Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PIRES ROBALO | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO OBRAS ABUSO DE DIREITO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/23/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | «I - O senhorio para assegurar o gozo do prédio – al. b) do art. 1031.º do Cód. Civil - em idênticas condições em que o arrendou, tem de efectuar, durante a vigência do contrato, as obras necessárias à realização dos fins do arrendamento. II – Verifica-se abuso de direito do inquilino quando o senhorio inicia as obras necessárias e o inquilino impede o acesso dos trabalhadores à obra, obrigando à interrupção das mesmas, vindo passado alguns anos a exigir obras, face ao agravamento do estado do arrendado em consequência da não realização das obras anteriores.» (Sumário do Relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam nesta secção cível os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa 1. Relatório 1.1. A, Lda., intentou contra F, J, M, R, I e O, a presente acção declarativa, que corre termos sob a forma de processo ordinário, pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe a quantia de 36.493,55 €, acrescida de juros à taxa legal, a contar desde a citação até integral e efectivo pagamento, bem como das despesas efectuadas no ano de 2006, a liquidar em execução de sentença. Para tanto alega, em síntese, que sendo arrendatária dos réus, os mesmos procederam à realização de obras no locado, sem sua autorização, de que resultou a impossibilidade de utilização do mesmo e em consequência desse impedimento de utilização, a autora terá sofrido os prejuízos cujo pagamento peticiona, acrescido daqueles que não pode ainda liquidar, referentes ao ano de 2006. * 1.2. Os RR. citados contestaram, excepcionando a incompetência territorial do tribunal, bem como a extinção parcial da dívida invocada, por compensação com contra-crédito que possuem sobre a autora e, ainda, propugnando pela improcedência total da demanda, alegando para tal e em resumo, que a situação do locado se deveu a obras realizadas pela arrendatária, que causaram danos intensos no locado e obrigaram à realização das obras. * 1.3. Julga procedente a excepção de incompetência territorial, foram os autos remetidos e distribuídos às Varas Cíveis de Lisboa, onde foi proferido despacho saneador tabelar, procedendo-se à selecção da matéria de facto assente e daquela objecto da base instrutória, que foi objecto de reclamação, oportunamente decidida. Teve lugar a audiência de julgamento, em cumprimento das legais formalidades, tendo o tribunal respondido à matéria de facto, sem qualquer reclamação. Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo tendo sido proferida sentença onde se decidiu, julgar totalmente improcedente a presente acção e, em consequência, absolver os réus F, J, I, R, M e O dos pedidos formulados pela autora A, Lda. * 1.4. Inconformado com tal sentença dela recorreu a A. terminando a sua motivação com as conclusões transcritas: 1ª - O Tribunal, relativamente à matéria constante dos pontos 3º, 4º, 5º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º e 20º, da base instrutória, entendeu dar uma resposta conjunta relativamente à factualidade provada, nos seguintes termos: - Que, em 1971/1972, a autora realizou obras de instalação de uma base de chuveiro na casa de banho, sendo que, para esse efeito, na base do tubo de queda dos esgotos domésticos que se desenvolve em toda a altura do prédio e que cai na casa de banho, junto à parede exterior, foi aberto um « buraco », com cerca de 0,40x0,40x0,40 metros, deixando a descoberto o ramal de esgotos sito no pavimento, bem como a extremidade do referido tubo de queda, pelo que, pelo menos desde Dezembro de 1997, o esgoto cai directamente nesse buraco, respingando em todo o pavimento e criando um cheiro nauseabundo que torna impossível a utilização deste compartimento e provocando o apodrecimento parcial do pavimento em madeira e afloramentos salitrosos e manchas de humidade nas paredes do locado; - Que o locado apresentava ainda nessa data manchas de humidade nas paredes e no tecto do quarto da fachada posterior, com origem em infiltrações do piso superior; - para reparação do problema do esgoto e suas consequências o senhorio iniciou as obras referidas em E) -2.1.5. - da matéria assente, que consistiam em levantamento da base do chuveiro, rectificação da conduta de esgotos, levantamento dos tacos da sala e reparação das paredes; - que depois de receber o escrito referido em I), -2.1.9. a autora vedou o acesso ao locado dos trabalhadores que realizavam essas obras, pelo que as mesmas foram interrompidas, apresentando-se inacabadas e impossível a utilização do locado, com partes do pavimento da casa de banho e dos compartimentos em falta, rodapés em falta e paredes com zonas de reboco em falta e outras colmatadas, mas não pintadas, afloramentos salitrosos e manchas de humidade, bem como tectos com manchas negras de humidade. 2ª - Com o devido respeito, tendo tal resposta resultado do depoimento das testemunhas N, G, S e F, bem como dos documentos de fls. 20, 21 e 108, as meios de prova produzidos nos autos, nomeadamente a prova testemunhal, impõem resposta diversa. 3ª - Como resulta do depoimento de S e F, empreiteiros que realizaram, através da sua empresa, por conta e ordem do senhorio, as obras referidas em E) -2.1.5. -, da matéria assente: a abertura de tal « buraco » foi efectuada, conforme disseram as referidas testemunhas, na execução das obras referida em E) -2.1.5.