Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | EURICO REIS | ||
| Descritores: | PROVIDÊNCIA CAUTELAR RESERVA DE PROPRIEDADE LEGITIMIDADE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 03/18/2008 | ||
| Votação: | DECISÃO INDIVIDUAL | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
| Sumário: | I – É ilegítimo, à luz dos critérios interpretativos impostos pelo Legislador nos três números do art.º 9º do Código Civil, concluir do texto do art.º 409º do Código Civil que a reserva de propriedade é um exclusivo dos contratos de compra e venda. II – A interpretação que deve ser feita dos nºs 1 dos artºs 15º, 16º e 18º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, é aquela que aqui se sustenta, a saber: o art.º 409º do Código Civil estabelece apenas uma das formas de constituição do vínculo de reserva de propriedade e o Legislador, logo em 1975, quis estender a protecção resultante da entrada em vigor do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, a todos aqueles a favor dos quais esse registo fosse realizado. FG | ||
| Decisão Texto Integral: | 1.1. O recurso é o próprio (agravo) e foi recebido com o efeito devido (suspensivo), nada obstando a que se aprecie o mérito do mesmo. 1.2. Não obstante a evidente divergência jurisprudencial, a questão que se discute nestes autos é manifestamente “simples”, razão pela qual o relator irá fazer uso da faculdade que lhe é conferida pelos artºs 749º, 700º n.º 1 g), 701º n.º 2 e 705º do CPC e proferir decisão singular conhecendo de mérito quanto ao recurso – sendo que, perante a aludida falta de unidade na interpretação do disposto nos artºs 15º a 22º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, e 409º do Código Civil está totalmente afastada a possibilidade de este despacho constituir uma decisão surpresa, sendo, portanto, manifestamente desnecessário proceder à notificação a que se reporta o n.º 3, in fine, do art.º 3º do CPC. No mesmo sentido apontam quer a natureza urgente deste processo (art.º 382º do CPC) quer o direito dos cidadãos e dos demais entes jurídicos que interagem no comércio jurídico, a obter, em prazo razoável, uma decisão que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em Juízo (artºs 2º n.º 1 do CPC, 20º n.º 4 da Constituição da República e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – este aplicável ex vi art.º 8º daquela Constituição). Acresce ainda que, face ao disposto nos nºs 3 e 4 do art.º 700º do CPC (ex vi art.º 749º do mesmo Código), nenhuma das partes ficará prejudicada por o mérito do recurso ser apreciado neste momento e por esta forma. Manifesta o relator apenas um desejo (já que nada mais pode fazer – n.º 2 do art.º 732ºA do CPC): que alguém com legitimidade para requerer a prolação de Acórdão para Uniformização de Jurisprudência o peticione, para que se evite esta desproporcionada e absolutamente dispensável perda de tempo. 2.1. A “C, SA” intentou contra E e M os presentes autos de procedimento cautelar que, sob o n.º 999/08, foram tramitados pelo 5º Juízo Cível do Tribunal da comarca de Oeiras e nos quais, sem que os requeridos tivessem sido citados e muito menos apresentado contestação, foi proferido o despacho liminar de fls 35 a 39 que julgou verificada, no caso, a excepção dilatória de ilegitimidade da requerente e se absolveram os requeridos da instância. Inconformada, a requerente deduziu recurso contra essa decisão pedindo que se revogue a decisão recorrida (fls 79), formulando, para tanto, as desproporcionadamente extensas 28 conclusões que se estendem por fls 74 a 79, nas quais enuncia que, com tal decisão, o Mmo Juiz a quo violou o disposto nos artºs 15º, 16º e 18º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, 9º e 409º do Código Civil e 26º do CPC. Os requeridos, que não foram citados nem receberam cópias das alegações de recurso, não apresentaram contra-alegações, tendo o Mmo Juiz a quo sustentado a sua decisão nos termos que constam de fls 84. 2.2. Considerando as conclusões das alegações da ora recorrente (as quais são aquelas que delimitam o objecto do recurso – n.º 3 do art.º 668º do CPC e artºs 671º a 673º, 677º, 678º e 684º, maxime nºs 3 e 4 deste último normativo, e 661º n.