Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
139/23.4T8SRQ.L1-8
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
MAIOR ACOMPANHADO
AUDIÇÃO
BENEFICIÁRIO
PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DO JUIZ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: RESOLVIDO
Sumário: I. A aplicação das medidas de acompanhamento, no âmbito de processo de maior acompanhado é resultado de um criterioso processo de análise dos elementos de prova carreados para o processo, a que são aplicáveis as regras dos processos de jurisdição voluntária (em particular, como decorre do disposto no artigo 986.º, n.º 1, do CPC, a consideração do regime prescrito nos artigos 292.º a 295.º do mesmo Código) que culmina – e tem como diligência absolutamente obrigatória – com a audição do beneficiário, a qual se pretende “pessoal” e “direta” e que tem por objetivo “averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”.
II. Os desvios que possam ser considerados admissíveis relativamente à forma como decorre a inquirição do beneficiário, designadamente, a admissibilidade de a mesma ter lugar deprecadamente, não poderão ser considerados, senão, como medidas excecionais no sentido de viabilizar a tramitação do processo, designadamente, nos casos em que ocorra mudança de residência do beneficiário para outra circunscrição judicial, que inviabilize a realização da audição pelo juiz do tribunal onde pende o processo.
III. Contudo, tais medidas não colidem com a “competência” do juiz para a prolação da decisão sobre o acompanhamento, que se mantém por referência ao ato primordial de audição do requerido ou beneficiário.
IV. A competência para a prolação da sentença deverá radicar no juiz perante o qual teve lugar a audição do requerido, solução que se conforma e coaduna com o regime resultante do n.º 3 do artigo 605.º do CPC, no que respeita à conclusão do julgamento por parte do juiz que for transferido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. A atual titular do Juízo de Competência Genérica de (…), Sra. Juíza de Direito “A” – aí colocada na sequência do Movimento Judicial Ordinário de 2024 (cfr. deliberação do CSM publicada no DR, II, n.º 168, de 30-08-2024) - suscita a resolução do conflito negativo de competência, no que concerne à elaboração da sentença, entre si e a Sra. Juíza de Direito “B”, que aí exerceu funções e que procedeu à audição da requerida, nos termos previstos no artigo 898.º do CPC.
A Sra. Juíza “A”, por decisão de 20-09-2024, remeteu os autos à Sra. Juíza que presidiu à produção de prova, para que esta prolatasse sentença nos autos.
Por sua vez, a Sra. Juíza “B”, em 24-09-2024, declarou-se incompetente para proferir sentença.
Em 29-09-2024, a Sra. Juíza “A” declarou-se incompetente para a prolação da sentença nestes autos.
O Ministério Público, na 1.ª instância, pronunciou-se no sentido de que caberá à Sra. Juíza que presidiu a audição do beneficiário, a prolação da sentença dos autos.
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II. Mostra-se apurado, com pertinência para a resolução da questão, o seguinte:
1) Por petição inicial entrada em juízo em 08-05-2023, o Ministério Público instaurou ação especial para acompanhamento de maior, em benefício de “C”, solteira, nascida a (…)-(…)-1997;
2) Citada, a beneficiária não contestou;
3) Por despacho de 28-06-2023, foi determinada a realização de perícia médica a fim de habilitar o tribunal a decidir se a beneficiária se encontra, ou não, capaz de se autodeterminar quanto à sua pessoa e património, tendo o respetivo relatório sido junto aos autos em 25-09-2023;
4) Por despacho de 04-08-2023 foi determinada a realização de exame psicológico à requerida, cujo respetivo relatório foi junto aos autos em 21-09-2023;
5) Por despacho de 17-10-2023 foi determinada a audição obrigatória da beneficiária e das 4 testemunhas aí indicadas;
6) Em 20-11-2023 teve lugar a audição da beneficiária, diligência que foi presidida pela Sra. Juíza de Direito “B”;
7) Em 11-12-2023 teve lugar a inquirição de 4 testemunhas, diligência que foi presidida pela Sra. Juíza de Direito “B”;
8) Em 29-02-2024 teve lugar a inquirição de irmã da requerida, diligência que foi presidida pela Sra. Juíza de Direito “B”;
9) Em 13-06-2024 foi proferido despacho solicitando à Segurança Social que averiguasse junte do presidente da Câmara da zona de residência da requerida da disponibilidade do mesmo para assumir o cargo de acompanhante, no caso de recusa deste, diligenciar junta da Cáritas da (…) a fim de averiguar a possibilidade de o (a) responsável assumir este cargo;
10) No Movimento Judicial Ordinário de 2024 a Sra. Juíza “B” foi movimentada para a comarca de Évora;
11) Em 20-09-2024, a Sra. Juíza de Direito “A” proferiu o seguinte despacho:
“Exercido o contraditório sobre a necessidade de acompanhamento, medidas a aplicar e quem deve ser incumbido nas funções de acompanhante, cumpre proferir sentença.
A prova encontra-se produzida, e não o foi perante a signatária deste despacho.
O princípio da plenitude da audiência final, previsto no artigo 605.º, n.º 1, do Código de Processo Civil importa que a sentença - actualmente reforçado com a concentração da decisão da matéria de facto e de direito -, deve ser proferida pelo juiz que assistiu a todos os actos de instrução realizados durante a audiência final.
