Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ALFREDO COSTA | ||
Descritores: | TENTATIVA DESISTÊNCIA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/09/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | No conceito de desistência relevante, do ponto de vista da juridicidade do seu conteúdo, a mesma só ocorre quando o agente não dá prosseguimento à execução do crime por sua própria vontade.
Não há desistência relevante no caso de o agente, após a prática de actos de execução, percebendo os riscos que correrá para obter o êxito a que propôs atingir, conclui que não tem outra alternativa senão obstar no seu prosseguimento. Numa situação de facto em que não só a acção não se apresenta manifestamente inadequada para pôr em perigo o resultado típico, como se afigura evidente que, alcançando o agente a projectada apropriação de bens, põe efectivamente em perigo o bem jurídico tutelado pelo tipo de crime, deve ser responsabilidade penalmente pela prática do crime, na forma de tentativa. (sumário elaborado pelo relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa I. RELATÓRIO 1.1. No âmbito de processo comum (Tribunal Colectivo) nº 230/20.9PFCSC que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Cascais - JC Criminal – Juiz 2, após audiência de discussão e julgamento, em que é arguido AG___, com os demais sinais dos autos, foi proferido acórdão com o seguinte segmento decisório: (transcrição) (…) A) Condenar o arguido AG___, corno autor material e em concurso real, de um crime de furto qualificado, na forma consumada, p. e p., nos termos do disposto nos artigos 202º, al. e), 203º, nº 1 e 204º, n.ºs. 1, al. f), e 2, al. e), do Código Penal, dois crimes de furto qualificado, na forma tentada, p. e p., nos termos do disposto nos artigos 22º, 23º, 202º, al. d), 203º, n.º 1, 204º, n.ºs 1, al. f), e 2, al. e), do Código Penal, e dois crimes de roubo, na forma consumada, p. e p., pelo disposto no artigo 210º, n.º 1, do Código Penal, nas penas respectivas de: . 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão; . 9 (nove) meses de prisão; . 9 (nove) meses de prisão; . 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão; . 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão; B) Em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas em A), condenar o arguido AG___ na pena unitária de 4 (quatro) anos e 5 (cinco) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos e 5 (cinco) meses sob regime de prova, que deverá ter especial incidência na estruturação da actividade laboral, na avaliação da problemática aditiva e no aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social e com imposição de depositar à ordem dos presentes autos, no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da presente decisão, a quantia de 500,00 (quinhentos Euros), a qual será entregue posteriormente aos ofendidos R___ (€250,00) e JD_ (€250,00), correspondente à quantia que a estes foi arbitrada e referida em D); C) Condenar o demandado AG___ pagar ao demandante IK, Restauração, S.A. a quantia de 228,06 (duzentos e vinte e oito Euros e seis Cêntimos) acrescida de juros de mora vencidos desde a data da sua notificação para contestar o pedido e vincendos, calculados à taxa legal, até efectivo e integral pagamento; D) Condenar o arguido AG___ a pagar a R___ o montante de €250,00 (duzentos e cinquenta Euros) e a JD_ o montante de €250,00 (duzentos e cinquenta e cinco Euros), perfazendo o montante global de €500,00, reparação fixada nos termos do disposto no artigo 82º- A, do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no artigo 16º, n.º 2, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro; E) Condenar o arguido no pagamento das custas criminais do processo (taxa de justiça) a pagar 2 (duas) UC de taxa de justiça, e os encargos do processo — cfr. artigos 513.º, 514.