, no sentido Sintra-Lisboa, o Autor conduzia o veículo __-OI-__.
3. Em tais circunstâncias de tempo e lugar, no momento em que o Autor se encontrava a fazer uma curva à esquerda, entre a saída de Tercena e a saída de Queluz/Palácio, foi confrontado com a existência súbita de trânsito que se apresentou à sua frente, tendo realizado uma travagem.
4. Em consequência da referida travagem, o Autor perdeu o controlo sobre a direção da viatura __-OI-__, a qual guinou para o lado direito e, após circular cerca de 200 metros, acabou por embater com a lateral esquerda do seu veículo nos separadores centrais.
5. A IC 19 é composta por duas faixas de rodagem, com sentidos de trânsito opostos (Sintra-Lisboa e Lisboa-Sintra), encontrando-se ambas divididas por um separador central.
6. Cada faixa de rodagem é constituída por três hemi-faixas de rodagem, que se encontram delimitadas por linhas descontínuas.
7. O segmento da via referido em 2., 3. e 4. tinha a configuração de uma curva, à esquerda.
8. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2., 3., e 4. o tempo apresentava-se chuvoso e o piso estava molhado.
9. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2., 3. e 4., o pneumático traseiro do lado direito da viatura __-OI-__, na perspetiva da marcha em frente, tinha um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade entre 1,00 mm e 1,02 mm.
10. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2., 3. e 4., o pneumático traseiro do lado esquerdo da viatura __-OI-__, na perspetiva da marcha em frente, tinha um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade de 2,03 mm.
11. Os perfis ou relevos existentes nos pneumáticos contêm uma borracha superficial, com a função de escoar água, em caso de piso molhado e destinam-se a evitar a ocorrência de aquaplanagem (isto é, fenómeno relacionado com a perda da aderência do veículo automóvel ao piso, originada por acumulação de água na via, a qual pode causar sinistros advenientes da perda do controlo da direção da viatura).
12. Os pneumáticos dos veículos ligeiros são feitos com materiais duros, concebidos para uma duração com um determinado número de quilómetros, caracterizando-se por apresentarem uma capacidade de aderência menor do que a existente nos pneumáticos de carros de velocidades.
13. Em consequência do embate do veículo __-OI-__, diversos dos seus componentes da parte lateral esquerda, nomeadamente, para choques, guarda lamas, friso do guarda lamas, portas da frente e da traseira e respetivas juntas, jantes, sensores de pressão, vidros, frisos, resguardo para lamas, braços inferiores esquerdos, manga do eixo, cubo, braços superiores esquerdos, caixa de direção, manga do eixo, suporte do amortecedor, airbag, sensores do para choques, revestimento do tejadilho, esponja de encosto do banco e charrio ficaram inutilizados.
14. Em 07-02-2021, foi elaborado um relatório de peritagem pela oficina indicada pelo Autor, S, Lda., situada em ____, a qual orçamentou o custo da reparação da viatura __-OI-__ em € 25.998,06.
15. Em decorrência dos danos sofridos, o valor do salvado do veículo __-OI-__ foi avaliado pela Ré em € 13.055,70, valor correspondente à melhor proposta de aquisição apresentada pela empresa “AV”.
16. À data do sinistro (01-02-2021), a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo __-OI-__, incluindo a cobertura designada por “danos próprios” encontrava-se transferida para a Ré G, S.A., através de contrato de seguro automóvel, com um limite de € 7.290.000,00, correspondente à apólice n.º ____, celebrado entre aquela e o Autor, o qual aceitou todo o clausulado constante das condições gerais, especiais e particulares, que previamente lhe foram comunicadas pela Ré.
17. Nos termos da cláusula 1.ª das condições especiais da apólice, Autor e Ré convencionaram que os danos próprios do veículo incluíam as situações de choque, colisão e capotamento, nos seguintes termos:
«choque: danos no veículo seguro resultantes do embate contra qualquer corpo fixo ou sofrido por aquele quando imobilizado; colisão: danos no veículo seguro resultantes do embate com qualquer outro corpo em movimento; capotamento: danos no veículo seguro resultantes de situação em que este perca a sua posição normal e não resulte de choque ou colisão.»
18. A cobertura do contrato relativamente aos danos próprios sofridos pelo veículo __-OI-__, à data do sinistro, no que concerne às situações de choque, colisão e capotamento, tinha o limite de € 25.960,54, tendo Autor e Ré convencionado uma franquia de € 250,00 e uma desvalorização mensal de 1,50% quanto ao primeiro mês de vigência e de 3.00% quanto ao segundo mês de vigência.
19. Das condições gerais da apólice n.º ____ consta, além do mais, a seguinte cláusula:
«Cláusula 40.ª:
Para além das exclusões previstas na cláusula 5.ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações:
(…) e) Sinistros originados pelo veículo quando não tiverem sido cumpridas as disposições sobre inspeção obrigatória ou outras relativas à homologação do veículo, exceto se for feita prova de que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau estado do veículo, nem por causa conexa com a falta de homologação;
(…) g) Danos provocados ou agravados por defeito de construção, montagem ou afinação, vício próprio ou má conservação do veículo.»
20. No dia 02-02-2021, o Autor comunicou à Ré a ocorrência do sinistro do veículo __-OI-__, em 01-02-2021, pelas 20H20, no IC 19, no sentido Sintra-Lisboa, nos seguintes termos:
«Vinha na faixa mais ao meio da IC19, sentido Sintra-Lisboa, quando de repente a traseira do carro foge para o lado direito, devido a aquaplanagem. Andei durante sensivelmente 200 metros a tentar controlar o carro para não andar aos peões, quando por fim vou embater com a lateral toda do carro no separador do meio da IC19 conseguindo de seguida parar o carro.»
21. Nessa sequência, em 23-02-2021, a Ré informou o Autor que após peritagem ao veículo __-OI-__, verificou que a estimativa de reparação (€ 25.998,06) era excessivamente onerosa face ao valor seguro à data do sinistro (€ 25.349,70), considerando que o veículo com danos tinha sido avaliado em € 12.044,00, comunicando-lhe que embora não fosse possível, naquela data, assumir uma posição quanto à sua responsabilidade, colocaria condicionalmente à sua disposição a quantia de € 13.055,70.
22. Por missiva datada 24-02-2021, a Ré comunicou ao Autor o seguinte:
«Exmo. Senhor,
Em resposta serve a presente para informar V/Exa. que, após análise do processo, verificamos que não é da nossa responsabilidade a regularização do presente sinistro, em virtude do disposto na Apólice de Seguro Automóvel, mais concretamente ao nível da cláusula 40.ª, número 1, alínea g) – Exclusões às coberturas facultativas, das Condições Gerais.
Com efeito e atento o conteúdo do referido clausulado, encontram-se excluídos os sinistros “danos provocados ou agravados por defeito de construção, montagem ou afinação, vício próprio ou má conservação do veículo”, onde se enquadra o estado dos pneumáticos que apresentavam nos relevos principais uma altura inferior a 1,6 mm, infringindo, assim, o disposto no art. 6.º do decreto-Regulamentar 7/98.
Se pretende obter algum esclarecimento adicional, por favor contacte-nos através de um dos meios abaixo indicados.»
23. O veículo __-OI-__ foi submetido a inspeção técnica periódica em 31-01-2020, tendo sido aprovado sem qualquer anotação.
24. Em data não concretamente apurada, o Autor celebrou um contrato de crédito com a CTM, tendo esta cedido o montante de € 39.199,00 ao primeiro, tendo em vista a aquisição do veículo __-OI-__.
25. No âmbito do contrato de crédito mencionado, o Autor encontra-se obrigado a entregar à instituição de crédito uma mensalidade de € 439,20, por conta do montante que lhe foi cedido, uma vez que ainda não restituiu a totalidade do crédito que lhe foi disponibilizado.
26. Desde a data do sinistro (01/02/2021), que o veículo __-OI-__ se encontra imobilizado.
27. O Autor utilizava diariamente o veículo __-OI-__ nas suas deslocações pessoais e profissionais.
28. Em data não concretamente apurada, mas posteriormente a 01/02/2021, foi disponibilizado ao Autor um veículo de substituição até ao dia 01/03/2021.
29. Após 01/03/2021, o Autor adquiriu os seguintes veículos automóveis:
a. Viatura automóvel, marca Volkswagen, com a matrícula “__-EL-__”, com registo de propriedade a favor do Autor de 25/03/2021.
b. Viatura automóvel, marca Volkswagen, com a matrícula “__-HH-__”, com registo de propriedade a favor do Autor de 06/09/2021.
30. Os veículos referidos em 29) avariaram, respetivamente, ao fim de seis meses da data da sua aquisição.
31. A partir de julho de 2022, a entidade patronal do Autor disponibilizou-lhe uma viatura de serviço, para fins exclusivamente relacionados com deslocações profissionais.
32. Atualmente, o Autor utiliza um veículo cedido pela sua mãe ou por amigos, tendo em vista as suas deslocações para fins pessoais ou recreativos.
3.1.2 – e não provado que:
A) Em 31-01-2021, o veículo __-OI-__ foi submetido a Inspeção Técnica Periódica, tendo sido aprovado sem qualquer anotação.
B) À data do sinistro (01-02-2021), o veículo __-OI-__ tinha todos os pneumáticos com uma profundidade superior a 1,6 mm.
C) Desde a data do sinistro (01-02-2021), o Autor não tem qualquer veículo para se poder deslocar.
D) O limite de velocidade no local referido em 2. era de 100 km/hora.
E) Com a desmontagem, o montante de reparação do veículo __-OI-__ iria com grande probabilidade aumentar, em cerca de 15%, porquanto existiam danos ocultos que era necessário orçamentar.
F) O Autor aceitou os valores indicados pela Ré a título de “salvado”.
G) O Autor não solicitou à Ré qualquer veículo de substituição».
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3.2 – Fundamentação de direito:
3.2.1 – Uma nota quanto às conclusões recursivas:
Conforme refere Abrantes Geraldes, «a lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da decisão. Com as necessárias distâncias, tal como a motivação do recurso pode ser associada à causa de pedir, também as conclusões, como proposições sintéticas, encontram paralelo na formulação do pedido que deve integrar a petição inicial. Rigorosamente, as conclusões devem (deveriam) corresponder a fundamentos que, com o objetivo de obter a revogação, alteração ou anulação da decisão recorrida, se traduzam na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto) cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida e com o resultado pretendido, sem que jamais se possam confundir com argumentos de ordem jurisprudencial que não devem ultrapassar o sector da motivação.
As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso como clara e inequivocamente resulta do art. 635.º, n.º 3. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do Tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo. Incluindo, na parte final, o resultado procurado, as conclusões devem respeitar na sua essência cada uma das alíneas do n.º 2, integrando-se as respostas a tais premissas essenciais no encadeamento lógico da decisão pretendida. Se para atingir o resultado declarado o tribunal a quo assentou em determinada motivação, dando respostas às diversas questões, as conclusões devem elencar os passos fundamentais que, na perspetiva do recorrente, deveriam ter sido dados para atingir um resultado diverso.
Todavia, com inusitada frequência se verificam situações irregulares: alegações deficientes, obscuras, complexas ou sem as especificações referidas no n.º 2. Apesar de a lei adjetiva impor o patrocínio judiciário, são triviais as situações em que as conclusões acabam por ser mera reprodução dos argumentos anteriormente apresentados, sem qualquer preocupação de síntese, como se o volume das conclusões fosse sinal da sua qualidade ou como se houvesse necessidade de assegurar, por essa via, a delimitação do objeto do processo e a apreciação pelo tribunal ad quem de todas as questões suscitadas.
Ainda que algumas das situações exemplificadas justificassem efeitos mais gravosos, foi adotada uma solução paliativa que possibilita a supressão das deficiências através de despacho de convite ao aperfeiçoamento. Ao invés do que ocorre quando faltam pura e simplesmente as conclusões, em que o juiz a quo profere despacho de rejeição imediata do recurso, qualquer intervenção no sentido do aperfeiçoamento das irregularidades passíveis de superação foi guardada para o relator no tribunal ad quem, como se extrai, com toda a clareza, do n.º 3 do art. 639.º e da al. a) do n.º 3 do art. 652.º.
O relator a quem o recurso seja distribuído deve atuar por iniciativa própria, mediante sugestão de algum dos adjuntos ou, em último caso, em resultado do deliberado em conferência, nos termos do art. 658.º. Por isso, tal como se verifica na fase do saneamento do processo, no despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões o relator deve identificar todos os vícios que, no seu entender, se verificam, por forma a permitir que, sem margem para dúvidas, o recorrente fique ciente dos mesmos e das consequências que podem decorrer da sua inércia ou do deficiente acatamento do convite.
A prolação do despacho de aperfeiçoamento fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorreções, em conjugação com a efectiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais. Para isso pode ser conveniente tornar em consideração os efeitos que a intervenção do juiz e as subsequentes intervenções das partes determinem na celeridade. Parece adequado ainda que o juiz atente na reacção do recorrido manifestada nas contra-alegações de forma a ponderar se alguma irregularidade verificada perturbou o exercício do contraditório, designadamente quando se esteja perante conclusões obscuras.
(…)
Sem embargo do que se referiu, a experiência confirma que se entranhou na prática judiciária um verdadeiro círculo vicioso: em face do número de situações em que se mostra deficientemente cumprido o ónus de formulação de conclusões, os Tribunais Superiores acabam por deixá-las passar em claro, preferindo, por razões de celeridade (e também para que a parte recorrente não seja prejudicada), avançar para a decisão, na qual é feita a triagem do que verdadeiramente interessa em face das alegações e da sentença recorrida. Agindo deste modo, os Tribunais Superiores colocam os valores da justiça, da celeridade e da eficácia acima de aspetos de natureza formal»[3].
É exatamente por esta razão que não se determina o aperfeiçoamento das conclusões da alegação de recurso do apelante, antes se expurgando as mesmas daquilo que não é essencial, deixando-se, no entanto, claro, que constituem um texto prolixo, cuja extensão de forma alguma se justifica e que desvirtua o sentido da lei quando impõe que o recorrente conclua a sua alegação de forma sintética, indicando os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
*
3.2.2 – A impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Considera o apelante que:
i) o enunciado vertido no ponto 9. dos factos provados dever ser considerado não provado; e que,
ii) o enunciado vertido na al. B) dos factos não provados deve ser considerado provado.
O enunciado referido em i) tem a seguinte redação:
«Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2., 3. e 4., o pneumático traseiro do lado direito da viatura __-OI-__, na perspetiva da marcha em frente, tinha um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade entre 1,00 mm e 1,02 mm.»
O enunciado referido em ii) tem a seguinte redação:
«À data do sinistro (01-02-2021), o veículo __-OI-__ tinha todos os pneumáticos com uma profundidade superior a 1,6 mm.»
O tribunal a quo:
- motivou assim a decisão sobre o enunciado considerado provado referido em i) supra:
«Os factos consignados em 9. e 10. resultaram provados com base no depoimento da testemunha AA, perito averiguador contratado pela Ré, e que no âmbito das suas funções profissionais procedeu à averiguação das circunstâncias em que ocorreu o sinistro do veículo __-OI-__, devidamente concatenado com o teor das fotografias de fls. 78v a 79 juntas com a contestação, ressaltando-se, a este propósito, que a autenticidade destes documentos não foi posta em causa pelo Autor. Com efeito, esta testemunha relatou que, no âmbito daquele serviço que lhe foi solicitado pela Ré, deslocou-se à oficina onde a viatura estava parqueada. Explicou que em casos de derrapagem/despiste de veículos, como foi o presente sinistro, é seu procedimento averiguar os pneus da viatura, por uma das funções dos pneus ser, precisamente, promover a aderência do veículo ao solo. Afirmou a testemunha que na oficina, observou, a «olho nu», que o pneu traseiro tinha o rastro central muito gasto. Perante isso, utilizou um medidor para averiguar o estado dos pneus, e obteve as medidas indicadas em 9. e 10. relativamente aos dois rastros centrais dos pneus. Ao longo do seu depoimento, foi evidente a forma séria, segura e coerente com que a testemunha prestou as suas declarações, afigurando-se muitíssimo sólida e relevante a sua razão de ciência, fundada, por um lado, na sua experiência profissional enquanto perito averiguador, e, por outro, na circunstância de ter efetuado as diligências de averiguação relativas ao sinistro em causa nos autos e ter procedido à análise do veículo, em particular dos seus pneumáticos, em data próxima à data em que ocorreu o acidente. Quanto ao teor das fotografias de fls. 78v a 79 é possível extrair-se, sem margem para dúvidas, que o pneu do veículo __-OI-__ se encontra muito gasto, com pouco relevo, quanto aos dois rastos centrais, sendo ainda visível as medidas tiradas pela testemunha, remontando-se tais fotografias a data próxima do acidente, e já após o veículo se encontrar imobilizado na oficina.
Em bom rigor, haverá que realçar que a factualidade ínsita em 9. e 10. não foi contrariada pela testemunha CF, perito averiguador contratado pelo Autor, que procedeu à análise do veículo __-OI-__, em especial dos seus pneumáticos, em maio de 2021, ou seja, cerca de três meses após o acidente. Com efeito, esta testemunha referiu que tomou como boas as medições feitas pela testemunha AA, tendo inclusivamente confirmado que os pneus traseiros estavam mais gastos, ou seja, com menor profundidade ao nível dos rastros/perfis, na parte central dos pneumáticos. Referiu adicionalmente a testemunha CF que fez outras medições, mais concretamente nos rastros mais laterais dos pneus e como resultado obteve medidas superiores a 1, 6 mm, o mínimo legal de profundidade, remetendo para os valores das medidas que constam das fotografias de fls. 10 a 11 juntas com a petição inicial.
Ora, aqui chegados, forçoso é concluir que o relatado pela testemunha CF, bem como os valores correspondentes às mediações tiradas aos rastros laterais dos pneumáticos do veículo do Autor, constantes das fotografias de fls. 10 a 11, não colocam em causa que os pneus traseiros, nos rastros centrais, tivessem as medidas indicadas pela testemunha AA, sendo que foi tão só isso (certas medidas nos rastros mais centrais) que foi alegado pela Ré e que se deu como provado nos facos vertidos em 9. e 10. O argumento apresentado pela testemunha CF, segundo o qual os pneus cumpriam a medida mínima em ¾ da sua superfície, e que tal é suficiente para considerar o pneumático em bom estado de conservação, não interfere, em nossa perspetiva, com a factualidade ora análise, e constitui, tão só, matéria que será analisada infra, em sede de fundamentação de direito. Resta, ainda, acrescentar que pelo Autor não foi sequer alegado – e, por maioria de razão – provado, a existência de quaisquer circunstâncias das quais se possa extrair que a circunstância de o pneu traseiro apresentar medidas inferiores ao legalmente imposto não constituiu causa adequada e idónea à produção e/ou agravamento do sinistro, atenta a redação conclusiva do artigo 13.º da petição inicial.»
- motivou assim a decisão sobre o enunciado considerado não provado referido em ii) supra:
«Os factos não provados em B) e C) foram assim considerados por, de acordo com o acima explicitado, ter resultado provada a factualidade precisamente inversa (cf. facto provado em 9), e factos provados em 28, 29, 31 e 32, respetivamente).»
O teor da motivação quanto aos dois enunciados em causa revela imediatamente a desnecessidade de enunciação, entre os factos não provados, do ali descrito sob a al. B).
