Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
84/19.8T8SRQ-E.L1-1
Relator: RENATA LINHARES DE CASTRO
Descritores: LIQUIDAÇÃO DO ACTIVO
ANULAÇÃO DA VENDA
PENDÊNCIA DA FALÊNCIA
ANULAÇÃO
PRAZO
DESPACHO DE ENCERRAMENTO
TRÂNSITO EM JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O artigo 838.º do CPC é aplicável, por força do artigo 17.º do CIRE, à venda realizada em sede de liquidação do activo no processo de insolvência quando seja requerida a sua anulação pela adquirente do bem apreendido (credora hipotecária) com fundamento na desconformidade entre as características anunciadas e aquelas que efectivamente o bem apresenta.
2. Nesta situação, o prazo para ser deduzida a pretensão de anulação da venda é o previsto no artigo 287.º, n.º 1 do CCivil – um ano após o conhecimento dessa mesma desconformidade.
3. Tal pretensão terá, contudo, que ser deduzida na pendência do processo de insolvência, não o podendo ser após o trânsito em julgado do despacho que declarou encerrado tal processo nos termos previstos pelo artigo 230.º, n.º 1, al. a), do CIRE.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - RELATÓRIO
M e E apresentaram-se à insolvência, tendo esta sido declarada por sentença proferida em 03/04/2019, já transitada em julgado.
Em 08/05/2023, por apenso ao processo de insolvência, veio a credora Caixa Económica da Misericórdia de Angra do Heroísmo, Caixa Económica Bancária, S.A., intentar incidente de anulação de venda, nos termos do disposto nos artigos 838.º, n.º 1 e 292.º e segs. do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE, contra a Massa Insolvente de M e E, M e consorte E, I…Lda, UNICRE – Instituição Financeira de Crédito, SA e T…Lda.
Para tanto alegou, em síntese, que, no âmbito da liquidação do património dos insolventes, foi colocada à venda a verba n.º 2 (quota do direito de propriedade sobre prédio rústico) com relação à qual o Administrador da Insolvência (AI) lhe asseverou estar “devidamente regularizada, está a insolvência registada na verba, anexo CRP”, informação essa que foi determinante para que a requerente apresentasse uma proposta e viesse a adquirir o bem.
Já depois de celebrada a respectiva escritura pública de compra e venda e de ter a requerente sido notificada do encerramento do processo de insolvência, “no verão de 2022”, quando diligenciou por apurar da localização do terreno, constatou que “as estremas do prédio não estavam claras como parecia pela informação constante do processo de insolvência”, para além de o insolvente, os vizinhos do prédio e os comproprietários a terem informado que “o prédio afinal não existia, que já tinha sido objeto de destaques anteriores e que a sua existência no registo Predial era meramente formal uma vez que o registo nunca havia sido atualizado”.
Mais refere ter, entretanto, apurado que, “desde 2003, por escritura de hipoteca (…), parte da área supostamente contida no prédio sub judice está já hipotecada à Requerente tendo sido objeto de “destaques” não averbados na ficha do prédio alienado pelo Adm. Judicial à Requerente (…), estando hipotecados os artigos rústicos nºs ... e ... (…), sendo que, por não haver um destaque registado nem averbado nas Finanças, assim como por serem as indicações geográficas (desde logo os nomes das ruas) diferentes, não pôde aperceber-se da sobreposição dos prédios. (…) Esses dois artigos rústicos, ... e ..., foram inscritos na matriz em 1999 e adquiridos pela proprietária … no mesmo ano, por partilha de herança (…) tanto a … e família, bem como os herdeiros do falecido Sr. … (proprietário não registado no prédio) ocupam estes terrenos por herança há várias décadas em qualquer um dos casos e a soma das três áreas assinaladas (…) totaliza a área total do prédio objeto de licitação pela Requerente.”, bem como “O prédio foi, assim, ao longo dos anos, alvo de partilha em várias heranças, tendo ficado ativos, em simultâneo, no Serviço de Finanças, os artigos novos e o artigo base … base que lhes deu origem, sendo que mesmo que se verifique a ausência de registo atualizado, poderá a usucapião ser invocada em prejuízo da Requerente.
Segundo refere a requerente “Dos 14.516m2 constantes da certidão da Conservatória do Registo Predial, na melhor das hipóteses, restariam ao art.º … da matriz e ficha … do Registo Predial pouco mais de 3.000m2, sendo que, ainda assim, a ora Requerente teria adquirido cerca de 45% desses 3.000m2.”, mais acrescentando que “Uma vez que o prédio não existe ou, a existir, não tem as características que foram anunciadas nos presentes autos, a Requerente, se soubesse então que essa era a realidade, jamais teria feito qualquer proposta de compra do referido prédio pois não teria qualquer interesse na mesma.
Concluiu peticionando: “(…) deve o presente incidente ser julgado procedente e anulada a compra e venda da Requerente à Massa Insolvente do prédio rústico sito à Rua … ilha do Pico, com 14.516m2, inscrito na respetiva matriz sob o art.º … e descrito na Conservatória do Registo Predial da Madalena na ficha n.º …, assim como deve a Requerente ser reembolsada do montante pago a título de preço pela compra do referido prédio no valor de 34. 974,95€, devendo, por conseguinte, a liquidação ser revista, bem como o rateio final, em face da anulação da venda com as legais consequências, designadamente no que toca aos montantes a entregar à Massa Insolvente pelos credores reclamantes.
Por despacho liminar proferido em 26/05/2023 foi o incidente admitido e ordenada a notificação dos requeridos para, querendo, deduzirem oposição.