º, do Código de Processo Penal e artigo 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, por referência à Tabela III anexa ao citado diploma legal, a pagar os honorários da sua ilustre defensora, sem prejuízo do apoio judiciário de que possam beneficiar; F) Condenar o demandado AG___ nas custas cíveis (cfr. artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C., ex vi do artigo 523º do C.P.P.). G) Determinar a restituição ao arguido do objecto apreendido nos autos (casaco) e melhor descrito a fls. 296, mediante notificação do mesmo nos termos do preceituado no artigo 186º, n.º 2, do C.P.P., e com a advertência inserta no n.º 3 do mesmo dispositivo legal. H) Determinar a recolha de uma amostra de ADN ao arguido, a efectuar nos termos do disposto no artigo 8º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro e na Portaria 270/2009, de 17 de Março, para integrar a base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal, sendo o arguido, antes da recolha, informado, por escrito, do que consta no artigo 9º da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, devendo ainda o respectivo perfil ser incluído na base de dados e perfis de ADN, nos termos do artigo 8º, n.º 1, do mesmo diploma legal. Na comunicação a efectuar, será informado o Instituto Nacional de Medicina Legal da pena aplicada ao arguido, bem como da respectiva localização; I) Determinar que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a Termo de Identidade e Residência; J) Solicite à DGRSP a realização e envio para homologação, em 30 dias, do Plano Individual de Reabilitação Social do arguido (cfr. artigos 54º do Código Penal e 494º do C.P.P.). (…) * 2.1. Inconformado com a decisão proferida o arguido interpôs o presente recurso com as seguintes conclusões: (transcrição) (…) 1.ª Por Acórdão de fls., depositado em 04/05/2022, considerou o Tribunal a quo totalmente procedente a Acusação Pública e o pedido de indemnização civil, na parte de que ora se recorre, foi o arguido recorrente condenado « /…/ como autor material e em concurso real, de um crime de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 202.º al. e), 203.º, n.º 1 e 204.º, n.ºs 1 al. f), e 2, al. e), do Código Penal, dois crimes de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º, 23.º, 202.º, al. d), 203.º, n.º 1, 204.º, n.ºs 1 al. f) e 2 al. e), do Código Penal, e dois crimes de roubo, na forma consumada, p. e p. pelo disposto no art. 210.º, n.º 1 do Código Penal, nas penas respectivas de:. 2 (dois) anos e oito meses de prisão;. 9 (nove) meses de prisão;. 9 (nove) meses de prisão;. 1 (um ano e 8 oito meses de prisão;. 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão; B) Em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas em A), condenar o arguido AG___ na pena unitária de 4 (quatro) anos e 5 (cinco) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos e 5 (cinco) meses de prisão sob regime de prova, que deverá ter especial incidência na estruturação da actividade laboral, na avaliação da problemática aditiva e no aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social e com imposição de depositar à ordem dos presentes autos, no prazo de um ano a contar do transito em julgado da presente decisão a quantia de €500 (quinhentos euros) a qual será entregue posteriormente aos ofendidos R___ (€250,00) e JD_ (€250,00), correspondente à quantia que a estes foi arbitrada em D); C) Condenar o demandado AG___ pagar ao Demandante IK, Restauração S.A. a quantia de €228,06 (duzentos e vinte e oito euros e seis cêntimos) acrescida de juros de mora vencidos desde a data da sua notificação para contestar o pedido e vincendos, calculados à taxa legal, até efectivo e integral pagamento; D) Condenar o arguido AG___ a pagara R___ o montante de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) e a JD___ o montante de €250,00 (duzentos e cinquenta euros), perfazendo o montante global de €500,00, reparação fixada nos termos do disposto no art. 82.º-A do Código Processo Penal, aplicável por força do disposto no art.º 16.º n.º 2 do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015 de 4 de Setembro. E) Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, (taxa de justiça) a pagar 2 (duas) UC de taxa de justiça, e os encargos do processo – cfr. artigos 513.