- da Base Instrutória, ou seja, em Dezembro de 1997. Obras essas efectuadas por ordem e por conta do senhorio Alexandre Sousa, e não pela autora em 1971/1972, como se deu como provado. Como tal, as consequências da abertura de tal « buraco », ou seja, « pelo que, pelo menos desde Dezembro de 1997, o esgoto cai directamente nesse buraco, respingando em todo o pavimento e criando um cheiro nauseabundo que torna impossível a utilização deste compartimento e provocando o apodrecimento parcial do pavimento em madeira e afloramentos salitrosos e manchas de humidade nas paredes do locado » terão, com o devido respeito, de ser imputadas às obras efectuadas pelo senhorio em Dezembro de 1997 e não às obras da autora em 1971/1972, sendo isso que resulta da prova produzida. 4ª - Impugna-se, pois, a decisão proferida quanto à referida matéria de facto, constante dos pontos 3.º, e 14.º a 20.º, da Base Instrutória, por a mesma não corresponder, com o devido respeito, à prova que foi produzida nos autos, devendo ser-lhe, antes dada a seguinte resposta: 5ª - Quanto ao quesito 3.º, deverá ser dada como provada a matéria de facto dele constante, por ser o que resulta dos meios de prova produzidos e indicados. 6ª - Quanto ao quesito 14.º, deverá ser dada como não provada a matéria de facto dele constante, por ser o que resulta dos meios de prova produzidos e indicados. 7ª - Quanto ao demais, deverá dar-se como provado que: - em Dezembro de 1997, na execução as obras referidas em E) – 2.1.5. - da matéria assente, o senhorio, através de empreiteiro que contratou, abriu na base do tubo de queda dos esgotos domésticos que se desenvolve em toda a altura do prédio e que cai na casa de banho, junto à parede exterior, um " buraco », com cerca de 0,40x0,40x0,40 metros, deixando a descoberto o ramal de esgotos sito no pavimento, bem como a extremidade do referido tubo de queda, pelo que, pelo menos desde Dezembro de 1997, o esgoto cai directamente nesse buraco, respingando em todo o pavimento e criando um cheiro nauseabundo que torna impossível a utilização deste compartimento e provocando o apodrecimento parcial do pavimento em madeira e afloramentos salitrosos e manchas de humidade nas paredes do locado; - Que o locado apresentava ainda nessa data manchas de humidade nas paredes e no tecto do quarto da fachada posterior, com origem em infiltrações do piso superior; - para reparação do problema do esgoto e suas consequências o senhorio iniciou as obras referidas em E) – 2.1.5. - da matéria assente, que consistiam em levantamento da base do chuveiro, rectificação da conduta de esgotos, levantamento dos tacos da sala e reparação das paredes; - que depois de receber o escrito referido em I) – 2.1.9. - , a autora vedou o acesso ao locado dos trabalhadores que realizavam essas obras, pelo que as mesmas foram interrompidas, apresentando-se inacabadas e impossível a utilização do locado, com partes do pavimento da casa de banho e dos compartimentos em falta, rodapés em falta e paredes com zonas de reboco em falta e outras colmatadas, mas não pintadas, afloramentos salitrosos e manchas de humidade, bem como tectos com manchas negras de humidade. 8ª - Como se referiu, as testemunhas S e F, foram claras no seu depoimento, afirmando que o referido" buraco" foi aberto por eles, na execução das obras mandadas executar pelo senhorio, em Dezembro de 1997, bem como a testemunha G, porteira do prédio há mais de 40 anos, foi clara no seu depoimento, afirmando que tal" buraco " foi aberto pelo senhorio, não existindo o mesmo, de todo o modo, desde 1971/1972, mas apenas desde o mês de Dezembro de 1997. 9ª - Os respectivos depoimentos encontram-se gravados no que respeita a toda a referida matéria, conforme consta da acta da audiência, em gravação digital e, tendo em atenção que ao presente recurso se aplica o disposto no artigo 690º-A, nºs 2 e 5, e 522º-C, do Código de Processo Civil, nas redacções anteriores às dadas pelo DL nº 303/2007, de 24.08, deveria ter sido assinalada na acta o início e o termo de gravação de cada depoimento, o que não ocorreu, não sendo, por outro lado, aplicável o ónus previsto no artigo 685º-B, nº 4, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo DL nº 303/2007, de 24.08, por aplicável apenas aos processos intentados a partir de 01.01.2008, sendo certo que a gravação digital não permite a identificação precisa e separada dos depoimentos. 10ª - Por outro lado, os documentos invocados pelo Tribunal, nomeadamente o auto de vistoria camarária de fls. 21 e parecer técnico de fls. 108, concorrem, também, para ser dada a resposta a tal matéria no sentido por que se pugna. 11ª - Assim, a matéria de facto constante nos pontos 3º a 5º, e 14º a 20º, da base instrutória ( alíneas M), N) O) e P), da matéria provada) foi, com o devido respeito, incorrectamente julgada, ao dar-se como provado que foi a autora, em 1971/1972, que abriu o dito «buraco», impondo os depoimentos das referidas testemunhas e os documentos decisão diversa, ou seja, que seja considerado provada e não provada a matéria de facto em causa nos termos acima melhor descritos. 12ª - Atenta a impugnação efectuada da matéria de facto, e na respectiva procedência, verifica-se que nenhum abuso de direito poderia ser imputado à autora, pois não foi a conduta desta a provocar quaisquer danos no locado, mas sim a conduta do senhorio, ou seja, as obras que mandou efectuar em Dezembro de 1997, que tornaram impossível à autora o gozo do locado, nas condições e para o fim para as quais foi arrendado. 