Apenas a requerida T…Lda. deduziu oposição, na qual invocou a excepção de caducidade do direito da requerente (porquanto se mostrava já decorrido o prazo de um ano a que alude o artigo 287.º do CC sobre a celebração da escritura pública de compra e venda), para além de ter impugnado o demais alegado.
Concluiu em conformidade, pugnando pela sua absolvição do pedido.
O AI, juntou comprovativo de ter requerido a concessão do beneficio de apoio judiciário (nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento da compensação de patrono), em nome da massa insolvente, por forma a apresentar contestação.
Em 05/07/2023[1] foi proferido o seguinte despacho:
“(…) Foi o mencionado incidente recebido e determinada a notificação das partes passivas para, querendo, se oporem. // Os autos de insolvência encontravam-se encerrados, assim como os respetivos apensos e incidentes, aquando da propositura do presente incidente. // Acontece, porém, que, melhor compulsados os autos, importa trazer à luz duas questões que, entretanto, se suscitaram ao Tribunal. // O pedido da Requerente consubstancia-se na invalidade do ato de liquidação realizado pelo Sr. Administrador de Insolvência relativamente ao bem apreendido para a massa insolvente, mormente a anulação da venda à Requerente do prédio inscrito na matriz sob o artigo 616, da freguesia de Madalena do Pico. // A questão da anulação de venda deverá remeter-se para as normas especialmente previstas no Código de Insolvência e de Recuperação das Empresas (CIRE) (mormente relativas à liquidação) e, na falta destas ou em caso de as mesmas serem insuficientes, para as normas previstas no Código de Processo Civil, por força do disposto no artigo 17.º, do CIRE, sejam as gerais, sejam as relativas ao processo executivo (contanto que o processo de insolvência constitui um processo executivo universal, tendo a fase de liquidação idêntica natureza ao processo executivo). // Assim sendo, ao pedido de anulação ou de ineficácia da venda em processo de insolvência aplicar-se-ão as regras previstas para o processo executivo, nos artigos 838.º, e 839.º, ambos do Código de Processo Civil, sendo que, nessa medida, aquele pedido surge como um incidente. // Constituindo o incidente um procedimento deduzido por dependência de uma ação, aplicar-se-ão as regras do processo especial a que respeitam e, na sua falta, nos termos do disposto no artigo 292.º, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17.º, do CIRE. // Concomitantemente, na ausência de disposição especial que, no Código de Insolvência e de Recuperação das Empresas ou no Código de Processo Civil, estipule um prazo especial aplicável, será o prazo supletivo de 10 dias, previsto no artigo 149.º, do Código de Processo Civil, aplicável para a arguição de nulidade de venda (com fundamentos adjetivos ou substantivos) por qualquer interessado, prazo esse com início na data do conhecimento da realização da venda objeto do alegado vício de nulidade ou anulabilidade. // Assim, considerando que a venda cuja anulação a Requerente pretende, ocorreu em 19 de novembro de 2021, julga-se estarem mais do que ultrapassados os aludidos 10 dias para a dedução daquele pedido. // Constitui, assim, a primeira das questões mencionadas. // Por outra banda, no que respeita à segunda questão que se suscita ao Tribunal, a mesma relaciona-se com os efeitos do encerramento do processo de insolvência. // Tal como mencionado supra, aquando da dedução do presente incidente pela Requerente, os autos de insolvência (incluindo, obviamente, os seus incidentes e apensos) já se encontravam encerrados. // Nos termos do disposto no artigo 233.º, n.º1, do Código de Insolvência e da recuperação das Empresas: (…) // Donde, do normativo citado retira-se que, uma vez encerrado o processo de insolvência, o Sr. Administrador de Insolvência deixa de ter quaisquer atribuições nos termos da lei, os efeitos da declaração de insolvência cessam, e deixa de existir massa insolvente. // O mesmo será dizer que, após o encerramento do processo de insolvência, não poderá a Requerente peticionar a anulação de venda de um bem que integrava a massa insolvente, e o Administrador de Insolvência não tem mais a seu cargo as atribuições que lhe foram conferidas no âmbito dos autos de processo de insolvência nem existe massa insolvente, sendo estas, porém, indicadas como partes passivas do presente incidente. // Conjugando ambas as questões mencionadas, poder-se-á concluir que o presente incidente é inadmissível, por falta de fundamento legal e por extemporaneidade. // Em face do supra exposto, notifique-se a requerente para, querendo, no prazo de 5 dias, se pronunciar acerca da eventual inadmissibilidade do presente incidente, por falta de fundamento legal e extemporaneidade, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º3, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17.º, do CIRE.”
Em resposta, a requerente pronunciou-se defendendo que o prazo a aplicar é o de um ano e que o “prazo para arguição de um vício causado por erro” conta-se a partir do “fim do mesmo e não o da prática do ato viciado.
Em 17/07/2023, o tribunal a quo, reproduzindo, no essencial, o que já antes havia exposto, decidiu: “Em face de tudo quanto supra se expôs e com os fundamentos legais supra expostos, indefere-se liminarmente o presente incidente por extemporâneo, absolvendo-se os Requeridos da presente instância.”
*
Inconformada com esta decisão, dela interpôs RECURSO a credora Caixa Económica da Misericórdia de Angra do Heroísmo, Caixa Económica Bancária, SA, tendo formulado as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
“A) No âmbito da liquidação do património do insolvente, apenso E, foi adjudicado à ora Apelante um prédio rústico (verba n.º 2) sito à Rua …, ilha do Pico, com 14.516m2, inscrito na respetiva matriz sob o art.º … e descrito na Conservatória do Registo Predial da Madalena na ficha n.º ….