º 1, todos do mesmo Código) a única questão a decidir nesta instância de recurso é as seguintes: - na decisão recorrida procedeu-se ou não a uma correcta interpretação do disposto nos artºs 15º, 16º e 18º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, 409º do Código Civil e 26º do CPC? E sendo esta a questão que compete dirimir, tal se fará de imediato, por nada obstar a esse conhecimento e por terem sido cumpridas as formalidades legalmente prescritas (artºs 749º e 700º a 720º do CPC), não tendo sido colhidos os Vistos dos Ex.mos Desembargadores Adjuntos pelas razões expostas no ponto 1.2. do presente despacho liminar do relator. 2.3. A recorrente não pôs em causa a matéria de facto considerada provada que serve de fundamento à sentença que, através do seu recurso, tem agora que ser sindicada por esta Relação, razão pela qual e ao abrigo do disposto nos artºs 749º e 713º n.º 6 do CPC, dispensa-se este Tribunal da Relação de aqui transcrever essa parte da decisão de fls 30 a 36, mais exactamente, os três números que se encontram a fls 35 e 36, a seguir às palavras «São os seguintes os factos provados…:», para a qual se remete. 2.4. Discussão jurídica da causa. Na decisão recorrida procedeu-se ou não a uma correcta interpretação do disposto nos artºs 15º, 16º e 18º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, 409º do Código Civil e 26º do CPC? 2.4.1. Uma vez que no art.º 26º do CPC (n.º 3), o intérprete – neste caso o Julgador – é remetido para os contornos da relação controvertida tal como esta é configurada pelo demandante, e porque, relativamente ao art.º 409º do Código Civil tais normas manifestam uma mais recente vontade do Legislador, a discussão jurídica da causa reconduz-se, como se afigura notório, à interpretação dos textos dos nºs 1 dos artºs 15º, 16º e 18º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, os quais são, respectivamente, os seguintes: “Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula. ...”; “Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo. …”; “Dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido, pelo processo de execução ou de venda de penhor, regulado na lei de processo civil, conforme haja ou não lugar a concurso de credores; dentro do mesmo prazo, o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação” Para o Mmo Juiz a quo e para os subscritores dos acórdãos e de outros textos em que o mesmo se apoia para fundamentar a decisão que aqui se sindica, nesses textos está escrito (no n.º 2 do art.º 9º do Código Civil, o Legislador estipula muito claramente que «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso») que essa norma se aplica apenas aos casos de compra e venda de veículos automóveis. Sinceramente, não se consegue vislumbrar na escorreita letra da Lei um tal significado e uma palavra que seja da qual se possa extrair essa conclusão. Para os que sustentam a opinião vertida na decisão recorrida, foi essa desde sempre a vontade do Legislador e os que afirmam o contrário mais não fazem do que querer actualizar (indevidamente como para eles é óbvio) essa inexistente vontade. Pretendem, portanto, ser os verdadeiros oráculos da mens legis. Só que interpretações autênticas nem todos podem fazê-las. Vamos, então, perscrutar, procurando reconstitui-lo, o pensamento legislativo. Para tanto, nada melhor que transcrever o preâmbulo do diploma em causa, o qual é o seguinte (texto integral): “1. A legislação sobre registo de propriedade automóvel, muito embora já tenha sido objecto de sucessivas alterações, orientadas no sentido de abreviar a execução dos actos de registo, consagra um sistema ainda demasiado complexo, por excessivamente apegado às normas aplicáveis ao registo predial, que tradicionalmente lhe têm servido de paradigma. Na verdade, mormente sob o ponto de vista formal, os serviços de registo automóvel mantêm-se, em grande parte, subordinados a certos princípios de técnica registral que, adequados ao registo de imóveis para que foram directamente concebidos, não se compadecem com a celeridade requerida pelo enorme volume do comércio jurídico dos veículos automóveis, em constante e intensivo incremento. Sob este último aspecto, como índice suficientemente esclarecedor, salienta-se que só o movimento de inscrições de propriedade