O apelante considera que a decisão sobre aqueles dois enunciados fáticos deve ser alterada, com base na seguinte argumentação:
«No que concerne ao Ponto 9 dos Factos Provados da Sentença e alínea B) dos Factos Não Provados, foi afirmado pelo Apelante, em sede de declarações de parte, com depoimento prestado e registado em ata de Audiência de Julgamento realizada no dia 29/09/2023 e gravado na aplicação Habilus Media Studio, que o local onde ocorreu o acidente era diariamente percorrido por si, uma vez que, era a via que utilizava para se deslocar do casa-trabalho-casa. (passagem 02m55ss a 010m32ss)
Mais afirmou o Apelante que, os pneus colocados no seu veículo encontravam-se em bom estado, sendo que, nunca detectou qualquer deficiência na circulação, tanto mais que circulava com o veículo diariamente. (passagem 18m35ss a 20m06ss)
Foi ainda afirmado pelo Apelante que a peritagem efectuada pela Ré ao seu veículo, não foi por si acompanhada, não tendo verificado o local onde foram efectuadas as medições no pneumáticos, sendo que, o despiste ocorre por o Apelante, na via por onde circulava, a qual se encontrava molhada por o tempo estar chuvoso, circulando provavelmente em velocidade excessiva, numa curva à esquerda, deparando-se com a existência súbita de trânsito, travou , perdendo o controlo da viatura, a que associa a uma situação de aquaplanagem, guinou para o lado direito e posteriormente embateu com a lateral esquerda nos separadores centrais. (pontos 3, 4 e 9 dos Factos Provados)
Foi ainda afirmado pela testemunha CF, com depoimento prestado e registado em ata de Audiência de Julgamento realizada no dia 29/09/2023 e gravado na aplicação Habilus, que o despiste do veículo do Apelante terá ocorrido por o mesmo circular em velocidade excessivas e não por causa dos pneumáticos. (passagem 34m06ss a 42m19ss)
O A. juntou em sede de petição inicial documentos, nomeadamente, os documentos 8 a 12 que demonstram que os pneumáticos do seu veículo possuíam uma profundida superior ao mínimo legalmente permitido.
Acresce que, das fotografias que constam do documento 5 da contestação verifica-se que a medida que terá sido efectuada no pneu traseiro do lado direito do veículo do Apelante, foi unicamente num dos filamentos da zona central.
Pelo que, atenta a prova testemunhal e declarações de parte prestada em sede de Audiência de Julgamento e a prova documental junta aos autos deveria Ponto 9 dos Factos Provados da Sentença ter sido julgado como não provado e a alínea B) dos Factos Não Provados ter sido julgado como não provado.»
Tal como se assinala no Ac. do S.T.J. de 27.09.2018, Proc. n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1 (José Sousa Lameira), in www.dgsi.pt, para que o ónus impugnatório da decisão sobre a matéria de facto, que impende sobre o recorrente, e que se reporta o art. 640.º, seja cabalmente cumprido, impõe-se-lhe que faça, também ele, uma análise crítica da prova invocada, em confronto com o que consta da motivação da sentença, de modo a justificar a alteração da decisão proferida sobre os factos.
Na verdade, tal como é imposto ao tribunal que faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise crítica dos respetivos meios probatórios.
Ou seja, exige-se do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão aos meios de prova, no caso concreto, a documentos, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo tribunal recorrido foi declarado.
Por outras palavras, ainda, exige-se que o recorrente faça o confronto dos elementos probatórios que indica, e que em seu entender impõem, relativamente a cada ponto de facto que impugna, com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do tribunal[4].
Por conseguinte, o recorrente deverá, em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si[5].
Como é sabido, a intervenção da Relação no tocante à impugnação da decisão da matéria de facto, rege-se pelos seguintes parâmetros:
- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
- sobre a matéria de facto impugnada tem que realizar um novo julgamento; e,
- no contexto desse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo, uma vez que se mantêm vigentes e atuantes os princípios da imediação[6], da oralidade[7], da concentração[8] e da livre apreciação da prova[9], e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
De outra forma dizendo, a Relação só deve alterar a decisão sobre a matéria de facto proferida em 1.ª instância quando, depois de proceder à efetiva audição da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa ao decidido pelo tribunal recorrido, e impõem um entendimento diferente daquele que prevaleceu na 1ª Instância[10].
Tal como afirma Ana Luísa Geraldes, «em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1.ª instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte»[11].
Retornando ao caso concreto, delimitado que está, pelo apelante, o objeto da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e orientados pelos antecedentes considerandos, nada há a alterar, nesta sede, relativamente ao que foi decidido na 1.ª instância.
Como é sabido, numa sentença, a motivação da decisão de facto visa, desde logo, tornar eficaz o sistema de justiça, através do convencimento dos destinatários, da comunidade jurídica em geral e da própria sociedade.
A sentença recorrida permite, sem margem para qualquer dúvida, tal desiderato.
A motivação da decisão de facto tem em vista, ainda, permitir que as partes e os tribunais de recurso procedam ao reexame lógico e racional acerca das razões pelas quais o juiz decidiu num sentido e não noutro, assim se possibilitando a reconstituição do percurso lógico seguido pelo julgador, apoiado nos elementos de prova previamente indicados e devidamente explicados no texto da sentença; em suma, o juiz deve mostrar às partes, aos tribunais de recurso e, sobretudo, aos cidadãos, o raciocínio lógico em que apoiou a decisão sobre a matéria de facto.
Também quanto a este aspeto, a sentença recorrida permite tal desiderato.
A senhora juíza a quo deixou, como se viu, bem especificadas na sentença recorrida, as razões que teve como decisivas para a formação da sua convicção, de modo a considerar:
- provado o enunciado descrito em 9. da matéria de facto provada; e,
- não provado o enunciado descrito em B) da matéria de facto não provada.
Socorrendo-se de provas produzidas nos autos e sujeitas à sua livre apreciação, a senhora juíza a quo indicou com toda a clareza os fundamentos para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência comum, se possa agora controlar a razoabilidade da sua convicção quanto ao julgamento, como provado e não provado, daqueles dois factos.
Na apreciação de cada um dos meios de prova de que se socorreu para decidir, como provado e não provado, cada um daqueles dois enunciados de facto, a senhora juíza a quo demonstrou ter perfeito conhecimento do respetivo conteúdo, determinou a sua relevância e procedeu à respetiva valoração.
A senhora juíza a quo esclareceu de forma clara, lógica e razoável, a razão pela qual relevou o depoimento da testemunha AA, que analisou concatenadamente com o teor das fotografias que identifica, juntas pela ré com a contestação, e que o autor não pôs em causa, no confronto com o depoimento da testemunha CF.
O autor, por sua vez, limita-se:
- a descrever parte do afirmado pelo autor em sede de declarações de parte;
- a descrever um pequeno segmento do depoimento prestado pela testemunha CF; e,
- a fazer referência aos documentos por si juntos com a petição inicial sob os n.ºs 8 a 12 e ao documento junto pela ré com a contestação sob o n.º 5,
sem fazer qualquer análise critica dessa prova, em confronto com a prova que consta da motivação da sentença e que serviu de base à decisão sobre aqueles dois enunciados de facto, de modo a justificar a pretendida alteração da decisão proferida sobre os mesmos.
Na verdade, tal como é imposto ao tribunal que faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise crítica dos respetivos meios probatórios.
O apelante não indica uma concreta insuficiência, discrepância ou deficiência de apreciação, pela senhora juíza a quo, da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo tribunal recorrido foi declarado, limitando-se, afinal de contas, a indicar meios de prova, sem proceder a qualquer confronto ou análise crítica com os meios de prova de que o tribunal se socorreu para decidir como decidiu os dois concretos enunciados em crise.
Mais não seria necessário para julgar improcedente a impugnação do decidido quanto:
- ao ponto 9. dos factos provados; e,
- à al. B) dos factos provados.
Sucede a que:
a) audição das gravações:
- das declarações de parte do autor;
- dos depoimentos das testemunhas AA e CF;
b) analisados conjugada e criticamente com os documentos acima identificados,
só revelaram o acerto da decisão do tribunal de 1.ª instância quanto àqueles enunciados de facto.
Pelo exposto, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
*
3.2.3 – Enquadramento jurídico:
3.2.3.1 – Do tipo de seguro aqui em causa:
Numa primeira nota importa não esquecer que está aqui em causa um comummente chamado “seguro de dano próprio” na atividade rodoviária, no qual se molda o “seguro de dano em coisa”, e que vê a sua regulamentação legal específica assim repartida:
- arts. 43.º, n.º 2 e 123.º a 136.º do Regime Jurídico do contrato de Seguro, aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, com as sucessivas alterações que lhe foram sendo introduzidas[12]; e,
- arts. 32.º, 33.º, 35.º a 40.º, 43.º a 46.º e 86.º a 89.º (quando os sinistros tenham ocorrido em virtude de choque, colisão ou capotamento), ex vi do art. 92.º do Sistema do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto[13].
Neste âmbito, contrariamente ao que ocorre no campo da obrigação de indemnizar, não é aqui aplicável a fórmula da diferença prevista no n.º 2 do art. 566.º do CC, uma vez que a seguradora não tem, neste tipo de seguro, o dever de reparar um dano, mas tão só o dever de executar a sua prestação em conformidade com o clausulado no contrato de seguro e com a lei, resultando do art. 128.º do RJCS que a «prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro».
Por conseguinte, verificando-se o risco previsto no contrato e salvo estipulação de quantia inferior, o dever de prestar da seguradora circunscreve-se ao delimitado pelas suas cláusulas, normalmente correspondendo à entrega do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro (art. 130.º, n.º 1 do RJCS).
Assim, verificado o risco de dano e na insusceptibilidade de accionar terceiros, pode o beneficiário do seguro acorrer às coberturas facultativas que hajam sido contratualizadas, reclamando da seguradora uma prestação. Quer isto dizer que nestes casos, no que à relação entre seguradora e segurado/beneficiário, nos movemos no puro campo contratual.
3.2.3.2 – Do ónus da prova:
Daqui decorre também, no que à repartição do ónus da prova diz respeito (arts. 342.º e 343.º do CC), que compete:
- a quem se pretenda fazer valer do contrato, normalmente, o beneficiário, demonstrar a verificação do evento e a sua integração nos contornos do contrato;
 - à parte contrária, em regra, o segurador, alegar e provar que o evento se deu em situação excluída do risco segurado, que o contrato cessou ou que por alguma razão é inválido, como causas extintivas, impeditivas ou modificativas[14].
3.2.3.3 – Da inclusão ou exclusão do sinistro, do âmbito de cobertura da apólice:
A ré não assume a responsabilidade pela regularização do sinistro a que se reportam os presentes autos por considerar que o mesmo, face ao disposto na cláusula 40.ª, n.º 1, al. g), está excluído do âmbito de cobertura da apólice que titula o contrato de seguro celebrado entre si e o autor, pelo qual este transferiu para si a responsabilidade civil decorrente da circulação do OI, incluindo por danos próprios.
É isso que, com toda a clareza, resulta da contestação que apresentou em juízo.
Veja-se o art. 58.º:
«58. Ora, considerando o supra exposto, a Ré comunicou ao Autor, em 24 de fevereiro de 2021, nos termos do doc. 7 junto com a petição inicial, ou seja,
“Em resposta serve a presente para informar V.Exa. que, após análise do processo, verificamos que não é da nossa responsabilidade a regularização do presente sinistro, em virtude do disposto na Apólice do Seguro Automóvel, mais concretamente ao nível da cláusula 40.ª número 1 alínea g) –Exclusões às coberturas facultativas das Condições Gerais.
Com efeito, e atento ao conteúdo do referido clausulado, encontram-se excluídos os sinistros “danos provocados ou agravados por defeito de construção, montagem ou afinação, vício próprio ou má conservação do veículo” onde se enquadra o estado dos pneumáticos que apresentam relevos principais uma altura inferior 1,6 mm, infringindo assim o disposto no art. 6.º do Decreto Regulamentar 7/98”».
Veja-se ainda o art. 59.º:
«59. Concluindo-se, pelo que ora foi demonstrado, que foi o estado dos pneumáticos do veículo “OI” que provocou o acidente.»
O mesmo resulta, outrossim, do enunciado descrito em 22. dos factos provados, onde, mais uma vez, é reproduzido o teor da carta enviada pela ré ao autor com data de 24 de fevereiro de 2021.
Por isso, quando é a própria ré a afirmar que não aceita a responsabilidade pela regularização do sinistro com fundamento no disposto na al. g) do n.º 1 da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice, ou seja, pelo facto de, em seu entender, ter sido «o estado dos pneumáticos do veículo “OI” que provocou o acidente», o tribunal a quo percorreu trilhos que não devia ter percorrido, quais sejam os da supra citada al. e) do mesmo preceito contratual, e que o levaram a concluir que «(...) se encontram preenchidas as exclusões da cobertura de danos próprios previstas na cláusula 40.ª, n.º 1, alíneas e) e g) das Condições Gerais do contrato de seguro celebrado entre as partes. Tal tem como efeito excluir a responsabilidade da Ré pagar qualquer indemnização ao Autor ao abrigo dessa cobertura do contrato de seguro, incluindo a indemnização de privação do uso, pelo que a ação deve ser julgada totalmente improcedente.»
Ou seja, ao decidir de mérito também com fundamento na supra citada al. e) do n.º 1 da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice, enquanto causa impeditiva do direito alegado pelo autor, a sentença recorrida conheceu de uma questão de que não podia tomar conhecimento.
É que, repete-se, foi apenas e só com base na al. g) do n.º 1 da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice, ou seja, por considerar «que foi o estado dos pneumáticos do veículo “OI” que provocou o acidente», que a ré, conforme expressamente por si afirmado, se recusou a regularizar o sinistro.
Sucede que o apelante, em sede de recurso nada refere a este propósito, antes se enredando, nomeadamente em sede de conclusões, em aspetos laterais, desprovidos de qualquer relevo para a decisão do recurso.
A ré, essa, por sua vez, em sede de contra-alegações, “cavalgou a onda da sentença”, perdoe-se-nos a expressão, esgrimindo vasta argumentação no sentido de que não assumiu a responsabilidade pela regularização do sinistro, também com base na al. e), quando, repete-se, na contestação havia sido categórica na afirmação de que tal recusa tinha por fundamento a al. g), pois que, segundo então afirmou, insiste-se, «foi o estado dos pneumáticos do veículo “OI” que provocou o acidente».
Acontece que, nem assim, a sentença recorrida pode, nesta parte, substituir!
Comecemos por recordar o teor da al. e) do n.º 1 da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice:
«Para além das exclusões previstas na cláusula 5.ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas (...) os sinistros originados pelo veículo quando não tiverem sido cumpridas as disposições sobre inspeção obrigatória ou outras relativas à homologação do veículo, exceto se for feita prova de que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau estado do veículo, nem por causa conexa com a falta de homologação.»
Na interpretação das declarações das partes nos contratos de seguro importa atentar no disposto nos artigos 236.º a 238.º do CC, sendo que, em caso de dúvida, deve prevalecer o sentido mais favorável a quem deles beneficia.
A redação da transcrita cláusula podia ser mais clara na remissão que faz para o cumprimento das disposições sobre inspeção obrigatória (ou outras relativas à homologação do veículo, sendo certo que estas não estão aqui em causa).
No entanto, tal como afirmado no Ac. da R.L. de 05.11.2020, Proc. n.º 14491/18.0T8LSB.L1-2 (Laurinda Gemas), in www.dgsi.pt, «é sabido que o regime das inspeções periódicas visa a confirmação regular da manutenção das boas condições de funcionamento e de segurança de todo o equipamento e das condições de segurança dos automóveis ligeiros, pesados e seus reboques. Esse regime consta da lei, designadamente do Decreto-Lei n.º 144/2012, de 11-07, que entrou em vigor a 10-08-2012 e regula as inspeções técnicas periódicas, as inspeções para atribuição de matrícula e as inspeções extraordinárias de veículos a motor e seus reboques, previstas no artigo 116.º do Código da Estrada, sendo aplicável, à data do sinistro, na versão resultante da Retificação n.º 44/2012, de 07-09, e do Decreto-Lei n.º 100/2013, de 25-07».
Está provado que:
- o sinistro ocorreu no dia 1 de fevereiro de 2021;
- o OI foi submetido a inspeção técnica periódica no dia 31 de janeiro de 2020, tendo sido aprovado sem qualquer anotação.
E não provado que:
- «Em 31-01-2021, o veículo __-OI-__ foi submetido a Inspeção Técnica Periódica, tendo sido aprovado sem qualquer anotação».
É verdade que no art. 9.º da petição inicial o autor alega que «não se compreende a posição assumida pela Ré, porquanto, no dia anterior ao sinistro o veículo do A. foi submetido a Inspeção Técnica Periódica, tendo sido aprovado, sem qualquer anotação, por se encontrar em perfeitas condições de circulação, Doc. 8.»
Trata-se de um evidente lapso do autor!
O documento que, sob o n.º 8, o autor juntou com a petição inicial, é um documento emitido pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., certificando que o veículo __-OI-__, cuja data de primeira matrícula é 14 de janeiro de 2014, foi sujeito a Inspeção Técnica Periódica no dia 31 de janeiro de 2020, tendo sido aprovado sem qualquer anotação, devendo ser submetido a «próxima inspecção até 2022.01.30».
Por conseguinte, não se vislumbra que à data do acidente já tivesse passado a data limite de qualquer inspeção obrigatória do OI, sem que ela tivesse sido realizada, antes resultando daquele documento que tal nova inspeção só deveria ter lugar em 30 de janeiro de 2022.
Eis a razão pela qual, muito provavelmente, a ré, na sua contestação:
- não se socorreu do disposto na al. e) do n.º 1 da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice, para fundamentar a sua recusa na assunção da responsabilidade pela regularização do sinistro;
- apenas se socorreu do disposto na al. g) do n.º 1 da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice, para fundamentar tal recusa.
Claro está que depois de o tribunal a quo ter, indevidamente, chamado a terreiro aquela al. e), e ter decidido a causa, também com base nela, a ré não se fez rogada e, em sede de contra-alegações, tratou, também ela, de pugnar pela aplicação, ao caso concreto, do referido normativo contratual, de modo a afastar de si a responsabilidade pela regularização do sinistro.
No que tange ao preenchimento da al. e) do n.º 1 da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice (“Sinistros originados pelo veículo quando não tiverem sido cumpridas as disposições sobre inspeção obrigatória”), concordamos inteiramente e, por isso, subscrevemos sem reservas o que se escreve no anteriormente referido Ac. da R.L., e que passamos a citar:
«O sentido que um declaratário normal pode retirar do texto da mesma remete, apenas e só, para o incumprimento do referido regime legal atinente à inspeção de veículos.
De salientar que a referência constante da cláusula ao mau estado do veículo apenas visa permitir (ao segurado) a prova de facto negativo (que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau estado do mesmo) em ordem a evitar que a exclusão opere, mantendo-se a garantia da cobertura em apreço.
Ademais, seria excessivamente desfavorável para um segurado uma interpretação conducente à exclusão de responsabilidade da Seguradora se o veículo não estivesse, sempre e a todo o momento, em condições de poder ser aprovado na inspeção. Tal parece-nos inaceitável, porquanto penalizaria de forma desrazoável os proprietários de veículos que, sendo cumpridores da lei, até podem nem se aperceber de alguns dos problemas técnicos que a viatura apresenta.