B) Sucede que, de acordo com o anúncio de licitação e informações existentes, a área do prédio cuja quota parte do direito de propriedade foi arrematado pela ora Apelante relativa ao prédio sub judice deveria ser de 14.516m2, contudo, pelo que esta veio entretanto a apurar e de que deu conta no incidente de que emerge este recurso, dos 14.516m2 constantes da certidão da Conservatória do Registo Predial, na melhor das hipóteses, restariam ao art.º …º da matriz e ficha … do Registo Predial pouco mais de 3.000m2, sendo que, ainda assim, a ora Apelante teria adquirido 45% desses 3.000m2 e não 45% de 14.516m2, o que faz muita diferença.
C) Soubesse, a ora Apelante, que o prédio não tinha as características publicitadas no âmbito do processo de insolvência não teria feito qualquer proposta de aquisição do mesmo.
D) A questão, portanto, que está na base do incidente de anulação da venda radica no erro sobre a coisa, erro, esse, criado por quem pôs o prédio à venda sem se assegurar que o mesmo correspondia às características publicitadas, dando a entender à ora Apelante que estava a adquirir 45% de um prédio como 14.516m2, ou seja 6.532,20m2 e não apenas um prédio com 1.350m2 e, ainda assim, de duvidosa existência.
E) Estamos, portanto, no domínio do erro sobre o objeto tal como dispõem os art.ºs 287º e 289º do Código Civil.
F) Na ausência de norma específica do C.I.R.E., tal como bem refere a Meritíssima Juíza a quo, aplicam-se, supletivamente (art.º 17º do C.I.R.E.), as regras do C.P.C. e, no caso vertente, as contidas no art.º 838º.
G) Este artigo, como se refere infra, remete literalmente para o regime do erro, tal como o prevê a legislação substantiva, e aqui surge a questão dos presentes autos: em que prazo deve ser instaurado o presente incidente? Um ano como dispõe o C.C. ou 10 dias como entendeu o Tribunal a quo contados da alienação do bem?
H) Não faz sentido que a lei substantiva preveja um prazo de um ano para se arguir o erro sobre o objeto – no caso vertente o prédio alienado pelo Sr. Adm. Judicial à ora Apelante – no seu artigo 287º do Código Civil, ano, esse, que começa a contar a partir da cessação do vício que lhe serve de fundamento, com os efeitos previstos no art.º 289º do mesmo diploma, para depois se aplicar, de remissão em remissão à procura de normas para aplicar indiretamente quando existe uma norma que se aplica expressis verbis e por intenção do legislador ao caso vertente, uma norma que ao caso não se quer aplicável;
I) Note-se que o prazo de 10 dias é ridiculamente curto, mais a mais se for contado a partir da venda do imóvel, para se detetarem quaisquer vícios, mormente quando, em muitos dos casos de vendas judiciais, ou no de insolvências, a posse da coisa não é efetivamente transmitida no momento da venda;
J) A interpretação feita pelo Tribunal a quo é contrária à unidade do sistema jurídico, pois faz tábua rasa do regime substantivo do erro – note-se que o próprio art.º 838º refere-se expressamente ao erro e não se pode presumir o legislador não o tenha feito conscientemente, devendo-se, antes, entender que, ao escolher deliberadamente terminologia juridicamente relevante, está a fazer apelo às normas que se aplicam a essa matéria, mormente as normas sobre a nulidade/anulabilidade dos negócios jurídicos - ao criar um novel ónus para as partes que o legislador não pretendeu em parte alguma, note-se que prever a lei o prazo de um ano para arguir um vício é manifestamente incompatível com a fixação de um prazo de 10 dias, de forma indireta, para o seu exercício.
K) O prazo dos 10 dias é um prazo supletivo genérico que serve para os mais elementares expedientes processuais e que só deve ser aplicado na total ausência de outros prazos legalmente previstos, ora tal não é o caso vertente onde temos um prazo substantivo de um ano legalmente previsto que não cabe em tão exíguo espaço de tempo, pelo que não pode ser, manifestamente, o aplicável no caso vertente.
L) A interpretação de uma norma tem de ter em conta o sistema jurídico em que a mesma está inserida e a sua lógica, doutro modo teremos um caos normativo voltando-se ao tempo das Ordenações pré-codificação.
M) Para o legislador – bem como para a doutrina – nunca houve qualquer dúvida quanto ao momento da contagem do prazo para arguição de um vício causado por erro: o fim do mesmo e não o da prática do ato viciado. Não se alcança, pois, como se pretende inverter o regime jurídico do erro e o da nulidade e anulabilidade do negócio jurídico sem que haja qualquer norma que expressamente o determine criando uma exceção (!).
N) Convém ter presente que estamos no domínio amplo do Direito das Obrigações do qual o Direito Comercial é um ramo especial e que nos casos omissos deste aplica-se aquele, sendo que, de igual modo, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estriba-se no C.P.C. e, substantivamente, nos ramos do direito referidos, sendo que se não forem criadas exceções – e não o foram no caso vertente pois não existem outros regimes previstos para o erro e os seus efeitos – devem aplicar-se as normas gerais do Direito das Obrigações, pelo que a lógica não pode ser a enveredada pelo tribunal numa interpretação incorreta do disposto no art.º 838º do C.P.C. aplicado ex vi art.º 17º do C.I.R.E. e, obviamente, das normas contidas nos art.ºs 287º e 289º do C.C..
O) Em face do exposto, mal andou o Tribunal a quo na interpretação e aplicação que deu às normas dos art.ºs 287º, 289º do C.C. e 838º e 149º do C.P.C., aplicando esta última a um caso a que ela não se pode ter por aplicável por manifesta contradição lógica e sistemática,
Termos em que, por provado, deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que admita o incidente e determinando o prosseguimento dos demais termos do processo, assim se fazendo JUSTIÇA!”