13ª- Ainda que não procedesse a referida impugnação, a autora, ao contrário do referido na douta sentença recorrida, não deixou de exigir ao senhorio, ou seja, aos réus ora apelados, a realização das obras necessárias para permitirem o gozo do locado, como consta da matéria provada, sob a alínea J) – 2.1.10. - da douta sentença, a autora requereu, para além do mais, a notificação judicial avulsa dos réus, ora apelados, com o referido fim, não tendo estes, jamais, procedido à execução de tais obras. 14ª - Por outro lado, e como consta da matéria de facto provada, os danos e as deteriorações que o locado sofria nunca poderiam ter a ver, na sua totalidade, com a situação de entupimento dos esgotos, ao nível do pavimento, já que resulta provado que as manchas de humidade nas paredes e no tecto tinham origem em infiltração do piso superior. 15ª - O instituto do abuso de direito destina-se a evitar situações de clamorosa injustiça e, na sua vertente de veníre contra factum propríum, o exercício do direito seja efectuado pela parte que criou as condições para o seu exercício, agindo de má fé e contra os bons costumes. 16ª - Ora, conforme resulta dos autos, a autora, desde 1987, é inquilina do locado, propriedade dos réus, tendo sempre, mesmo no período em que esteve impossibilitada de fruir o locado, efectuado o pagamento das rendas, água e electricidade, como resulta da alínea R) da matéria provada. Ou seja, cumpriu escrupulosamente as suas obrigações de inquilina. Pelo contrário, os réus, através do seu antecessor na propriedade, deram início a obras sem o consentimento da autora, conforme resulta das alíneas E. e V. da matéria de facto provada. 17ª - A informação prestada pelo senhorio, após ter iniciado as referidas obras, conforme resulta da carta de fls. 18 --- alínea F) da matéria provada --- incluía a imputação à autora do custo das referidas obras. Como respondeu a autora, através da carta de fls. 19 m alínea H da matéria provada m, não existia qualquer fundamento para ser a autora a custear as referidas obras, nem a autora era responsável pela necessidade das mesmas, propondo, ainda assim, uma peritagem conjunta, o que os réus nunca vieram a aceitar. 18ª - Ao contrário do que se refere na fundamentação da douta sentença, a autora reagiu face à não realização das obras necessárias e devidas pelo senhorio, quer requerendo e vendo realizada a vistoria camarária de Maio de 1998, quer requerendo a notificação judicial avulsa dos réus. 19ª - Assim, com o devido respeito, foram os réus que violaram os ditames da boa fé ao exigirem à autora o pagamento de obras que por ela não era devido, colocando a autora na situação, criada pelos réus, de, caso aceitasse a continuação das obras na condição de as pagar ver o seu direito violado, já que nenhuma norma legal lhe impunha o pagamento das referidas obras. 20ª - Não se verifica, assim, a existência de abuso de direito por parte da autora, tendo a douta sentença recorrida feito errada interpretação e aplicação das normas constantes do disposto nos artigos 334º e 70º, do Código Civil, pois tais disposições não se aplicam ao caso dos autos. 21ª - Deveria a douta sentença recorrida em correcta aplicação e interpretação direito, com o devido respeito, ter decidido que, sendo as obras necessárias e devidas pelos réus, de modo a possibilitar a fruição do locado pela autora, como bem decidiu nessa parte, em consequência, os réus, ao não terem procedido de tal forma, se tornaram responsáveis pelos prejuízos originados por tal conduta e situação à autora, aplicando, em tal sentido, o disposto nos artigos 798º, 799º, nº 1 e 1031 º, alínea b). 22ª - Tinham os réus a obrigação de assegurar à autora o gozo do locado para os fins a que aquele se destinava --- artigo 1031 º, alínea b) m e, ao faltarem ao cumprimento dessa obrigação, tornaram-se responsáveis pelo prejuízo causado à autora. Incumbia aos réus fazer prova de que a falta de cumprimento da obrigação não procedia de culpa sua, o que não lograram, verificando-se, pois, ainda que se não provasse a sua culpa, e tal aconteceu, a presunção de culpa estabelecida na Lei. 23ª Tendo em conta a matéria provada constante das alíneas K., L., R, S., T e U., verifica-se a existência de prejuízos sofridos pela autora, os quais, atenta a impossibilidade de quantificação, deverão ver a sua liquidação relegada para execução de sentença. 24ª - Deverá, com o devido respeito, ser proferida decisão que, dando provimento ao presente recurso, nos termos supra expostos, revogue a douta sentença recorrida e condene os réus como pedido na p.i., relegando a quantificação dos prejuízos para liquidação em execução de sentença, assim fazendo Vossas Excelências a costumada JUSTiÇA!» * 1.5. Os recorridos apresentaram contra-alegações terminando a motivação das mesmas com as conclusões transcritas: «1 - A douta decisão da matéria de facto está conforme com os elementos probatórios do processo e foi abundantemente fundamentada segundo as regras da ciência, do raciocínio e da experiência comum; 2 -A resposta dada aos arts. 3° e 14° a 20° da base instrutória deve ser mantida ; 3 - A douta sentença recorrida fez correcta e sapiente aplicação do direito aos factos provados, sem violação de quaisquer normas, designadamente as constantes dos preceitos apontados pela apelante ; 4 - Assim sendo, a sentença não merece qualquer censura, devendo ser mantida. TERMOS EM QUE, nos mais de direito, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve ser negado provimento ao recurso e mantida a douta sentença recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA» * 1.6. Os Senhores Desembargadores-Adjuntos tiveram visto dos autos. * 2. Fundamentação 2.1. Factos dados como provados em 1.