Consideramos, assim, que o cumprimento das “disposições sobre inspeção obrigatória” (mormente por parte dos proprietários dos veículos) se resume, para efeitos do preenchimento da referida cláusula, ao dever de apresentação dos mesmos à inspeção periódica obrigatória (nos termos previstos no art. 11.º do referido DL n.º 144/2012).
Nesta linha de pensamento, embora a respeito da apreciação do caráter abusivo de uma tal cláusula, veja-se o acórdão da Relação de Évora de 30-06-2016, no processo n.º 649/15.7T8ENT.E1, disponível em www.dgsi.pt:
I - Num contrato de seguro há uma diferença entre a cláusula limitativa do risco, que é admissível e a cláusula abusiva, pois naquela a finalidade é restringir a obrigação assumida pela seguradora, enquanto nesta é restringir ou excluir a responsabilidade de forma ilegítima por estabelecerem uma desigualdade de força e reduzirem unilateralmente as obrigações do contratante mais forte ou agravarem as do mais fraco, criando uma situação de grave desequilíbrio entre elas, ou seja, em que uma parte se aproveita da sua posição de superioridade para impor em seu benefício vantagens excessivas, que ou defraudam os deveres de lealdade e colaboração que são os pressupostos de boa-fé, ou sobretudo, aniquilam uma relação de equidade que é um princípio de justiça contratual, provocando uma gravíssima situação de desequilíbrio.
II - Assim, as cláusulas limitativas nos contratos de seguro não são vedadas, não sendo consideradas abusivas.
III - Não é abusiva uma cláusula de exclusão do contrato de seguro facultativo em caso de incumprimento da obrigação de inspecção periódica do veículo é abusiva, já que apenas prevê o cumprimento da lei.
IV - No âmbito do seguro facultativo saber se é necessária a demonstração do nexo de causalidade do facto que exclui o seguro e a eclosão do acidente, é algo que depende estreitamente da redacção que, em concreto, tiver a cláusula delimitadora do objecto dos contratos de seguro porque estamos no âmbito da interpretação das respectivas cláusulas.
Estamos perante matéria de exceção perentória (facto impeditivo) cujo ónus da prova competia à Ré (cf. art. 342.º, n.º 2, do CC). Neste sentido, a título meramente exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 10-03-2016, proferido na Revista n.º 4990/12.2TBCSC.L1.S1 - 2.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança das seguintes passagens do respetivo sumário:
I - No contrato de seguro, o risco constitui um elemento essencial ou típico dessa espécie contratual, o qual se traduz na possibilidade de ocorrência de um evento futuro e incerto, de natureza fortuita, com consequências desfavoráveis para o segurado, nos termos configurados no contrato, e que deve existir quer aquando da sua celebração quer durante a sua vigência.
II - O risco relevante para efeitos do contrato de seguro, dada a sua especificidade típica, deve ser configurado no respetivo contrato através da chamada declaração inicial dos riscos cobertos.
III - Na prática negocial, tal delimitação, mormente na vertente causal, é tecnicamente feita através de dois vetores complementares, primeiramente, através de cláusulas definidoras da chamada “cobertura de base” e, subsequentemente, pela descrição de hipóteses de exclusão ou de delimitações negativas daquela base, com o que se configura um tipo abstrato de sinistro coberto pelo seguro.
(…) VI - Assim, incumbe ao segurado o ónus de provar as ocorrências concretas em conformidade com as situações hipotéticas configuradas nas cláusulas de cobertura do risco, como factos constitutivos que são do direito de indemnização, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC.
VII - Por sua vez, à seguradora cabe provar os factos ou circunstâncias excludentes do risco ou aqueles que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, a título de factos impeditivos nos termos do n.º 2 do art. 342.º do CC.»
Retornando ao caso concreto, a ré não fez prova:
- de que o OI não foi aprovado na última inspeção obrigatória antes do acidente; ou,
- de que à data do acidente já tinha passado a data limite para nova inspeção obrigatória do OI.
Ou seja, a ré não só não demonstrou que à data do sinistro não estavam cumpridas, relativamente ao OI, as disposições sobre inspeção obrigatória, como, antes resultando dos autos que tendo o sinistro ocorrido no dia 1 de fevereiro de 2021:
- o veículo havia sido submetido a inspeção técnica periódica obrigatória no dia 31 de janeiro de 2020, tendo sido aprovado sem qualquer anotação;
- a próxima inspeção técnica periódica obrigatória deveria ter lugar até 2022.01.30, ou seja, um ano depois da ocorrência do sinistro.
Em conclusão: não se verificam os pressupostos fácticos para que seja aplicável a cláusula de exclusão contida na al. e) do n.º 1 da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice, a qual, reitera-se, o tribunal a quo não devia sequer ter chamado à colação na sentença recorrida.
E quanto à cláusula de exclusão contida na al. g)?
Recordemos o seu teor:
«Para além das exclusões previstas na cláusula 5.ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas (...) danos provocados ou agravados por defeito de construção, montagem ou afinação, vício próprio ou má conservação do veículo.»
Foi, recorde-se, com fundamento neste normativo contratual que a ré recusou assumir a responsabilidade pela regularização do sinistro.
Está provado que
- «2. No dia 01/02/2021, pelas 20:20, no IC19, ao Km 7, no sentido Sintra-Lisboa, o Autor conduzia o veículo __-OI-__»;
- «3. Em tais circunstâncias de tempo e lugar, no momento em que o Autor se encontrava a fazer uma curva à esquerda, entre a saída de Tercena e a saída de Queluz/palácio, foi confrontado com a existência súbita de trânsito que se apresentou à sua frente, tendo realizado uma travagem»;
- «4. Em consequência da referida travagem, o Autor perdeu o controlo sobre a direção da viatura __-OI-__, a qual guinou para o lado direito e, após circular cerca de 200 metros, acabou por embater com a lateral esquerda do seu veículo nos separadores centrais.
- «8. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2., 3., e 4. o tempo apresentava-se chuvoso e o piso estava molhado»;
- «9. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2., 3. e 4., o pneumático traseiro do lado direito da viatura __-OI-__, na perspetiva da marcha em frente, tinha um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade entre 1,00 mm e 1,02 mm»;
- «10. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2., 3. e 4., o pneumático traseiro do lado esquerdo da viatura __-OI-__, na perspetiva da marcha em frente, tinha um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade de 2,03 mm»;
- «11. Os perfis ou relevos existentes nos pneumáticos contêm uma borracha superficial, com a função de escoar água, em caso de piso molhado e destinam-se a evitar a ocorrência de aquaplanagem (isto é, fenómeno relacionado com a perda da aderência do veículo automóvel ao piso, originada por acumulação de água na via, a qual pode causar sinistros advenientes da perda do controlo da direção da viatura)»;
- «12. Os pneumáticos dos veículos ligeiros são feitos com materiais duros, concebidos para uma duração com um determinado número de quilómetros, caracterizando-se por apresentarem uma capacidade de aderência menor do que a existente nos pneumáticos de carros de velocidades»;
Temos, assim, que à data do sinistro, «(...) o pneumático traseiro do lado direito da viatura __-OI-__, na perspetiva da marcha em frente, tinha um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade entre 1,00 mm e 1,02 mm», abaixo, portanto, do limite mínimo legalmente estabelecido de 1,60 mm, fixado no n.º 1 do art. 6.º, do Decreto/Regulamentar n.º 7/98, de 06.05.
Lê-se na sentença recorrida:
«(...) entendemos que o facto de o pneu traseiro direito do veículo do Autor apresentar na parte central desenhos com uma altura inferior a 1,6 mm é suficiente para considerar que tal infringia o disposto no artigo 6.º, n.º 1 do Decreto Regulamentar n.º 7/98, de 6 de maio.
(...) tendo em conta a dinâmica do acidente (que não envolveu a intervenção de outros veículos quanto a choques ou colisões), o estado do piso (molhado) e o facto de o pneu traseiro do lado direito estar com os sulcos da zona central desgastados (por terem uma profundidade inferior à legalmente prevista), conclui-se que foi a conjugação entre o estado desse pneu e o piso molhado o que causou o sinistro, existindo, assim, contribuição do mau estado do veículo para a ocorrência do mesmo.
Considerando o que se acaba de expor, entendemos que o mau estado de conservação do veículo, no que se refere ao pneu traseiro do lado direito, contribuiu para a causação do sinistro, pelo que também se encontra preenchida a exclusão prevista na alínea g) do artigo 40.º, n.º 1 das Condições Gerais.»
Tal como decidido no Ac. do S.T.J. de 30.10.2014, Proc. n.º 8/09.0TBMCD.P1.S1 (Távora Victor), in www.dgsi.pt, que acompanhamos:
- a violação de uma norma de segurança respeitante à circulação do veículo;
- a infração ao disposto no arts. 6.º, n.º 1[15], do Decreto Regulamentar 7/98, de 06.05:
- o mau estado de conservação dos pneus,
não faz presumir o nexo de causalidade quanto à ocorrência do acidente.
Ou seja, e com reporte ao caso concreto, a violação, pelo proprietário do OI, do disposto no art. 6.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar 7/98, de 06.05, por o seu pneumático traseiro do lado direito, na perspetiva da marcha em frente, ter um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade entre 1,00 mm e 1,02 mm, não constitui presunção:
- de que tal facto foi a causa do acidente;
- de nexo de causalidade;
- de que a perda, pelo apelante, da direção do OI, o qual «guinou para o lado direito e, após circular cerca de 200 metros, acabou por embater com a lateral esquerda do seu veículo nos separadores centrais», foi motivada pelo facto de o seu pneumático traseiro do lado direito, na perspetiva da marcha em frente, ter um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade entre 1,00 mm e 1,02 mm.
Como se sabe, decorre do art. 349.º do CC que «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».
Resulta deste normativo que a presunção é o resultado de uma dedução lógica, que tem como ponto de partida um facto conhecido e como objetivo a demonstração da realidade desse ou de um outro facto[16].
Tal dedução é o culminar da elaboração de um raciocínio lógico, constituindo a presunção a base da conclusão e a explicação do outro facto que se pretende provar, sem que se olvide que o facto que serve de ponto de partida é já um facto conhecido ou provado, em que apenas se pretende alcançar um facto desconhecido[17].
As chamadas presunções hominis, conceito no qual se integram as presunções judiciais, naturais ou de facto, têm por base e fundamento as máximas da experiência, ou seja:
- o conhecimento adquirido através da observação dos factos pelo homem médio, o denominado bom pai de família no contexto da comunidade em que se insere;
- a observação por ele feita e o conhecimento que daí retira quanto ao decurso das coisas tal como elas normal, lógica e naturalmente acontecem.
A presunção é, pois, o resultado de todo um raciocínio lógico, cujo ponto de partida é um facto conhecido, seja ele essencial, complementar, concretizador ou meramente instrumental, através do qual se pretende alcançar um facto desconhecido, que deverá ser considerado provado.
Conforme afirma Luís Pires Sousa, a presunção é «um raciocínio em virtude do qual, partindo de um facto que está provado (facto-base/facto indiciário), chega-se à consequência da existência de outro facto (facto presumido), que é o pressuposto fáctico de uma norma, atendendo ao nexo lógico existente entre os dois factos:
FACTO-BASE/FACTO INDICIÁRIO + NEXO LÓGICO =
= FACTO PRESUMIDO.»[18].
O esquema proposto indica o seguinte:
- deve considerar-se um facto, o facto-base ou indiciário, já provado;
- através desse facto pretende alcançar-se o facto desconhecido, o facto presumido, a ser provado:
- essa prova faz-se através de um nexo lógico entre o facto conhecido e o facto desconhecido.
Abrantes Geraldes afirma que «(...) as presunções judiciais tanto podem assentar em factos essenciais que tenham sido considerados provados ou que resultem plenamente dos autos, como em factos de natureza puramente instrumental que resultem do processo ou da instrução da causa, tenham ou não tenham sido alegados pelas partes.
Relativamente aos factos que apenas sirvam de suporte à afirmação de outros factos por via de presunções judiciais, para além de não se mostrar necessária a sua alegação [art. 5.º, n.º 2, alínea a)] e de poderem ser livremente discutidos na audiência final (arts. 410.º e 516.º), nem sequer terão de ser objeto de um juízo probatório específico na 1.ª instância. Em regra, bastará que sejam revelados na motivação da decisão da matéria de facto, quando o juiz analisa criticamente as provas produzidas e exterioriza o percurso lógico que o conduziu à formulação do juízo probatório sobre os factos essenciais ou complementares.
O importante é que o juiz exponha com clareza os motivos essenciais que o determinaram a decidir de certa forma a matéria de facto controvertida contida nos temas de prova, garantindo que a parte prejudicada pela decisão (com a aludida sustentação) possa sindicar, perante a Relação, o juízo probatório formulado relativamente a tal factualidade, designadamente na medida em que foi sustentada em factos instrumentais e nas regras de experiência que foram expostas.
Em tais circunstâncias, a Relação, em sede de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo acesso a todos os meios de prova que foram produzidos e aos que foram prestados oralmente (...), estará apta a reapreciar a decisão e o correspondente juízo probatório formulado relativamente aos factos principais.»[19].
As máximas da experiência, tal como refere Ana Margarida Faria de Andrade, «(...) consistem em regras retiradas de diversos casos considerados semelhantes, em que ocorre uma expressão daquilo que sucede na grande maioria dos casos. Basicamente são juízos originários da experiência e da observação de tudo o que ocorre normalmente. Ao recorrermos à experiência, formulamos uma relação entre todos os factos, bem como um determinado juízo de valor, tendo como pressuposto que quando os casos são considerados semelhantes, é porque existe um certo comportamento idêntico.»[20].
Segundo afirma, «(...) a repetição dos factos não é suficiente para o fundamento das máximas da experiência, mas sim a ambição de que certos casos ainda inobservados poderão produzir-se de forma igual ou semelhante aos casos já observados. Os fenómenos que irão consubstanciar as máximas da experiência deverão ser de observação de todos os indivíduos, sendo parte integrante de um património considerado comum, permitindo a que as máximas da experiência sejam relativas, e não absolutas.»[21].
Para Michelle Taruffo, as máximas da experiência são regras que têm como principal base a experiência sobre o estado das coisas ou determinados acontecimentos, às quais o juiz recorre para servirem de base e fundamento das suas próprias linhas de raciocínio, articulando todo o raciocínio lógico, sendo a máxima da experiência um princípio maior da ilação judicial.
Segundo este Autor, as máximas da experiência são uma forma de racionalizar o senso comum, que pretende «dar uma configuração lógica àqueles aspetos do raciocínio judiciário.»[22].
Ainda de acordo com Ana Margarida Faria de Andrade, «as máximas da experiência consideram-se comuns quando incidem sobre aspetos do quotidiano de uma sociedade, que fazem parte da cultura do homem médio e que chegam a ser considerados parte integrante do património da sociedade. Estas máximas têm por base os acontecimentos diários, sendo constituída uma regra que será aplicada sempre que surjam casos ou situações similares.»[23].
Retornando ao caso concreto, o tribunal a quo não enuncia um único facto base ou indiciário a partir do qual e através de um nexo lógico, se possa chegar à consequência da existência do facto essencial presumido: a perda, pelo apelante, da direção do OI, o qual «guinou para o lado direito e, após circular cerca de 200 metros, acabou por embater com a lateral esquerda do seu veículo nos separadores centrais», foi motivada pelo facto de o seu pneumático traseiro do lado direito, na perspetiva da marcha em frente, ter um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade entre 1,00 mm e 1,02 mm.
Por outras palavras, não enuncia um único facto base ou indiciário a partir do qual, e através de um nexo ou raciocínio lógico, seja possível concluir que a perda da direção do OI foi motivada pelo estado em que se encontrava o seu pneu traseiro do lado direito.
É, evidentemente, verdade que:
- «11. Os perfis ou relevos existentes nos pneumáticos contêm uma borracha superficial, com a função de escoar água, em caso de piso molhado e destinam-se a evitar a ocorrência de aquaplanagem (isto é, fenómeno relacionado com a perda da aderência do veículo automóvel ao piso, originada por acumulação de água na via, a qual pode causar sinistros advenientes da perda do controlo da direção da viatura)»;
- «12. Os pneumáticos dos veículos ligeiros são feitos com materiais duros, concebidos para uma duração com um determinado número de quilómetros, caracterizando-se por apresentarem uma capacidade de aderência menor do que a existente nos pneumáticos de carros de velocidades».
Ninguém duvidará que as coisas são mesmo assim em termos genéricos.
Mas isso não permite, no caso concreto, à luz das regras da experiência comum, estabelecer um nexo lógico, um fio condutor, que permita concluir que a perda da direção do OI foi motivada pelo estado em que se encontrava o seu pneu traseiro do lado direito.
Ou seja, e de doutra forma dizendo, não está estabelecido e demonstrado o tal nexo lógico que permita concluir que a perda da direção do OI foi motivada pelo estado em que se encontrava o seu pneu traseiro do lado direito.
Por outras palavras, inexiste, no caso em apreço, qualquer facto base ou indiciário, a partir do qual seja possível estabelecer um nexo lógico que permita concluir que a perda da direção do OI foi motivada pelo estado em que se encontrava o seu pneu traseiro do lado direito.
Um facto base ou indiciário, nesse sentido, poderia ser, por exemplo, a existência, no pavimento, um rasto de travagem do OI que, pelas suas características, indiciasse, à luz das regras da experiência comum, que a causa determinante da perda da sua direção, por parte do seu condutor, e o consequente embate da sua parte lateral esquerda veículo nos separadores centrais, foi motivada pelo estado em que se encontrava o seu pneu traseiro do lado direito.
Ora, apenas resultou provado que no momento em que o autor se encontrava a fazer uma curva à esquerda, foi confrontado com a existência súbita de trânsito que se apresentou à sua frente, tendo realizado uma travagem, em consequência da qual perdeu o controlo sobre a direção do OI, o qual guinou para o lado direito e, após circular cerca de 200 metros, acabou por embater com a lateral esquerda do seu veículo nos separadores centrais.
Isso, pode ter ficado a dever-se a diversos fatores, como por exemplo;
- circulação do OI a uma velocidade inadequada tendo em conta as características da via, a hora e o local do acidente, a intensidade do tráfego, as condições atmosféricas que na altura se faziam sentir;
- a distração, a desatenção, a atrapalhação ou a imperícia do condutor do OI.
Termos em que se conclui que o sinistro a que se reportam os presentes autos não está excluído do âmbito de cobertura da apólice que titula o contrato de seguro celebrado entre a ré e o autor, pelo qual este transferiu para aquela a responsabilidade civil decorrente da circulação do OI, incluindo por danos próprios[24].
Por outras palavras: a ré é responsável pela regularização, perante o autor, do sinistro a que se reportam os presentes autos.
Em que termos, é o que a seguir se decidirá!