Como salientam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre1, trata-se de «um corolário dos princípios da oralidade e da apreciação da prova (…): para a formação da livre convicção do julgador, este terá de ser o mesmo ao longo de todos os atos de instrução e discussão da causa realizados em audiência», significando que apenas em casos excepcionais, a sentença poderá ser proferida pelo juiz que assistiu a todos os actos de instrução e discussão havidos ao longo da audiência final.
O fundamento deste princípio assenta na concentração dos actos de instrução e apreciação da prova na audiência final, cuja assistência do juiz assegura o principio da imediação relativamente a esses actos; designadamente, a produção dos depoimentos testemunhais, as declarações e depoimentos de parte, a exibição de reproduções cinematográficas ou de registos fonográficos e os esclarecimentos dos peritos aí prestados – cfr. artigo 604.º, n.º 2, als. a) a d), do CPC.
Como assinala Alberto dos Reis2, tudo o que acontece oralmente na audiência de julgamento «só pode ser captado por quem assista, do princípio ao fim, a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência. Tal assistência é condição absolutamente imprescindível do poder de julgar; não pode decidir a matéria de facto quem não presenciou os actos sobre que há-de assentar a decisão».
No mesmo sentido, refere Lebre de Freitas3, «ainda que o registo da prova (…) supra hoje, em alguma medida, a falta de presença física no ato da sua produção, a convicção judicial forma-se na dinâmica da audiência, com intervenção ativa do juiz, e é sempre defeituosa a perceção formada fora desse condicionalismo».
Por outro lado, nos termos das disposições conjugadas nos artigos 897.º, n.º 2 do CPC e 139.º, n.º 1, do CC, antes do decretamento de medida de acompanhamento impõe-se a audição pessoal e directa do(a) beneficiário(a) pelo juiz.
Em face do exposto, resulta à saciedade que a sentença deve ser proferida perante o juiz que assistiu aos actos de produção de prova, salvo em circunstâncias excepcionais, o que não sucede nos presentes autos – cfr. art.º 605.º, n.º 1 in fine a contrario, 3 e 4, CPC.
Pelo exposto, faça os autos conclusos à Exma. Sra. Juiz que presidiu à produção de prova.”.
12) Em 24-09-2024, a Sra. Juíza de Direito “B” proferiu o seguinte despacho:
“A ora signatária, no âmbito da tramitação decorrente dos presentes autos presidiu à diligência de audição do(a) requerido(a), familiares da requerida e técnica da segurança social que acompanhou a requerida por ser, à data, a titular do processo.
A atual Mma. Juiz titular do processo entende que, não tendo sido a própria quem realizou tal diligência de audição do(a) requerido(a) e familiares não deverá ser a competente para proferir a decisão nos presentes autos. No entanto, a signatária não concorda com tal entendimento.
A audição do(a) requerido(a) configura uma diligência obrigatória no âmbito do atual processo de maior acompanhado, com exceção para as situações em que tal audição não se afigura possível, por o(a) requerido(a) se encontrar em coma, não verbalizar qualquer palavra e outras. E esta é apenas uma das muitas diligências que poderão ocorrer no decurso dos atos instrutórios do processo de maior acompanhado, como por exemplo, realização de perícia e outras que se afigurem necessárias, uma vez que se trata de um processo de jurisdição voluntária, que tem por objetivo descortinar se há necessidade de aplicação do regime do maior acompanhado e, em caso positivo, qual ou quais as medidas mais adequadas a cada caso concreto.
A ponderação da aplicação do regime de maior acompanhado a efetuar em sede de sentença é muito mais abrangente do que a mera análise da audição do(a) requerido(a), tanto mais que o Tribunal não está sujeito a citérios de legalidade estrita, devendo antes adotar a solução que julgue mais conveniente e oportuna ao caso concreto.
Acresce que a audição do beneficiário e familiares – a fim de se apurar a pessoa idónea para assumir o cargo de acompanhante – não consubstancia uma audiência de julgamento próprio sensu, não estando prevista no artigo 605.º do CPC e a audição dos demais não consubstancia, em bom rigor, prova testemunhal na medida em que se quer prestam juramento enquanto tal.
Por outro lado, impõe-se a análise da documentação junta aos autos, do relatório pericial (caso a sua realização tenha sido determinada, como o foi nos presentes autos e de cujo resultado o juiz só poderá discordar de forma fundamentada) e da demais prova que possa ser produzida, como a audição da pessoa que se considere ser idónea para assumir o cargo de acompanhante, para além da audição do(a) requerido(a). Há uma série de atos instrutórios praticados no decurso do processo. Colocar o enfoque na imediação da prova apenas na audição do(a) requerido(a) é desvirtuar a necessária ponderação de toda a prova carreada para os autos, quer em fase anterior, quer em fase posterior a tal audição.