ª instância 2.1.1. Os Réus são os herdeiros legítimos de X, já falecido -A. 2.1.2. Os Réus são legítimos proprietários de uma cave-esq. situada num prédio,. 2.1.3. X deu de arrendamento em 1987 à Autora, a cave - esq. identificada supra, nos termos constantes do documento de fls. cfr. 16, cujo teor aqui se dá por reproduzido-C. 2.1.4. A dita cave tem uma área de 31,42 m2 e é composta por duas divisões e uma casa de banho com lavatório e sanita-D 2.1.5. Em Dezembro de 1997 X e sem o consentimento da Autora, deu início a obras na cave/escritório-E. 2.1.6. Em 29 de Dezembro/97 - X - enviou uma carta à Autora, dando-lhe conta que iniciou obras no escritório da Autora, nos termos constantes do documento de fls. 18, cujo teor se dá por reproduzido-F. 2.1.7. Para efectivação das obras contratou o empreiteiro S Ld.ª, - G 2.1.8. A Autora, por meio do seu Advogado em 14.01.98, respondeu àquela carta, nos termos constantes do documento de fls. 19, cujo teor aqui se dá por reproduzido - H. 2.1.9. Em 19.02.1998 - X - enviou à Autora uma factura do valor das obras, no valor de Esc. 99.450$00, nos termos constantes do documento de fls. 20, cujo teor aqui se dá por reproduzido, que a autora não pagou - I. 2.1.10. Em 28.04.04 a Autora requereu uma notificação judicial avulsa dos Herdeiros, ora réus, nos termos constantes do documento de fls. 24 e 25, cujo teor aqui se dá por reproduzido - J. 2.1.11. A Autora utilizava a cave como um prolongamento dos seus escritórios em A veiro, para receber os clientes de Lisboa e arredores -1. 2.1.12. A Autora deslocava-se a Lisboa duas vezes por semana - 2. 2.1.13. Em 1971/1972 a autora realizou obras de instalação de uma base de chuveiro na casa de banho, sendo que, para esse efeito, na base do tubo de queda dos esgotos domésticos que se desenvolve em toda a altura do prédio e que cai na casa de banho, junto à parede exterior, foi aberto um «buraco», com cerca de 0,40X0,40X0,40 metros, deixando a descoberto o ramal de esgotos sito no pavimento, bem como a extremidade do referido tubo de queda, pelo que, pelo menos desde Dezembro de 1997, o esgoto cai directamente nesse buraco, respingando em todo o pavimento e criando um cheiro nauseabundo que torna impossível a utilização deste compartimento e provocando o apodrecimento parcial do pavimento em madeira e afloramentos salitrosos e manchas de humidade nas paredes do locado. 2.1.14. O locado apresentava ainda, nessa data, manchas de humidade nas paredes e no tecto do quarto da fachada posterior, com origem em infiltrações do piso superior. 2.1.15. Para reparação do problema no esgoto e suas consequências, o senhorio iniciou as obras referidas em E) -2.1.5., que consistiam em levantamento da base de chuveiro, rectificação da conduta de esgotos, levantamento dos tacos da sala e reparação das paredes. 2.1.16. Depois de receber o escrito referido em I) – 2.1.9.-, a autora vedou o acesso ao locado dos trabalhadores que realizavam essas obras, pelo que as mesmas foram interrompidas, apresentando-se inacabadas e impossível a utilização do locado, com partes do pavimento da casa de banho e dos compartimentos em falta, rodapés em falta e paredes com zonas de reboco em falta e outras colmatadas, mas não pintadas, afloramentos salitrosos e manchas de humidade, bem como tectos com manchas negras de humidade - 3 a 5 e 14 a 20. 2.1.17. Até ao presente as obras estão por fazer e a Autora no fim do ano de 2005 deixou de trabalhar em Lisboa -6. 2.1.18. A autora tem vindo a pagar as despesas emergentes do locado, relativas a rendas, água e electricidade -7. 2.1.19. No decorrer destes anos, a autora, para receber os seus clientes, teve que se socorrer de casas de terceiros-8. 2.1.20. Pernoitando quando necessitava, nessas mesmas casas ou pensões-9. 2.1.21. Devido à impossibilidade de utilização do locado, a autora efectuou despesas que não faria se usasse normalmente o mesmo -10 e 11. 2.1.22. As obras referidas em E) – 2.1.5.- foram iniciadas sem o consentimento da autora - 21. * 3. Fundamentação 3.1. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (art.º 684, n.º 3 e 690, n.º 1, do C.P.C.), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. art.º 660, n.º 2, do C.P.C.). Por seu turno, no nosso sistema processual civil, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre. Como resulta das conclusões do recurso são essencialmente duas as questões que importa decidir: a) Saber se a matéria de facto deve ser alterada. b) Saber se a decisão recorrida deve ser substituída por outra que condene os RR. como pedido na P.I., relegando a quantificação dos prejuízos para execução de sentença. Tendo presente que são duas as questões a analisar, embora a segunda dependente da solução da primeira, por uma questão de método iremos a analisar cada uma de per si. * 3.1.1. Saber se a matéria de facto deve ser alterada. Segundo o recorrente o tribunal recorrido errou na análise da matéria de facto ao dar a resposta que deu aos pontos 3º e 14 a 20º, da base instrutória, pois com o depoimento das testemunhas N, G, S e F, bem como dos documentos de fls. 20, 21 e 108, as meios de prova produzidos nos autos, nomeadamente a prova testemunhal, impõem resposta diversa. - Quanto ao quesito 3.º, deverá ser dada como provada a matéria de facto dele constante, por ser o que resulta dos meios de prova produzidos e indicados. - Quanto ao quesito 14.