inicial - registos cujo número corresponde a outros tantos novos veículos acrescidos ao parque automóvel nacional - atingiu, no ano de 1972, o total de 93900 actos, o que, tomando por base os registos da mesma espécie efectuados em 1968 (62255), traduz, em relação ao primeiro ano do último quinquénio, um aumento superior a 50%. Para fazer face a tão acelerado ritmo de desenvolvimento do serviço, torna-se, pois, indispensável proceder a uma profunda remodelação do actual sistema de registo, delineando-o em termos que bem se ajustem à natureza muito especial das coisas que constituem o seu objecto, particularmente caracterizadas pela limitadíssima duração e extrema mobilidade negocial inerentes aos veículos automóveis, e, simultaneamente, possibilitem o eventual funcionamento do sistema no regime de tratamento automático. É com este duplo propósito que os diplomas agora publicados, sem deixarem de reproduzir, com ligeiras alterações de pormenor, os princípios que actualmente definem a finalidade e o objecto da instituição, refundem integralmente, nos seus múltiplos aspectos regulamentares, a disciplina em vigor, procurando limitar o recurso, como direito subsidiário, às normas aplicáveis ao registo predial, ao mínimo e apenas na medida compatível com a natureza especial dos veículos automóveis e das disposições legais contidas na legislação privativa do respectivo registo. 2. Como nota característica predominante do esquema em que virá a movimentar-se o registo da propriedade automóvel, destaca-se a grande simplicidade das soluções adoptadas, as quais, sem quebra das indispensáveis garantias de certeza e segurança, vão a ponto de comportar a unificação dos diversos livros de registo, pressupostos pelo actual sistema, e reduzir a breves anotações o trabalho material da execução dos actos, já que o seu conteúdo passa a ser directamente estabelecido pelos títulos que lhes venham a servir de base, e cujo arquivo é estruturado por forma a permitir a sua valorização como elementos integrantes dos próprios registos. Por sua vez, pelo muito que deverá concorrer para libertar as conservatórias de tarefas inúteis ou prejudiciais ao rendimento da actividade dos serviços, merece referência especial a consagração do princípio da subordinação sistemática de lançamento, no livro a esse fim destinado, da nota de apresentação dos requerimentos para actos de registo, a prévio exame do seu contexto e dos respectivos documentos, com vista a condicioná-la à antecipada verificação da viabilidade da feitura do registo requerido. 3. Mas, além das inovações de pura técnica registral introduzidas no sistema, outras, de índole diversa e com não menor alcance, são ainda previstas, como complemento indispensável das primeiras. Sob este aspecto, destaca-se, em especial, a revisão da tabela de emolumentos, a qual é realizada no sentido de prever a abolição do sistema de emolumentos parcelares e de montante variável em função do valor do direito ou facto registado, sistema que, com bem evidente vantagem para a simplificação dos trabalhos de elaboração da conta de encargos e contabilização de receitas, passa a ser substituído pela orientação de fazer corresponder a cada registo, consoante o seu objecto material, uma única taxa emolumentar fixa. Nestes termos: Usando da faculdade conferida pelo artigo 16.º, n.º 1, 3.º, da Lei Constitucional n.º 3/74, de 14 de Maio, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte:...”. Onde está a referência ao contrato de compra e venda? Ou, para ser mais preciso, onde está esse conjunto de palavras? Nem uma vez sequer o encontramos no texto agora transcrito. Não existe, portanto, qualquer sinal de que nas circunstâncias em que a lei foi elaborada (n.º 1 do art.º 9º do Código Civil) essa vontade restritiva tenha alguma vez perpassado pela mente do Legislador. E tudo indica que nunca passou, bem pelo contrário. 2.4.2. Efectivamente, este não é o único argumento que pode ser esgrimido a favor das quase depreciativamente designadas teses actualistas, que, aliás, sempre seriam legítimas e estão legitimadas pelo n.º 1 do já citado n.º 1 do art.º 9º do C.Civil (“... as condições específicas do tempo em que é aplicada...”). Tenha-se em conta o texto do art.