Mais, a realização de tal diligência, de acordo com o que tem vindo a ser entendimento da jurisprudência, pode ser deprecada no Tribunal da residência que o(a) requerido(a) tenha à data da realização dessa diligência (cfr. a título de exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/05/21, no Processo 39/21.2T8VPC.S1, disponível em www.dgsi.pt), seja ela temporária ou permanente, mantendo-se o processo no Tribunal onde foi inicialmente fixada a competência, sem que se possa imputar ao Magistrado que realizou uma mera diligência deprecada, e não tem qualquer contacto com o processo para além da realização dessa diligência, a competência para posteriormente realizar a sentença. Desde logo porque após a realização dessa diligência podem ser realizadas muitas outras, como a perícia e prova testemunhal. Não faz qualquer sentido que a fixação do juiz competente para a prolação da sentença seja a presidência da diligência da audição do(a) requerido(a), quando nos autos podem em momento anterior ou posterior ser produzidos outros meios de prova (seja testemunhal, pericial, documental). Havendo a possibilidade de deprecar a realização dessa diligência e não a remessa dos autos por verificação de incompetência territorial superveniente, que se encontra vedada por a competência ser fixada no momento inicial do processo-, daqui se conclui que não existe necessidade de imediação no âmbito do ato de audição do requerido(a) enquanto ato instrutório, não sendo esse o momento que fixa o juiz competente para a prolação de decisão, mas antes o juiz titular do Tribunal onde o processo se encontra pendente, atenta a competência territorial que é fixada no momento inicial do processo e não pode posteriormente ser alterada.
O legislador optou pela não declaração de incompetência em momento posterior por alteração da residência do(a) requerido(a), podendo a diligência de audição de maior acompanhado ser antes deprecada, pelo que, por maioria de razão, não foi intenção do legislador atribuir ao juiz que presidiu a tal diligência, ou por à data ser o titular do processo, ou por se encontrar em serviço de turno. Sendo uma diligência que não tenha sido gravada (o que até sucedeu nos presentes autos) sempre terá de ser reduzida a escrito, pelo que, tendo em conta a natureza da diligência em causa, que se trata de uma mera audição, que não exige ponderação de idoneidade, espontaneidade e credibilidade das declarações como em sede de audiência de discussão e julgamento na inquirição de testemunhas (e que pode efetivamente ser retirada, também, mas não só, da postura corporal), e em que o(a) requerido(a) se limita a responder a questões sobre o seu quotidiano e que testem a sua memória, não tendo qualquer relevância a sua postura corporal, que muitas vezes se encontra até comprometida por motivos de doença, não se vislumbra que o princípio da imediação se encontre comprometido ao ponto de impedir a atual Mma. Juiz titular do processo de proferir sentença.
Pelo exposto, a signatária declara-se incompetente para proferir sentença nos presentes autos.”.
13) Em 29-09-2024, a Sra. Juíza de Direito “A” proferiu o seguinte despacho:
“(…) salvo melhor entendimento, e antes de mais, o processo de maior acompanhado não é um processo de jurisdição voluntária, não obstante lhe serem aplicáveis, a título subsidiário, as regras relativas aos processos de jurisdição voluntária – cfr. artigos 891.º, n.º 1 e 986.º e seguintes, do CPC.
Por outro lado, o raciocínio expendido pela Exma. Colega poder-se-ia aplicar a qualquer outro processo, independentemente até da jurisdição, considerando a diversidade dos meios de prova legalmente admitidos e a sua necessária concatenação, o que, por si só, não tem a virtualidade de afastar o princípio da plenitude da assistência do juiz e da importância da imediação na produção da prova.
Com efeito, é certo que o tribunal pondera, em sede de sentença, toda a prova produzida nos autos, numa perspectiva abrangente e crítica, de acordo com as regras da experiência. Porém, tal não esvazia, de todo, a necessidade de a mesma ser proferida pelo juiz que assistiu a todos os actos de instrução realizados durante a prova que se produziu oralmente, neste caso, na audição do beneficiário, acompanhante, e demais testemunhas.
Aliás, é entendimento da signatária que tal princípio resulta reforçado da própria letra da lei, nos processos de maior acompanhado, quando é imposto ao juiz a audição pessoal e directa do beneficiário.
Vejamos.
A obrigatoriedade da diligência em causa é tão ostensiva que não deixa margens para dúvidas da necessidade legal da constatação directa pelo Tribunal da situação em que se encontra o beneficiário. Note-se: «o legislador quer, exige, manda, sem excepções, que haja um contacto directo entre o juiz/a e o/a visado/a pela medida restritiva da sua capacidade civil que o processo de acompanhamento de menor visa aplicar-lhe. Sempre.» - Ac. da Relação de Lisboa de 14-03-2023 [processo n.º 359/22.9T8MFR.L1-7, rel. Edgar Taborda Lopes].
Assim, e desde logo, não se concorda com o entendimento sufragado no despacho da Exma. Colega de que a audição do beneficiário deixa de ser obrigatória nas «situações em que tal audição não se afigura possível, por o(a) requerido(a) se encontrar em coma, não verbalizar qualquer palavra e outras».
Como se referiu, e aderindo-se inteiramente ao entendimento apresentado no citado acórdão, tal diligência é sempre obrigatória, sendo que, a sua omissão consubstancia uma nulidade processual, não susceptível de sanação, impondo-se sempre a realização da mesma – cfr. artigo 195.º conjugado com o artigo 897.º, n.º 2, ambos do CPC.