Não consta que tenham sido apresentadas Contra-alegações/Resposta.
O recurso foi admitido por despacho proferido em 14/09/2023, como sendo de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC.
Assim, a questão a decidir prende-se com a tempestividade do pedido de anulação da venda realizada em sede de liquidação e, a verificar-se a mesma, se se impõe o prosseguimento do processo como pretendido pela apelante.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Atentos os elementos que constam dos autos, as incidências fáctico-processuais relevantes são as constantes do relatório que antecede, cujo teor, por brevidade, se dá aqui por reproduzido.
Sem prejuízo, esta Relação dá ainda por assente o circunstancialismo que a seguir se indica e que resulta da consulta electrónica de todo o processo, sendo que contra o mesmo nenhum dos intervenientes se insurgiu - artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, ex vi do disposto nos artigos 663.º, n.º 2 e 662.º, n.º 1, todos do CPC.
Com relação ao processo de insolvência:
- Em 04/05/2019, pelo AI foi apresentado o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, no qual propôs que não fossem apreendidas as verbas que conseguiu identificar[2] e que fosse o processo encerrado nos termos previstos pelo artigo 232.º do CIRE, “dada a situação de insuficiência da massa insolvente.
- A credora reclamante T…Lda manifestou-se no sentido de dever ser efectuada tal apreensão (Ref.ª/Citius 3152611). 
- A credora reclamante Caixa Económica da Misericórdia de Angra do Heroísmo votou contra o encerramento do processo e pugnou pela avaliação dos bens em causa (Ref.ª/Citius 3152902).
- Realizada a assembleia de credores, fez-se constar da respectiva acta a posição do AI – “(…) apesar de considerar que a venda dos prédios vai ser difícil uma vez que se tratam de prédios rústicos, que nem o próprio insolvente sabe onde se situam, a vontade dos credores deve ser tida em consideração, pelo que devem ser apreendidas as verbas 1 e 2 e os autos devem seguir para liquidação.
- Mais foi determinado que o processo prosseguisse para liquidação.
- Feito o rateio final, em 25/03/2022 veio o AI comprovar nos autos o pagamento efectuado aos credores;
- Em 28/03/2022 foi proferido o seguinte despacho:
“Tendo sido realizado o rateio final e efetuados os respetivos pagamentos, declaro o encerramento do presente processo, nos termos do artigo 230º, nº 1, alínea a) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas. // Notifique e proceda à publicação e registo, indicando a razão determinante (encerramento após realização de rateio final), de acordo com o disposto no artigo 230º, nº 2 do mesmo código. // Os efeitos do encerramento são os previstos no artigo 233º, nº1, alíneas a), b), c) e d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas: // a) Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios; // b) Cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com exceção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência; // c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do nº 1 do artigo 242º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em ação de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência; // d) Os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos. // Notifique o Administrador da Insolvência para, em 10 dias, entregar, para arquivo, toda a documentação relativa ao processo que se encontre em seu poder, bem como os elementos da contabilidade dos devedores que não hajam de ser restituídos aos próprios (artigo 233º, nº5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). (…)”
- Deste despacho foram todos os interessados notificados, incluindo a credora Caixa Económica da Misericórdia de Angra do Heroísmo (Ref.ª/Citius 53067148).
- Em 12/07/2022, o AI juntou aos autos o comprovativo do pagamento aos credores do rateio final da fidúcia;
- Por despacho de 13/07/2022 foi proferido despacho final de concessão do benefício da exoneração do passivo restante – notificado a todos os interessados, incluindo à credora Caixa Económica da Misericórdia de Angra do Heroísmo (Ref.ª/Citius 53662340).
- Foi aposto visto em correcção em 26/08/2022 (Ref.ª/Citius 53776651).
Com relação ao apenso de reclamação de créditos (apenso A):
- Em 14/06/2019 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, a qual já transitou em julgado.
- Neste apenso foi aposto visto em correcção em 17/09/2019.
Com relação ao apenso de apreensão de bens (apenso B):
- Pelo AI foi junto, em 29/05/2019, o auto de apreensão[3] no qual se encontra identificado como verba n.º 2: “Quota parte, propriedade plena (45329/100000), prédio/natureza rústico (constituído por casa com tanque, terra de semeadura e faias), artigo matricial … e registado na Conservatória do Registo Predial da Madalena sob o n.º …, área total de 14.516m2, e situado em …distrito da Horta, ilha do Pico/Açores. Tem VPT total determinado em 1989 de 164,16€. Avaliação em curso.
Foi ainda anexada a competente documentação da CRP, da qual consta que a referida quota parte foi adquirida pelos insolventes por partilha de herança – Ap. 3284, de 11/04/2011 (estando identificado como sujeito passivo …).
- Neste apenso foi aposto visto em correcção em 11/02/2022.
Com relação ao apenso de liquidação (apenso C):
- Em 09/07/2019, o AI juntou o relatório de avaliação (com relação às então duas verbas apreendidas) e comunicou que seria intentada a venda através da plataforma electrónica “e-leilões” (tendo por base 85% do valor da avaliação).
- Neste relatório, com relação à verba n.º 2, fez-se constar: a) composição - “quota parte, prédio rústico constituído por terreno com 14.516,00m2 de área total. ocupado por vegetação selvagem, o prédio encontra-se inserido segundo plano diretor municipal (p.d.m.) da Madalena, nomeadamente em espaço urbanizável, permitindo novas construções com indice de ocupação de 50% e dois pisos. terreno confronta com a via pública (segundo confrontações, não sendo possível confirmar a sua frente). construções existentes em avançado estado de degradação (ruínas), tendo o seu valor sido diluido no valor do terreno.”; b) tipo de avaliação - “avaliação, com visita interior do terreno”; c) observações/condicionalismos - “relatório de avaliação condicionado a apresentação de levantamento topográfico, com identificação dos limites do terreno, de modo a se aferir frente e limites do terreno.”; d) confrontações – “Norte: Canada, Sul: Rua da Areia Larga, Nascente: …, Poente: …”; e) presumível valor transacção – 79.000€.