3.2.3.4 – Da extensão do dever indemnizatório da ré:
Está provado que:
- «16. À data do sinistro (01-02-2021), a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo __-OI-__, incluindo a cobertura designada por “danos próprios” encontrava-se transferida para a Ré G, S.A., através de contrato de seguro automóvel, com um limite de € 7.290.000,00, correspondente à apólice n.º ____, celebrado entre aquela e o Autor, o qual aceitou todo o clausulado constante das condições gerais, especiais e particulares, que previamente lhe foram comunicadas pela Ré»;
- «17. Nos termos da cláusula 1.ª das condições especiais da apólice, Autor e Ré convencionaram que os danos próprios do veículo incluíam as situações de choque, colisão e capotamento, nos seguintes termos: «choque: danos no veículo seguro resultantes do embate contra qualquer corpo fixo ou sofrido por aquele quando imobilizado; colisão: danos no veículo seguro resultantes do embate com qualquer outro corpo em movimento; capotamento: danos no veículo seguro resultantes de situação em que este perca a sua posição normal e não resulte de choque ou colisão»;
- «18. A cobertura do contrato relativamente aos danos próprios sofridos pelo veículo __-OI-__, à data do sinistro, no que concerne às situações de choque, colisão e capotamento, tinha o limite de € 25.960,54, tendo Autor e Ré convencionado uma franquia de € 250,00 e uma desvalorização mensal de 1,50% quanto ao primeiro mês de vigência e de 3.00% quanto ao segundo mês de vigência».
Nestes termos, por via do identificado contrato de seguro, a ré está investida na obrigação de indemnizar o autor.
O autor pede a condenação da ré a indemnizá-lo em duas vertentes:
a) uma primeira, no montante de € 25.349,70, ou seja, capital seguro, ou seja, o capital seguro contratado correspondente ao valor do OI;
b) uma segunda, no montante de € 11.430,00, respeitante à reparação do dano da privação do uso de tal veículo, contabilizado desde a data do acidente até à presente data, acrescido do valor diário de € 90,00 até integral e efetivo pagamento da perda total da sua viatura[25].
O autor pede ainda a condenação da ré a pagar-lhe juros de mora sobre os dois vetores indemnizatórios referidos em a) e b), desde a data da citação até integral e efetivo pagamento das quantias ora peticionadas.
3.2.3.4.1 - Da primeira vertente indemnizatória - o valor do capital seguro e a dedução, ou não, do valor do salvado do OI:
Alega o autor que no dia 23 de janeiro de 2021 a ré o informou que «após peritagem ao seu veículo, o valor da reparação de 25.998,06 euros, era excessivamente oneroso face ao valor seguro à data do sinistro que era de 25.349,70 euros e ao veículo com danos, avaliado em 12.044,00 euros, pelo que, foi o mesmo considerado como perda total», pelo que colocou condicionalmente à sua disposição «o montante de €13.055,70 (treze mil e cinquenta e cinco euros e setenta cêntimos)».
Posteriormente, no dia 24 de fevereiro de 2021, a ré declinou o pagamento da referida quantia de € 13.055,70, pelas razões acima expostas.
Invocando inexistir fundamento para que a ré não cumpra com o contratualmente acordado, pede a sua condenação no valor de capital seguro, ou seja, no montante de € 25.349,70.
A ré, pelas razões anteriormente expostas, entende nada ter a pagar à autora.
No entanto, e à cautela, sempre alega o seguinte, em sede de contestação:
«O salvado ficou na posse do Autor, que aceitou os valores indicados pela Ré.
Desconhece a Ré se o Autor vendeu ou não o salvado.
No entanto, e considerando o valor calculado para o salvado de 13.055,70 Euros, estando o salvado naposse do Autor, tal valor deve ser abatido ao valor do capital seguro,
Pelo que, caso se demonstre a ocorrência do sinistro, com a responsabilidade da Ré, a mesma apenas deve pagar o valor do capital seguro à datado sinistro, de 25.349,70 Euros, abatendo a este valor o salvado, de 13.055,70 Euros, e ainda o valor da franquia contratual de 250,00 Euros.
E, assim, a título do capital seguro, a Ré apenas responderá pelo valor de 12.044,00 Euros (25.349,70 Euros - 13.055,70 Euros – 250,00 Euros)».
Está já assente que a ré é responsável perante o autor pela regularização do sinistro a que se reportam os presentes autos.
As partes concordam, quanto à perda total do OI, que o valor a considerar é o do capital seguro, € 25.349,70; de outra forma dizendo, as partes estão de acordo que é este o montante necessário à substituição do veículo sinistrado.
O que está aqui e agora em causa é saber em que medida poderá o “salvado” do OI influenciar o quantum indemnizatório a pagar pela ré ao autor, sendo certo que, no caso concreto:
- está provado que «em decorrência dos danos sofridos, o valor do salvado do veículo __-OI-__ foi avaliado pela Ré em € 13.055,70, valor correspondente à melhor proposta de aquisição apresentada pela empresa “AV”» - 3.1.1.15;
- não se provou que o autor tivesse aceitado os valores indicados pela ré a título de “salvado” (€ 13.055,70) – cfr. 3.1.2.F).
A este propósito escreve Maria de Lurdes Pereira, que «como, porém, os restos os destroços da coisa parcialmente destruída ou danificada ainda conservam algum valor de troca, perguntar-se-á em que termos poderão esses restos ou destroços (o “salvado no caso de veículos) influenciar o regime da obrigação de indemnizar.
Uma saída possível seria considerar que o lesado só tem nesse caso o direito à diferença entre o preço de aquisição da coisa da substituição[26] e o valor da venda dos restos ou destroços. No entanto, essa solução não parece aceitável, por “forçá-lo” e despender tempo e recursos na venda do bem remanescente, caso queira efetivamente adquirir um bem em substituição do afetado. Trata-se de um encargo que não teria se não fosse o facto gerador de responsabilidade e que, por força do princípio da reparação total não deve onerá-lo. Além disso, no caso de este perecer fortuitamente, o lesado manteria, em princípio, apenas o direito àquela diferença de valores[27], o que não se afigura razoável. Após a destruição parcial ou a danificação, o risco de perecimento dos restos ou destroços deve ser suportado pelo lesante pois, de outra forma, adiando a indemnização o lesante poderia comprometer a possibilidade efetiva de o lesado poder adquirir um bem de substituição.
Por estas razões deve entender-se que, em tais circunstâncias, o lesado tem direito ao integral valor de substituição, mas tem, contrapartida, a obrigação de restituir os restos ou destroços da coisa parcialmente destruída ou danificada nos casos em que eles tenham valor comercial. O problema posto pelos destroços ou restos da coisa destruída ou danificada que o lesado conserve não pertence pois ao domínio da compensação ou dedução de vantagem decorrente do facto gerador da responsabilidade, mas antes ao da restituição das vantagens decorrentes da própria obrigação de indemnizar. A obrigação de restituição a cargo do lesado encontra fundamento precisamente no mesmo princípio que subjaz à solução dos casos de substituição do “velho por novo”. A indemnização da totalidade do custo de aquisição de uma coisa de substituição (usada ou nova) gera um enriquecimento na esfera do lesado que não é justificado pela atribuição contida no direito à indemnização e que repousa numa despesa do lesante. No entanto, porque pode querer conservar os restos ou destroços, o titular do direito à indemnização deve poder optar por uma indemnização calculada segundo a diferença entre o preço de aquisição de uma coisa de substituição e o valor de venda da coisa remanescente»[28].
A mesma Autora afirma, na nota 994 da p. 523, que «tal era, no essencial, a solução proposta por Vaz Serra, “Obrigação de Indemnização”, 176-177: nos casos de deterioração parcial de uma coisa que signifique uma “perda total” o proprietário lesado, em vez do direito ao “valor total da coisa com dedução do valor dela depois da perda parcial”, deveria poder exigir a “indemnização do valor total” entregando ao autor da indemnização a coisa deteriorada. O autor recusava a primeira solução porque “colocá-lo-ia [ao lesado] na necessidade de vender a coisa deteriorada”. (...). Segundo P. Mota Pinto Interesse [Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. I, Coimbra Editora, 2008, p.] 730, n. 2074, resulta dos princípios gerais em matéria de indemnização que o lesado, “ainda que indemnizado pela diminuição de valor, não pode ser obrigado a ficar com a coisa (qualitativa ou quantitativamente) destruída em parte (...) e com o ónus de a transformar em dinheiro se quiser, e puder, adquirir outra equivalente. Assim, em princípio tem de poder optar entre a aceitação de uma indemnização correspondente à diminuição do valor e a exigência da indemnização do valor total, devolvendo a coisa”. Só assim não será, segundo o autor, quando a escolha pela exigência da indemnização do valor total constitua um abuso de direito. A solução defendida no texto só difere da de P. Mota Pinto na medida em que o direito à indemnização do “valor total” vale “automaticamente”, i. e., independentemente de qualquer opção e antes de qualquer opção pelo lesado. Naturalmente, se o lesado quiser conservar os restos ou destroços, poderá fazê-lo, preferindo a indemnização pela diferença de valores».
No Ac. do S.T.J. de 28.09.2021, Proc. n.º 6250/18.6T8GMR.G1.S1 (Oliveira Abreu), in www.dgsi.pt, escreveu-se que o art. 43º n.º 4 do SORCA  «(...)ao preceituar que “Verificando-se uma situação de perda total, em que a empresa de seguros adquira o salvado, o pagamento da indemnização fica dependente da entrega àquela do documento único automóvel ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo” permite realizar uma construção jurídica que passe pela não dedução do valor dos salvados, acaso se distinga, no caso concreto, que o lesado assuma inequivocamente abrir mão da propriedade dos salvados a favor da seguradora, ao cabo e ao resto, quando assuma, sem reservas, que não pretende ficar com os salvados na sua esfera jurídica».
No caso concreto, resulta da petição inicial, sobretudo da pretensão formulada pelo autor, que este não tem interesse em fazer seu o salvado do OI, dele abdicando, portanto, em favor da ré.
Mais se afirma no citado Ac. do S.T.J. que «inexiste no ordenamento jurídico preceito a impor que o salvado fique na posse do lesado, aliás, como já avançamos, prevê-se mesmo a possibilidade de a seguradora adquirir o salvado, ficando, nesse caso, o pagamento da indemnização dependente da entrega, àquela, do documento único automóvel, ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo (art. 43º n.º 4 Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel).
(...)
Por outro lado, entendendo o instituto do enriquecimento ilícito decorrente da lei substantiva civil - art. 473º n.º 1 do Código Civil - no sentido de vantagem de carácter patrimonial, como obtenção injusta dessa vantagem que foi recebida, reportando-se a obtenção de enriquecimento à conta de outrem à averiguação de qual foi o património que efetuou a despesa, impor-se-á reconhecer que a ausência de causa justificativa refere-se às situações de inexistência de causa jurídica, e, por conseguinte inexistência de obrigação, sendo que no caso sub iudice, não se verifica enriquecimento sem causa, nem os respetivos requisitos, porquanto distinguimos no caso em apreço, causa jurídica para a entrega daquele valor indemnizatório de €42.500,00, respeitante ao valor venal do veículo sinistrado, sendo que, em todo o caso, o salvado deve ser entregue à seguradora, como decorre do art. 43º n.º 4 Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel ao estatuir que o pagamento da indemnização fica dependente da entrega à seguradora, responsável, do documento único automóvel ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo.
Assim, no caso em concreto, opera-se a indemnização por equivalente pecuniário do valor comercial do bem antes do facto lesivo (com vista a permitir a aquisição de outro com as mesmas características), sendo o veículo substituído no património do Autor/AA pelo respetivo valor, daí que o salvado deve passar para o responsável, aqui Ré (...) não havendo lugar à dedução do valor do salvado no valor da indemnização devida, nem transferência para o lesado, do risco da respetiva venda(…)».
Veja-se ainda o Ac. da R.E. de 06.11.2007, Proc. n.º 356/07.YCBR (Freitas Neto), in www.dgsi.pt, onde se afirma que «a entrega do salvado ao sinistrado de modo nenhum constitui, por conseguinte, uma forma de indemnizar ou ressarcir, pela simples razão de que, sem realizar a verba em falta, o lesado não tem ao seu alcance a importância necessária ao regresso à situação antecedente. É claro, a não ser que, após a ocorrência da lesão, venha a concordar em ficar com o salvado como modo de pagamento parcial, havendo que interpretar e aplicar neste sentido as cláusulas contratuais do seguro que regulem a forma de imputação do valor dos salvados no cômputo indemnizatório, logo por homenagem ao princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações, nos termos do art. 762 do CC. (...) o beneficiário e lesado não pode estar adstrito ao ónus acrescido de o transaccionar para obter a verba pela qual o mesmo foi avaliado Como se notou no AC. da Rel. de Évora de 12/02/98 in CJ 1998, 1º-270 "tudo se passa como se o responsável pela indemnização adquirisse o veículo ou o que dele restasse, ao lesado, pelo valor do mesmo antes do acidente, tendo, por isso, direito à entrega do mesmo", não havendo que transferir para o lesado o risco da respectiva venda. A sua situação é então de um puro credor - e de um credor da quantia globalmente necessária à substituição do bem perdido. E para o apuramento dessa quantia – excluída a verificação de interesse da outra parte em quedar-se ela própria com o bem - é à seguradora que cabe dar destino ao salvado, promovendo ou não a sua venda, em ordem a habilitar o beneficiário do seguro com a integralidade do inerente valor».
Em conclusão, e com reporte ao caso concreto:
- pela perda total do OI deve a ré entregar ao autor o montante correspondente ao capital seguro, ou seja, € 25.349,70, ao qual, no entanto, deve ser abatido o valor da franquia (€ 250,00), o que perfaz, por conseguinte, a quantia de € 25.099,70;
- o autor, por sua vez, deve colocar à disposição da ré, entregando-lho, o salvado do OI, assim como a respetiva documentação.
2.2.3.4.2 – Da segunda vertente indemnizatória - a reparação do dano de privação do uso do OI:
A privação de utilização de uma coisa, no caso, de uma viatura, pode traduzir-se num dano patrimonial:
- na modalidade de dano emergente; ou,
- na modalidade de lucro cessante.
Tal como refere Adriano de Cupis, citado no Ac. do S.T.J. de 11.12.2012, Proc. n.º 549/05.TBCBR-A.C1.L1 (Fernando Bento), in www.dgsi.pt, «o chamado dano da imobilização (“dano de paro” ou “dano por paro” na terminologia espanhola) decorre da paragem imposta a uma viatura destinada a circulação com fins de lucro quando a paragem resultou de um facto culposo de terceiro. Este dano é posterior ao causado à estrutura material da viatura cuja medida é a do custo da reparação (dano emergente). O dano de imobilização decorre da impossibilidade de utilização do veículo imobilizado por culpa de outrem e configura-se como lucro cessante quando não é possível remediar-se essa falta de utilização, sofrendo então o património do transportador uma carência de benefícios – lucro cessante – intimamente dependente da paragem do mesmo veículo. Não existe remédio quando o transportador não dispõe de outra viatura nem pode substituir o veículo danificado por outro, não podendo assim, satisfazer as exigências do tráfico que anteriormente satisfazia, sofrendo assim uma perda de ganhos (lucro cessante). Pelo contrário, o dano por imobilização configura-se como emergente quando há remédio para suprir a falta de utilização do veículo, ainda que oneroso. Quando o transportador pode substituir o veículo danificado por outro, pode continuar a sua actividade e não sofre por isto uma perda de ganhos, ainda que tenha de suportar os gastos de substituição, os quais representam um prejuízo para a estrutura actual do seu património que há que qualificar como dano emergente. Este custo constitui a perda de um elemento actual do seu património, originado pelo facto culposo do mesmo terceiro (integram também o dano a ressarcir as medidas empregadas pelo lesado para remediar ou atenuar as consequências do facto culposo, já que, visando remediar ou obviar as consequências lesivas do facto, elas mesmas se deduzem dele).»[29].
Só no caso de inexistência de danos emergentes ou de lucros cessantes faz sentido equacionar a questão do dano autónomo (autónomo, relativamente àquelas duas modalidades de dano patrimonial) de privação de uso da viatura.
Só quanto a este dano autónomo faz sentido equacionar a questão de saber se a simples privação do uso do veículo será, de per se, suscetível de originar prejuízos que mereçam a tutela do direito.
Será o caso, por exemplo, de um determinado lesado não ter sofrido qualquer um daqueles danos (danos emergentes e lucros cessantes) mas ter apenas ficado na impossibilidade de utilizar o veículo nas suas deslocações normais, como simples meio de transporte para o local de trabalho, ou em passeios de família, recorrendo a boleias de colegas ou de outra viatura cedida por familiares ou amigos.
É em casos como este que faz sentido:
- falar-se em dano autónomo e indemnizável de privação de uso de veículo automóvel;
- questionar se a privação do uso do veículo comporta, ou não, um prejuízo efetivo na esfera jurídica do lesado correspondente à perda temporária dos poderes de fruição.
Só numa situação em que o lesado não sofreu nem danos emergentes, nem lucros cessantes, tendo apenas ficado impedido de utilizar o veículo, por exemplo, nas suas deslocações normais, faz sentido abordar a questão da privação do seu uso como dano autónomo indemnizável, sendo certo que, no caso de se concluir em sentido negativo, o lesado ficará sem indemnização, pois que sem dano não há responsabilidade civil, seja delitual, seja contratual.
E esse dano autónomo de privação da viatura é um dano patrimonial[30].
A situação sub judice insere-se, como temos salientado, no âmbito da responsabilidade civil contratual, pelo que, obviamente, a apreciação da pretensão do autor à reparação do alegado dano de privação de uso do OI, terá de ser apreciada à luz deste instituto.
Constituindo a obrigação o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação (art. 397.º do CC) e, para ser útil, deve ser efetuada nos termos estipulados no contrato ou na lei.
Havendo um momento determinado para o cumprimento, a realização intempestiva da prestação (ou mora), por razões imputáveis ao devedor, constitui uma das formas de incumprimento da obrigação que, por via da regra, gera uma obrigação de reparar os danos ocasionados ao credor (art. 804.º do CC).
Por isso, quando a prestação prevista é pecuniária, além dos juros devidos, em certas condições, o credor pode exigir indemnização suplementar se lhe sobrevieram danos superiores aos cobertos pelos juros (art. 806.º, n.º 3 do CC).
Transpondo esta ideia para o âmbito do contrato de seguro, verificamos que o dever fundamental do segurador é o de pagar o valor contratualmente previsto no caso de ocorrer um sinistro.
Só que, quando tal pagamento não tem lugar por razões indevidas, o ordenamento português indica uma aparente limitação da indemnização suplementar ao juro, quer por limitações impostas pelo princípio do indemnizatório, quer também pelo apertado controlo da indemnização a que alude o art. 806.º, n.º 3 do CC[31].
A questão coloca-se, obviamente, e de modo pertinente no âmbito de uma relação contratual como aquela que ora nos ocupa, em que está em causa um contrato de seguro de dano em coisa ou, de outra forma dizendo, um contrato de seguro por danos próprios.
Por isso, serão em seguida objeto de apreciação as seguintes questões:
a) saber se um contrato de seguro automóvel facultativo, de danos próprios, pode ou não comportar, para além do capital contratado, o dever de seguradora indemnizar o segurado relativamente a danos por este sofridos, em consequência da recusa ou retardamento injustificados no cumprimento da prestação principal: a entrega ao segurado do valor do capital contratado; e, em caso afirmativo;
b) saber se, no caso concreto, ocorreu uma situação de recusa ou retardamento injustificados, por parte da ré, no cumprimento da obrigação principal: a entrega ao autor do montante correspondente ao capital seguro, deduzido, obviamente, o valor da franquia; e, ainda em caso afirmativo;
c) saber em que termos deve a ré indemnizar o autor.
