Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
378/21.2T8LSB-B.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: INVENTÁRIO PARA PARTILHA DE BENS COMUNS DO CASAL
PROCESSO DE INVENTÁRIO
INTERESSADOS
DEFESA
PASSIVO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- Face à estrutura declarativa que o processo de inventário actualmente apresenta, os interessados directos têm o ónus de invocar e concentrar numa única peça todos os meios de defesa que considerem oportunos, a qual deve ser apresentada no prazo de 30 dias indicado no nº 1 do art.º 1104º do Código de Processo Civil.
2- O decurso de tal prazo determina o efeito preclusivo da utilização de tais meios de defesa, incluindo a impugnação das dívidas relacionadas no passivo da relação de bens.
3- A falta de impugnação pelos interessados directos das dívidas relacionadas no passivo da relação de bens determina o reconhecimento das mesmas, assim tornando desnecessária qualquer actividade instrutória destinada à sua demonstração, bem como a correspondente observância do princípio do inquisitório.
4- O alcance do caso julgado da sentença de divórcio esgota-se na determinação do momento em que cessam as relações patrimoniais entre os ex-cônjuges, não abrangendo a definição do conjunto concreto de situações activas e passivas que devem integrar o património conjugal a que respeita a partilha subsequente.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Em 6/6/2022 J. propôs acção especial de inventário para partilha dos bens comuns do ex-casal por si formado com A.
Tendo a requerida sido nomeada cabeça de casal, e tendo requerido prorrogação de prazo para a apresentação da relação de bens, que foi deferida, em 9/5/2023 apresentou a relação de bens, sendo o activo composto por seis verbas e o passivo composto por quatro verbas.
Tendo o requerente sido notificado da relação de bens e tendo requerido prorrogação de prazo para se pronunciar sobre a mesma, o que lhe foi deferido, até ao termo do prazo concedido não deduziu qualquer oposição, impugnação ou reclamação à referida relação de bens.
Em 27/10/2023 foi proferido o seguinte despacho:
Notificado da relação de bens, cujo articulado a que se encontra anexa mais parece uma prestação de contas, o interessado J. não deduziu oposição, impugnação ou reclamação à relação de bens.
Antes de serem determinados os ulteriores termos dos autos, com audiência prévia ou prolação de despacho saneador, importa previamente decidir questões susceptíveis de influir na partilha, a saber:
- citação do credor Banco Santander Totta, SA., para se pronunciar sobre os direitos que lhe estão conferidos no passivo da relação de bens ou deles reclamar ao abrigo da conjugação das normas constantes dos artigos 1085º, nº 2, al. b) e 1088º (com a advertência constante do nº 2) ex vi artigo 1133º, todos do Código de Processo Civil (CPC) .
- levantamento do sigilo bancário e pedido de informações ao Banco de Portugal – conquanto o artigo 1101º do CPC faculte a possibilidade do juiz poder ordenar as diligências necessárias com vista à identificação de bens que não se encontrem na posse do Cabeça de Casal (CdC), tem que ser alegada factualidade que permita estabelecer um juízo de prognose da elevada probabilidade da sua existência. No caso dos autos, a CdC pode obter informação junto das entidades bancárias da existência de contas colectivas (solidárias ou conjuntas) tituladas pelos ex-esposados. Havendo probabilidades fortes do cônjuge ter constituído e movimentado contas bancárias singulares, e caso este não autorize a obtenção de informação junto do Banco de Portugal, o percurso processual será inverso, começando por se pedir a informação e, sendo recusada por violação do sigilo profissional, será dado cumprimento ao disposto no nº 4 do artigo 417º Código de Processo Civil (CPC).
Termos em que determino a citação do Banco Santander Totta, SA., e a notificação dos interessados para efeitos do disposto nos dois itens que antecede, respectivamente”.
O requerente e a cabeça de casal foram notificados de tal despacho e nada disseram.
O credor identificado foi citado e veio aos autos reclamar o seu crédito sobre o requerente e a cabeça de casal.
Foi realizada audiência prévia em 28/2/2024, constando da acta respectiva (assinada digitalmente em 15/3/2024) que “foi tentado o acordo entre os Interessados, o que se frustrou”, seguindo-se despacho com o seguinte teor:
Em face da impossibilidade de obtenção de acordo entre os interessados (ex‑cônjuges) nesta fase processual, e estabelecido que se mostra o activo e o passivo do património comum, prosseguem os autos nos termos e para os efeitos do artigo 1110º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, notificando-se os Interessados para, no prazo de 20 dias, proporem a forma da partilha e requererem o que demais tiverem por conveniente”.