º 1º do aludido DL n.º 54/75 (novamente por aplicação do n.º 1º do art.º 9º do Código Civil - “... a unidade do sistema jurídico...”) na sua versão inicial: “O registo de automóveis tem essencialmente por fim individualizar os respectivos proprietários e, em geral, dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis”. É patente e incontornavelmente inequívoca a intenção não restritiva do Legislador (a redacção actual do n.º 1 desse normativo, que é a aplicável ao caso dos autos, é ainda mais clara - “O registo de automóveis tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”). Apesar da pouco justificada afirmação em contrário produzida pela recorrente nas suas alegações, recorde-se que já os Jurisconsultos da Roma Antiga proclamavam e bem, que onde o Legislador não distingue, não deve (não pode) o intérprete fazê-lo. E não menos sabiamente avisavam odiosa restringenda favorabilia amplianda. Como indiscutivelmente enuncia o n.º 2 do art.º 8º do Código Civil, os Juízes estão vinculados a um dever de obediência à Lei – e só a ela – e, por muita que seja a Jurisprudência e a Doutrina, o estatuído no n.º 3 desse mesmo comando normativo não desobriga os julgadores de ler a exacta letra da Lei; aliás, essa é uma condição indispensável para fazer uma boa administração da Justiça. E um sinal incontornável de que é absolutamente ilegítimo, à luz dos critérios interpretativos impostos pelo Legislador nos três números do art.º 9º do Código Civil, concluir do texto do art.º 409º do Código Civil que a reserva de propriedade é um exclusivo dos contratos de compra e venda, é o singelo facto, que se sublinha, de um dos documentos apresentados pela agravante (fls 7) demonstrar ou, no mínimo já que é apenas uma cópia não certificada, indiciar - o que é suficiente para o que aqui se cuida - que se encontra constituído a favor da agravante o ónus de reserva de propriedade sobre o automóvel dos autos sem que entre as partes tenha sido firmado um contrato de compra e venda. A interpretação proposta pelo Mmo Juiz a quo não era na altura (1975) e muito menos o é hoje, a que corresponde à solução mais acertada ou ao pensamento mais adequado de acordo com os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico dos direitos em conflito (n.º 3 do art.º 9º e art.º 334º do Código Civil). Deste modo e por estas razões, não pode manter-se a decisão liminar de absolvição da instância proferida em primeira instância. Bem pelo contrário, repete-se. 2.4.3. Ou seja e em conclusão, considerando os critérios fornecidos pelos três números do art.º 9º do C.Civil, a interpretação que deve ser feita dos nºs 1 dos artºs 15º, 16º e 18º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, é aquela que é aqui e agora se sustenta, a saber: que no art.º 409º do Código Civil se estabelece apenas uma das formas de constituição do vínculo de reserva de propriedade e que o Legislador, logo em 1975, quis estender a protecção resultante da entrada em vigor do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, a todos aqueles a favor dos quais esse registo fosse realizado. E, por essa razão e não pelos argumentos expostos pela recorrente, há que conceder provimento ao agravo e, consequentemente, revogar a decisão recorrida e, em sua substituição, ordenar o prosseguimento da tramitação do processo - que por ser urgente corre termos durante as férias judiciais - com a designação de dia para audição das testemunhas arroladas pela requerente do procedimento cautelar. O que aqui, sem necessidade de apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, se declara e decreta. 2.5. Pelo exposto e em conclusão, no presente processado de recurso a correr termos pela 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, com os fundamentos enunciados no ponto 2.4. da presente decisão liminar do relator, decide-se revogar integralmente o despacho recorrido, e, em sua substituição, ordena-se o prosseguimento, em férias judiciais se necessário, dos termos do processo, com a designação de dia para audição das testemunhas arroladas pela requerente do procedimento cautelar. Sem custas (art.º 2º n.º 1 g) do CCJ). Lisboa, 2008/03/18 (data de apresentação do processo no gabinete do relator - turno) (Eurico José Marques dos Reis |