 - Não obstante se ter diligenciado pela venda através de leilão on line e por negociação particular (via plataforma e-leilões)[4], não foi apresentada qualquer proposta.
- Apesar de notificados para o efeito, pelos co-proprietários não foi exercido qualquer direito de preferência para aquisição da verba apreendida.
- Em 22/07/2021, veio o AI informar nos autos que a verba n.º 2 “teve uma proposta (anexa) da Caixa Económica da Misericórdia de Angra do Heroísmo (…) que cumpre o valor Mínimo de Venda de 34.974,95€ e que por esse motivo será adjudicada. (…)”.
- Uma vez mais, pelos co-proprietários não foi manifestada intenção de invocar qualquer direito de preferência.
- A referida credora/proponente comprovou nos autos ter procedido ao depósito do correspondente a 20% do preço.
- Em 22/11/2021, o AI juntou aos autos a escritura pública de compra e venda realizada no dia 19/11/2021, com relação à verba n.º 2, mais informando dar por terminada a liquidação (Ref.ª/Citius 4391495).
- A aquisição do imóvel encontra-se registada a favor da credora Caixa Económica da Misericórdia de Angra do Heroísmo.
- Por despacho de 17/12/2021, o tribunal a quo declarou finda a liquidação - o que foi notificado a todos os interessados, incluindo à Caixa Económica da Misericórdia de Angra do Heroísmo (Ref.ª/Citius 52533536).
- E, após ter sido ordenado o arquivamento dos autos, nos mesmo foi aposto visto em correcção no dia 12/01/2022 (cfr. Ref.ªs/Citius 52621379 e 52622135).
*
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Sendo o processo de insolvência um processo de execução universal – artigo 1.º, n.º 1 do CIRE -, é o mesmo regido pelas regras que lhe são próprias (CIRE) e, subsidiariamente, pelas regras previstas no CPC (em tudo o que não contrarie o CIRE) – artigo 17.º do CIRE.
Reportando-se o presente recurso à venda efectuada pelo AI[5], importa ter em consideração o que o CIRE prescreve quanto à fase de liquidação – artigos 156.º e ss do CIRE.
Considerando, no entanto, que inexiste qualquer norma a regular a matéria aqui em causa, impõe-se recorrer ao regime legal da venda executiva previsto no CPC (o qual é aplicável à alienação em incidente de liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente).
Uma dessas normas é a invocada pela apelante, a saber, o artigo 838.º, cujo n.º 1 prescreve: “Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil”.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil, Vol. II, Almedina, 2020, pág. 257, este artigo rege sobre a anulabilidade da venda executiva com fundamento na invalidade material, tutelando a posição do comprador.[6] 
Também Castro Mendes e Teixeira de Sousa, in Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL editora, 2022, pág. 946, escrevem que “o art. 838.º trata da invalidade da venda na perspectiva do adquirente do bem vendido; o art. 839.º n.º 1 e 3, ocupa-se da invalidade da venda na óptica do executado.
Através da previsão do artigo 838.º confere-se ao comprador a faculdade de o mesmo requerer a anulação da venda quando tenha existido erro da sua parte, seja quanto ao direito transmitido (erro sobre a existência de algum ónus ou limitação a que estiver sujeito o direito transmitido, isto é, erro acerca do objecto jurídico), seja quanto à coisa transmitida (por falta de conformidade com o que foi anunciado, isto é, acerca do objecto material).
Em ambas as situações, ao contrário do previsto no regime geral da anulação do negócio jurídico por erro (artigos 247.º e 251.º do CCivil), o legislador não exige o requisito da “essencialidade para o declarante e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário”, bastando que “o ónus ou limitação tenha sido tomado em consideração ou que a identidade ou as qualidades do bem vendido divirjam das que tenham sido anunciadas – nesse sentido, Lebre de Freitas, A Ação Executiva, À luz do Código de Processo Civil de 2013, Gestlegal, 7.ª edição, págs. 398/399, Geraldes/Pimenta/Sousa, obra citada, págs. 257/258, Castro Mendes/Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 949, e Marco Carvalho Gonçalves, in Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, 4.ª edição, 2020, pág. 519.
Como escreve Rui Pinto, “É somente neste n.º 1 do artigo 838º que se devem procurar os requisitos e efeitos sobre o objeto, não no Código Civil” – in A Ação Executiva, AAFDL Editora, 2018, pág. 917.
Assim, o pedido de anulação da venda (seja no âmbito de uma execução, seja em sede de liquidação em processo insolvencial) com algum dos fundamentos previstos no artigo 838.º exige que o requerente alegue e prove: a) que o acto que concretizou a venda está viciado, por erro acerca da identidade, ou qualidade, da coisa transmitida; b) que esse erro provem de falta de conformidade entre a identidade, ou as qualidades, e aquilo que tiver sido anunciado.
Feita esta pequena nota introdutória e reportando ao objecto do presente recurso, dir-se-á que, tanto a 1.ª instância, como a apelante, estão de acordo quanto a ser este artigo 838.º, n.º 1 aplicável nos autos.
Divergem já quanto ao prazo dentro do qual a anulação da venda teria que ter sido requerida.