Donde, a referida diligência não é “apenas”, um acto instrutório como qualquer outro, mas o único cuja dispensa a lei não admite. Tanto que, encontrando-se o beneficiário absolutamente incapaz de comunicar e entender o meio que o rodeia, deve ainda assim fazer-se constar tal circunstância em acta, após devida comprovação judicial, i.e. diligência de audição do mesmo.
Neste conspecto, continua o citado acórdão «Não constitui um acto inútil a constatação (que traduz a concretização do princípio da imediação) pelo/a Juiz/a de que a pessoa em causa está impossibilitada de estabelecer uma comunicação, de lhe responder e de corresponder às perguntas que lhe seriam formuladas). Esta constatação, este contacto directo, tem de estabelecer-se, porque essa é – no caso – a relevante função que cabe ao Tribunal na putativa defesa dos interesses de um/a cidadão/ã que está em vias de ser objecto de uma restrição aos seus direitos.» (destacado e sublinhado nosso).
Pelo que, o entendimento de que na sua audição, «o(a) requerido(a) se limita a responder a questões sobre o seu quotidiano e que testem a sua memória, não tendo qualquer relevância a sua postura corporal (…) tendo em conta a natureza da diligência em causa, que se trata de uma mera audição, que não exige ponderação de idoneidade, espontaneidade e credibilidade das declarações como em sede de audiência de discussão e julgamento na inquirição de testemunhas», aventado pela Exma. Colega, nos parece algo redutor da importância não só legal na defesa dos direitos, liberdades e garantias das pessoas, mas ainda não compaginável com o papel activo imposto ao juiz de comprovação judicial da situação do beneficiário, eventual necessidade de aplicação de medidas de acompanhamento e, em caso afirmativo, a quem deve ser deferido o cargo.
E neste último conspecto, note-se que a lei privilegia, para o papel de acompanhante, quem tenha uma relação de proximidade com o beneficiário, que com o mesmo se preocupe em cuidar, sendo logicamente imprescindível a aferição da sua idoneidade – cfr. art.º 146.º, do Código Civil.
No mesmo sentido, também a credibilidade das declarações prestadas pelas testemunhas são absolutamente preponderantes na apreciação das necessidades de acompanhamento do caso concreto.
Na verdade, e nas palavras de Maria Inês Costa [A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas, in Julgar, 2020, pág. 27] «no actual regime cabe ao Juiz avaliar a forma como a pessoa olha, responde, interage com os presentes que só quem preside consegue apreender».
Com efeito, «a audição do beneficiário presencial presidida pelo juiz suplanta em muito uma simples lista de perguntas e respostas plasmadas em auto. Caso contrário bastaria o exame pericial e voltaríamos ao regime revogado da dispensa do interrogatório judicial em caso de ausência de contestação»3.
E, nos termos do que se vem expondo, não se crê que a gravação da diligência seja capaz de igualar a percepção que resulta da imediação, ou sequer a acta da mesma. Com pertinência, refere Lebre de Freitas [A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª Edição, Coimbra Editora, págs. 694 e 695], «ainda que o registo da prova (…) supra hoje, em alguma medida, a falta de presença física no ato da sua produção, a convicção judicial forma-se na dinâmica da audiência, com intervenção ativa do juiz, e é sempre defeituosa a perceção formada fora desse condicionalismo».
Por outro lado, invoca a Exma. Colega que «Havendo a possibilidade de deprecar a realização dessa diligência e não a remessa dos autos por verificação de incompetência territorial superveniente,(…) daqui se conclui que não existe necessidade de imediação no âmbito do ato de audição do requerido(a) enquanto ato instrutório, não sendo esse o momento que fixa o juiz competente para a prolação de decisão, mas antes o juiz titular do Tribunal onde o processo se encontra pendente, atenta a competência territorial».
Ora, desde logo cumpre dizer que não se trata de uma questão de competência, não se questionando a competência territorial deste Tribunal para proferir sentença, o que em nada contende com o princípio da imediação da prova.
Aliás, é precisamente por tal princípio se encontrar irremediavelmente ligado ao princípio da plenitude da assistência do juiz - porque a percepção da prova é eminentemente pessoal -, que a lei estabelece, no art.º 605.º, do CPC, que independentemente da movimentação inerente ao exercício da profissão, tem que ser o juiz que presidiu à produção de prova a elaborar a sentença, em nada contendendo com a competência do juízo, que permanece intacta.
A este respeito, ainda que se aceite que o art.º 605.º, do CPC possa não ter aplicação directa dado não se tratar da fase de audiência de julgamento, «porém, tendo em atenção o disposto nos artigos 897.º, n.º 2 e 898.º, do mesmo diploma legal, sempre seria de equiparar a situação dos autos a essa fase processual, sendo, pois, o juiz que procedeu à audição do requerido o competente para proferir a sentença, face à importância que o regime jurídico do maior acompanhado atribui ao contacto directo e pessoal entre o juiz e o beneficiário, sendo este a quem caberá ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas (…).».