º, 514.º, do CPP e art.º 8.º n.º 9 RCP/…/» 2.ª Para o efeito, o Tribunal a quo deu como provada, quase toda a matéria factual patente na acusação e no pedido de indemnização civil, só não deu como provados os seguintes factos: «/…/ assim, não se provou que: Ascendeu a €90,00 o fundo de caixa existente nas duas caixas registradoras existentes no interior do estabelecimento comercial descrito em I dos factos provados; Na situação escrita em IV dos factos provados, cada um dos ofendidos JD_ e R___, entregou ao arguido uma nota de €10.00; Na situação escrita em IV dos factos provados, o arguido proferiu a expressão: “levam uma chinada se não me derem o dinheiro e o telemóvel.» 3.ª Salvo o devido respeito por melhor opinião, in casu foram incorrectamente julgados os factos que o Tribunal a quo julgou como provados, impondo-se decisão diferente quanto à matéria de facto, através da reapreciação da prova, nos termos do art.º 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP, sendo certo, que o Tribunal a quo deu como provados factos que não deveria ter dado como provados, por falta de suporte probatório, em face da prova produzida em audiência, verificando-se insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, nos termos do n.º 1 e do n.º 2, al. a) e al. c) do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal e na subsunção dos factos ao direito. 4.ª O princípio in dubio pro reo, consagrado no art.º 32.º, n.º 2, 1.ª parte da CRP, é um dos princípios basilares e estruturantes do nosso sistema jurídico-penal, constituindo uma decorrência do princípio da presunção de inocência, enquanto regra probatória, e tem como consequência, o facto de caber à acusação carrear para o processo o material probatório, desonerando assim o arguido do ónus da prova da sua inocência. 5.ª Não logrou a acusação carrear para os autos qualquer elemento probatório susceptível de dar como provado que o arguido recorrente tenha querido quanto aos factos n.º 3 a 6. do rol de factos provados referentes ao NUIPC n.º 232/20.5PFCSC praticar o crime de furto qualificado. 6.ª De igual forma, não se concebe como pode o Tribunal a quo considerar provados os factos n.º 9 a 12 do rol de factos provados referentes ao NUIPC 247/20.3PFCSC, que permitissem imputar ao arguido o crime de furto qualificado na forma tentada e condená-lo por tal crime. 7.ª Salvo o devido respeito por melhor opinião, entende o recorrente que o princípio da presunção da inocência do arguido e o seu corolário in dubio pro reo demandavam uma decisão diversa da ora posta em crise. 8.ª Impunha-se a avaliação dos elementos de prova indiciária existentes à luz dos critérios legais e dos ensinamentos da Doutrina e da Jurisprudência. 9.ª A livre apreciação da prova comporta duas vertentes: a) por um lado, o Juiz decide segundo a sua íntima convicção, em face do material probatório carreado para os autos, em especial na audiência de discussão e julgamento, quer pela acusação, quer pela defesa, quer o que o tribunal decide oficiosamente conhecer; b) por outro lado, essa convicção deve ser objectivamente formada com apoio em regras técnicas e de experiência, sem sujeição a cânones pré-estabelecidos. 10.ª O princípio da livre apreciação da prova significa, quer a ausência de critérios legais pré-determinantes do valor a atribuir às provas, quer a análise da prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração da sua convicção pessoal, recondutível a critérios objectivos, susceptíveis de motivação e controlo. 11.ª As regras da experiência são juízos hipotéticos, de conteúdo gené, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, mas para lá dos quais têm validade. 12.ª A livre apreciação de provas (princípio que enforma o processo penal, salvaguardadas as excepções legais) não se pode confundir com apreciação arbitrária de provas. 13.ª O Tribunal a quo devia, nos termos da lei, ter ponderado toda a prova produzida, tê-la analisado e examinado criticamente em confronto com o Direito e com as regras da experiência. 