Na sentença recorrida, defendeu-se ser aplicável o prazo supletivo do artigo 149.º do CPC, ou seja, o prazo de dez dias, contados desde a data do conhecimento da realização da venda.
Para tanto argumentou-se: “(…) ao pedido de anulação ou de ineficácia da venda em processo de insolvência aplicar-se-ão as regras previstas para o processo executivo, nos artigos 838.º, e 839.º, ambos do Código de Processo Civil, sendo que, nessa medida, aquele pedido surge como um incidente.//  Constituindo o incidente um procedimento deduzido por dependência de uma ação, aplicar-se-ão as regras do processo especial a que respeitam e, na sua falta, nos termos do disposto no artigo 292.º, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17.º, do CIRE. // Concomitantemente, na ausência de disposição especial que, no Código de Insolvência e de Recuperação das Empresas ou no Código de Processo Civil, estipule um prazo especial aplicável, será o prazo supletivo de 10 dias, previsto no artigo 149.º, do Código de Processo Civil, aplicável para a arguição de nulidade de venda (com fundamentos adjetivos ou substantivos) por qualquer interessado, prazo esse com início na data do conhecimento da realização da venda objeto do alegado vício de nulidade ou anulabilidade. // Assim, considerando que a venda cuja anulação a Requerente pretende, ocorreu em 19 de novembro de 2021, e que esta teve conhecimento dos vícios da venda/compra que alega no verão de 2022, julga-se estarem mais do que ultrapassados os aludidos 10 dias para a dedução daquele pedido.”
Sustenta a 1.ª instância tal entendimento no decidido no acórdão desta Relação de Lisboa, de 07/03/2023 (Proc. n.º 1591/19.8T8VFX-F.L1-1, relatora Amélia Sofia Rebelo), no qual se escreveu que “Na ausência de disposição especial que no CIRE ou no CPC regule ou preveja prazo especial aplicável é de dez dias o prazo para, a partir do seu conhecimento, os interessados arguirem a nulidade da venda em processo de insolvência, seja suportada em fundamento de natureza processual (nulidade processual) seja de natureza substancial (nulidade material).”
Por seu turno, a apelante defende ser aplicável o prazo de um ano previsto no artigo 287.º, n.º 1 do CCivil, segundo o qual “Só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e só dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento.
Este preceito, prevê um prazo de caducidade pelo que, uma vez decorrido, cessa o direito de arguir a anulabilidade e a invalidade considera-se sanada.
É nosso entendimento assistir razão à apelante.
Com efeito, a anulação requerida pelo comprador ao abrigo do n.º 1 do artigo 838.º do CPC, rege-se por um regime muito próprio, que em nada se confunde com o aplicável às demais hipóteses nas quais, sendo também peticionado que a venda seja dada sem efeito, visa-se já sindicar a legalidade/validade de actos realizados pelo AI no âmbito da liquidação.
O aresto citado na decisão recorrida versa sobre uma situação diversa da que está aqui em causa, porquanto naquele se trata de uma anulação da venda requerida pelos insolventes (não foi o comprador quem requereu tal anulação com fundamento no estatuído no artigo 838.º, n.º 1).[7]
Ao nível da jurisprudência, defendendo igualmente a aplicação do prazo de um ano para que a anulação possa ser peticionada pelo comprador, vejam-se os acórdãos da Relação de Guimarães de 06/06/2019 (Proc. n.º 1562/17.9T8VNF-G.G1) – “(…) fazendo o comprador/remidor a opção pela anulação da venda e pela indemnização que lhe assiste, aquele terá de apresentar esse pedido no processo executivo onde foi realizada a venda cuja anulação peticiona, no prazo de um ano a contar do conhecimento do vício, nos termos do art. 287º do CC” -, de 08/10/2020 (Proc. n.º 1408/13.7TBVCT-I.G1) – “(…) mediante o regime especial do art. 838º do CC, na venda judicial dispensa-se o requisito da cognoscibilidade pelo vendedor da essencialidade do elemento sobre que recaiu o erro do vendedor, quanto às características jurídicas ou físicas da coisa comprada, bastando que este requeira a anulação da venda, no processo de execução (no caso, no processo de insolvência), no prazo de um ano a contar do momento em que teve conhecimento desse vício, alegando e provando factos dos quais decorra, respetivamente, que esta se encontra onerada com ónus ou limitações que não foram considerados na compra e venda, porque não comunicados àquele, que excedem os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria ou que há uma desconformidade material (quanto à identidade ou características) desta e aquilo que foi anunciado” -, ambos relatados por José Alberto Moreira Dias) -, e de 14/06/2018 (Proc. n.º 483/03.7TBCMN-B.G1, relator José Amaral) – o qual, referindo-se ao artigo 838.º do CPC, defende: “Não se trata, porém, em tal norma, da anulação do acto propriamente dito nos termos, v.g., do artº 195º, CPC, nem de nulidade ou anulabilidade de um negócio jurídico, v. g., nos termos dos artºs 251º ou 892º, do CC, nem sequer de a venda ficar sem efeito nas diversas hipóteses previstas no artº 939º, CPC. // Trata-se de anulabilidade e não de nulidade da venda por erro sobre a coisa transmitida, erro este (sobre o objecto) confinado a uma espécie ou origem: falta de conformidade com o que foi anunciado (desconformidade esta que, para o caso, só releva sendo material, isto é, respeitante à identidade ou às qualidades do bem vendido. (…) suficiente para a procedência do pedido de anulação da venda é o reconhecimento de ter havido erro sobre a identidade da coisa alienada (transmitida) ou sobre as suas qualidades, por verificação de falta de conformidade (divergência) entre as características constatadas aquando da transmissão com as anunciadas (…) O pedido de anulação da venda é, assim, feito no próprio processo de execução, no prazo do artº 287º, CC, ou seja, “dentro do ano subsequente ao conhecimento do vício”, devendo o juiz decidir se tiver elementos para isso, ou, se estes forem insuficientes, remeter o comprador para a acção competente, conforme nº 3.” Neste último aresto consignou-se, ainda: “O artº 287º, CC, refere “só dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento.” Consistindo o vício relevante para o caso do nº 1, do artº 838º, CPC (segundo fundamento), na desconformidade entre o que, quanto ao objecto ou à coisa transmitida, foi anunciado e de cuja realidade o comprador se convenceu e o que efectivamente lhe foi vendido e entregue (no que diz respeito à sua identidade física, aptidões e qualidades), a ignorância da desconformidade cessa quando dela toma conhecimento e é, portanto, a partir desse momento de tomada de consciência do vício (em que termina o desconhecimento deste) que se conta o prazo.”