Com efeito, refere a citada autora que o que «importa aferir é se o legislador ao determinar a audição (obrigatória) “pessoal” e “directa” do beneficiário quis implementar a imediação do juiz com o beneficiário ou se, ao invés, quis tão somente que um órgão de soberania “atestasse” a incapacidade do beneficiário independentemente do meio e do Juiz que o faça. Equivale a perguntar quando é que uma diligência instrutória produzida perante um juiz pode ser usada em decisão final a emitir por outro juiz e se nesta última hipótese não estará em causa para além da violação do princípio da imediação (princípio base da nova lei), o princípio da plenitude da assistência do juiz.»6.
E conclui a mesma autora que «A ratio da nova lei que regula o regime jurídico do maior acompanhado é a de que seja respeitada o mais possível a vontade do maior que vai ser acompanhado no exercício da sua capacidade, pelo que para assegurar esse desiderato se impõe a audição pessoal e directa da pessoa por referência à qual serão desenhadas casuisticamente as medidas de acompanhamento, não se reputando como bastante que o resultado da audição fique reduzido a escrito de molde a que seja utilizado por outra pessoa na decisão que não aquela que presidiu ao acto. É que a obrigatoriedade da audição “pessoal” e “directa” permite diferenciar uma pessoa, não a embrulhando em pacotes tipo e redutores, permitindo – nas palavras do Professor ANTÓNIO PINTO MONTEIRO –, o tal “fato à medida”, pois uma pessoa, como já referia Ortega y Gasset, é ela própria e as suas circunstâncias, as suas singularidades, não só pessoais, mas que estendemos às sociais e às ambientais»7 (destacado nosso).
Assim, continua a autora, «(…) a audição para além de obrigatória, não prescinde de contacto pessoal, directo e, assim, efectivo, por banda de um juiz com o beneficiário, pois que só dessa forma será viável que apreenda com maior latitude as características próprias do beneficiário e do contexto em que desenvolve a sua vida, somente assim se habilitando o julgador a desenhar medidas de acompanhamento ajustadas e convergentes com a necessidade efectiva da pessoa que delas beneficiará.
De outra sorte, a audição tornar-se-ia uma diligência menor do regime processual quando claramente é uma das suas diligências de maior relevo, e, por outro lado, frustrar-se-ia a intenção de se tomar conhecimento efectivo da situação do beneficiário, o que derivaria, com grande probabilidade, na aplicação de medidas genéricas e pouco talhadas em relação à real capacidade do beneficiário, determinando o regresso ao regime pretérito ao invés de se acompanhar a mudança de paradigma desejada pela nova lei, não se descurando que esta resulta norteada pelo princípio da “primazia da autonomia da pessoa”, sempre tendo em vista assegurar a tutela dos direitos do beneficiário e a sua efectiva inclusão social e jurídica, através da “auscultação” das suas vontades e interesses mais profundos antes de qualquer tomada de decisão que lhe diga respeito (…)».
Relativamente à possibilidade de tal diligência poder ser deprecada, conforme entendimento sufragado no ac. do Supremo Tribunal de Justiça mencionado pela Exma. Colega, que, com o devido respeito, não acompanhamos, tal questão não se levanta nos presentes autos. Sem conceder, sempre se diga que apenas se concebe a aplicação deste mecanismo em casos excepcionais e, em qualquer caso, em benefício do requerido, o que não sucede.
Face ao exposto, e porque, como assinala Alberto dos Reis9, tudo o que acontece oralmente na audiência de julgamento «só pode ser captado por quem assista, do princípio ao fim, a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência. Tal assistência é condição absolutamente imprescindível do poder de julgar; não pode decidir a matéria de facto quem não presenciou os actos sobre que há-de assentar a decisão», é entendimento da signatária não ser competente para proferir a sentença nestes autos, por não estar em causa qualquer das circunstâncias excepcionais previstas no art.º 605.º, n.º 1 in fine a contrario, 3 e 4, CPC.
Assim, à luz da interpretação que se deixou exposta, será a Mm.ª Juiz que presidiu à audição da beneficiária e das 8 testemunhas a competente para proferir sentença, e não esta signatária.
Por tudo o exposto, declaro-me incompetente para a prolação da sentença nestes autos, configurando-se, consequentemente, um conflito negativo de competência, que deverá ser dirimido pelo Tribunal da Relação de Lisboa – artigos 109.º e 11.º do CPC.
Cumpra o disposto no art.º 112.º, n.º 1 e 2 do CPC.
Após, remetam-se os autos à Veneranda Exma. Senhora Juíza Desembargadora Presidente do Tribunal de Lisboa para superior apreciação – art.º 111.º, n.º 3, do CPC.”.
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III. Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC).
Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir (cfr. artigo 111.º, n.º 1, do CPC).
A questão que se coloca é a de saber quem vai elaborar a sentença destes autos, a Sra. Juíza que procedeu à audição da requerida ou a Sra. Juíza que aí foi colocada no Movimento Judicial de 2024.
Em bom rigor não estamos perante um conflito de competência, uma vez que o conflito gerado não é entre tribunais, mas entre juízes.
De acordo com o disposto no artigo 114.º do CPC e para além dos casos contemplados nas respetivas alíneas desses preceito, “o disposto nos artigos 111.º a 113.º é aplicável a quaisquer outros conflitos que devam ser resolvidos pelas Relações (…)”, pelo que, na falta de específico regime legal há que resolver a divergência, por forma a ultrapassar o impasse gerado, com apelo às regras que disciplinam os conflitos de competência.