A cabeça de casal apresentou requerimento em 4/4/2024 (ref. (…)900) em que se pronuncia sobre a forma da partilha.
O requerente apresentou requerimento em 9/4/2024 (ref. (…)201) em que invoca, em síntese, que o decidido na audiência prévia quanto à estabilização do activo e do passivo, nos termos constantes da relação de bens, viola o caso julgado formado pela sentença de divórcio, tendo presente o decidido quanto ao momento em que se consideram produzidos os efeitos patrimoniais do divórcio. Mais invoca que o tribunal não pode aceitar os valores indicados pela cabeça de casal sem qualquer critério, antes devendo ter observado o princípio inserto no art.º 411º do Código de Processo Civil, por referência aos documentos apresentados pela cabeça de casal, e assim concluindo pela exclusão das verbas dois a quatro do passivo da relação de bens. Invoca ainda a omissão de relacionação de duas verbas no passivo, em valor correspondente a metade de verbas doadas ao requerente pelos seus pais, valor esse que a cabeça de casal fez seu.
Em 10/5/2024 foi proferido despacho com o seguinte teor:
Requerim. refª (…)201 – Surpreende invocada ofensa a caso julgado formal por decisão contrária a uma outra proferida no processo e já transitada em julgado, sem que efectivamente se faça referência às decisões contraditórias entre si.
Aos presentes autos é aplicável o regime estabelecido pela Lei nº 117/2019, de 13/09, constante nos arts. 1082º a 1135º do Código de Processo Civil (CPC), a qual alterou o paradigma a que obedecia o mesmo processo quando era regulado pelo CPC de 1961, passando a vigorar os princípios da concentração, da preclusão dos actos respeitantes a cada fase processual e da auto‑responsabilidade das partes na gestão do processo, tudo como forma de potenciar a celeridade e a eficácia da tramitação.
Conquanto se possa discutir se a reclamação à relação de bens apresentada em processo de inventário consubstancia um verdadeiro incidente do mesmo, isto é, a apreciação de uma questão que, implicando um requerimento, uma resposta e uma decisão, não integrando, porém, a sua tramitação necessária e obrigatória (como a citação dos interessados directos na partilha, ou a realização da conferência de interessados), e apenas tendo lugar se, e quando, actuada pelas partes; ou antes uma fase da sua tramitação normal, traduzindo-se no exercício pelos demais interessados citados de um direito de defesa que é processado nos próprios autos e inserido na tramitação típica do processo de inventário, certo é, salvo melhor estudo, que os interessados têm o ónus de invocar e de concentrar numa única peça todos os meios de defesa que consideram oportunos na oposição, impugnação e reclamação a que alude o artigo 1104º do CPC, sob pena de a não impugnação dos elementos factuais e documentais vertidos nas alegações do Cabeça de Casal (CdC) terem os efeitos previstos nos artigos 566º, 567º e 574º ex vi artigo 549º, nº 1 do CPC.
Vale dizer que, actualmente, o processo de inventário judicial está configurado como uma acção declarativa, sendo a primeira fase uma verdadeira fase de articulados (que engloba a fase inicial e da oposições e verificação do passivo), na qual recai sobre todos os interessados o ónus de suscitar nesta fase, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objectivo final do inventário (art. 1104º), designadamente tudo quanto respeite à sua admissibilidade, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dividas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial.
Nesse sentido refere-se no Ac. RG de 2022/09/22, acessível em www.dgsi.pt, que, decorrida esta fase, só podem ser deduzidas as excepções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo actuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar nesta primeira fase, dando origem à apresentação de um verdadeiro articulado superveniente) e/ou que a lei admita expressamente passado esse momento (como sucede com a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respectiva avaliação, que, por razões pragmáticas, o legislador admitiu que pudesse ser deduzido até ao início das licitações).
E, em tal aresto se conclui que, se o Requerente/Cabeça-de-Casal relacionou um crédito que não foi objecto de qualquer impugnação/reclamação, e verificando-se que, nos prazos previstos nos arts. 1104º e 1105º do CPC (ou através de articulado superveniente válido e fundado), nem o próprio Requerente/Cabeça-de-Casal suscitou a questão de que o mesmo não dever integrar o património comum a partilhar, a questão atinente a esse crédito fica definitivamente decidida, considerando-se reconhecido que este crédito integra aquele património.
Descendo ao caso dos presentes autos de inventário para separação de meações que tiveram origem em requerimento do interessado aqui reclamante, notificado que foi da apresentação da relação de bens, e, apesar de ter sido dilatado o prazo, não deduziu oposição ao inventário (de resto por si requerido), nem impugnou a competência do cabeça de casal (também por si indicada), nanja apresentou reclamação à relação de bens, impugnando os créditos e as dívidas relacionadas, nos termos do artigo 1104º do CPC.