Neste exercício, desde já se consigna, acompanharemos de muito perto, pela sua pertinência e atualidade, o recente o estudo de Ricardo J. Marques a que já atrás fizemos referência: Os deveres acessórios na regulamentação do seguro de dano: O seguro automóvel a as suas repercussões na mora do segurador, publicado na Revista Julgar, n.º 50, Almedina, 2023, pp. 135-169.
Segundo o Autor, «o contrato de seguro não beneficia de uma noção legal mas pode entender-se, através dos elementos que o estruturam, hoje concentrados no Regime Jurídico do Contrato de Seguro (art. 1.º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril […]), como o “contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto"[32].
Aplicando-se as normas gerais previstas no RJCS, todas as características gerais[33] do contrato de seguro são transponíveis para a subcategoria dos seguros de danos em coisas (especialmente regulado nos arts. 123.º a 136.º do RJCS): trata-se de um contrato que liga, pelo menos, duas partes em posição jurídica distinta e, por isso, bilateral -, construído no cerne do direito comercial, é um contrato que depende de uma retribuição ao segurador, sendo assim configurado como oneroso; o cumprimento da prestação do segurador deve ficar sujeito a um evento futuro e incerto, acautelando-se a sorte do beneficiário, pelo que também é considerado um contrato aleatório; encontra-se previsto e regulamentado como uma categoria contratual específica, sendo por isso um contrato típico; não carece de especiais exigências de forma, pelo que é considerado consensual; e, com capital importância, é um contrato que se encontra transversalmente ligado à boa fé, sendo normalmente caracterizado como contrato fiduciário[34], cuja legislação específica não esquece, logo por isso, as exigências ético-normativas impostas pelo princípio da boa fé, postulando um certo padrão de conduta nas diversas fases desse contrato.
De resto, as obrigações recíprocas das partes surgem materializadas nos regimes legais e, antes disso, no próprio contrato (por força da liberdade de estipulação), que deverá conter os riscos que se visam acautelar com o seguro através das respectivas condições gerais, especiais e, se as houver, condições particulares acordadas, sendo que o âmbito do contrato consiste na definição das garantias, riscos cobertos, riscos excluídos e prémios a suportar.
Desse modo, será sinistro o acto que integre um evento típico previsto no contrato, desde que a sua especificidade não se encontre excluída da cobertura. Assim, reconduzindo-se o risco à possibilidade de um evento danoso futuro, implica a previsão abstracta de certos impactos patrimoniais negativos, devidamente delimitados pelo interesse seguro na esfera do beneficiário do seguro, com a correlativa obrigação de “indemnização”, pelo segurador, caso tal hipótese se verifique.
Uma vez verificado o sinistro (ou o risco contratualmente segurado), o beneficiário pode accionar o segurador, reclamando a prestação nos termos previstos no contrato. E daí que o risco, como possibilidade aleatória de que este evento se venha a verificar, constitui um pressuposto da causa contratual e é elemento essencial do contrato. Podemos então concluir que o risco consiste na previsão abstracta do evento, como possível e que o sinistro é, por sua vez, a realização e concretização desse evento».
A paulatina transposição para a ordem jurídica portuguesa das directivas comunitárias n.º 72/166/CEE, de 24 de Abril (primeira directiva automóvel), n.º 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda directiva automóvel), n.º 90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990 (terceira directiva automóvel), n.º 2000/26/CE, de 16 de Maio de 2000 (quarta directiva automóvel) e n.º 2005/14/CE, de 11 de Maio (quinta directiva automóvel), levou o legislador nacional «a um esforço de consolidação hoje reduzido no DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto (“SORCA"), que dedica um capítulo (III: artigos 31.º a 46.º) às “regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.”
Dado que no RJCS não se prevê uma tramitação para a regularização do sinistro, surpreende-se, contudo, no próprio SORCA, uma extensão dos mecanismos de regularização do sinistro extracontratual, ao seguro automóvel com coberturas facultativas, desde que os sinistros tenham ocorrido em virtude de choque, colisão ou capotamento, como alude o art. 92.º do SORCA. Inclui-se, portanto, ao âmbito das cláusulas facultativas de dano em coisa, i.e., relação do segurado com o seu próprio segurador, o modelo genérico de regularização do sinistro extracontratual, excepto quanto às obrigações do tomador do seguro e do segurado em caso de sinistro (art. 34.º do SORCA), previsto no RJCS e no clausulado próprio, ao conceito de perda total (art. 41.º do SORCA) e à disponibilização de veículos de substituição (art. 42.º do SORCA), ambos dependentes, naturalmente, do âmbito do próprio contrato ajustado».
No tocante à regularização do sinistro automóvel ao abrigo das coberturas facultativas na decorrência de choque, «o SORCA veio estabelecer soluções bem mais favoráveis aos beneficiários do contrato, não só quanto aos (i) deveres de informação sobre o procedimento de regularização, (ii) deveres de prontidão (iii) e consequentes sanções pelo incumprimento tempestivo dos deveres.
(...) Uma análise, ainda que breve, destes mecanismos, permite-nos enunciar um conjunto de aspectos sobre os quais resultam relevantes deveres de boa fé, transparência e diligência, revelando-se tais referências envoltas num propósito assumido de garantir a efectivação dos direitos dos segurados ou beneficiários, por meio de algumas penalidades inovatoriamente estabelecidas.
Telegraficamente, é fácil constatar que dentro dos princípios de gestão dos sinistros enunciados no art. 33.º do “SORCA”[35] estão vincados deveres de informação, especificamente dirigidos às relações dos seguradores com os seus segurados, nomeadamente, nos seus n.ºs 1, 2, 3, 7 e 9, sendo evidente a inspiração e lógica de tratar o segurado/beneficiário como um consumidor ou contraente débil. Efectivamente, não são respeitados deveres básicos de informação e transparência se o segurador, com conhecimento técnico mais profundo de um acervo de elementos relevantes, não os transmitir de modo claro, perceptível e eficaz, arredando os beneficiários do acesso a informações especialmente relevantes na sequência de um sinistro. De resto, a empresa de seguros deve sempre proporcionar ao tomador do seguro ou ao segurado e ao terceiro lesado, informação regular sobre o andamento do processo de regularização do sinistro (art. 36.º, n.º 7).
Também ao nível dos deveres de prontidão das respostas, o SORCA impõe um dever de diligência particularmente exigente: participado o sinistro pelo beneficiário ou por terceiro (art. 34.º, n.º 3 do SORCA e art° 100.º, n.º 1 do RJCS), o legislador impõe prazos curtos: o segurador deve agendar as peritagens em 2 dias úteis e providenciar pela apresentação das conclusões respectivas nos 8 dias seguintes, podendo chegar aos 12 dias em casos especiais (art. 36.º, n.º 1, ais. a), b) e c) do SORCA), devendo esses relatórios ser comunicados ao beneficiário. O prazo máximo para comunicar a assunção da responsabilidade (ou sua rejeição) é de 30 dias (art. 36.º, n.º 1, al. e) do SORCA e art. 104.º do RJCS)».
Continuando a acompanhar o citado Autor, «(...) tem surgido, com maior expressão junto do Supremo Tribunal de Justiça, uma corrente com o entendimento de que verificado o risco contratado, os atrasos abusivos que se lhe sucedam ou as recusas injustificadas de pagamento dos capitais contratados aos seus segurados, podem dar lugar à responsabilidade contratual do segurador, mesmo além do montante contratualmente ajustado.
Argumenta-se que o capital visa cobrir um risco e, uma vez verificado o risco, o segurado tem a legítima expectativa de ser ressarcido e de enfrentar a adversidade com o fôlego contratualmente previsto, ficando especialmente vulnerável se perante a perda ou deterioração dos seus bens, acresce a recusa injustificada da sua seguradora em cumprir a sua parte do contrato.
Desta forma, decidiu-se:
- Ac. do STJ de 14-12-2016: o veículo, com cobertura para o efeito, vem a ser furtado. A seguradora põe em causa a versão do segurado e apresenta queixa contra o mesmo. A investigação do MP arquiva os inquéritos relativos ao furto e à queixa da seguradora que, ainda assim, declina a responsabilidade com base nas suspeitas que conduziram à queixa. O Supremo decide que a queixa, se arquivada, não tem fundamento justificativo do atraso no pagamento da indemnização, pelo que é de reconhecer o direito do segurado à indemnização por privação do uso do veículo, atento que o princípio do indemnizatório não obsta à cumulação do pagamento da quantia contratada com a indemnização que satisfaça os danos ocasionados pela violação de protecção, inerentes à falta de resposta tempestiva da Ré[36].
- Ac. do STJ de 23-11-2017: o segurador recusa o pagamento da quantia contratada sem apresentar qualquer justificação substanciada. O Tribunal decide que não se trata de mora mas sim de uma recusa ilegal de pagamento, pois o segurador não tem o direito a protrair a liquidação do sinistro ou a recusa-la sem justificação. Tal actuação configura um exercício abusivo dos prazos que a lei confere para efeitos de determinação e quantificação dos sinistros a realizar junto dos segurados, em violação da boa fé e que justifica que seja responsável pelos danos que decorrem dessa recusa de pagamento, designadamente, a privação de uso do veículo[37].
- Ac. do STJ de 23-11-2017: feita a participação do sinistro e após breve análise, o segurador comunica que não iria proceder á regularização do sinistro por concluir, sem mais, que o sinistro não ocorreu de acordo com as circunstâncias participadas. O Tribunal considera que por decorrência da boa fé, ao segurador está vedado protelar injustificadamente o ressarcimento de modo a evitar ao lesado, além dos incómodos que o acidente lhe trouxe, a privação do uso de veículo provocada pelo atraso da seguradora, que justifica a indemnização suplementar[38].
- Ac. do STJ de 08-11-2018: a tomada de posição, pelo segurador, no sentido de recusar o pagamento da prestação convencionada cinco meses após a participação, não é compatível com o dever de diligência que se exige de uma empresa cujo escopo é o de dar uma resposta célere ou em tempo razoável na instrução e decisão dos seus processos. Por isso, verificado que um injustificado atraso gerou um dano para o segurado (na medida em que o pagamento de uma indemnização integraria, no devido tempo, no preço de aquisição de outro veículo), o dano de privação do uso deve acrescer ao do pagamento da quantia garantida pelo contrato[39].
- Ac. do STJ de 27-11-2018: o segurador, previamente a tomar posição sobre o sinistro (nomeadamente, para recusar o pagamento), deve cuidar de indagar, de forma diligente, os fundamentos para a recusa da prestação, de modo a obviar o exercício abusivo do direito de recusa da realização da prestação, em face do fim social e económico do direito (art. 334.º do CC). Se assim não for, não é tanto o seu atraso mas a violação dos seus deveres diligência, decorrentes da boa fé, que fundamentam a pretensão do segurado[40].
Esta jurisprudência do Supremo vem já fazendo eco junto dos Tribunais de Relação, que analisando a questão, concluem existir uma viragem jurísprudencial:
- Ac. do TRC de 28-05-2019: Veículo furtado. Entre o segurador e beneficiário gera-se uma disputa sobre o valor seguro, pretendendo o primeiro suportar um valor inferior ao entendido pelo segundo. No intermédio, não é feito qualquer pagamento. Exigindo o pagamento, o segurado acrescenta um pedido de indemnização pe irivação do uso de veículo. O Tribunal reconhece que não estando a cobertura de tal risco convencionada no contrato, o atraso do segurador na realização da prestação convencionada, mesmo que causal de tais danos, não seria devido por força do art. 806.º, n.º 3 do CC. Todavia, reconhece que esse entendimento "vem sendo colocado em crise em diversas decisões dos nossos tribunais superiores” e condena o segurador com base na violação dos deveres acessórios de conduta[41].
- Ac. do TRE de 19-11-2020: participado um incêndio em veículo, o segurador, após breve averiguação, informou que não assumia o sinistro por não ter resultado provada a ocorrência do sinistro nos moldes participados, sem que, no entanto, tenha prestado qualquer outra explicação, nem tenha apresentado o relatório de averiguação, que lhe foi solicitado. A Relação, após reconhecer que os limites do seguro de dano não incluem indemnizações que não as constantes do contrato, reconhece que esse entendimento “vem sendo colocado em crise”, aderindo ao entendimento recente do Supremo em estabelecer a cargo do segurador os danos decorrentes do atraso injustificado na realização da prestação convencionada[42].
(...) A análise da jurisprudência referente, permite-nos enunciar que a mais recente tendência faz sobressair as exigências de boa fé, substanciado no dever de diligência na gestão dos sinistros e no dever de celeridade na execução dos procedimentos, com o propósito de garantir a efectivação dos direitos dos segurados, atendendo, de modo particular, à posição de consumidores. É uma jurisprudência que segue a densificar a moderna expansão juscientífica de aperfeiçoamento no campo do direito civil: os deveres acessórios de conduta[43].
Parece-nos, pois, que a preocupação traçada por esta jurisprudência, é a de garantir a conjugação dos deveres de lealdade e equilíbrio da relação contratual com o de celeridade. Basta atentar que a falta de pagamento do prémio dá lugar à perda de cobertura (no premium, no risk: art. 59.º do RJCS) e a falta de pagamento da cobertura não daria, por princípio, lugar a qualquer prejuízo para o segurador (além do eventual juro moratório), desvirtuando e desincentivando o ónus de cumprimento integral e pontual da obrigação pelo segurador.
Afigura-se, pois, que a mais recente jurisprudência segue o espírito que subjaz a uma sã relação jurídica de seguro e acautela, de modo adequado, quem no âmbito do contrato se revela economicamente mais vulnerável.
(...)
O dever de prestar do segurador, verificando-se o risco previsto, queda-se pela entrega do valor correspondente ao interesse seguro ao tempo do sinistro: nisso consiste o princípio do indemnizatório, previsto nos arts. 128.º a 130.º do RJCS, o qual assume um papel central do campo do seguro de dano. É através desta regra que se delimita o prejuízo coberto pelo risco seguro ou, numa outra formulação, é através dela que se garante que a responsabilidade do segurador não vai além do interesse que se pretende garantir com a conservação ou a integridade de coisa, direito ou património seguros (art. 43.º, n.º 2 do RJCS).
Na expressão do art. 128.º RJCS, “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro (...)", daí se excluindo os lucros cessantes decorrentes do sinistro e o eventual dano de privação do uso do bem, excepto se expressamente convencionado o seu ressarcimento (n.ºs 2 e 3 do art. 130.º do RJCS).
Portanto, em caso de sinistro, o segurador assume o prejuízo apenas na medida da prestação convencionada. Caso o prejuízo exceda esse montante, será o segurado quem responderá na medida da diferença da sua perda, decorrendo deste princípio a limitação em caso de subseguro, de modo a garantir a “equivalência das prestações entre as partes do contrato de seguro de danos”[44]. De facto, como refere José Vasques, “o carácter não especulativo do contrato de seguro é bem expresso pelo princípio do indemnizatório, segundo o qual o segurado deve ser ressarcido do prejuízo que efectivamente sofreu, não podendo o seguro constituir fonte de rendimento para os lesados: excedendo o seguro o valor do objecto, só é válido até à concorrência desse valor. Impede-se assim, que o segurado provoque dolosamente o sinistro para obter um lucro, evitando- -se também especulações imorais"[45].
Não se trata aqui, portanto, de colocar um terceiro lesado na situação em que estaria se não tivesse ocorrido o sinistro, mas sim de cumprir, junto do beneficiário, a prestação contratualmente prevista.
Temos, portanto, que o indemnizatório tem em vista, na sua essência, a proibição do enriquecimento do beneficiário e o evitar o carácter especulativo do seguro[46], de tal modo que a ideia central que lhe subjaz é a de evitar que o segurado possa ter um lucro com o dano por via da intervenção do segurador. Com isso, “a doutrina refere a relegação do mesmo para o seu significado finalista, de declaração de princípios prevenidora de abusos, de enriquecimento excessivo e, no limite, de fraude - concepção a que o RJCS aderiu”[47].
Importa, visto isto, sopesar que a responsabilidade atinente aos danos calculados pelo contrato e os danos decorrentes do incumprimento do contrato são coisas totalmente distintas: se o princípio do indemnizatório tem uma função de salvaguarda da actividade seguradora, na medida em que limita duplamente a responsabilidade do segurador ao valor do capital seguro contratado em caso de verificação do risco (acidente, furto, roubo, incêndio, etc.) e ao valor do risco segurado (valor do objecto seguro à data do sinistro, se inferior ao primeiro), ambos quanto aos danos calculados pelo contrato, o mesmo não se liga às condutas violadoras do contrato que o segurador possa tomar. Seria contraditório permitir-se o recurso a um mecanismo de defesa contra abusos dos segurados, para se prevalecer de abuso próprio sobre esses sujeitos.
Desta forma, o princípio do indemnizatório nada diz quanto a eventuais danos ocasionados pelo incumprimento do contrato, nomeadamente, os relacionados com o indevido não cumprimento da prestação. Na verdade, não sendo raros os casos de injustificada recusa ou atraso na regularização do sinistro, entender o princípio do indemnizatório como um limite inultrapassável à responsabilidade do segurador, teria um duplo efeito negativo: por um lado, premiar a impunidade de eventuais comportamentos desleais adoptados; por outro, desincentivar os deveres de diligência e de lealdade do segurador perante o seu segurado nos comportamentos a adoptar.
Todavia, é vária a jurisprudência “clássica" que encontra no princípio do indemnizatório, o limite intrínseco às pretensões indemnizatórias dos segurados, o que no limite pode aproximar o princípio do indemnizatório de uma cláusula de limitação ou mesmo de exclusão da responsabilidade civil na inexecução da relação contratual (arts. 809.º e 811.º, n.º 2 do CC)[48].
De alguma forma, surpreende-se que neste caso, a categoria da indemnização deve funcionar a título substitutivo da prestação (...), pelo que podemos dizer que o incumprimento do dever (primário) de prestar, manifesta-se apto a gerar, em abstracto, uma resposta substitutiva da não-realização do dever contratado, permitindo que a indemnização surja como o factor compensador ou substitutivo da não-realização desse dever primário contratado (art. 798.º e ss. do CC).
O que importa sublinhar, em nosso ver, é que o incumprimento do dever de prestar do segurador tem de ser encarado, não à luz das limitações do princípio do indemnizatório, mas antes segundo as normas gerais relativas ao direito do cumprimento e da responsabilidade em caso de incumprimento (arts. 762.º e ss. e 798.º e ss. do CC).
Por isso, há que concluir que o princípio do indemnizatório está estrutural e funcionalmente ligado à prestação principal convencionada, o qual não se confunde com as perturbações eventualmente decorrentes de uma má execução do programa contratual, pelo que não vemos que o princípio do indemnizatório seja um limite inultrapassável à responsabilidade do segurador.
(...)
Na sequência da inexecução tempestiva e culposa da prestação debitória, o devedor fica constituído na obrigação de proceder à reparação dos danos daí decorrentes (art. 804.º do CC), o que tanto inclui os danos emergentes como os lucros cessantes, de acordo com o sistema geral da obrigação de indemnização (art. 562.º e ss. do CC).