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IV. Os presentes autos constituem, como se viu, autos de processo especial de maior acompanhado, regulado nos artigos 891.º e ss. do CPC, na sequência do regime substantivo estabelecido nos artigos 138.º e ss. do CC, na redação conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 140.º do CC, este processo, relativo a um beneficiário, “visa assegurar o seu bem-estar, a sua representação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença”.
Assim, nos termos do disposto no artigo 138.º do CC, o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas no CC.
De acordo com o disposto no artigo 139.º do CC, o acompanhamento é decidido pelo tribunal, depois de ter lugar a audição do beneficiário e ponderadas as provas, sendo que, em qualquer altura do processo, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento, provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido.
O processo especial de acompanhamento de maiores encontra-se regulado nos artigos 891.º a 904.º do CPC.
Nos termos do artigo 891.º, n.º 1, do CPC, este processo “tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes”.
Após a apresentação da petição (art. 892º do CPC) e o ato da citação (arts. 219.º e 895.º do CPC) e ultrapassada a fase dos articulados, segue-se a fase de instrução do processo propriamente dita (arts. 897.º a 899.º do CPC) em que o juiz analisa fundamentalmente os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos, sendo que, em qualquer caso, deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário (cfr. Miguel Teixeira de Sousa; “O regime do acompanhamento de maiores: Alguns aspectos processuais”, in Colóquio O Novo Regime do Maior Acompanhado; Coord. António Pinto Monteiro; FDUC, 2020, em linha no endereço: https://www.uc.pt/site/assets/files/1050392/ebook_doi_livro_ma.pdf, p. 57 e ss).
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-12-2019 (Pº 7779/18.1T8CBR.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA): “A Lei nº 49/2018, de 14/02, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação.
Essa Lei veio introduzir uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, o qual passou a centrar-se exclusivamente na defesa dos interesses das mesmas, quer ao nível pessoal, quer ao nível patrimonial, reduzindo a intervenção ao mínimo possível, isto é, ao necessário e suficiente de molde a garantir, sempre que possível, a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior incapacitada.
Este novo paradigma trouxe enormes modificações na ordem jurídica, quer em termos substantivos, quer em termos processuais (…)”.
Entre os atos fundamentais a praticar no processo conta-se o de audição do beneficiário.
Ou seja: “A audição do beneficiário é obrigatória (…) e não obedece a qualquer forma pré-estabelecida, cabendo ao juiz adotar aquela que melhor se adeque às circunstâncias, sem exclusão sequer de um confronto singular com o mesmo, no que se divisa um intuito de criar um ambiente de confiança e isento de pressões. Se acaso tiver sido produzida prova pericial, a audição do beneficiário, ou parte dela, correrá perante o perito ou peritos designados, que, tal como os representantes do beneficiário, poderão sugerir a formulação de perguntas destinadas a avaliar a situação em que se encontra (…)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, p. 338).
Efetivamente, “(…) o n.º 2 do artigo 897.º do CPC determina que o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre, de acordo com a regra fixada no artigo 143.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
O artigo 898.º do CPC, com a epígrafe “audição pessoal”, estabelece, no n.º 1, que a audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.
O n.º 2 do artigo 898.º, por sua vez, regula a própria audição, devendo as questões ser colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas. Por fim, nos termos do n.º 3 do artigo 898.º, o juiz pode determinar que parte (e não a totalidade) da audição decorra apenas na presença do beneficiário.
A audição pessoal e direta do beneficiário, na concretização dos princípios constantes do artigo 3.º da Convenção, constitui o respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer as suas próprias escolhas, e independência da pessoa com deficiência [alínea a)], bem como a sua participação e inclusão plena e efetiva na sociedade [alínea c)].
Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal” (assim, Margarida Paz, “O Ministério Público e o novo regime do maior acompanhado”, in O novo regime jurídico do maior acompanhado [e-book, consultado em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf], CEJ, Lisboa, Fevereiro de 2019, p. 131).
Reunidos todos os elementos necessários, o juiz proferirá a decisão, designando o acompanhante (cf. art. 143.º do CC), definindo as medidas de acompanhamento (cf. art. 145.º do CC), e, quando possível, “fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes” (cf. art. 900.º, n.º1, do CPC). A sentença de acompanhamento importa referir, está sujeita a registo obrigatório, não podendo ser invocada contra terceiro de boa-fé enquanto aquele não se mostre efetuado (cf. arts. 1920.º-B e 1920.º-C, ex vi do art. 153.º, n.º 2, do CC).