Com vista à regularização da instância foi citado o credor Banco Santander Totta, SA., e reclamado o crédito, os autos prosseguiram com a realização da audiência prévia, nos termos do artigo 1109º do CPC.
Não tendo sido alcançado acordo na audiência prévia foi proferido o seguinte despacho:
“Em face da impossibilidade de obtenção de acordo entre os interessados (ex-cônjuges) nesta fase processual, e estabelecido que se mostra o activo e o passivo do património comum, prosseguem os autos nos termos e para os efeitos do artigo 1110º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, notificando-se os Interessados para, no prazo de 20 dias, proporem a forma da partilha e requererem o que demais tiverem por conveniente.”
A oposição à verificação do passivo nesta fase mostra-se, r.s.d.r., extemporânea, pois que, além dos princípios a que fizemos alusão, designadamente da concentração, preclusão, auto‑responsabilidade e do efeito cominatório semipleno, a letra da lei é inequívoca: “As dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados directos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 574º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respectivo pagamento” – cfr. nº1 do artigo 1106º do CPC.
Para além da alegada verificação de caso julgado, que necessariamente tem que improceder, o Interessado requer que o tribunal ordene a realização de todas as diligências instrutórias necessárias, sendo posteriormente proferido despacho de saneamento em que sejam resolvidas todas estas questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, evitando assim, mais que não seja por uma questão de economia processual, o recurso a Partilha Adicional.
Perante os princípios e preceitos legais já invocados, e não se respaldando o Interessado em factos novos que, de boa fé, e em obediência ao princípio da economia processual, admitam a apresentação de um articulado posterior ao último articulado facultado a essa parte processual, para exposição de factos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes da situação jurídica em causa (cfr. artigo 588.º do CPC), é também de indeferir tal pretensão.
Com efeito, o requerimento/articulado em apreço devia ter sido apresentado ao abrigo do disposto no artigo 1104º do CPC, donde manifestamente intempestivo.
Impendia sobre o Requerente dever processual o mesmo não observou em tempo útil – sibi imputet.
Ainda que estivéssemos na presença de factos supervenientes - na justa medida em que relevem para efeitos da definição da massa a partilhar e foram conhecidos depois de findar o prazo para a prática do acto de relacionar os bens – o recurso a este mecanismo processual é intempestivo, pois que na audiência prévia foi fixado o activo e passivo do património comum de acordo com a relação de bens apresentada pelo CdC, por sobre ela não ter recaído reclamação nem impugnação do passivo reconhecido.
Somos, assim, de entender que na presente fase os autos incluem apenas a determinação da forma da partilha, a conferência de interessados e a sentença da partilha, que não comportam a possibilidade de discussão sobre o património a partilhar.
Ainda que admissível, cumpria ao Requerente no articulado superveniente mencionar a fonte do conhecimento e a concretização da data em que tomou conhecimento dos factos, inviabilizando, desde logo, a apreciação da tempestividade para efeitos do disposto no art. 588.º, n.º 3 do CPC.
Como se refere no Ac. 1345/18.9T8CHV-A.G1, acessível em www.dgsi.pt, “o exercício do dever de diligenciar pelo apuramento da verdade e justa composição do litígio, não comporta uma amplitude tal que o autorizem a colidir quer com o princípio da legalidade e da tipicidade que comanda toda a tramitação processual, quer com outros princípios fundamentais como o do dispositivo, da autorresponsabilidade das partes e o da preclusão”.
Em face do exposto, julgo improcedente a pretensão do Requerente, por inadmissível à luz do regime processual do inventário de partilha de bens em casos especiais.
Notifique.
***
I.
Nos presentes autos de inventário para separação de meações, em consequência de divórcio e a cujo processo correm termos por apenso, em que são interessados:
Requerente – J.;
Requerida e Cabeça de Casal (CdC): A., ambos com os demais sinais dos autos foi apresentada relação de bens e reclamação de créditos, sem que tenha sido aduzida oposição, impugnação, reclamação nos termos do artigo 1104º e ss. do Código de Processo Civil (CPC).
Frustrada a possibilidade de ser alcançado acordo em audiência prévia, os interessados foram notificados para proporem forma à partilha.
II.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e está isento de nulidades que o invalidem. Existe personalidade judiciária, as partes são capazes, legítimas e encontram-se ambas devidamente patrocinadas.