Todavia, na obrigação pecuniária, i. e., aquela cuja prestação tem por objecto dinheiro e que por meio da sua entrega visa proporcionar ao credor o valor correspondente à espécie monetária entregue, o legislador instituiu um regime especial quanto ao reflexo da mora, reconhecendo-lhe desde logo um direito indemnizatório correspondente aos juros a contar do dia da constituição em mora (art. 806.º, n.ºs 1 e 2 do CC), o que bem se compreende se tomarmos em consideração que o dinheiro gera natural rendibilidade, ou que pelo menos, pode ser especialmente difícil quantificar com exactidão os danos causados pela indisponibilidade do dinheiro num certo período temporal.
(...) em 1983 o legislador aditou, através do DL n.º 262/83, de 16 de Junho, “um n.º 3" ao art. 806.º do CC, concedendo que o credor pudesse provar que a mora lhe causara dano superior aos juros e exigir, ao devedor, uma indemnização suplementar, mas com uma limitação muito significativa: apenas quando o crédito derive de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco (n.º 3 do art. 806.º do CC) ou como se adianta no preâmbulo desse diploma, limitado “apenas à responsabilidade civil extracontratual”.
(...)
Aqui chegados, parece claro que o legislador pretendeu excluir a ressarcibilidade dos danos superiores ao juro em caso de mora do devedor quando a obrigação pecuniária tem a sua fonte na responsabilidade obrigacional.
Retirando deste âmbito os casos em que na interpretação do contrato (art. 236.º e ss. do CC), seja possível configurar a prestação do segurador como uma obrigação não pecuniária[49] (o que se poderá cogitar com alguma facilidade perante cláusulas de entrega de veículo novo ou de reparação in natura, expressamente consentidos pela lei ao abrigo da liberdade de estipulação: art. 102.º, n.º 3 do RJCS), não é fácil de encontrar uma forma de restabelecer o equilíbrio contratual, sem se demonstrar uma certa intencionalidade no incumprimento. E, daí, a existência de uma certa harmonização de crítica doutrinaria ao referido normativo[50].
Isto é, em face do direito constituído, está claro que o legislador pretendeu encontrar um meio-caminho: facilita a prova do dano, ficcionando sempre a sua existência por via do juro; por outro lado, limita “de modo inultrapassável"[51] a prova de dano superior na obrigação pecuniária.
É que tal como já antes aludiam Manuel de Andrade e Vaz Serra, nos casos em que o devedor não liquida em tempo a obrigação a que está adstrito, tendo possibilidades para isso, nomeadamente, porque recolheu toda a informação necessária ou não o fez por sua exclusiva responsabilidade, e assim lesa o credor, a solução legal presta-se a graves injustiças, deixando impunes condutas que seriam prevenidas ou pelo menos reprimidas se a regra do art. 806.º, n.º 3 do CC, fosse aqui igualmente aplicável à responsabilidade contratual, à luz do que sucede noutros ordenamentos congéneres.
Basta pensar que a solução adoptada pela nossa lei civil permite, tal como existe hoje, os apelidados “incumprimentos oportunistas” ou meros “incumprimentos eficientes”, bem conhecidos da análise económica do direito[52] e que, em síntese, mais não são do que o afloramento de uma certa visão de promoção egoística dos interesses económicos por uma das partes no contrato, independentemente dos efeitos ou impactos que essa conduta possa vir a causar na contraparte. Disso é sintomático que perante a indiferença do devedor, o incumprimento poderá constranger o credor a procurar desfavoráveis ou ser forçado a adquirir bens sucedâneos em piores condições do que aquelas que teria se houvesse recebido tempestivamente a prestação devida.
Contudo, a restrição legal, por muito datada ou desarmónica, não pode ser analisada fora do contexto do sistema em que se insere, onde um dos seus principais vectores - a boa fé - “normativiza certos factos” inseridos na dinâmica de esforços exigidos às partes no contrato e que em muito transcende o estrito âmbito individual[53]. Podemos então dizer que o Direito obriga a que, em certas circunstâncias, “as pessoas não se desviem dos propósitos que, em ponderação social, emerjam da situação em que se achem colocadas: não devem assumir comportamentos que a contradigam - deveres de lealdade - nem calar ou falsear a actividade intelectual externa que informa a convivência humana - deveres de informação”[54].
São estes deveres que, algo inovatoriamente nesta temática, têm sido ventilados pela recente viragem da jurisprudência nacional em casos de mora do segurador, o que vem sendo feito, à luz de um ideário axiológico-normativo de justiça, como forma de superar os obstáculos de uma visão restritiva e, quiçá, desactualizada do legislador, com impactos negativos na função económica e social do contrato de seguro.
(...)
No direito civil, o papel da boa fé e dos institutos a ela ligados, nomeadamente, a dos deveres acessórios de conduta, tem merecido particular atenção dos cultores da ciência-jurídica, que a consideram uma das “áreas mais estimulantes’’[55] e, com isso, influenciam e enriquecem a produção da jurisprudência lusa. Esta importância dos deveres acessórios será tanto mais visível quanto mais a relação obrigacional (alicerçada na ideia de confiança normativamente ligada à boa fé), perdure no tempo, como sucede no campo segurador, onde o seguro visa precisamente cobrir certos riscos durante um dado lapso temporal ajustado pelas partes.
De facto, o direito dos seguros tem na apólice e nas cláusulas aplicáveis, a sua primeira e muitas vezes única realidade materializada, já que a celebração do acordo não dá lugar a actos palpáveis, como a transferência de domínio. Portanto, reduz-se a escrito as prestações previstas no documento denominado apólice (art. 32.º, n.º 2 do RJCS), que corporiza as condições estipuladas entre as partes, pelo período contratado.
Com isso, estabelece-se uma relação jurídica que normalmente só convoca o segurador em caso de verificação do risco previsto. Significa, pois, que é um contrato que se prolonga no tempo e que só eventual e pontualmente surgem materializações em serviços de assistência ou de compensação do beneficiário. Portanto, é um contrato que pressupõe entre os sujeitos contraentes, uma cooperação contínua, mútua e de boa fé[56].
(...) Ao ter por base um vínculo de prestações variadas e mútuas, a sua estrutura é a de uma relação contratual complexa[57], pois alberga no seu seio, de forma unitária e em atenção a uma identidade de fim, uma pluralidade de elementos que de acordo com a dogmática geral das obrigações, podem ser enquadrados em prestações principais, secundárias, deveres acessórios que envolvem a relação jurídica estabelecida, bem como direitos potestativos (direito de anulação, de resolução, etc.), sujeições, excepções, ónus jurídicos e expectativas jurídicas.
Interessa-nos, neste âmbito, depurar que deveres são esses que se ligam à prestação e que a jurisprudência tem invocado como fundamentadores de uma certa responsabilidade contratual do segurador.
De acordo com a dogmática geral[58], o dever de prestar integra, além da prestação principal, eventuais prestações secundárias e deveres acessórios.
(...) Os deveres (principais) de prestação corresponderão aos elementos centrais da relação jurídica, que normalmente definem o tipo contratual em causa: é o que sucede com o dever do tomador prestar declarações exactas relativamente às circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador (art° 24.º, n.º 1 da RJCS), designadamente, sobre o bem que pretende segurar, a pré-existência ou não de vícios sobre a coisa ou quais as pessoas interessadas no seguro. Portanto, serão principais os deveres que a relação obrigacional tome em consideração para delimitar o conteúdo, a finalidade do contrato e os interesses das partes decorrentes do vínculo formado. Desta forma, na relação de seguro, além das prestações principais que corporizam o contrato celebrado (pagamento do prémio - para o tomador - e cobrir o risco segurado em caso de verificação do sinistro - para o segurador), o teor do informativo assume elevadíssima relevância, já que todo o contrato assenta no teor da informação partilhada.
Cabe igualmente ao segurador, para uma correcta compreensão e determinação do interesse do tomador no seguro e do risco assumido, um dever geral de esclarecimento que o habilite à compreensão das condições do contrato, concretizando ainda os elementos de informação a constar obrigatoriamente de documento escrito disponibilizado ao tomador do seguro, antes de este se vincular.
(...) No que concerne aos deveres secundários ou prestações secundárias, surgem por sua vez funcionalmente ligados à prestação principal mas não integram o cerne do contrato, antes estão funcionalmente adstritas a reforçar ou complementar o sentido da prestação principal[59]. São, portanto, deveres que coadjuvam o pleno exercício da prestação principal, como seja o dever do tomador disponibilizar previamente o objecto que se pretende segurar (para que o segurador o possa inspeccionar, acautelando eventuais vícios e determine o valor do interesse protegido) ou, ao segurador, disponibilizar os documentos apropriados para o caso de sinistro, como seja a declaração amigável de acidente automóvel.
(...)
Além dos mencionados deveres de prestação primários e secundários, uma outra categoria de deveres assume um significado não despiciendo na fenomenologia da relação contratual. Inexiste unanimidade relativamente à sua terminologia, sendo várias as designações propostas pela doutrina para cobrir uma mesma realidade (“deveres de protecção”, “outros deveres de conduta”, “deveres laterais”, “deveres acessórios de conduta” ou “deveres secundários de conduta"), a que nos reportaremos somente como deveres acessórios de conduta, terminologia estabilizada na escola de Lisboa[60].
Trata-se de deveres que, não estando directamente ligados à execução da prestação principal (antes funcionam em paralelo), estão ao serviço da plena consecução dos interesses globais visados pela relação contratual, dado que o fim do contrato é mais amplo que o interesse creditório na prestação: ao credor não basta a realização da prestação, mas que tal prestação tenha lugar em determinadas condições, nomeadamente, nas que garantam a integridade da sua pessoa e do seu património[61]. É, por isso, fácil compreender que estes deveres são especialmente frequentes nas relações duradouras ou que impliquem uma especial relação de confiança ou de cooperação entre as partes, sendo o contrato de seguro o exemplo acabado. Acentua-se que estes deveres, todavia, podem surgir em qualquer espécie de relação obrigacional e tanto podem recair sobre o devedor como sobre o credor da prestação principal, traduzindo-se quer num facere (dever de informar, de colaborar, etc.) quer num non facere (abstendo-se de actos que possam prejudicar interesses da contraparte).
Estes deveres radicam directamente do princípio da boa fé, que estruturalmente atravessa o direito civil, já que dos mesmos deriva a exigência de um certo “padrão de conduta” eticamente exigido no campo contratual[62], conforme determina não só o art. 762.º, n.º 2 do CC, mas também vários outros normativos dispersos mas ligados à relação de seguro[63]. Por isso, a boa fé desempenha um importante papel não só ao nível da determinação das prestações, como na concretização dos deveres associados e do nível de esforço exigível ao devedor no cumprimento.
De acordo com a sistematização proposta por Menezes Cordeiro, que vem sendo largamente aceite pelos práticos do direito, especialmente a partir da década de 90 do Séc. XX[64], os deveres acessórios podem distinguir-se em:
- Deveres de informação: ligados à correcta e mútua transferência de conhecimento relevante em todas as fases do contrato, incluindo a necessária colaboração ao cumprimento dos fins prosseguidos com a relação estabelecida.
- Deveres de lealdade: que funcionam como um prius em relação aos deveres de informação, pois consistem numa conduta de honesta cooperação, com vista a minimizar prejuízos ou dificuldades para a contraparte.
- Deveres de protecção: que visam abranger todos os riscos a que as partes se expõem, por causa e por conta da execução do contrato.
As considerações acabadas de tecer, reconduzem à conclusão de que o processo de execução contratual, enquanto instrumento de cooperação, não é imune a valorações axiológicas, designadamente, a ideia de que muito para além de perspectivas formalistas, as partes devem adoptar comportamentos sérios, com vista a garantir a integridade do fim do contrato, face às expectativas determinadas pela função económica e social da relação contratual”[65].
Seja como for, é de realçar que os deveres acessórios de conduta se distinguem claramente dos deveres de prestação, na medida em que os primeiros podem surgir independentemente da relação obrigacional de onde emergem os segundos (sendo, aliás, especialmente visíveis e controversos no âmbito pré-contratual: art. 227.º do CC), além de que não dão origem a qualquer acção autónoma de cumprimento (arts. 817.º e ss. do CC)[66]. Contudo, de capital importância, a sua violação pode determinar a obrigação de indemnizar os danos causados à contraparte[67] ou conduzir à resolução do contrato[68].
No âmbito de um contrato de seguro, a ocorrência do sinistro gera para a seguradora, como referido supra, o dever de realizar a prestação convencionada. E, tratando-se de um contrato de seguro de dano em coisa, essa liquidação consiste “no pagamento de um determinado capital ou renda previamente fixados na apólice («prestação convencionada»)"[69]. No entanto, o dever do segurador não se basta com o cumprimento: é necessário que esse cumprimento se relacione com o sucesso de um resultado não alheio ao interesse do credor nessa prestação (arts. 397.º, 398.º, n.º 2 e 762.º, n.º 2 do CC)[70], em conformidade com a vontade presumível que dois contraentes leais e honestos prosseguiriam (art° 239.º do CC) na obtenção do resultado por eles visado.
O atraso no cumprimento, quando desmesurado ou injustificado, aponta para uma quebra do equilíbrio contratual, com a potencial violação do princípio da boa fé, que se manifesta na necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adoptar o comportamento que se espera de um parceiro negociai honesto e leal. Não é por isso de descurar que um atraso irrazoável seja apto a causar danos ao segurado, que mais das vezes contrata este tipo de seguro precisamente para conseguir substituir, com prontidão, o objecto segurado por um outro similar ou equivalente.
Há que notar que não raras vezes, o objecto segurado tem associados financiamentos à sua aquisição, que podem perdurar durante anos após a destruição do bem, o que não é difícil de compreender que embaraçará mais das vezes as hipóteses do segurado contratar um segundo financiamento para aquisição de um outro bem que satisfaça as mesmas necessidades equivalentes às do bem seguro.
Por isso, é fácil de compreender que o pagamento da prestação contratada permitirá ao segurado, no devido tempo, investir no preço de aquisição (substituindo ou reparando o bem afectado ou dissipado), aproximando-se assim, o mais breve possível, da situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o dano, como escopo da protecção contratada através do seguro. De outro lado, a não prestação culposa da sua parte do contrato, pelo segurador, terá o efeito de agravar, pelo menos potencialmente, a posição do segurado.
Este dever de liquidação tempestiva da prestação contratada está tanto mais ligado à boa fé que o RJCS é omisso quanto ao processo de regularização do sinistro, visto que apenas estipula que o segurado ficará sujeito ao prazo de 30 dias para a realização da prestação pelo segurador (arts. 102° e 104° do RJCS)[71], “após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”. É por isso de sublinhar que na economia do contrato, o dever de salvamento - ligado ao dever de proceder de boa fé - impõe ao segurado um dever jurídico de agir de modo a evitar desvantagens para o segurado. Mas também sobre o segurador, decorrente da boa fé, impende igualmente um dever jurídico de agir no sentido de evitar perdas para o segurado.
A apontada omissão procedimental quanto à regularização do sinistro e o auto-cometimento ao segurador na adequação do prazo para a realização da prestação devida devem, desta forma, ser preenchidos com a aplicação de critérios gerais em termos de diligência e de boa fé, tanto mais que é essa a bitola da actividade seguradora: actuar “de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados"[72].
É certo que assume grande relevância a tomada de posição sobre a assunção ou não da responsabilidade coberta pelo contrato, pelo que se compreende que, ocasionalmente, a regularização do sinistro imponha um conjunto de procedimentos que podem conduzir a uma certa dilação temporal. O primeiro aspecto está ligado à participação do sinistro, que se deve basear em informação verdadeira e relevante ao seu enquadramento (art. 100.º, n.ºs 2 e 3 do RJCS). Mas nem só o segurado tem o dever de prestar declarações conformes com a verdade. Também sobre o segurador, ao abrigo do mencionado dever de agir, recai o dever de se esclarecer devidamente, solicitando os elementos que entenda necessários e relevantes a atestar a veracidade das declarações prestadas, ou mesmo procedendo oficiosamente a averiguações junto das entidades públicas ou privadas, sindicando, desta forma, livremente, a conformidade ou desconformidade daquelas declarações[73].
Se a lei exige do segurado condutas não inertes quanto à mitigação do risco, podemos aqui também referir que não pode o segurador adoptar procedimentos de inércia ou falta de diligência quanto à sindicância da veracidade ou inexactidão de elementos que ela própria considere essenciais para a formação da sua vontade de aceitar ou repudiar a proposta de contrato de seguro para, uma vez verificado o risco coberto pelo contrato, invocar quaisquer desconformidades aleatórias com vista à invalidade do contrato[74] ou à recusa da sua prestação.
Pode assim afirmar-se que na fase de apuramento ou análise do seu dever de prestar, recai sobre o segurador um ónus de indagação das condições do sinistro, com vista à inclusão ou exclusão das coberturas. Todavia, recai sobre si um dever de fundamentação, ancorada nos elementos disponíveis (ou de que poderia razoavelmente dispor, se adoptada uma conduta diligente), quanto aos factos e normas (legais ou contratuais) que impõem uma recusa da prestação, atendendo à relevância e utilidade que essa prestação representaria para o credor.
De facto, acomete-se ao segurador, enquanto parte mais forte na relação de seguro, um especial dever de cuidado e de protecção do seu segurado, a integrar através dos referidos deveres, a apontar para que ao parceiro segurador, quando decline a cobertura, seja vedado o refúgio em jargões inócuos[75] ou a tomada de posição no sentido da recusa de pagamento sem que previamente adopte a diligência devida (due deligence) na averiguação da existência do sinistro, causas e extensão dos danos, conforme legalmente exige a ética do comércio a um segurador normalmente diligente e previdente em face das circunstâncias do caso está adstrito (arts. 762.º, n.º 2 e 487.º, n.º 2, ex vi o art. 799.º, n.º 2 do CC).
Uma vez que tais incumprimentos podem redundar num desmesurado alargamento dos casos ou âmbito de responsabilidade, verificada uma possível violação de um dever de conduta, torna-se determinante enquadrar tal violação no “perímetro contratual”[76].
Numa primeira aproximação, os deveres acessórios estão associados à boa fé e, com ela, às condutas expectáveis das partes: encontra-se a primeira delimitação nas condutas activas ou omissivas que sejam decorrentes ou que se encontrem em conexão com a economia do contrato, daqueloutras que correspondem a deveres gerais. Avalia-se o escopo do contrato ou fim prosseguido pelas partes.
Realizada essa tarefa, liga-se o dever violado à situação desvantajosa, de acordo com uma relação idêntica à doutrina da causalidade[77]. Se a violação falseia o objectivo do negócio ou desequilibra o jogo das prestações, há responsabilidade. Note-se que a violação destes deveres pode ser cometida por ambos os sujeitos da relação jurídica: comportamentos que desconsiderem, de forma desonesta, os prejuízos que causam à contra-parte (v.g., solicitar ao segurado, de forma fraccionada, documentos de pouca ou nenhuma relevância ao caso, para “ganhar tempo” numa eventual investigação minuciosa), causando consabidamente prejuízos relevantes, pode permitir uma pretensão autónoma indemnizatória, distinta do direito à prestação previsto contratualmente (e, por isso, não contida na limitação do n.º 3 do art. 806.º do CC); mas também a ocultação de informação relevante ou criação artificial de danos pelo segurado, pode conduzir ao mesmo resultado, tornando-se inversa a posição material».