14.ª Só depois desse exame podia, de forma coerente, lógica e sobretudo garantística dos direitos fundamentais do recorrente, formar a sua convicção, devidamente sustentada nos meios probatórios no seu todo, e não de forma selectiva, contrariando as elementares teorias da Doutrina. 15.ª Não o fez, pelo que ofendeu, de forma directa e intolerável os direitos e garantias do arguido, com consequente violação entre outros do art.º 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. 16.ª Da factualidade considerada provada que aqui nos abstemos de reproduzir por questões de economia processual, mas que se dá, para todos os efeitos legais, integralmente reproduzidos, e que foi, a que, o Tribunal a quo considerou para decidir pela condenação do arguido pela prática em concurso real de dois crimes de furto qualificado na forma tentada, na pena de nove meses de prisão, por cada um dos crimes (penas incluídas na pena única do cúmulo), de facto, os únicos factos que se provaram relativamente ao NUIPC 232/20.5PFCSC foram os factos n.ºs 1 e 2 da Acusação Pública e relativamente ao NUIPC 247/20.3PFCSC os únicos factos que se provaram foram os factos 7 e 8 da matéria de facto dada como provada. 17.ª O arguido confessou os factos referentes ao NUIPC 230/20.9PFCSC e 229/20.5PDCSC. 18.ª E quanto aos factos referentes ao NUIPC 232/20.5PFCSC explicou ao tribunal que, efectivamente, inicialmente agiu com intenção de se apropriar de bens que lograsse obter do interior do estabelecimento Café Avenida, ainda iniciou a pratica de um acto de execução, porém, arrependeu-se e decidiu ir para casa sem concretizar os seus intentos, ou seja, sem consumar o furto. 19.ª Já no que se reporta ao NUIPC 247/20.3PFCSC o arguido explicou que estava muito aflito para fazer necessidades e que decidiu utilizar a casa de banho do posto de abastecimento. 20.ª Para além do mais, do depoimento da testemunha MB resulta sem sombra para dúvidas que, existindo quatro portas no exterior do posto de abastecimento, a única que o arguido tentou e logrou abrir foi a porta da casa de banho que aliás, está identificada como sendo de acesso a casa de banho, o que deveria ter sido ponderado. 21.ª De facto este processo com o NUIPC 247/20.3PFCSC, surgiu ou teve o seu inicio porque a testemunha MB viu nas noticias que o Burger King havia sido assaltado e, como o posto de combustível fica próximo, decidiu ir visualizar as imagens de videovigilância, nas quais, viu o arguido a introduzir-se na casa de banho, a sair e seguir o seu caminho. 22.ª O arguido que não quis em momento algum praticar qualquer furto ao posto de combustível, o que pretendeu foi tão somente ir à casa de banho, o que de facto fez. 23.ª Na verdade aquele estabelecimento à semelhança da grande maioria dos postos de combustível, tem casas de banho às quais se acede somente pelo exterior e sem qualquer ligação ao interior da loja de conveniência, como no caso. 24.ª O que é facto de conhecimento geral e notório para qualquer cidadão. 25.ª Salvo o devido respeito não parecem restar dúvidas que o arguido em momento algum teve intenção de se introduzir no interior do posto de combustível Galp para dali subtrair bens que sabia não lhe pertencer. 26.ª Não deveria ser despiciendo para o tribunal os factos de conhecimento comum e geral, pelo que, mal andou, salvo o devido respeito o Tribunal a quo ao dar como provados os factos n.ºs 9 a 12 do NUIPC 247/20.3PFCSC. 27.ª Motivo pelo qual, em sede de análise crítica da prova colhida em julgamento, conjugando os factos que o Tribunal a quo considera provados, com os depoimentos das testemunhas e as declarações do arguido, mais conjugados com as regras da experiência comum, deveria o Douto Tribunal a quo, considerar não provados factos patentes no n.ºs 3 a 6 e 9 a 12 dos factos dados como provados. 28.ª Salvo o devido respeito que é muito, entendemos que o arguido que não deve ser punido pelo furto na forma tentada reportado ao NUIPC 232/20.5PFCSC, face à desistência relevante (art.º 24.