Inexistindo outras excepções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.
III.
Os bens a partilhar e o passivo são compostos de:
ACTIVO:
TÍTULOS DE CRÉDITO
Verba 1 – Seguro de Poupança Reforma (…) constituído a favor do Interessado J., com o valor actualizado de € 7.357,42 (…);
Verba 2 – Seguro Poupança Reforma (…), constituído a favor da Cabeça de Casal, com o valor actualizado de € 7.357,42 (…);
PARTICIPAÇÕES SOCIAIS
Verba 3 – Quota no valor nominal de € 1.200,00 (…) na sociedade comercial (…), titulada pela Cabeça de Casal;
Verba 4 – Quota com o valor nominal de € 1.850,00 (…), na sociedade comercial (…), titulada pelo Interessado J.;
Verba 5 – Quota com o valor nominal de € 1.850,00 (…) na sociedade comercial (…), titulada pela Cabeça de Casal;
BENS IMÓVEIS
Verba 6 – Fracção autónoma (…), com o valor patrimonial de € 175.880,00 (…);
PASSIVO:
Verba 1 – Crédito Hipotecário (…), junto do Banco Santander Totta, SA, FORMALIZADO EM 28/08/2008, para aquisição da verba 6 do activo, com o montante em dívida, à data de € 203.610,53 (…);
Verba 2 – Dívida à Cabeça de Casal por pagamentos apenas por esta suportados, desde o mês de Setembro de 2020 até ao presente, para amortização das prestações do crédito hipotecário referido na verba 1 do passivo no valor total de € 21.351,91 (…);
Correspondendo a dívida do Interessado J. à Cabeça de Casal ao valor de € 10.675,96 (…).
Verba 3 – Dívida à Cabeça de Casal por pagamentos apenas por esta suportados desde o mês de Setembro de 2020 até ao presente para pagamento de quotas de condomínio (ordinárias e extraordinária) da verba 6 do activo no valor total de € 4.327,54 (…);
Correspondendo a dívida do Interessado J. à Cabeça de Casal ao valor de € 2.177,53 (…).
Verba 4 – Dívida à Cabeça de Casal por movimentos da conta conjunta, por parte do Interessado J., para pagamentos de despesas próprias, levantamentos, transferências e movimentos MBway, desde o mês de Novembro de 2019, no valor total de € 7.136,80 (…)
*
Em conformidade, deve proceder-se à partilha pela seguinte forma:
1. Considera-se o valor do activo fixado;
2. Àquele valor subtrai-se o valor do passivo reconhecido;
3. Divide-se o resultado obtido em duas partes iguais, correspondendo cada uma delas à respectiva meação;
4. Os quinhões serão compostos conforme vier a resultar da conferência de interessados ou, na falta de acordo, da licitação.
***
Importa agora, conforme resulta do artigo 1110º, nº 2, alínea b), designar dia para a realização da conferência de interessados – sendo essa a fase em que a lei permite às partes, sem encarecerem os encargos do inventário nem alongarem no tempo a partilha:
- um acordo de preenchimento dos quinhões utilizando o valor tributável do imóvel;
- um acordo de preenchimento dos quinhões acordando em outro valor, designadamente o valor de mercado do imóvel;
e só após, esgotadas todas as possibilidades de consenso quanto ao valor, que requeiram então, querendo, a avaliação (até ao momento da abertura das licitações).
Termos em que convoco os ex-cônjuges para conferência de interessados indicando para o efeito o próximo dia 11 de Setembro de 2024, às 09h30.
Notifique, mediante prévio cumprimento do disposto no nº 2 do artigo 151º do CPC”.
O requerente recorre deste despacho, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1º Face a tudo quanto se deixou dito, a decisão de que se recorre violou claramente as seguintes normas jurídicas:
CPC - artigos 411, 412 nº 2, 574 nº 2, 578, 580 nºs 1 e 2, 621, 1082 al. d), 1110 als. a) e b) e 1133 nº 1.
Código Civil – artigos 1688, 1689 nºs 1 e 3, 1697 e 1730 nº 1.
2º Existiu clara violação de caso julgado, pelo que não deverão ser admitidas as verbas nºs 2 e 3 do passivo.
3º Não foram tidos em conta os documentos que só por si fazem contraprova do crédito reclamado na verba nº 4 do passivo.
4º a dívida da cabeça de casal ao apelante, por ter ficado com verbas que correspondiam a bem próprio do mesmo por doação dos pais, não necessita de ser relacionada, mas é tema para a conferência de interessados e o valor deverá ser pago na partilha.