Foi, porventura demasiado extensa a citação efetuada!
Ela tem, contudo, a vantagem:
- de nos habilitar a concluir com segurança, crê-se, que um contrato de seguro automóvel facultativo, de danos próprios, comporta, para além do capital contratado, o dever de a seguradora indemnizar o segurado relativamente a danos por este sofridos, em consequência da recusa ou retardamento injustificados no cumprimento da prestação principal: a entrega ao segurado do valor do capital contratado; e,
- de nos ajudar a decidir se o autor tem o direito de ver a ré condenada a indemnizá-lo por alegado dano de privação do OI.
Com relevo para a decisão desta questão, está provado o seguinte:
a) o sinistro ocorreu no dia 1 de fevereiro de 2021;
b) logo no dia seguinte o autor participou o sinistro à ré;
c) no circunstancialismo de tempo em lugar em que ocorreu o sinistro, «o pneumático traseiro do lado direito da viatura __-OI-__, na perspetiva da marcha em frente, tinha um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade entre 1,00 mm e 1,02 mm»;
d) no dia 7 de fevereiro de 2021 «foi elaborado um relatório de peritagem pela oficina indicada pelo Autor, S, Lda., situada em ____, a qual orçamentou o custo da reparação da viatura __-OI-__ em € 25.998,06»;
e) a cláusula 40.ª, al. g), das condições gerais da apólice do contrato de seguro facultativo de danos próprios celebrado entre o autor e a ré, referente ao OI, tem a seguinte redação:
«Para além das exclusões previstas na cláusula 5.ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações:
 (…)
g) Danos provocados ou agravados por defeito de construção, montagem ou afinação, vício próprio ou má conservação do veículo.»
f) No dia 23 de fevereiro de 2021 a ré informou o autor que após peritagem ao OI verificou que a estimativa de reparação (€ 25.998,06) era excessivamente onerosa face ao valor seguro à data do sinistro (€ 25.349,70), considerando que o veículo com danos tinha sido avaliado em € 12.044,00, comunicando-lhe que embora não fosse possível, naquela data, assumir uma posição quanto à sua responsabilidade, colocaria condicionalmente à sua disposição a quantia de € 13.055,70;
g) (...) e no dia seguinte, 24 de fevereiro de 2021, enviou uma missiva ao autor, comunicando-lhe o seguinte:
«(...)
Em resposta serve a presente para informar V/Exa. que, após análise do processo, verificamos que não é da nossa responsabilidade a regularização do presente sinistro, em virtude do disposto na Apólice de Seguro Automóvel, mais concretamente ao nível da cláusula 40.ª, número 1, alínea g) – Exclusões às coberturas facultativas, das Condições Gerais.
Com efeito e atento o conteúdo do referido clausulado, encontram-se excluídos os sinistros “danos provocados ou agravados por defeito de construção, montagem ou afinação, vício próprio ou má conservação do veículo”, onde se enquadra o estado dos pneumáticos que apresentavam nos relevos principais uma altura inferior a 1,6 mm, infringindo, assim, o disposto no art. 6.º do decreto-Regulamentar 7/98.
Se pretende obter algum esclarecimento adicional, por favor contacte-nos através de um dos meios abaixo indicados.»
A ré foi absolvida em 1.ª instância da totalidade dos pedidos contra si formulados pelo autor, incluindo, portanto, o pedido de condenação na reparação do dano por privação de uso do veículo.
Um dos fundamentos vertidos na sentença recorrida para tal absolvição foi, precisamente, a violação, pelo autor, do estatuído no art. 6.º do Decreto-Regulamentar n.º 7/98, de 6 de maio.
Veja-se o que a este propósito ali se afirma:
«Por seu turno, o Decreto Regulamentar n.º 7/98, de 6 de maio, que estabelece normas relativas a dispositivos limitadores de velocidade e define o relevo dos desenhos dos pisos dos pneus, prevê, no seu artigo 6.º, o seguinte:
(...)[78].
De acordo com o facto provado em 9., à data do acidente o pneu traseiro do lado direito do veículo em causa tinha um perfil / relevo na parte central entre 1,00 mm e 1,02 mm. Essencialmente por tais medidas serem inferiores à medida mínima de 1,6 mm prevista na norma supra citada, a Ré defende que se encontra preenchida a exclusão da cobertura prevista na cláusula 40.ª, n.º 1, al. e)[79] das Condições Gerais.
Na esteira das declarações da testemunha CF, o perito averiguador que o Autor contratou, foi contra-argumentado que o estado do pneu traseiro não violava o artigo 6.º, n.º 1 do Decreto Regulamentar n.º 7/98, de 6 de maio, porque a medida inferior do relevo apenas se situava na zona central do pneu, tendo as zonas laterais medidas superiores a 1,6 mm. Segundo essa contra-argumentação, tais zonas laterais correspondem a, pelo menos, ¾ do pneu, sendo suficiente que o pneu tenha, em pelo menos ¾, um relevo superior a 1,6 mm para poder circular em condições de segurança e, assim, cumprir a norma em causa.
Tal argumento não nos parece, desde logo, rigoroso, uma vez que, como se sabe, um pneu tem cinco sulcos, dois laterais ou exteriores, e três centrais, ou interiores, pelo que se nos afigura duvidoso que seja possível afirmar, sem qualquer outro dado, que os rastros laterais do concreto pneu do veículo do Autor cobriam ¾ desse pneu.
Depois, note-se que o n.º 1 do artigo 6.º estabelece que o pneu tem de apresentar “em toda a circunferência da zona de rolagem” desenhos com a altura de, no mínimo, 1,6 mm nos relevos principais, e não apenas em ¾ da circunferência da zona de rolagem.
 A referência aos ¾ por parte do mencionado perito averiguador advirá, talvez, de alguma confusão com o que estabelece o n.º 3 do mesmo artigo, quando esclarece que os relevos principais são os relevos largos situados na zona central da superfície de rolagem, correspondente a três quartos da largura desta superfície. Salvo melhor entendimento, o que se pretende dizer com esta norma é que a zona central da superfície de rolagem, onde estão localizados os relevos largos, corresponde a ¾ da zona total da superfície de rolagem.
Mas tal não significa que, nessa zona central da superfície de rolagem assim definida, os pneus apenas tenham que apresentar desenhos com a medida mínima em ¾ da mesma. Caso assim fosse, o n.º 3 estaria em contradição direta com o n.º 1, que estabelece que os pneus devem apresentar desenhos com uma altura mínima de 1,6 mm nos relevos principais em toda a circunferência da zona de rolagem (e não apenas em ¾ dessa zona de rolagem). Entendemos que as normas em questão não podem ser interpretadas dessa forma, não só porque o elemento literal não aponta nesse sentido (cf. artigo 9.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil), como também porque o artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil impõe que o intérprete presuma que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento de forma correta (e não com contradições, portanto).
Por outro lado, o argumento teleológico de interpretação também nos leva a considerar que todos os relevos principais da zona de rolagem devem observar a altura mínima legalmente definida, uma vez que, sendo um pneu uma roda, todos esses relevos tocam, em dada altura da rolagem, no solo. Ora, sendo uma das funções dos pneus, e em particular dos relevos principais, promover a aderência ao solo, bastará que uma parte desses sulcos esteja desgastada (abaixo do mínimo legalmente previsto) para que essa aderência seja inferior.
Em suma, entendemos que o facto de o pneu traseiro direito do veículo do Autor apresentar na parte central desenhos com uma altura inferior a 1,6 mm é suficiente para considerar que tal infringia o disposto no artigo 6.º, n.º 1 do Decreto Regulamentar n.º 7/98, de 6 de maio.
(...)
Assim, uma vez que o pneu traseiro direito do veículo do Autor apresentava um perfil / relevo na parte central entre 1,00 mm e 1,02 mm (inferior ao mínio legal de 1,6 mm), o que é caraterizado como uma deficiência de tipo 3 (considerada muito grave), tal veículo estava em incumprimento quanto aos ditames referentes à inspeção periódica obrigatória.
(...) tendo em conta a dinâmica do acidente (que não envolveu a intervenção de outros veículos quanto a choques ou colisões), o estado do piso (molhado) e o facto de o pneu traseiro do lado direito estar com os sulcos da zona central desgastados (por terem uma profundidade inferior à legalmente prevista), conclui-se que foi a conjugação entre o estado desse pneu e o piso molhado o que causou o sinistro, existindo, assim, contribuição do mau estado do veículo para a ocorrência do mesmo.
Considerando o que se acaba de expor, entendemos que o mau estado de conservação do veículo, no que se refere ao pneu traseiro do lado direito, contribuiu para a causação do sinistro, pelo que também se encontra preenchida a exclusão prevista na alínea g) do artigo 40.º, n.º 1 das Condições Gerais.
Face ao exposto, concluímos que se encontram preenchidas as exclusões da cobertura de danos próprios previstas na cláusula 40.ª, n.º 1, alíneas e) e g) das Condições Gerais do contrato de seguro celebrado entre as partes. Tal tem como efeito excluir a responsabilidade da Ré pagar qualquer indemnização ao Autor ao abrigo dessa cobertura do contrato de seguro, incluindo a indemnização de privação do uso, pelo que a ação deve ser julgada totalmente improcedente[80]».
A factualidade supra descrita em a) a g), conjugada com as citadas passagens da sentença recorrida evidenciam, a nosso ver, que à ré não pode ser imputada a violação de qualquer dever acessório de conduta.
Tendo o sinistro ocorrido no dia 1 de fevereiro de 2021, logo no dia 7 de fevereiro de 2021 foi elaborado o relatório de peritagem.
No dia 23 de fevereiro 2021, comunicou ao autor que, estimando-se em € 25.998,06, o custo da reparação do OI, e sendo de € 25.349,70, o valor do capital seguro, considerava aquela reparação excessivamente onerosa.
Mais lhe comunicou, na mesma altura, que tendo o veículo, com os danos decorrentes do sinistro, sido avaliado em € 12.044,00, apesar de não lhe ser possível assumir, naquela data, uma posição quanto à sua responsabilidade, colocaria condicionalmente à sua disposição a quantia de € 13.055,70.
E logo no dia seguinte, a 24 de fevereiro de 2021, enviou ao autor uma missiva na qual lhe comunicou que não assumia a responsabilidade pela regularização do sinistro, explicando-lhe as razões por que não o fazia.
Na verdade, informou-o, com clareza, que não assumia tal regularização por entender que o sinistro estava excluído do âmbito de cobertura da apólice, nos termos da al. g) do n.º 1 da cláusula 40.ª das condições gerais do seguro, devido «ao estado dos pneumáticos que apresentavam nos relevos principais uma altura inferior a 1,6 mm, infringindo, assim, o disposto no art. 6.º do decreto-Regulamentar 7/98».
E a verdade é que, conforme resulta do ponto 9. dos factos provados, no circunstancialismo de tempo e lugar em que ocorreu o sinistro «o pneumático traseiro do lado direito da viatura __-OI-__, na perspetiva da marcha em frente, tinha um perfil ou relevo na sua parte central com uma profundidade entre 1,00 mm e 1,02 mm».
Não se vê, assim, que a ré, ao declinar a cobertura, tenha violado qualquer dever de informação, de lealdade (foi honesta a sua conduta), de proteção, de diligência na gestão do sinistro e de celeridade na sua averiguação.
Não se vê, pois, que a ré tenha, em algum momento, agido em sentido contrário aos ditames da boa fé.
Não pode, enfim, considerar-se injustificada a recusa da ré no pagamento ao autor do capital contratado.
O OI circulava, efetivamente, em contravenção ao disposto no art. 6.º, n.º 1 do Decreto Regulamentar n.º 7/98, de 6 de maio, sendo, por isso, defensável o entendimento de que, por essa razão, o sinistro estava excluído do âmbito de cobertura da apólice, nos termos da referida al. g) do n.º 1 da cláusula 40.ª das condições gerais do seguro.
Foi, aliás, esse também o entendimento do tribunal recorrido.
Não sendo esse, porém, o entendimento deste tribunal de recurso, isso não significa que ao recusar a regularização do sinistro, a ré tenha agido em violação de qualquer dever acessório de conduta que sobre si impedia no contexto da dinâmica contratual estabelecida com o réu; por outras palavras, isso não significa que tenha atuado contra os ditames da boa fé.
Improcede, por conseguinte, o pedido de condenação da ré na reparação do alegado dano de privação de uso do veículo.
*
Termos em que:
1. Terá a apelação de ser julgada parcialmente procedente; e, consequentemente,
2. Terá a sentença proferida em primeira instância em 1.ª instância de ser alterada nos seguintes termos:
2.1. Condena-se agora a ré a pagar à autora a quantia de € 25.099,70 (€ 25.349,70 [o valor do capital seguro] – € 250,00 [valor da franquia] = € 25.099,70;
2.2. Mantém-se a absolvição da ré relativamente ao pedido de condenação na reparação do alegado dano de privação de uso do veículo, ainda que com fundamentação substancialmente diferente da vertida na sentença recorrida.
*
No art. 21º da petição inicial, o autor afirma o seguinte: «(...) deverá a Ré ser condenada no pagamento ao A. do valor global de 36.779,70 euros, acrescido de juros de mora desde a data do acidente até integral e efectivo pagamento»[81].
No entanto:
- no art. 30.º da petição inicial já afirma outra coisa: «Serão igualmente devidos os juros de mora, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral cumprimento da obrigação»;
- na parte conclusiva da petição inicial pede a condenação da ré «nos juros de mora desde a data da citação até integral e efectivo pagamento das quantias ora peticionadas».
Presume-se que o pedido de condenação em juros desde a data da citação seja formulado ao abrigo do disposto no art. 805.º, n.º 3, 2.ª parte, do CC.
Acontece que tal normativo é aplicável aos casos de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, e não aos casos de responsabilidade contratual, como é o caso presente.
Conforme se afirma no Ac. do S.T.J. de 03.02.1999, Proc. n.º 98A1262 (Ribeiro Coelho), in www.dgsi.pt, com o Dec. Lei n.º 262/83, de 16 de junho, o n.º 3 do art. 805.º do CC «passou a prever a entrada em mora desde a citação quanto a uma obrigação ilíquida se se tratar de um caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.
A coincidência dos termos literais usados aponta para a ideia segundo a qual a lei está aqui a referir-se apenas aos casos de responsabilidade regulados nas subsecções I - arts. 483º a 498º - e II - arts. 499º a 510º -, uma e outra integradas na secção que, sob a epígrafe "Responsabilidade civil", rege os casos de responsabilidade civil extracontratual que não provêm de factos lícitos.
Esta ideia é expressamente confirmada pelo preâmbulo deste DL, na medida em que diz que se estabelece, no tocante apenas à responsabilidade extracontratual, um termo inicial específico da mora do lesante-devedor.
Daí que se conclua que a responsabilidade agora discutida, sendo contratual, está fora do âmbito daquela nova previsão do nº 3 do art. 805º - neste sentido já este STJ se pronunciou no acórdão de 14/2/95, publicado na Col. Jur. - STJ, 1995-I-79».
Assim, os juros de mora em que a autora terá de ser condenada (arts. 804.º, n.ºs 1 e 2, 805.º, n.º 1 e 806.º, n.ºs 1 e 2, do CC), incidentes sobre a referida quantia de € 25.099,70, serão contados:
- não desde a data do sinistro;
- não desde a data da citação da ré,
mas a partir do trânsito em julgado deste acórdão, pois, só a partir de então, estará definitivamente apurado o objeto da prestação.
***
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação parcialmente procedente, em consequência do que:
4.1 – condenam a ré a pagar ao autor a quantia de € 25.099,70 (vinte e cinco mil e noventa e nove euros e setenta cêntimos);
4.2 – condenam a ré a pagar ao autor juros de mora civis contados a partir da data do trânsito em julgado deste acórdão, até efetivo e integral pagamento;
4.3 – absolvem a ré do demais peticionado pelo autor.
As custas do recurso, na vertente de custas de parte, são a cargo:
- do apelante, na proporção de 1/3;
- da apelada, na proporção de 2/3,
(arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).

Lisboa, 4 de junho de 2024
José Capacete
Micaela Sousa
Ana Mónica Mendonça Pavão
_______________________________________________________
[1] Doravante referido apenas por “OI”.
[2] Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293.
[3] Recursos em Processo Civil, 7.ª Ed., Almedina, 2022, pp. 185-188.
[4] Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, in http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf
[5] Cfr. o Ac. da RP, de 17.03.2014, Proc. n.º 3785/11.5TBVFR.P1 (Alberto Ruço), in www.dgsi.pt.
[6] É o princípio segundo o qual o julgador deve ter:
- por um lado, o contacto mais próximo e direto possível com as pessoas ou com as coisas que servem de meios de prova; e,
- por outro lado, as pessoas (testemunhas, partes, peritos) devem situar-se na relação mais direta possível com os factos a prova, uma vez que são os veículos ou os instrumentos entre o julgador e a fonte da prova (a pessoa ou a coisa),
só este contacto direto permitindo captar um acervo de sinais significativos sobre a realidade dos factos (por exemplo, a mímica da testemunha ou da parte, o tom de voz, o titubear, o ruborizar da face, a frieza do depoimento ou das declarações, etc.) – Cfr. Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2009. p. 587.
[7] Constituindo um postulado do princípio da imediação, o princípio da oralidade não significa apenas que no processo civil, em particular na audiência final, se verifiquem atos que se processam sob a formal entre as partes e o tribunal. O que essencialmente releva quanto a este princípio é o estabelecimento de uma ligação psicológica entre a impressão criada no espírito do julgador pelos elementos probatórios (por exemplo, depoimentos orais das testemunhas prenhes de gestos, colocações de voz, etc.) e o julgamento dessa prova (por exemplo, considerar-se provado um facto controvertido). Ainda que os depoimentos sejam objeto de gravação, isso não afeta a expressão pura do princípio da oralidade. A oralidade, funda-se em critérios pragmáticos da comunicação e na possibilidade do esclarecimento rápido de dúvidas – Cfr. Remédio Marques, Acção Declarativa cit., pp. 209-201.
[8] Constituindo outro postulado do princípio da imediação, o princípio da imediação veicula a ideia segundo a qual a atividade instrutória, a discussão da matéria de facto e o julgamento da matéria de facto devem ser, do ponto de vista temporal, o mais concentrados possível (art. 606.º, n.º 2), sem que haja hiatos de tempo significativos - Cfr. Remédio Marques, Acção Declarativa cit., p. 588.
[9] Segundo este princípio, os meios de prova são, em regra, apreciados livremente pelo tribunal, sem qualquer escala de hierarquização ou vinculação para o tribunal - Cfr. Remédio Marques, Acção Declarativa cit., p. 569.
[10] Cfr. Ac. da R.G. de 02.11.2017, Proc. n.º 501/12.8TBCBC.g1 (Maria João Matos), in www.dgsi.pt.
[11] Impugnação cit., p 17.
[12] Doravante referido apenas por “RJCS”.
[13] Doravante referido apenas por “SORCA”.
[14] Cfr. Ricardo J, Marques, Os deveres acessórios na regulamentação do seguro de dano: O seguro automóvel a as suas repercussões na mora do segurador, in Revista Julgar, n.º 50, Almedina, 2023, pp. 138-139.