º do C. Penal), pois a decisão, voluntária e sem intervenção de terceiros, de não praticar um crime, constitui desistência jurídico-penalmente. 29.ª Dispõe o art.º 24.º do C. Penal que «1. A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime»; e que «2. Quando a consumação ou a verificação do resultado forem impedidas por facto independente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se esforçar seriamente por evitar uma ou outra». 30.ª Face a este normativo, a tentativa de cometimento de um crime, subsumível na previsão dos art.ºs 22.º e 23.º do C. Penal, pode, não obstante, deixar de ser punível. 31.ª Basta que o agente desista de prosseguir na execução do delito e que essa desistência seja relevante. 32.ª Da prova produzida em audiência verificou-se que o arguido voluntária e espontaneamente não deu seguimento à execução do crime de furto, uma vez que omitiu a prática de mais actos de execução e aqueles que praticou não eram idóneos para a consumação do crime. 33.ª Nos termos do artigo 24.º, n.º 1 do Código Penal: A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime (…). 34.ª A decisão, voluntária e sem intervenção de terceiros, de não praticar um crime, constitui desistência jurídico-penalmente relevante determinando que a tentativa não seja punível, nos termos do disposto no artigo 24.º do CP. 35.ª No caso do crime de furto qualificado na forma tentada, atenta a ausência da danos na porta de acesso ao estabelecimento, - factos indiciários de que o arguido nem sequer desenvolveu actos de execução tendentes e idóneos à consumação do furto - tudo factos que deveriam ter sido relevados e determinavam que no caso, é de entender ter havido desistência relevante para efeitos de aplicação do artigo 24.º do CP. 36.ª Pelo que o arguido não deverá ser punido por esse crime. 37.ª De igual forma, salvo o devido respeito que é muito, entendemos ainda que merece reparo a qualificação jurídica da matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido - na perspectiva da não verificação da tentativa impossível, não punível. 38.ª Relativamente ao conceito de tentativa impossível, dispõe o artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal: A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime. 39.ª O arguido, quando acedeu ao interior da casa de banho, ao contrário do que parece supor toda a fundamentação do Acórdão não pretendia “apoderar-se de objectos de valor que encontrasse no interior do referido estabelecimento comercial”. 40.ª Mais, apelando ao juízo ex ante, de prognose póstuma, do ponto de vista de um observador normal, colocado naquelas circunstâncias, não só a acção se apresenta manifestamente inadequada para pôr em perigo o resultado típico, como se afigura evidente que, almejando o arguido introduzir-se na casa de banho, nunca pôs em perigo o bem jurídico tutelado pelo tipo de crime. 41.ª Motivo pelo qual, deveria o arguido também ter sido absolvido deste crime que lhe vinha imputado na forma tentada, por manifesta tentativa absolutamente inidónea para a prática de qualquer crime de furto. 42.ª O acórdão do douto Tribunal a quo violou assim, entre outras, as disposições previstas nos artigos: 410.º, n.º 2 a) c), 374.º, 375.º e 171º todos do C.P.P. ; 32. n.º 1 ambos C.R.P.; e 14.º, n.º 3, 22.º n.º 2 b) , 22 n.º 1, 23.º, n.º 2, 24.º n.º 1; 204.º n.º 1 f), 40.º n.ºs 1, 2 e 3, 71.º n.º, alínea f),72.º, n.º 1, 77.º, n.º 4 e 91.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal. 43.ª Assim não se entendendo, sempre será de aplicar ao arguido quanto aos crimes de furto sob a forma tentada a atenuação especial resultante da aplicação do artigo 23.º n.º 2 do CP e as demais, circunstâncias atenuantes especiais que possam ser relevadas no âmbito do disposto no artigo 72° do CP - ausência de antecedentes criminais e arrependimento sincero, a assunção da sua responsabilidade e consciência da gravidade dos actos por si praticados -, aplicando-se uma pena a cada um dos crimes pelo limite mínimo. 44.ª O Tribunal a quo decidiu arbitrar reparação nos termos do disposto no art.