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V. No caso em apreço, conforme decorre do supra exposto, a Sra. Juíza “B” procedeu à realização dos atos de audição da beneficiária e das testemunhas inquiridas, tendo realizado as demais diligências instrutórias ocorridas, mas entende que não deverá proceder à elaboração da sentença, em suma, pela seguinte ordem de razões:
1º) A audição do beneficiário é “(…) apenas uma das muitas diligências que poderão ocorrer no decurso dos atos instrutórios do processo de maior acompanhado, como por exemplo, realização de perícia e outras que se afigurem necessárias, uma vez que se trata de um processo de jurisdição voluntária (…)”, sendo a “ponderação da aplicação do regime de maior acompanhado a efetuar em sede de sentença (…) muito mais abrangente do que a mera análise da audição do(a) requerido(a) (…)”;
2º) A audição de beneficiário “não consubstancia uma audiência de julgamento próprio sensu, não estando prevista no artigo 605.º do CPC e a audição dos demais não consubstancia, em bom rigor, prova testemunhal na medida em que se quer prestam juramento enquanto tal”; e
3º) A audição de beneficiário pode ser deprecada no Tribunal da residência do o(a) requerido(a), não alterando a competência territorial para a tramitação da ação, fixada no momento da sua propositura, tendo o legislador optado pela não declaração de incompetência em momento posterior por alteração da residência do requerido e “[s]endo uma diligência que não tenha sido gravada (o que até sucedeu nos presentes autos) sempre terá de ser reduzida a escrito, pelo que, tendo em conta a natureza da diligência em causa, que se trata de uma mera audição, que não exige ponderação de idoneidade, espontaneidade e credibilidade das declarações como em sede de audiência de discussão e julgamento na inquirição de testemunhas (…)”.
Afigura-se-nos que a “pedra de toque” para a resolução do “conflito” assenta na consideração dos termos da intervenção do juiz no processo de acompanhamento de maior, resultando do sistema processual em vigor uma maior enfâse na relação entre a aplicação das medidas de acompanhamento e a intervenção do juiz conducente a tal aplicação.
Como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-03-2023 (Pº 359/22.9T8MFR.L1-7, rel. EDGAR TABORDA LOPES), “a audição de beneficiário/a não pode nunca ser dispensada, servindo – como mínimo – para fazer a constatação directa pelo Tribunal (ou, se se preferir, a comprovação judicial) da situação de impossibilidade de comunicar/entender em que se encontra o/a beneficiário/a e, nesse caso, tal far-se-á constar em acta, seguindo-se a perícia e o Relatório e aplicando-se as medidas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada. A história que subjaz ao artigo 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (conjugado com o artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil) e os termos que são utilizados, não deixam margem a dúvidas razoáveis, quanto ao objectivo do legislador, perfeitamente expresso (“audição pessoal e directa”, “Em qualquer caso” e “sempre”, colocadas na mesma frase e no mesmo artigo estão lá para dizer que o objectivo é de essa diligência nunca possa ser dispensada, ficando vedada ao Tribunal essa possibilidade): o legislador quer, exige, manda, sem excepções, que haja um contacto directo entre o juiz/a e o/a visado/a pela medida restritiva da sua capacidade civil que o processo de acompanhamento de menor visa aplicar-lhe. Sempre”.
A aplicação das medidas de acompanhamento é, pois, resultado de um criterioso processo de análise dos elementos de prova carreados para o processo, a que são aplicáveis as regras dos processos de jurisdição voluntária (em particular, como decorre do disposto no artigo 986.º, n.º 1, do CPC, a consideração do regime prescrito nos artigos 292.º a 295.º do mesmo Código) que culmina – e tem como diligência absolutamente obrigatória – com a audição do beneficiário, a qual se pretende “pessoal” e “direta” e que tem por objetivo “averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”.
Dessa aplicação normativa – em particular da consideração do disposto nos artigos 292.º a 295.º do CPC – não decorre a obrigatoriedade de gravação (cfr., neste sentido, Maria Inês Costa; “A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas”, in Julgar Online, Julho de 2020, p. 27), nem de redução a escrito de depoimentos, não se podendo afirmar que a audição possa, caso tal gravação ou redução a escrito ocorram, viabilizar que a prolação da decisão sobre o acompanhamento possa ser tomada por outro juiz que não aquele que ouviu o beneficiário.
Nesta linha, os desvios que possam ser considerados admissíveis relativamente à forma como decorre a inquirição do beneficiário, designadamente, a admissibilidade de a mesma ter lugar deprecadamente, não poderão ser considerados, senão, como medidas excecionais no sentido de viabilizar a tramitação do processo, designadamente, nos casos em que ocorra mudança de residência do beneficiário para outra circunscrição judicial, que inviabilize a realização da audição pelo juiz do tribunal onde pende o processo.
Contudo, tais medidas não colidem com a “competência” do juiz para a prolação da decisão sobre o acompanhamento, que se mantém por referência ao ato primordial de audição do requerido ou beneficiário.
E, se é certo que a situação em causa não está directamente prevista no art. 605.º, do CPC, sob a epígrafe “Princípio da plenitude da assistência do juiz”, dado que não estamos na fase de audiência de julgamento, aquando da audição do beneficiário, certo é que, conforme se referiu na decisão individual deste Tribunal da Relação de Lisboa de 14-11-2019 (no âmbito do processo n.º 2127/18.3T8PDL.L1, 2.ª Secção, rel. GUILHERMINA FREITAS), “tendo em atenção o disposto nos arts. 897.º, n.º 2 e 898.º, do CPC, cremos ser de equiparar a situação dos autos a essa fase processual, sendo, pois, o juiz que procedeu à audição da requerida o competente para proferir a sentença, face à importância que o regime jurídico do maior acompanhado atribui ao contacto directo e pessoal entre o juiz e o beneficiário, aquando dessa audição, a quem caberá ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”.