Já ao nível da doutrina, também assim o defendem Castro Mendes/Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 949 - “O erro sobre o objecto da venda permite que o comprador peça, no próprio processo de execução (ou seja, num incidente deduzido na execução), a anulação dessa alienação e a correspondente indemnização (art. 838.º, n.º 1 in fine), excepto se a anulabilidade houver de se considerar sanada pelo desaparecimento, por qualquer modo, do ónus ou limitação a que o bem adquirido estava sujeito (art. 838.º, n.º 1 in fine; art. 096.º, n.º 1, CC). A anulação deve ser pedida no prazo de um ano após o conhecimento pelo comprador do ónus ou limitação que desvaloriza o bem (art. 287.º, n.º 1, CC).” – e Geraldes/Pimenta/Sousa, obra citada, pág. 258 – “O comprador dispõe do prazo de um ano para intentar a ação de anulação (art. 287º, nº 1 do CC)”.
Em face do acabado de expor, alegando a apelante ter tido conhecimento do invocado vício no verão de 2022 (pese embora não concretize exactamente quando) – e independentemente da prova do momento desse conhecimento - e tendo requerido a anulação da venda em 08/05/2023, não poderia a decisão recorrida ter julgado, desde logo, o pedido extemporâneo (com fundamento em não ter sido deduzido no invocado prazo de 10 dias), o que acarretaria a sua revogação, com o subsequente prosseguimento dos autos para apreciação da pretensão daquela.
Sucede que a decisão recorrida teve subjacente, não um, mas dois fundamentos: a) o facto de a anulação da venda não ter sido peticionada no prazo de 10 dias após a realização da escritura pública de compra e venda (matéria que acabamos de tratar); e b) o facto de tal pedido ter sido apresentado quando o processo de insolvência e respectivos apensos se encontravam já, todos eles, encerrados.
É certo que, como salienta Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, págs. 265/266 - o âmbito do recurso apenas incide sobre o dispositivo da decisão e não sobre os seus fundamentos - “(...) o âmbito do recurso não é toda a decisão judicial, mas apenas a parte dispositiva da decisão (“a decisão final”, no caso da sentença (cfr. artigo 607º, nº 3, conforme os nºs 2 e 3 do artigo 635º); não, dos seus fundamentos. É a parte dispositiva, enquanto conclusão de certos fundamentos de facto e de direito, que decide do pedido ou que, em geral, produz efeitos sobre as esferas jurídicas das partes. Apenas ela alcança a qualidade de caso julgado, formal ou material, como decorre da conjugação dos artigos 91º, nº 2, 619º, nº 2 e 620º. A parte dispositiva pode conter várias decisões ou segmentos decisórios, tendo o recorrente a faculdade processual de delimitar quais é que está a impugnar”.
O mesmo autor escreve ainda, in Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL editora, 2020, pág. 195/196: “(…) como decorre do artigo 607º nº 3, na sua expressão mais extensa, uma “decisão judicial” comporta fundamentos de facto e de direito e uma conclusão – a parte dispositiva. (…) Qual é, pois, o objecto do pedido de revogação impugnatória? É toda a decisão ou somente a parte dispositiva?”. E, continua: “A resposta é a seguinte: apenas constitui objecto do pedido de revogação a parte dispositiva de uma decisão, i.e., somente o enunciado conclusivo, máxime de condenação ou absolvição do pedido.
Daí que, como preveja o n.º 2 do artigo 635.º do CPC, “Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre.”, acrescentando o seu n.º 3 que “Na falta de especificação, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente.
Sucede que, como referem Castro Mendes/ Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 136, “pode haver restrições quanto aos fundamentos de conhecimento dependente da vontade do recorrente”, desde logo quando estiverem em causa fundamentos que sejam de conhecimento oficioso.
No caso, como se passará a demonstrar, assim sucede.
Como mencionado na decisão recorrida e resulta de todo o processado, no momento em que a apelante deduziu a sua pretensão de anulação da venda, já o processo de insolvência (e todos os seus apensos) se encontravam encerrados.
Por assim ser, esgotado estava o poder jurisdicional do juiz – artigo 613.º, n.º 1 do CPC (designadamente para que, em caso de procedência de tal pretensão, anulasse a venda com as inerentes consequências daí resultantes, tais como a anulação do rateio que se seguiu à liquidação e dos pagamentos entretanto efectuados aos credores, tudo objecto de decisões já transitadas em julgado).