º 82.º A, às vítimas dos dois crimes de roubo. 45.ª E, desta forma, condenou o arguido no pagamento a cada um dos ofendidos do valor de €250,00 no prazo de um ano, condição para a suspensão da pena de prisão. 46.ª Também nesta parte o Acórdão está ferido de NULIDADE, por violação dos art.ºs 61.º n.º 1 al. c), 82º-A, 368º n.º 2 f), do CPP, bem como assim, do art.º 32º n.ºs 1, 2 e 5 da CRepPortuguesa, e ainda 6º e 18º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 47.ª Estatui o art.º 82º A do CPP que: “1. Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º a 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham. 2. No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório. 3. A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.” 48.ª A aplicabilidade do art.º 82º A do CPP depende dos seguintes pressupostos: a) Subsidiariedade; b) Condenação penal; c) Identificação de uma vítima; d) Existência de prejuízos; e) Particulares exigências de protecção. Neste sentido indica MILHEIRO, Tiago Caiado, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina 2019, comentários ao art.º 82º-A. 49.ª Com efeito, como refere MILHEIRO, Tiago Caiado, in op. cit., 881, “embora a natureza do instituto seja misto concentrando finalidades de natureza pública e particular..., o arbitramento oficioso é uma verdadeira indemnização para ressarcir os prejuízos apurados no processo penal. A lei exige como conditio sine qua non que existam prejuízos ressarcíveis (demonstrativo do pendor indemnizatório). A reparação abrange quer os danos não patrimoniais (indemnização em sentido stricto sensu), quer os não patrimoniais (compensação que configura uma indemnização em sentido lato) e a norma não impõe nenhum limite legal quantitativo”. 50.ª Ora, atento o exposto, resulta que o arbitramento da indemnização deve respeitar o contraditório. 51.ª E, como sendo legalmente imprescindível, e sobretudo e além do mais, um direito do arguido, o Tribunal deve comunicar ao arguido a necessidade de atribuição oficiosa da reparação, dando-lhe a oportunidade de se pronunciar sobre os exactos fundamentos e o montante –– neste sentido vd. GASPAR, Henriques, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014: 287. 52.ª Vertendo ao caso sub iudice, ao Arguido/Recorrente não foram comunicados nem dados a conhecer os exactos e concretos fundamentos nos quais se estriba a deliberação do Tribunal para efeitos de aplicação do normativo constante do art.º 82º-A CPP. 53.ª O Arguido/Recorrente não sabe, porquanto lhe não foi comunicado, o efectivo dano e respectivo nexo causal que se encontrará subjacente à indemnização em que foi condenado. 54.ª Efectivamente, em nenhuma circunstância o Tribunal pode proceder a arbitramento oficioso de indemnização sem antes ouvir o responsável civil especificadamente sobre os alegados prejuízos e o nexo de imputação desses prejuízos à sua conduta –– neste sentido, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, in Comentário do Código de Processo Penal, Univ. Católica Portuguesa, 3ª Ed., 2009:232. 55.ª E o respeito pelo contraditório não fica satisfeito pela circunstância de o responsável civil ter sido notificado da causação e de os prejuízos se encontrarem descritos na acusação –– ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, in op. cit., 232. 56.ª Nesse sentido, o arguido/responsável civil tem o direito a pronunciar-se sobre a responsabilidade que lhe é atribuída e a fazer prova das suas alegações. 57.ª Razão pela qual deve ser-lhe notificada não apenas a eventualidade de aplicabilidade da norma do art.º 82º-A CPP, mas especificadamente, os fundamentos, os danos, o nexo causal e o montante em questão. 58.ª De facto nos autos, o arguido foi notificado da eventualidade de aplicabilidade da norma do art.º 82.º A do CPP tendo, tempestivamente, arguido a nulidade de tal notificação pelos motivos supra exposto, mediante requerimento atravessado nos autos em 10/02/2022 com a ref.ª citius 20430476, cujo teor para os devidos efeitos legais aqui se dá por integralmente reproduzido. 