º, deverá ser dada como não provada a matéria de facto dele constante, por ser o que resulta dos meios de prova produzidos e indicados. - Quanto ao demais, deverá dar-se como provado que: - em Dezembro de 1997, na execução as obras referidas em E) – 2.1.5. - da matéria assente, o senhorio, através de empreiteiro que contratou, abriu na base do tubo de queda dos esgotos domésticos que se desenvolve em toda a altura do prédio e que cai na casa de banho, junto à parede exterior, um " buraco », com cerca de 0,40x0,40x0,40 metros, deixando a descoberto o ramal de esgotos sito no pavimento, bem como a extremidade do referido tubo de queda, pelo que, pelo menos desde Dezembro de 1997, o esgoto cai directamente nesse buraco, respingando em todo o pavimento e criando um cheiro nauseabundo que torna impossível a utilização deste compartimento e provocando o apodrecimento parcial do pavimento em madeira e afloramentos salitrosos e manchas de humidade nas paredes do locado; - Que o locado apresentava ainda nessa data manchas de humidade nas paredes e no tecto do quarto da fachada posterior, com origem em infiltrações do piso superior; - para reparação do problema do esgoto e suas consequências o senhorio iniciou as obras referidas em E) – 2.1.5. - da matéria assente, que consistiam em levantamento da base do chuveiro, rectificação da conduta de esgotos, levantamento dos tacos da sala e reparação das paredes; - que depois de receber o escrito referido em I) – 2.1.9. - , a autora vedou o acesso ao locado dos trabalhadores que realizavam essas obras, pelo que as mesmas foram interrompidas, apresentando-se inacabadas e impossível a utilização do locado, com partes do pavimento da casa de banho e dos compartimentos em falta, rodapés em falta e paredes com zonas de reboco em falta e outras colmatadas, mas não pintadas, afloramentos salitrosos e manchas de humidade, bem como tectos com manchas negras de humidade. Por outro lado, a matéria de facto constante nos pontos 3 a 5 e 14 a 20, da base instrutória (alíneas M), N), O) e P), da matéria provada foi, incorrectamente julgada, ao dar-se como provado que foi a A., em 1971/1972, que abriu o dito «buraco», impondo o depoimento das referidas testemunhas e os documentos juntos decisão diversa. Mesmo que não procedesse a referida impugnação, a A., ao contrário do referido na douta sentença recorrida não deixou de exigir ao senhorio, ou seja, aos RR., a realização das obras necessárias para permitirem o gozo do locado, como consta da matéria provada, sob a alínea J) da sentença. Vejamos A decisão da matéria de facto, como se sabe, assenta na análise crítica das provas e na especificação dos fundamentos decisivos para a convicção do julgador (art. 653, nº 2 do CPC). O nº 1, do art. 655, do CPC prescreve que as provas são livremente apreciadas, decidindo o juiz segundo a prudente convicção acerca de cada facto, mas o nº 2 do mesmo preceito logo excepciona desta regra os factos em que por lei a sua existência ou prova dependa de qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. No caso em apreço, os factos controvertidos cujo julgamento é questionado no presente recurso não dependem, seja quanto à sua existência (formalidade substancial) seja quanto à sua prova (formalidade probatória) de qualquer forma especial, designadamente documental ou pericial. Isto para dizer que a força probatória dos depoimentos das testemunhas sobre eles produzidos é criticamente analisada e livremente apreciada pelo tribunal (art. 396, do CC). E se, pela fundamentação da decisão, se conclui que a convicção do juiz foi formada a partir dessa análise, está o tribunal de recurso impedido de a censurar, a menos que na formação de tal convicção ocorresse violação de normas legais sobre provas (o que no caso em apreço está excluído). A sindicância da Relação em sede de matéria de facto não visa alterar a decisão de facto com base na susceptibilidade de uma convicção diversa, fundada no depoimento das mesmas testemunhas, mas sim modificar o julgamento da matéria de facto, porque as provas produzidas na 1ª instância (v.g. depoimentos prestados) impunham, decisiva e forçosamente, outra diversa da aí tomada; é o que decorre das als. a), b) e c) do nº1 do art. 712 do CPC. No caso em apreço, e tendo a prova sido gravada, a questão consiste em saber se os meios probatórios arrolados pela recorrente impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – art. 690 – A, nº 1 – b) do CPC. De igual modo as als. b) e c), do nº1, do art. 712, do CPC, são inequívocas neste sentido de a decisão proferida em 2.ª instância sobre a matéria de facto seja insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas (al. b) e se basear em prova documental superveniente, esta só por si, destrua a prova em que a decisão da 1ª instância se fundou (al. c). Portanto, em controle da decisão sobre a matéria de facto controvertida e julgada com base em prova gravada, a 2.ª instância pode alterá-la, desde que os elementos de prova (normalmente depoimentos) produzidos e indicados pelo recorrente como mal ou incorrectamente apreciados, imponham forçosamente, isto é, em juízo de certeza (que não de mera probabilidade ainda que elevada) e sem margem para quaisquer dúvidas, outra decisão. Só neste caso se pode afirmar que a convicção formada para a decisão impugnada não foi prudente, ou de outro modo, que o juiz exagerou na liberdade de que desfrutava na apreciação da prova (saliente-se, que se trata de uma liberdade vinculada) e considerou como provados (ou não provados) factos que objectivamente e com base naqueles meios de prova, deveriam ter necessariamente outra decisão. Por isso se pode afirmar que o controle da 2.ª instância sobre a decisão da matéria de facto proferida na 1.