5º Razões bastantes para a total revogação da decisão recorrida, pois só assim se fará realmente JUSTIÇA
Pela cabeça de casal foi apresentada alegação de resposta, aí pugnando pela improcedência do recurso.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se tão só com a violação do caso julgado formado pela sentença de divórcio e com a violação do princípio do inquisitório consagrado no art.º 411º do Código de Processo Civil, com a consequente eliminação das verbas dois a quatro do passivo da relação de bens.
***
A factualidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
***
Percorrendo a alegação de recurso, torna-se patente que o requerente começa por repetir toda a argumentação constante do seu requerimento de 9/4/2024, desde logo no que respeita a alegadas incidências ocorridas na audiência prévia de 28/2/2024 e não documentadas na acta, mas sem que em momento algum haja invocado a falsidade dessa acta, a coberto de uma não registada invocação da arguição, nessa diligência, do mesmo conjunto de questões que fez constar do requerimento de 9/4/2024, e que se expressam na pretensão de ver eliminadas da relação de bens as verbas dois a quatro do passivo.
De todo o modo, e sem embargo da gravidade que revestiria a arguição da falsidade da documentação do acto judicial em questão (desde logo noutra sede, que não esta estritamente processual), torna-se manifesta a irrelevância dessa questão.
Com efeito, o requerente não coloca em crise que no âmbito dessa audiência prévia foi constatada a impossibilidade de acordo entre os interessados, bem como foi afirmado o entendimento do tribunal recorrido no sentido da estabilização do passivo e do activo do património comum, nos termos da relação de bens apresentada pela cabeça de casal. E também não coloca em crise que tal entendimento já decorria do despacho de 27/10/2023, onde se constatou que a relação de bens não havia sido alvo de qualquer reclamação pelo requerente e que haveria apenas que decidir as duas questões susceptíveis de influir na partilha e que foram enunciadas nesse mesmo despacho, não se prendendo qualquer uma delas com a eliminação das verbas dois a quatro do passivo da relação de bens (mas antes com a citação de um credor do património comum e com o levantamento de sigilo bancário para identificação de eventuais contas bancárias, tendo em vista a relacionação subsequente dos valores depositados).
Todavia, entende o requerente que a afirmada falta de reclamação à relação de bens, quando notificado para tanto, não obsta a que pudesse suscitar as questões que suscitou pelo requerimento de 9/4/2024.
O que é o mesmo que dizer que a discordância do requerente não se reporta à afirmação da estabilização do activo e do passivo constante da audiência prévia, mas antes à afirmação constante do despacho de 27/10/2023, no sentido de tal estabilização ter sido determinada pela falta de reclamação à relação de bens apresentada pela cabeça de casal.
Ou seja, na perspectiva do requerente o mesmo podia, a todo o tempo, suscitar a questão da exclusão das verbas dois a quatro do passivo da relação de bens, não obstante o afirmado no despacho de 27/10/2023 e na audiência prévia.
E, por isso, é que se torna irrelevante estar a apreciar a argumentação apresentada no sentido da falsidade da acta da audiência prévia, porque a verificação da (in)tempestividade da arguição da questão em apreço tem por base de partida a omissão de apresentação de reclamação à relação de bens, tal como a mesma foi sinalizada no despacho de 27/10/2023.
Dito de outra forma, estava precludido o direito do requerente a requerer a exclusão das verbas dois a quatro do passivo da relação de bens porque não apresentou reclamação quando foi notificado para tanto?
O tribunal recorrido entendeu que sim, mas o requerente contrapõe que essa exclusão continuava a poder ser suscitada, desde logo porque o caso julgado que a sustenta apresenta-se como sendo de conhecimento oficioso enquanto excepção dilatória, quer atendendo à sua vertente positiva, quer atendendo à sua vertente negativa. Do mesmo modo entende o requerente que a prova documental apresentada pela cabeça de casal carecia sempre de ser valorada, tendo em vista a confirmação dos valores a que respeita a verba quatro do passivo da relação de bens, e só assim se alcançando a justa composição do litígio através do respeito pelo princípio da participação dos cônjuges na comunhão conjugal em partes iguais, na sua parte activa e passiva.
Não está colocado em causa que o presente inventário se destina à partilha da comunhão conjugal extinta por força da dissolução, por divórcio, do casamento entre o requerente e a cabeça de casal.
Isso mesmo resulta da al. d) do art.º 1082º do Código de Processo Civil, na versão da Lei 117/2019, de 13/9.
Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, pág. 520), “a modificação do regime jurídico do processo de inventário foi encetada a partir de um despacho da Min. da Justiça designando um Grupo de Trabalho (…), ao qual foram fixadas as seguintes balizas que a Proposta pretendeu respeitar e que acabaram por ficar reflectidas no texto legal aprovado pela Assembleia da República”, entre elas a da “reconstrução e recodificação do processo de inventário judicial”.
Nessa medida tais autores explicam que o processo de inventário manteve-se “como processo de jurisdição contenciosa”, mas sendo de “sublinhar a vontade de alteração do paradigma a que obedecia o processo de inventário judicial quando era regulado segundo as normas inscritas no CPC de 1961”, sendo “este o verdadeiro contraponto do novo regime legal, sendo de notar que recebe os contributos das regras gerais do processo e da acção declarativa, o que especialmente se evidencia pelo que se dispõe acerca da concentração e da preclusão dos actos respeitantes a cada fase processual, como forma de potenciar a celeridade e a eficácia da tramitação. Assim, fixada a pessoa que irá desempenhar o cargo de cabeça de casal (…), e juntos aos autos os elementos essenciais atinentes à abertura da herança, identificação dos interessados e acervo patrimonial hereditário, é estabelecido um verdadeiro contraditório, recaindo sobre cada interessado que venha a ser convocado o ónus de deduzir todos os meios de defesa e de alegar tudo o que se revele pertinente para a tutela dos seus interesses e para o objectivo final do inventário”.
Ou seja, é através de tal alteração do paradigma do processo de inventário, que assume marcadamente uma estrutura declarativa, que se deve entender a afirmação dos mesmos autores, no sentido da existência de uma “primeira fase (fase dos articulados, que engloba a fase inicial e a das oposições e verificação do passivo)”, onde “deve ser concentrada a discussão de todos os aspectos essenciais relevantes”.
Assim, continuam tais autores, “sem embargo das excepções salvaguardadas por regras gerais de processo (v.g. meios de defesa supervenientes) ou por regras específicas do inventário que permitem o diferimento (v.g. avaliação dos bens, incidente da inoficiosidade), cada interessado tem o ónus de suscitar nesta ocasião, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objectivo final do inventário (art. 1104º), designadamente tudo quanto respeite (…) [ao] relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dívidas e encargos (…) e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial. Cada questão suscitada, ou que seja de conhecimento oficioso, será objecto de decisão no processo de inventário, sem embargo das situações que exijam a suspensão da instância (…) ou daquelas que demandem a remessa dos interessados para os meios comuns”.
Do mesmo modo, Lopes do Rego (A recapitulação do inventário, Julgar Online, Dezembro de 2019, consultável em www.julgar.pt) explica que o regime do processo judicial de inventário aprovado pela Lei 117/2019, de 13/9, apresenta um “novo modelo procedimental”, o qual “parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte”.
Assim, tal autor identifica igualmente uma “fase de articulados (em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respectivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, activo e passivo, que constitui objecto da sucessão) – abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo”, e explicando que o “processo inicia-se tendencialmente (ao menos, quando requerido por quem deva exercer as funções de cabeça de casal) com uma verdadeira petição inicial (e não como o mero requerimento tabelar de instauração de inventário) de que devem constar todos os elementos relevantes para a partilha”.
Mais explica que se procurou assim evitar “que seja sistemática e desnecessariamente relegada para momento ulterior ao início do processo a apresentação de uma série de elementos e documentos essenciais à boa prossecução da causa, como ocorria no regime prescrito no anterior CPC”, explicando ainda que “após despacho liminar (em que o juiz verifica se o processo está em condições de passar à fase subsequente), inicia-se a fase seguinte, da oposição ou do contraditório, exercendo os interessados citados o direito ao contraditório, cabendo-lhes impugnar concentradamente  no próprio articulado de oposição tudo o que respeite à definição do universo dos interessados directos e respectivas quotas hereditárias, à competência do cabeça de casal e à delimitação do património hereditário, incluindo o passivo (cuja verificação é, deste modo, antecipada – do momento da conferência de interessados – para o da dedução de oposição e impugnações)”.
A referida fase da oposição ou do contraditório surge bem vincada através do preceituado no art.º 1104º do Código de Processo Civil, quando se dispõe no seu nº 1 que os interessados directos na partilha são citados (ou notificados, no caso do requerente do inventário, por força do seu nº 2) para, no prazo de 30 dias contado da sua citação/notificação (e para além do mais): d) apresentar reclamação à relação de bens; e) impugnar os créditos e as dívidas relacionadas.