Esta solução acaba por ser a acolhida pela doutrina.
Como refere Maria Inês Costa (“A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas”, in Julgar Online, Julho de 2020, p. 27) “no actual regime cabe ao Juiz avaliar a forma como a pessoa olha, responde, interage com os presentes que só quem preside consegue apreender.
(…) a audição do beneficiário presencial presidida pelo juiz suplanta em muito uma simples lista de perguntas e respostas plasmadas em auto. Caso contrário bastaria o exame pericial e voltaríamos ao regime revogado da dispensa do interrogatório judicial em caso de ausência de contestação”.
A mesma Autora (loc. cit., p. 26) reporta que, o que “importa aferir é se o legislador ao determinar a audição (obrigatória) “pessoal” e “directa” do beneficiário quis implementar a imediação do juiz com o beneficiário ou se, ao invés, quis tão somente que um órgão de soberania “atestasse” a incapacidade do beneficiário independentemente do meio e do Juiz que o faça. Equivale a perguntar quando é que uma diligência instrutória produzida perante um juiz pode ser usada em decisão final a emitir por outro juiz e se nesta última hipótese não estará em causa para além da violação do princípio da imediação (princípio base da nova lei), o princípio da plenitude da assistência do juiz”.
Conclui Maria Inês Costa (ob. cit., p. 27) que, “[a] ratio da nova lei que regula o regime jurídico do maior acompanhado é a de que seja respeitada o mais possível a vontade do maior que vai ser acompanhado no exercício da sua capacidade, pelo que para assegurar esse desiderato se impõe a audição pessoal e directa da pessoa por referência à qual serão desenhadas casuisticamente as medidas de acompanhamento, não se reputando como bastante que o resultado da audição fique reduzido a escrito de molde a que seja utilizado por outra pessoa na decisão que não aquela que presidiu ao acto. É que a obrigatoriedade da audição “pessoal” e “directa” permite diferenciar uma pessoa, não a embrulhando em pacotes tipo e redutores, permitindo – nas palavras do Professor ANTÓNIO PINTO MONTEIRO –, o tal “fato à medida”, pois uma pessoa, como já referia Ortega y Gasset, é ela própria e as suas circunstâncias, as suas singularidades, não só pessoais, mas que estendemos às sociais e às ambientais”.´
Neste sentido, a audição do beneficiário, para além de obrigatória, não prescinde de contacto pessoal, directo e, assim, efectivo, por banda de um juiz com o beneficiário, pois que só dessa forma será viável que apreenda com maior latitude as características próprias do beneficiário e do contexto em que desenvolve a sua vida, somente assim se habilitando o julgador a desenhar medidas de acompanhamento ajustadas e convergentes com a necessidade efectiva da pessoa que delas beneficiará.
De outro modo, a audição traduzir-se-ia numa diligência menor do regime processual quando claramente é uma das suas diligências de maior relevo, frustrando-se a intenção de se tomar conhecimento efectivo da situação do beneficiário, o que derivaria, com grande probabilidade, na aplicação de medidas genéricas e pouco talhadas em relação à real capacidade do beneficiário, “determinando o regresso ao regime pretérito ao invés de se acompanhar a mudança de paradigma desejada pela nova lei, não se descurando que esta resulta norteada pelo princípio da “primazia da autonomia da pessoa”, sempre tendo em vista assegurar a tutela dos direitos do beneficiário e a sua efectiva inclusão social e jurídica, através da “auscultação” das suas vontades e interesses mais profundos antes de qualquer tomada de decisão que lhe diga respeito (…)” (cfr. Maria Inês Costa; ob. cit., p. 29).
Na realidade, “a sentença que decreta ou não o acompanhamento do maior é algo mais do que um mero ato decisório, é uma cuidada e individualizada resposta jurídica que o sistema se propõe a aplicar àquela pessoa, sujeito de direitos e deveres. Na sentença, o juiz encarna o seu papel de representação do Estado de Direito, um Estado social que tem por missão a efetiva realização dos direitos de todos os cidadãos, um Estado que se esforça por promover políticas de prevenção, tratamento e integração dos cidadãos mais vulneráveis, um Estado que oferece um modelo de proteção inspirado na preservação da autonomia pessoal e autodeterminação” (assim, Ana Carolina da Silva Framegas Pereira; Um contributo na compreensão do regime processual do maior acompanhado; FDUC, 2019, pp. 108-109).
Assim, a competência para a prolação da sentença deverá radicar no juiz perante o qual teve lugar a audição do requerido, solução que se conforma e coaduna com o regime resultante do n.º 3 do artigo 605.º do CPC, no que respeita à conclusão do julgamento por parte do juiz que for transferido.
Conclui-se, pois, que a competência para a prolação da sentença nos presentes autos deverá radicar na Sra. Juíza que presidiu à audição do beneficiário, assim se devendo decidir o conflito suscitado.
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VI. Pelo exposto, decido este conflito, declarando competente para a prolação da sentença nos presentes autos, a Sra. Juíza “B”, que procedeu à audição da requerida.
Sem custas.
Notifique-se (cfr. artigo 113.º, n.º 3, do CPC).
Baixem os autos.

Lisboa, 22-10-2024,
Carlos Castelo Branco
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, pub. D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).