59.ª No entanto, tal requerimento do arguido não mereceu provimento, cfr. despacho datado de 08/03/2022 com a ref.ª 136089683. 60.ª Ora, é de todo inadmissível que os tribunais sem concretizarem os danos e as vítimas entendam que dão cumprimento ao exercício do contraditório, somente porque notificam o arguido de que pode vir a ser condenado no arbitramento do pagamento de indemnização a pessoa que nem sequer é identificada pelo Tribunal, como ocorreu no caso. 61.ª De facto, não podia olvidar o Douto Tribunal que o Arguido nem sequer tinha conhecimento e acesso via citius a todo o processo (ou seja aos processos cujos inquéritos foram incorporados nos autos) tanto assim é que, havia solicitado ao tribunal tal acesso em 25/01/2022, mediante requerimento cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para os devidos efeitos legais (com a ref.ª 20309322), requerimento que reiterou em 07/02/2022 com a ref.ª 20400263, o que nunca foi deferido. 62.ª Pelo que, não era despiciendo para o Tribunal quando comunicou ao arguido que havia a eventualidade de arbitrar uma indemnização nos termos do art.º 82.º A CPP, o Arguido desconhecia a existência destas vítimas. 63.ª Reiteramos que apenas na posse e ciência de tais elementos [fundamentos, os danos, o nexo causal e o montante em questão], poderia o Arguido exercer o seu direito de defesa e direito ao contraditório. 64.ª Seria diferente, caso a prova encontrando-se produzida ou em fase de conclusão e tendo sido dados os passos necessários para a formação da sua convicção, o Tribunal a quo viesse a lançar mão da norma do art.º 358º do CPP e, aí sim, dando a conhecer ao arguido algo em concreto, do ponto de vista factual e de direito, para contraditório em exercício de defesa. 65.ª De facto, foi uma surpresa esta condenação. 66.ª Nessa medida, o Acórdão padece de vício, sendo ilegal, encontra-se inquinada, violando os art.ºs 61º n.º 1 al c), 82º-A, 368º n.º 2 f), do CPP, bem como assim, do art.º 32º n.ºs 1, 2 e 5 da CRepPortuguesa, e ainda 6º e 18º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 67.ª A indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil (art.º 129.º do CP) nos respectivos pressupostos e só processualmente é regulada pela lei processual penal, ou seja, a atribuição da indemnização em processo penal é regulada quantitativamente nos seus pressupostos pela lei civil e não já por critérios da lei penal - no Código Civil consagra-se basicamente a concepção clássica de que a responsabilidade civil tem a função de reparar os danos causados e não fins sancionatórios. 68.ª Dada a sua função essencialmente reparadora ou reintegrativa, o instituto da responsabilidade civil está sempre submetido aos limites da eliminação do dano, o que significa que, inexistindo este, inexiste obrigação de indemnizar (art.º 483.º do CC). 69.ª Em abono da verdade se diga que, na verdade, um dos ofendidos a quem foi arbitrada a indemnização de €250,00 nem sequer esteve presente ou prestou qualquer depoimento na audiência de discussão e julgamento, pelo que, é por demais evidente que não foi produzida qualquer prova quanto aos danos. 70.ª Portanto, nunca pode haver condenação cível, em processo penal, quando se não provar a existência do dano invocado pelo autor do respectivo pedido. 71.ª Para além do mais, a indemnização arbitrada a favor dos ofendidos é, manifestamente, elevada, atenta a situação socio-económica do arguido, devendo ser o respetivo montante diminuído para outro que compense devidamente o dano sofrido, caso se considere a existência de danos o que somente por cautela se admite. 72.ª Foram assim violados as disposições contidas nos artigos 72.º n.º 2 e), 210.º do Código Penal, artigos 122.º n.º 1, 374.º n.º 2, 379.º n.º 1 alíneas b) e c) e 410º n.º 2, todos do Código de Processo Penal, artigos 494º e 496º do Código Civil e ainda os artigos 205º e 32º da Constituição da República Portuguesa, e outras que V.as Exas sapientemente suprirão. 73.