ª instância visa a razoabilidade daquela convicção. “Na impossibilidade de submeter a apreciação da prova a critérios objectivos (como são os que exigem uma demonstração por leis científicas) a lei apela à convicção íntima ou subjectiva do tribunal. Essa convicção exigida para a demonstração do facto é uma convicção que, para além de dever respeitar as leis da ciência e do raciocínio, pode assentar numa regra máxima da experiência. A convicção sobre a prova do facto fundamenta-se em regras de experiência baseadas na normalidade das coisas e aptas a servirem de argumento justificativo dessa convicção. Essas regras de experiência podem corresponder ao senso comum (...) ou a um conhecimento técnico ou científico especializado. A convicção do tribunal extraída dessas regras da experiência é uma convicção argumentativa, isto é, uma convicção demonstrável através de um argumento. A regra de experiência que o tribunal pode utilizar para fundamentar a sua convicção sobre a prova realizada é a mesma que pode ser usada pela parte como argumento para a formação dessa convicção. Quer dizer: a máxima de experiência que pode convencer o tribunal da veracidade do facto é a mesma que pode ser utilizada para a fundamentação da decisão desse órgão sobre a apreciação da prova “ (Cfr. Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na acção declarativa, 1995, p. 239). A análise crítica das provas obriga o juiz a verificar e a controlar os meios de prova produzidos, aferindo em conjunto a respectiva força probatória; tem pois, a função endoprocessual de formar a convicção íntima do juiz. Com a imposição dessa análise crítica das provas produzidas visa-se a formação da convicção através de “ um processo racional, alicerçado e, de certa maneira, objectivado e transparente – na análise criticamente comparativa dos diversos dados trazidos através das provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações essencialmente determinantes da opção feita e cuja enunciação, por exigência legal, representa o assumir das responsabilidades do julgador inerentes ao carácter público da administração da justiça” (Cfr. Pereira Baptista, Reforma do Processo Civil, 1997, 90 e segs,.). Portanto, o objecto do recurso da matéria de facto, nos casos de prova legalmente não vinculada, nunca pode ser a convicção (foro íntimo e insindicável) do juiz, mas a sua manifestação ou exteriorização na decisão proferida e a sua procedência pressupõe a evidência do erro na apreciação das provas. E sendo assim, será que existe, no caso em apreço, erro na apreciação da prova? Vejamos, então, a matéria de facto, que a recorrente põe em causa. Na pergunta 3 da base instrutória pergunta-se:« As obras levadas a cabo pelo senhorio impossibilitaram a A. de utilizar o escritório, desde Dezembro de 1997 ? O tribunal a esta matéria respondeu conjuntamente, com resposta dadas às perguntas 3 a 5 e 14 a 20, como da resposta dada à matéria de facto de fls. 192 e das alíneas M), N), O) e P) referidas na sentença a fls. 195 a 203, mormente a fls. 197. Porém, entende o recorrente que a resposta deveria ser provada, face ao referido pelas testemunhas supra referidas. Após proceder à audição do CD temos para nós que não assiste razão ao recorrente. Na verdade a testemunha G, porteira refere que o inquilino depois de receber a carta com a factura lhe deu ordens para não entregar mais a chave para a feitura das obras. Por sua vez as testemunhas S referiu que tinha a chave, para continuar a feitura das obras e que passados 3 ou 4 dias a dona G pediu a chave, por o inquilino não querer que as mesmas continuassem. Por sua vez a testemunha P, filho da testemunha S, referiu que o seu pai lhe referiu para ir buscar o material à obra pois não podiam continuar a mesma. Tendo presente estes depoimentos, e tendo em conta o referido pelo Tribunal “ a quo” a respeito da fundamentação da matéria de facto a fls. 194, não vimos razão para alterar a resposta para provado como pretende o recorrente. Na pergunta 14 da base instrutória pergunta-se: « As obras feitas pelo senhorio foram motivadas pelas obras antes feitas pala A., no locado, relativas à margem da base do chuveiro na casa de banho» O tribunal a esta matéria respondeu conjuntamente, com resposta dadas às perguntas 3 a 5 e 14 a 20, como da resposta dada à matéria de facto de fls. 192 e das alíneas M), N), O) e P) referidas na sentença a fls. 195 a 203, mormente a fls. 197. Porém, entende o recorrente que a resposta deveria ser não provada, face ao referido pelas testemunhas supra referidas. Após proceder à audição do CD temos para nós que não assiste razão ao recorrente. Na verdade a testemunha G, S referiu viu a casa antes de iniciar a obra e verificou que as paredes estavam podres devido à humidade que provinha da casa de banho, que ficou a dever-se ao facto de ter sido colocada uma base de duche o que originou a mudança da sanita, levando a um corte do tubo de esgotos por forma a poderem ser ligados a sanita e a base de duche depoimento corroborado pela testemunha P. Ambas as testemunhas referiram que foi feita uma caixa onde foi colocada uma pedra e por cima desta a sanita. Tendo presente estes depoimentos, e tendo em conta o referido pelo Tribunal “ a quo” a respeito da fundamentação da matéria de facto a fls. 194, não vimos razão para alterar a resposta para não provado como pretende o recorrente. Face ao supra referido não se vislumbra razão para alterar a matéria de facto vertida nas alíneas M), N), O) e P), da sentença de fls. 195 a 203. No que concerne à alínea J) dos factos aludidos na sentença recorrida, não resulta que se tenha dado como não provado que o A. não tenha exigido obras, pois o que resulta de tal alínea é que « Em 28/4/04 a A. requereu uma notificação judicial avulsa dos herdeiros do ora RR., nos termos do documento de fls. 24 e 25 , cujo teor aqui se dá por reproduzido. Razão pela qual esta pretensão do recorrente não pode proceder. * 3.1.2.