António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, pág. 567) explicam que “os interessados têm o ónus de invocar e de concentrar numa única peça todos os meios de defesa que considerem oportunos, em face dos factos alegados no requerimento inicial ou do que foi complementado pelo cabeça de casal, incluindo a pronúncia sobre as suas declarações e sobre os documentos apresentados”. E mais advertem que “tal corresponde a um verdadeiro ónus e não a uma mera faculdade, já que o decurso do prazo de 30 dias determina, por regra, efeitos preclusivos quanto a tais iniciativas”, divergindo tal regime do que “estava consagrado no CPC de 1961 (art. 1348º)”, e integrando-se “agora no modelo geral dos processos de natureza contenciosa, sendo o efeito preclusivo justificado, além do mais, por razões de celeridade e de eficácia da resposta a um conflito de interesses, que importa resolver, em torno da partilha da herança”.
Também Lopes do Rego explica (na obra já mencionada) que “do regime estabelecido no art. 1104.º CPC decorre obviamente um princípio de concentração no momento da oposição de todas as impugnações, reclamações e meios de defesa que os citados entendam dever deduzir perante a abertura da sucessão e os elementos adquiridos na fase inicial do processo, em consequência do conteúdo da petição de inventário, eventualmente complementada pelas declarações de cabeça de casal; e isto quer tais impugnações respeitem à tradicional oposição ao inventário e à impugnação da legitimidade dos citados ou da competência do cabeça de casal, quer quanto às reclamações contra a relação de bens e à impugnação dos créditos e dívidas da herança (instituindo-se aqui explicitamente um efeito cominatório, conduzindo a revelia ao reconhecimento das dívidas não impugnadas, salvo se se verificarem as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 574.º CPC).
Ou seja, adopta-se, na fase de oposição, um princípio de concentração na invocação de todos os meios de defesa idêntico ao que vigora no art. 573.º do CPC: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, activo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as excepções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo actuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo da oposição, dando origem à apresentação de  um verdadeiro articulado superveniente), que a lei admita expressamente passado esse momento (como sucede com  a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respectiva avaliação, que, por razões pragmáticas, o legislador admitiu que pudesse ser deduzido até ao início das licitações) ou com as questões que sejam de conhecimento oficioso pelo tribunal.
Daqui decorre, por exemplo, que as reclamações contra a relação de bens tenham de ser necessariamente deduzidas, salvo demonstração de superveniência objectiva ou subjectiva, na fase das oposições – e não a todo o tempo, em termos idênticos à junção de prova documental, como parecia admitir o art. 1348.º, n.º 6, do anterior CPC.
Por outro lado, a circunstância de o exercício de determinadas faculdades estar inserido no perímetro de certa fase ou momento processual implica igualmente que, salvo superveniência (nos apertados limites em que esta é considerada relevante, na parte geral do CPC e na regulamentação do processo comum de declaração), qualquer requerimento, pretensão ou oposição tem obrigatoriamente de ser deduzido no momento processual tido por adequado pela lei de processo, sob pena de preclusão”.
E conclui que “com este regime de antecipação/concentração na suscitação de questões prévias à partilha ou de meios de defesa, associado ao estabelecimento de cominações e preclusões, pretende evitar-se que a colocação tardia de questões – que podiam perfeitamente ter sido suscitadas em anterior momento ou fase processual – ponha em causa o regular e célere andamento do processo, acabando por inquinar irremediavelmente o resultado de actos e diligências já aparentemente sedimentados, tendentes nomeadamente à concretização da partilha, obrigando o processo a recuar várias casas, com os consequentes prejuízos ao nível da celeridade e eficácia na realização do seu fim último”.
Ou seja, é patente que o referido efeito preclusivo mais não é que o mesmo efeito que resulta da regra geral aplicável à forma comum do processo declarativo, no sentido de toda a defesa (por impugnação e por excepção) dever ser deduzida na contestação, e só podendo, depois da apresentação da contestação (ou de ultrapassado o momento em que a mesma podia ser apresentada), “ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente” (nº 2 do art.º 573º do Código de Processo Civil).
E se no processo declarativo com forma comum a falta de impugnação dos factos alegados pelo autor determina a sua admissão por acordo, salvo quando aos factos que estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, ou se não for admissível a confissão sobre eles, ou se só puderem ser provados por documento escrito (nº 2 do art.º 574º do Código de Processo Civil), também no processo de inventário as dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados directos têm-se por reconhecidas (nº 1 do art.º 1106º do Código de Processo Civil), ainda que sem prejuízo do disposto no referido nº 2 do referido art.º 574º.