Atente-se que, uma vez proferida decisão de encerramento do processo nos termos previstos pela al. a) do n.º 1 do artigo 230.º do CIRE (após ter sido concluído o rateio final), a mesma (que, no caso, transitou em julgado) acarreta os efeitos previstos no artigo 233.º, n.º 1 do mesmo código – cessação dos efeitos resultantes da declaração da insolvência, cessação das atribuições dos órgãos da insolvência (AI, comissão de credores e assembleia de credores[8]) e, ainda, cessação das restrições do exercício de direitos dos credores da insolvência e da massa. E, o n.º 4 deste último artigo, não obstante aludir às acções apensas, reporta-se às que estivessem já em curso aquando da decisão de encerramento.
Tal decisão constitui, em si mesma, caso julgado[9] e, como estatui o n.º 5 do artigo 535.º do CPC, “Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão de recurso nem pela anulação do processo.
A apelante, para além de não questionar esta questão no recurso intentado (questão essa tratada na decisão recorrida), o certo é que também não reagiu quando notificada do despacho de encerramento do processo de insolvência proferido em 28/03/2022, o qual transitou em julgado.
O caso julgado assim formado é claramente oponível à apelante (porquanto é credora no processo e do despacho de encerramento foi notificada, nessa medida nunca podendo ser considerada um terceiro).
Nessa medida, não obstante se reconhecer que, no caso, era de um ano o prazo para que a apelante pudesse requerer a anulação da venda, não poderão os autos prosseguir a sua tramitação (como requerido)[10], impondo-se a manutenção da decisão recorrida, embora com fundamentação não inteiramente coincidente com o nela defendido.
***
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente, mantendo-se o decidido pela 1.ª instância.
Custas pela apelante – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

Lisboa, 31 de Outubro de 2023
Renata Linhares de Castro
Manuel Ribeiro Marques
Pedro Henrique Brighton
_______________________________________________________
[1] Não obstante, por despacho proferido em 31/05/2023, a Mma. Juíza a quo tenha determinado “Corrija-se a espécie para ação de anulação de venda” (o que foi cumprido), posteriormente identifica e trata o processado como correspondendo a incidente (tal como havia sido intentado), sem que, contra tal divergência, algum dos interessados se tenha insurgido.
[2] Podendo ler-se em tal relatório: “No seguimento da análise da Petição Inicial e averiguações efetuadas junto do insolvente, na AT, na Conservatória dos Registos Predial/Automóvel/Comercial e no Banco de Portugal, foram identificadas as verbas 1 e 2 constantes no inventário artigo 153.º CIRE, anexo a este relatório. // Estas verbas respeitam a bens adquiridos por partilha da herança do seu pai, escritura realizada em 07-04-2014. Cumpre referir que estas verbas constituem parte indivisa de terrenos rústicos, com VPT muito reduzido, no total 179,62€, sendo difícil a sua liquidação, pelo que o AI propõe a não apreensão destas 2 verbas.
[3] Não obstante estar aí identificada uma segunda verba (verba n.º 1), a apreensão referente à mesma foi levantada e cancelado o respectivo registo provisório – cfr. requerimentos do AI de 22/11/2021 e de 10/01/2022 e despacho de 20/12/2021.
[4] Cfr. informações prestadas pelo AI em 29/06/2020, em 30/07/2020, em 13/10/2020, em 18/01/2021 e em 26/04/2021, sendo que todas elas foram os interessados notificados, incluindo a Caixa Económica da Misericórdia de Angra do Heroísmo,
[5] É o AI quem tem competência para proceder à liquidação do activo tendo em vista o pagamento aos credores, nessa medida devendo proceder “com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente” – cfr. artigos 55.º, n.º 1, al. a), e 158.º, n.º 1, ambos do CIRE. Tal função é exercida sob a fiscalização da Comissão de Credores ou, na falta desta, da Assembleia de Credores, e pelo juiz – artigos 55.º, n.º 5, 58.º e 68.º, do mesmo diploma.
[6] Apenas têm legitimidade para requerer a anulabilidade da venda executiva nos termos previstos pelo artigo 838.º do CPC o comprador, o preferente e o remidor (e já não o exequente ou o credor reclamante – não adquirentes -, bem como o executado).
[7] Aliás, da mesma relatora do acórdão invocado pelo tribunal a quo, cita-se, por pertinente e esclarecedor quanto a esta questão, o proferido em 14/07/2020 (Proc. n.º 105/07.7TYLSB-BJ.L2), ao que se sabe não publicado, no qual se escreveu: “Desde logo pela qualidade que o requerente não detém (de comprador), o caso não se enquadra no quadro legal (complexo) previsto pelo art. art. 838º do CPC, norma que apenas contempla o pedido de anulação da venda pelo comprador com fundamento em ónus, limitação, erro sobre a coisa vendida ou falta de conformidade com o anunciado (na venda) e que, por referência à qualidade de comprador e aos fundamentos que convoca, apenas pode ser tempestivamente apresentado no prazo de um ano a contar do conhecimento do vício (cfr. arts. 287º, 905º e ss. e 913º e s. do Código Civil).”

[8] Como defende SOVERAL MARTINS, in Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, Almedina, 4.º edição, 2022, pág. 535, “Embora o art. 233.º, 1, b), não o esclareça, parece que também a assembleia de credores cessa as suas atribuições com o encerramento do processo de insolvência.
[9] O trânsito em julgado fixa o momento a partir do qual a decisão passa a revestir de certeza e de segurança jurídica, como decorre dos artigos 619.º, n.º 1 (alusivo ao caso julgado material) – “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º” – e 620.º, n.º 1 (alusivo ao caso julgado formal) – “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo” –,  ambos do CPC.
[10] No caso inexiste qualquer fundamento legal para que pudesse ser equacionada a abertura o processo de insolvência e, como decorre do que já se defendeu, com o encerramento do mesmo deixou de existir, desde logo, massa insolvente, à qual, em termos hipotéticos, o imóvel vendido pudesse regressar.