- Saber se a decisão recorrida deve ser substituída por outra que condene os RR. como pedido na P.I., relegando a quantificação dos prejuízos para execução de sentença. Segundo a recorrente a sentença fez errada interpretação de direito quando entendeu haver abuso de direito. Razão pela qual, deve ser revogada e substituída por outra que condene os RR. como peticionado. Vejamos. Como bem se refere na sentença o que nem é posto nos termos gerais, o senhorio para assegurar o gozo do prédio – al. b) do art. 1031.º do Cód. Civil - em idênticas condições em que o arrendou, tem de efectuar, durante a vigência do contrato, as obras necessárias à realização dos fins do arrendamento(cfr. Aragão Seia, in Regime do Arrendamento Urbano, pg. 147). O art. 11.º do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15/10 - aplicável ao presente caso, dada a data do contrato de arrendamento, discrimina e define os tipos de obras em: a) Ordinárias; b) extraordinárias e c) de beneficiação. As ordinárias destinam-se, em geral, a manter o prédio em bom estado de preservação e nas condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração, estando definidas no n.º 2 daquele preceito. As extraordinárias são as ocasionadas por defeito de construção do prédio ou por caso fortuito ou de força maior, quer dizer, por caso imprevisível ou inevitável e, em geral, as que não sendo imputáveis a acções ou omissões ilícitas perpetradas pelo senhorio, ultrapassam, no ano que se tomem necessárias, dois terços do rendimento líquido desse mesmo ano – n.º 3. Sendo, por exemplo, as que, em qualquer altura, as câmaras municipais poderão determinar para corrigir as más condições de salubridade, solidez ou segurança contra o risco de incêndio - art. 10.º do RGEU - bem como as pequenas obras de reparação sanitária, tais como as respeitantes a rupturas, obstruções ou outras formas de mau funcionamento, tanto de canalizações interiores e exteriores de águas e esgotos como das instalações sanitárias e as relativas a deficiências das coberturas e ao mau estado das fossas - art. 12° do RGEU. As obras de beneficiação serão todas aquelas que, não sendo de conservação ordinária nem extraordinária, isto é, que não sendo indispensáveis para a conservação do prédio, no entanto o melhoram. O senhorio só terá de efectuar as obras de conservação extraordinária e de beneficiação se, nos termos das leis administrativas em vigor, a sua execução lhe for imposta pela câmara municipal competente ou se tiver acordado isso, por escrito, com o arrendatário - art. 13° do RAU. Quanto às obras de conservação ordinária, se não foram urgentes e o senhorio as não efectuar, o arrendatário, se não lançar mão de outro meio, terá de propor acção judicial contra o senhorio, pedindo que este seja condenado a realizá-las, seguindo-se, se for caso disso, a execução para prestação de facto (cfr. Aragão Seia, in ob. cit., pg. 148). Tendo presente as obras em causa as mesmas estão, pois e como vimos, a cargo do senhorio, os RR./ora recorridos, como declara expressamente o art. 12° do RAU (cfr. neste sentido Acs. do STJ de 25/11/1998, BMJ 481, 484; de 21/10/1994, disponível na base de dados in www.dgsi.pt. e de 26/10/1999, B.M.J. 490/273) Contudo, não se impõe ao senhorio a obrigação de melhorar o arrendado em relação ao estado anterior, ou seja, não se impõe a obrigação de o arrendado ser reparado por forma a que o arrendatário tire mais proveitos ou utilidades, como referem Aragão Seia, ob. cit., pg.149 e João de Matos, Manual do Arrendamento e Aluguer, II, 21. Chegados aqui, cabe apreciar o ponto da divergência entre a sentença recorrida e a recorrente, porquanto na sentença recorrida se advogou a existência de abuso de direito por parte da A/recorrente posição que esta não advoga. No que concerne ao abuso de direito, dispõe o art.º 334, do C.C. «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». Comentando o preceito, referem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil, Anotado, Vol. I, 4.ª edição, fls. 298 e segs que « …a concepção adoptada de abuso de direito é objectiva. Não é necessário a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, basta que se excedam esses limites». E mais adiante referem: « Exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso». O abuso de direito pressupõe logicamente a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o seu titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso de direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido (cfr. Castanheira Neves, “Questão de facto – Questão de direito,” I, fls. 513 e segs. e Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. Citada, fls. 300). A propósito da mesma figura escreve Batista Machado, in Revista Legislação e Jurisprudência, Ano 119, fls. 232 « “Dentro da comunidade das pessoas responsáveis (ou imputáveis), a toda a conduta (conduta significativa, comunicativa) é inerente uma “responsabilidade” – no sentido de um “responder” pelas pretensões de verdade, de rectitude ou de autenticidade inerentes à mensagem que essa conduta transmite (...). Desta “autovinculação” inerente à nossa conduta comunicativa derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas, também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção, que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis (...). Do