Assim, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, logo se alcança que ao tempo da apresentação do requerimento de 9/4/2024 já se mostrava precludido o direito do requerente à apresentação de reclamação à relação de bens, designadamente estando precludido o direito a impugnar as dívidas relacionadas nas verbas dois a quatro do passivo da relação de bens apresentada pela cabeça de casal, e estando assim as mesmas reconhecidas, por força do disposto no art.º 1106º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Pelo que, desde logo, deixa de fazer sentido a invocação da violação do princípio do inquisitório que decorre do art.º 411º do Código de Processo Civil, já que o mesmo princípio se insere no âmbito da actividade instrutória, isto é, da produção de prova destinada à demonstração de factualidade controvertida.
Dito de outra forma, no caso dos autos inexiste qualquer matéria factual controvertida, já que a não apresentação de qualquer oposição pelo requerente, no prazo a que alude o nº 1 do art.º 1104º do Código de Processo Civil, determinou o reconhecimento das dívidas relacionadas no passivo da relação de bens, bem como à admissão da existência dos bens e direitos integrantes do património comum a partilhar e relacionados no activo da mesma relação de bens. Pelo que se tornou desnecessária a realização de diligências probatórias, nos termos previstos no art.º 1105º, nº 3, do Código de Processo Civil, e sendo apenas nessa situação que haveria lugar a falar da necessidade de respeito pelo princípio do inquisitório (e da sua eventual violação pelo tribunal recorrido).
Do mesmo modo, carece de qualquer sentido a invocação do caso julgado formado pela sentença de divórcio, para efeitos de determinar oficiosamente a exclusão das verbas dois e três do passivo da relação de bens.
Como bem refere o requerente, o caso julgado desdobra-se numa vertente positiva (a autoridade do caso julgado) e numa vertente negativa (a excepção dilatória do caso julgado, que previne a repetição de causas), assim respondendo à “exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que evita que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, LEX, 1997, pág. 568).
Por isso é que, “embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, tem-se entendido (…) que “a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado” (…)”, dado que (citando-se Miguel de Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 578-579) “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/3/2017 (relatado por Tomé Gomes e disponível em www.dgsi.pt).
Explica ainda Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, 2º volume, 2ª edição, pág. 354) que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
Por outro lado, e como já referiu o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 11/11/2020 (relatado por Rosa Tching, disponível em www.dgsi.pt, em citação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/10/2018, não publicado), “a eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático‑jurídico pretendido em acção posterior no quadro da relação material controvertida aqui invocada”, assim concluindo que “a autoridade de caso julgado formado por decisão proferida na oposição à execução para prestação de facto positivo, obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada por decisão proferida no processo de execução”.
No caso concreto dos autos está em causa a partilha do património comum do dissolvido casal, compreendendo as situações activas e passivas que o integram.
Já na acção de divórcio esteve em causa a dissolução do vínculo matrimonial.
E se é certo que é em consequência do decretamento do divórcio que surge o direito de cada um dos ex-cônjuges à partilha em questão, a definição concreta das referidas situações activas e passivas escapa ao alcance do decretamento do divórcio.
Dito de outra forma, do decretamento do divórcio decorre a extinção das relações conjugais (pessoais e patrimoniais), bem como a determinação do momento dessa extinção. O que significa que o momento aí determinado para a cessação de tais relações patrimoniais equivale ao momento em que deixa de se poder falar do surgimento de novas situações activas e passivas comuns. Mas o alcance do caso julgado da sentença de divórcio esgota-se na definição de tal momento temporal, não abrangendo a definição do conjunto concreto de situações activas e passivas que deve integrar o património conjugal.
Assim, no âmbito da subsequente partilha (notarial ou judicial) de tal património a sentença de divórcio faz caso julgado quanto ao momento definidor da cessação do relacionamento patrimonial comum, mas já não faz qualquer caso julgado quanto às concretas situações activas e passivas que integram tal acervo patrimonial, exactamente porque esse conjunto de situações activas e passivas não se apresentou como antecedente lógico necessário à decisão do divórcio, não estando compreendido nos fundamentos dessa decisão.
O que significa que inexiste qualquer caso julgado formado pela sentença de divórcio que houvesse sido violado pelo tribunal recorrido, quando considerou que o conjunto de situações activas e passivas que integram o acervo patrimonial a partilhar corresponde às verbas do activo e do passivo da relação de bens apresentada pela cabeça de casal, tendo presente que a mesma não mereceu qualquer oposição do requerente, no prazo de que dispunha para tanto.
Em suma, face à improcedência das conclusões do recurso do requerente não há que fazer qualquer censura ao despacho recorrido.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.

5 de Dezembro de 2024
António Moreira
João Paulo Raposo
Fernando Caetano Besteiro