[15] «Os automóveis ligeiros e os reboques de peso bruto não superior a 3500 kg não podem transitar na via pública sem que o piso de todos os seus pneus, incluindo o de reserva, quando obrigatório, apresente em toda a circunferência da zona de rolagem desenhos com uma altura de, pelo menos, 1,6 mm nos relevos principais.»
[16] Cfr. Antunes Varela-Miguel Bezerra-Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, p. 500.
[17] Cfr. Antunes Varela-Miguel Bezerra-Sampaio e Nora, Manual cit., p. 501, e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, p. 215.
[18] Cfr. Prova por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2012, pp. 23-24.
[19] Abrantes Geraldes, Recursos cit., p. 339.
[20] A Prova por Presunção no Direito Civil e Processual Civil – As Presunções Judiciais e o Recurso às Máximas da Experiência, Dissertação elaborada para a obtenção do grau de Mestre em Direito na especialidade de Ciências Jurídico-Processuais, Universidade Autónoma de Lisboa Luís de Camões, Departamento de Direito, Lisboa, 2016, p. 24, disponível na internet em https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/2744/1/UNIVERSIDADE%20AUT%C3%93NOMA%20DE%20LISBOA%20LU%C3%8DS%20DE%20CAM%C3%95ES%20-%20tese%20final.pdf (consultado no dia 29.10.2022).
[21] A Prova por Presunção cit., p. 25.
[22] Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz, in Revista da Escola Paulista de Magistratura, São Paulo, Vol. II, n.º 2 (Julho-Dezembro de 2001), p. 171-204, disponível em http://www.epm.tjsp.jus.br/Publicacoes/RevistaEPMView.ªspx?ID=5520, p.186, citado por Ana Margarida Faria de Andrade, A Prova por Presunção cit., pp. 26-27.
[23] A Prova por Presunção cit., p. 25.
[24] Cfr., a propósito de questão idêntica a esta, o Ac. da R.L. de 08.11.2022, Proc. n.º 127/20.2T8LRS.L1-7, relatado pelo também aqui relator, tendo como adjuntos os Excelentíssimos Desembargadores Carlos Oliveira e Diogo Ravara.
[25] Esta reparação é fundada, não na inclusão da cobertura de tal risco no contrato de seguro celebrado entre o autor e a ré, mas sim no atraso injustificado (na violação dos deveres acessórios de conduta) da seguradora na realização da prestação “indemnizatória” convencionada para a perda total do veículo.
[26] Conforme decorre do art. 41.º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, “valor de substituição” equivale a “valor venal” do veículo.
[27] «Na verdade, o perecimento fortuito dos restos ou destroços dificilmente se poderá considerar uma consequência adequada do facto gerador da responsabilidade».
[28] Direito da Responsabilidade Civil – A Obrigação de Indemnizar, AAFDL Editora, 2022, pp. 522-524.  
[29] El Daño, Tradução Espanhola, p. 314.
[30] Tal como conclui Liliana Fernandes Gonçalves, Da indemnização do dano da privação do uso de veículo decorrente de acidente de viação, Dissertação de Mestrado, Universidade do Minho, p. 72, acessível na Internet em file:///C:/Users/MJ01695/iCloudDrive/DOUTRINA/DIREITO%20DAS%20OBRIGAÇÕES/PRIVAÇÃO%20DO%20USO/Da%20indemnização%20do%20dano%20da%20privação%20do%20uso%20de%20veículo%20decorrente%20de%20acidente%20de%20viação.pdf, depois de longa viagem por autores portugueses que se têm debruçado sobre a matéria, e de fazer um apanhado da evolução jurisprudencial sobre a matéria, hoje em dia é praticamente unânime na doutrina e na jurisprudência portuguesas o entendimento de que o dano autónomo da privação do uso consiste num dano patrimonial. ­
[31] Cfr. Ricardo J. Marques, Os deveres acessórios…, cit., p. 135.
[32] «Cf. Vasques, José, Contrato de Seguro, Coimbra: Coimbra Ed., 1999, p. 94».
[33] «Caracterizando sumariamente os elementos do contrato, vd. José Engrácia Antunes, “O contrato de seguro na LCS 2008", in: Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 69, n.º lll/IV (Jul/ Dez). 2009, pp. 819-824».
[34] «Classicamente, afirma-se a este propósito, que o contrato de seguro é o contrato da máxima boa-fé: ubérrima bona fides. Cf. José Vasques, Sup. Cit., pp. 103 e ss.. No mesmo sentido, Luís Poças, O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, Almedina, 2013, pp. 143- 154, dando conta que “o contrato de seguro assenta nos princípios da máxima boa fé (ubérrima fides) e da tutela da confiança, em que a vinculação do segurado à declaração pré-contratual do risco, desde cedo institucionalizada como norma jurídica positivada, constituí, neste sentido, uma concretização do princípio da boa fé."»
[35] «Sublinha-se, uma vez mais, que são regras igualmente aplicáveis à relação entre o segurado/ beneficiário e a sua seguradora, quanto ao seguro de dano em coisa (ou dano próprio), quando o sinistro resulte em virtude de choque, colisão ou capotamento, por força do art. 92.º do SORCA».
[36] Proc. 2604/13.2TBBCL.G1.S1 (Fernanda Isabel Pereira).
[37] Proc. 4076/15.8T8BRG.G1 .S2 (Salazar Casanova).
[38] Proc. 2884/11.8TBBCL.G1 (Távora Victor).
[39] Proc. 1069/16.1T8PVZ.P1.S1 (Oliveira Abreu), com voto de vencido da Cons. Maria dos Prazeres Beleza.
[40] Proc. 78/13.7PVPRT.P2.S1 (Cabral Tavares).
[41] Proc. 1442/18.0T8CBR.C1 (Barateiro Martins).
[42] Proc. 5251/18.9T8STB.E1 (Conceição Ferreira).
[43] «Cordeiro, António Menezes. Tratado de Direito Civil, VI. Direito das Obrigações, Introdução, Sistemas e Direito Europeu, Dogmática Geral, Almedina, 2012, 2.ª edição, pp. 498-501. Já no início dos anos 80 do século passado, ainda antes da publicação da sua tese “Da Boa Fé do Direito Civil’ que desenvolveu profundamente a temática, Menezes Cordeiro dava conta, a propósito dos deveres acessórios, que a “discussão em torno do conceito e estrutura da obrigação tem vindo a perder em extensão o que tem ganho em profundidade", cf. Cordeiro, António Menezes, Estudos de Direito Civil, Vol. I, 5. “Violação Positiva do Contrato", Almedina: Coimbra, 1991, pp. 115-142 (122), artigo originalmente na Revista da Ordem dos Advogados, ano 41, Vol. I. Jan/ Abr 1981».
[44] «AA.VV., Oliveira, Arnaldo Costa, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Coimbra: Almedina, 2016, p. 416».
[45] «Vasques, José, ob. cit., pp. 145-146. Ou numa formulação directa, “visa apenas e no máximo, suprimir o dano efectivo sofrido pelo segurado". Assim, Cordeiro, António Menezes, Direito dos Seguros, Sup. Cit., p. 802».
[46] «Martinez, Pedro Romano, Contratos Comerciais -Apontamentos, Cascais: Principia, 2001, pp. 85-87, refere-se mesmo ao “princípio da não especulação", tal como Vasques, José, Sup. Cit., pp. 145-146».
[47] «AA.VV. Oliveira, Arnaldo Costa, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2016, p. 413».
[48] «Cuja admissibilidade e controlo, haveria de obedecer a uma categorização própria, prévia e esclarecida das partes (nomeadamente, do segurado ou consumidor)».
[49] «Lima, Pires de / VARELA, Antunes, suscitam mesmo dúvidas sobre a natureza desta prestação no seguinte trecho: “Pode ser duvidosa, especialmente no contrato de seguro de coisas, a questão de saber se a obrigação assumida pelo devedor é uma obrigação pecuniária (sujeita, quanto à mora, ao regime especial prescrito no art. 806°) ou é antes uma obrigação de outra natureza (submetida ao regime geral sintetizado nos arts.  804°, 807° e 808°. Tratar-se-á as mais das vezes (...) de um problema de interpretação do contrato celebrado entre as partes. Cf. Lima, Pires de / VARELA, Antunes, Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª Ed., Coimbra: Coimbra Ed., 1997, p. 69».
[50] «Monteiro, António Pinto, Inflação e Direito Civil, Coimbra: Almedina, 1984, p. 32. Morais, Fernando Gravato, “Mora do devedor nas obrigações pecuniárias", Scientia luridica, Braga, t. 57, n.º 315 (Jul.-Set. 2008), pp. 483-507 (pp. 502-503), que defende a alteração de iure condendo, de modo a abarcar-se aqui as obrigações pecuniárias decorrentes de responsabilidade obrigacional. ROSAS, Marta Monterroso / FERNANDES, Tiago, «A mora debitoris nas obrigações pecuniárias: sobre a aplicação do regime do n.º 3 do art. 806.º do Código Civil à responsabilidade contratual», Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, (16), 2010, pp. 117-144, autores que também não vêem alternativa à solução de iure condendo, face à injusta limitação existente. Contra: crítico da abertura feita pelo n.º 3 à prova de dano superior no âmbito extracontratual, Galvão Telles entende não ser “razoável" que a solução preconizada divirja “sem justificação plausível, da estabelecida para as obrigações pecuniárias em geral." Cf. Telles, Inocêncio Galvão, Direito das Obrigações, Coimbra: Coimbra Ed., 7.ª Ed.. 1997, p. 306».
[51] «AA.VV. Trigo, Maria da Graça / MARTINS, Mariana Nunes, Comentário ao Código Civil - Direito das Obrigações, UCE, p. 1136».
[52] «São considerados oportunistas os incumprimentos em que a parte incumpre o contrato porque pretende aproveitar-se de uma situação de inferioridade ou necessidade permanente ou temporária da parte contrária, pressionando-a com o incumprimento a aceitar condições desfavoráveis em face das suas fraquezas. Por outro lado. são eficientes os incumprimentos nas situações de gain-seeking ou loss-avoiding, em que o devedor opta por incumprir porque em termos de valor agregado de bem-estar em jogo no contrato, essa conduta é momentaneamente mais vantajosa para si, em face das condições que terá de suportar por via de um cumprimento tardio. Por todos, com referências, Cf. Araújo, Fernando, Teoria Económica do Contrato, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 740 e ss..
Criticando a “intromissão" de teorias económicas em terrenos ético-axiológicos dominados pela liberdade da pessoa humana e, consequentemente, recusando que a juridicidade seja pensada a partir das categorias funcionalistas da eficiência económica ou que levem à transmutação do ideário de justiça para num conceito de eficácia, vd. Barbosa, Mafalda Miranda, A recusa de conformação do jurídico pelo econômico: breves considerações a propósito da responsabilidade civil, Boletim de Ciências Económicas, Vol. 57, N.º 1 (2014), pp. 633-670».
[53] «Cordeiro, António Menezes, Da boa fé no direito civil, Almedina, Colecção Teses, 2007 (3.* Reimp. da edição de 1983), p. 646».
[54] «Sup. Cit.»
[55] «Neste sentido, Cf. AA.VV., Cordeiro, António Menezes, “A mora do credor", in António Menezes Cordeiro (Org.), Código Civil - Livro do Cinquentenário, vol. I, Almedina: Coimbra, 2019, p. 124. Também em Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil, VI, Direito das Obrigações, Introdução, Sistemas e Direito Europeu. Dogmática Geral, Almedina, 2012, 2.ª edição, p. 476, dando conta que o “centro de gravidade" antes assente no crédito e na prestação, tem vindo a passar “para a teia dos deveres acessórios que lhe dão solidez e eficácia"»
[56] «Identifica uma "configuração particular" dos deveres acessórios nas relações de cooperação decorrentes dos contratos duradouros, concretizado em especiais deveres de “razoabilidade", assentes na necessidade de fundamentação e justificação das actuações. Oliveira, Nuno Manuel Pinto, Os deveres acessóríos 50 anos depois, RDC, Ano II (2017), n.º 2, pp. 246-248».
[57] «Muitas vezes denominada “complexidade intra-obrigacional" ou “relação obrigacional complexa". Vd., por todos, Cordeiro, António Menezes, Da boa fé no direito civil, Almedina, Colecçào Teses. 2007 (3.ª Reimp. da edição de 1983), pp. 586-631».
[58] «V.g., Cordeiro, António Menezes. Tratado de Direito Civil, VI, Direito das Obrigações, Introdução, Sistemas e Direito Europeu, Dogmática Geral, Coimbra: Almedina, 2012, 2.ª ed., pp. 489-51».
[59] «Cf. Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil, VI, Idem, pp. 496-497».
[60] «Cf. Cordeiro, António Menezes, Da Boa Fé do Direito Civil, Almedina: Coimbra, Colecção Teses, 3.ª Reimp., 2007 (1.ª Ed: 1983), pp. 586-659. Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, I, 14." Edição». Coimbra: Almedina, 2017, pp. 117-120.
[61] «Cf. Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil, VI, Idem, p. 511. Em idêntico sentido, vd. Barbosa, Ana Mafalda Miranda, Lições de Responsabilidade Civil, Principia, 2017, p. 410».
[62] «A expressão é de António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Almedina, Colecção Teses, 2007 (3.ª Reimp. da edição de 1983), pp. 527-660».
[63] «V.g., art. 15.º da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais; art. 9.º, n.º 1 da Lei de Defesa do Consumidor; ou art. 153.º, n.º 1 do Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Actividade Seguradora e Resseguradora.
[64] V.g., Ac. do STJ de 09-07-1998, proc. 98A516 (Ferreira Ramos), adoptando expressamente a sistematização proposta. É o próprio Prof. Menezes Cordeiro que em artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados (ROA. ano 65. Vol. II, Set, 2005) reconhece que fruto da sua obra “Da boa fé no direito civil", publicada em meados da década de 80, encontra na jurisprudência lusa uma fase de implantação (1985 a 1990), de expansão (1991 a 2000) e de afinamento (2001 em diante)».
[65] «Oliveira, Nuno Manuel Pinto. Os deveres acessórios 50 anos depois, RDC, Ano II (2017), n.º 2, p. 240».
[66] «Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, 1,14.* Edição, Coimbra: Almedina, 2017, p. 119. Também Varela, Antunes, Das Obrigações em geral, 1,10* Ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 123».
[67] «Não é unânime a fonte da responsabilidade civil por violação de deveres acessórios. Uma parte da doutrina enquadra-a perfeitamente no campo da responsabilidade obrigacional, v.g., Pinto, Carlos Mota, Cessão da Posição Contratual, Almedina: Coimbra, 1982 (Reimp.), pp. 402-411. Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil, VI. Sup. Cit., p. 514. Enquadrando os deveres impostos pela boa fé com natureza mista (entre a delitual e a contratual), com excepção dos casos em que o dever principal se esgota num dever de protecção ou quando os contraentes configuram os deveres de protecção como deveres principais de prestação, Vd. Frada, Carneiro da, Contrato e deveres de protecção, Coimbra, 1994, pp. 60 e ss. Também assim Oliveira, Nuno Manuel Pinto, Os deveres acessórios 50 anos depois, RDC, Ano II (2017), n.º 2, pp. 254-256, para quem a violação dos deveres acessórios dará lugar a uma responsabilidade intermédia, entre os deveres gerais e os deveres específicos».
[68] «O que bem se compreende, dado que em face da prévia indeterminação dos deveres acessórios na execução do contrato, os mesmos não se mostram susceptíveis de ser judicialmente exigíveis.»
[69] «Antunes, Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais, 2009, Coimbra: Almedina, p. 717».
[70] «Proença, Brandão, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, 2.ª Ed., Porto: UCE, 2017, p. 25».
[71] «Excepto os casos já referidos de “choque, colisão ou capotamento", em que se aplica o regime previsto no SORCA por força do seu art. 92.º».
[72] «Art. 153.º, n.º 1 do Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Actividade Seguradora e Resseguradora, Lei n.º 147/2015, de 09 de Setembro».
[73] «AA.VV., Oliveira, Arnaldo Costa, Lei do Contrato de Seguro Anotada. Coimbra: Almedina, 2016, pp. 363-364. Afirma-se, a este propósito, que as exigências de esclarecimento e de prova concretamente formuladas pelo segurador ao obrigado às informações, sujeitam-se “ao dever de boa fé no cumprimento das obrigações, devendo ser razoáveis”. Menezes Cordeiro propende antes a considerar que a diligência requerida - que dá corpo aos deveres acessórios, designadamente de cuidado - “seja referenciada a propósito da prestação principal, correspondendo aí, ao grau de esforço exigível ao devedor.” E esse grau de esforço, é medido pela “bitola da diligência normativa, dada pela figura tradicional do bonus pater familias. integrado na situação típica onde o problema se ponha." Cf. Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil, VI, Sup. Cit., pp. 482-488».
[74] «Tal como se refere no Ac. do TRL de 20-10.2016, proc. 647/11.0TBVPV.L1-2 (Ondina Alves), “a omissão, por parte da ré seguradora, de um especial dever de exigência na sua actividade de análise e confirmação da declaração de risco, inobservando qualquer diligência mínima, com vista ao exacto conhecimento do risco que aceitou dar cobertura, implica, por aplicação dos supra referidos princípios da boa fé e do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum próprio, que aquela deverá suportar as inerentes consequências, não podendo, para se desvincular da execução do contrato, escudar-se posteriormente numa nulidade do contrato para a qual, com a sua omissão, contribuiu e teve ocasião de evitar”».
[75] «Como a simples recusa de pagamento porque “o sinistro não se encontra coberto pelas condições da apólice" ou “o sinistro não se deu como participado", sem explicitar, ainda que sucintamente, as razões para tais conclusões, de modo a permitir que o segurado possa, quanto aos aspectos em concreto, apresentar esclarecimentos ou elementos adicionais, aptos a elidir as conclusões apresentadas».
[76] «Pensamento que colhemos em Pinto, Carlos Mota, Cessão da Posição Contratual, Almedina: Coimbra, 1982 (Reimp.), pp. 407-411, que liga os deveres acessórios ao perímetro contratual e a uma relação de causalidade, como forma delimitação».
[77] «O que corresponde a uma ideia já criticada, nomeadamente, por Carneiro da Frada, Defende o mencionado autor que os deveres secundários de indemnização deveriam encontrar-se em consonância com o plano ou programa contratual: “se a responsabilidade decorre de um relacionamento específico entre sujeitos (...) deve[ria] ficar aberta a possibilidade de ponderar valorativa e teleologicamente a sua natureza e circunstâncias, de modo a fazer obedecer a medida da responsabilidade a uma distribuição equilibrada dos riscos desse relacionamento." Portanto, o critério da causalidade adequada seria um "crivo demasiado largo". Ao contrário, o crivo da previsibilidade estreitá-lo-ia, “concedendo ao aplicador do direito a oportunidade de determinar a extensão do dever de indemnizar de acordo com «ponderações teleológico-valorativas.» Vd. Frada, Manuel Carneiro da, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 319-323(321)».
[78] Já acima se deixou transcrito o art. 6.º do Decreto Regulamentar n.º 7/98, de 6 de maio,
[79] Trata-se de um evidente lapso, pois a situação é reportada à al. g) e não à al. e) da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice.
[80] As partes destacadas a negrito são da nossa autoria.
[81] Não se vê ao abrigo de que dispositivo legal pode o autor pedir a condenação da ré a pagar-lhe juros de mora desde a data do acidente.