exposto podemos também concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem”. Temos, assim, que a protecção da confiança, para merecer tutela jurídica, tem de se mostrar legítima e objectivamente justificada, havendo de tratar-se de situações que, pela grave injustiça ou antijuricidade que revelam, o próprio legislador lhe preveniria as consequências se as tivesse previsto. E é assim que, enquanto princípio ético-jurídico fundamental, o princípio da confiança visa dar guarida à “confiança legítima baseada na conduta doutrem”, designadamente quando esta conduta é contrária à fides por susceptível de causar danos (BATISTA MACHADO, “Obra Dispersa”, I, pág. 352). O venire contra factum proprium, enquanto contradição directa entre a situação resultante da primeira conduta e o segundo comportamento observado, cuja proibição se funda na conformidade à ideia da justiça retributiva de que as consequências da conduta anterior do agente não devem ser suportadas por quem, dentro da normalidade da vida de relação, acreditou nas acções de outrem, configura uma violação qualificada do princípio da confiança, também modalidade de abuso do direito. Para que tal abuso ocorra e mereça ser sancionado, apesar da concepção objectiva acolhida pelo nosso sistema jurídico, será ainda necessário, como propõe o citado Professor (obra citada, págs. 415 e seguintes), além do concurso de causalidade, que haja uma espécie de “culpa do agente perante si próprio”, no sentido de que conscientemente assim se quis conduzir, podendo e devendo prever, se usasse do cuidado usual, que tal conduta o poderia vincular no futuro, segundo os ditames da boa fé, que o “investimento na boa fé” – organização dos planos de vida de que surgirão os danos – haja sido feito apenas com base na dita confiança e que o dano não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma solução satisfatória, e, finalmente, que haja boa fé da parte que confiou e que esta tenha agido com o cuidado e precauções habituais no tráfico jurídico. Com base no abuso do direito, que pressupõe logicamente a existência do direito, embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes, o lesado pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional, do direito que a lei confere a outrem; o que não pode é, com base no instituto, requerer que o direito não seja reconhecido ao titular, que este seja inteiramente despojado dele (mesmo local). Também ALMEIDA COSTA (Direito das Obrigações, 4ª ed., pág. 52) observa que o instituto do abuso do direito constitui “um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais. Ocorrerá tal figura de abuso do direito quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social”. Postos estes princípios, e tendo em conta a factualidade apurada nos autos, temos de concluir que bem andou o Tribunal “a quo” em considerar estar-se perante uma situação de abuso do direito. Como bem se refere na sentença recorrida, tendo presente a factualidade provada, como não podia deixar de ser, «não repugna vedar a pretensão da autora, mediante funcionamento do instituto de abuso de direito, na vertente venire contra factum proprium. Na verdade, a autora realizou obras no locado, intervencionando os esgotos do edifício. Em consequência da deficiente realização dessas obras, o locado sofreu danos intensos, descritos na factualidade provada. (cfr. 2.1.13.) Face a esses danos, o senhorio à época iniciou a realização das necessárias obras, com vista à supressão desses danos, ainda que sem autorização da arrendatária. Isto, até à apresentação da respectiva factura, pois, logo que efectuada essa apresentação à autora, para pagamento, logo foi impedido o acesso dos trabalhadores à obra e interrompidas as obras. Depois de interromper essas obras - necessárias e devidas pelo senhorio - a autora nada mais reagiu, quer realizando as urgentes, quer exigindo judicialmente do senhorio a realização das não urgentes, nem tal resulta da notificação Judicial Avulsa. Pelo contrário, deixou passar diversos anos, no decorrer dos quais se foi agravando o estado do locado, apresentando-se inviável a sua utilização. Mas, não se demonstrou que essa impossibilidade se devesse às obras iniciadas pelos senhorio; pelo contrário, a impossibilidade de gozo do locado deveu-se às suas condições de salubridade, prejudicadas pelas obras antes feitas pela própria autora. .. (cfr. factos 2.1.13. a 2.1.16). Decorridos todos estes anos e realizadas as despesas demonstradas - com a limitação do provado -, vem a autora exigir dos actuais senhorios o seu ressarcimento... Ainda que entendamos que o julgador deve aplicar o regime do abuso de direito com as cautelas devidas a um instrumento jurídico de rara utilização, que funciona como uma válvula de escape do sistema, quando todos os mecanismos de equilibrio que o compõem falharam. Ora, tendo presente todos os ensinamentos, supra referidos, a respeito da figura de abuso de direito, mostra-se mais conforme à realidade jurídica e ao princípio da boa fé que deve nortear as relações jurídicas, não transferir para os réus, enquanto senhorios, o ressarcimento das despesas sofridas pela autora, em consequência da impossibilidade de gozo do locado, que, em última análise, apenas a ela mesma é imputável. Pelo exposto, não vislumbramos razão para alterar a sentença recorrida. * 4. Decisão Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso e em consequência manter a decisão recorrida. Custa pela recorrente. Lisboa, 23 de Fevereiro de 2010 Pires Robalo – Relator Cristina Coelho – 1.º Adjunto Roque Nogueira – 2.º Adjunto – dispensei visto |