ª Acresce ainda que, a confissão integral e sem reservas do arguido, reveladora da sua auto-responsabilização pela prática dos factos, a inexistência de antecedentes criminais e o apoio de que goza e que lhe é prestado pela família directa demandavam que as penas parcelares aplicadas ao arguido se fixassem nos limites mínimos. 74.ª Pelos dois crimes de furto na forma tentada, o arguido deveria ter sido absolvido, ora porque na primeira situação houve uma desistência da tentativa que deveria ter sido relevada, ora porque na segunda situação nunca houve qualquer intenção da prática do crime de furto a que acresce o facto de se tratar de tentativa manifestamente inidónea para a prática do ilícito de furto. 75.ª Porém, assim não se entendendo, as circunstâncias a favor do arguido, demandavam que lhe fosse aplicada a pena pelo limite mínimo, ou seja, um mês para cada um dos crimes e o mesmo raciocínio, deveria ter sido realizado para cada um dos crimes de roubo, aplicando-se ao arguido a pena de um ano de prisão, e, para o crime de furto qualificado, aplicando-se ao arguido a pena pelo limite mínimo de dois anos de prisão. 76.ª A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. do STJ de 17-09-1997, proc. n.º 624/97). 77.ª A medida das penas determina-se, já o dissemos, em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele e que se vieram de abordar na motivação, impõe-se proceder a uma reapreciação das penas encontrada dentro da sub–moldura dos crimes e dentro dela sopesar todos aqueles elementos de facto que abonam a favor do arguido. 78.ª Salvo o devido respeito que é muito, nota-se que essa ponderação, designadamente dos elementos favoráveis ao arguido já salientados não foi tão longe como devia, sendo mais justa e adequada a pena de cada um dos crimes pelo limite mínimo e a do cúmulo encontrada, igualmente, mais próxima do seu limite mínimo e não, mais próxima do seu limite máximo como ocorreu no caso, em que a pena única se situa muito perto do seu limite máximo. 79.ª Suspendendo, como suspendeu, a pena de prisão aplicada pelo mesmo período de tempo. 80.ª Para quem esteja a ser julgado pela prática de um crime, constitui uma garantia fundamental o tratamento próprio, que as especificidades do seu caso reclama. 81.ª Como refere Figueiredo Dias (Consequências Jurídicas do Crime, pág. 227 e seg.) a propósito da questão da medida da pena, a finalidade da aplicação desta reside primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível na reinserção do agente na comunidade. 82.ª O aresto, posto ora em crise, salvo melhor opinião, não adoptou o procedimento correcto. 83.ª A decisão recorrida violou ou interpretou de forma incorrecta o disposto nos artigos, 32.º da CRP, 127.º do CPP, e ainda, os art.ºs 40.º n.ºs 1 e 2 e 71.º, 204.º, 210.º todos do Código Penal. 84.ª Defendemos, em face do exposto, que o Acórdão recorrido deverá ser substituído por outro, que em face dos depoimentos das testemunhas, das declarações do arguido, considere não provados os factos patentes no n.ºs 3. a 6., 9. a 12. e, em consequência, absolva o arguido dos crimes de furto qualificado na forma tentada por desistência da tentativa e por tentativa impossível; absolva o arguido do pagamento de indemnização aos ofendidos pela prática dos dois crimes de roubo, por ausência de qualquer prova dos danos e falta de pressupostos civis nos termos do disposto nos art.ºs 494.º e 496.º do CC e quanto aos demais crimes, condene o arguido em penas parcelares pelo limite mínimo legal, atenta a factualidade provada, a culpa do arguido e as circunstâncias que abonam a seu favor, como sejam o facto de não possuir antecedentes criminais, o facto de se encontrar socialmente inserido, de ter confessado os factos e ter demonstrado arrependimento sincero, suspendendo na sua execução o cumprimento da pena única de prisão que vier a ser determinada. (…) * 1.3. O Mº Pº apresentou resposta ao recurso onde pugna pela manutenção da decisão proferida em sede de primeira instância, porque está conforme ao direito. * 1.4. Foi aberta vista nos termos do disposto no art.º 416º n.º 1 do CPP, tendo o Sr. Procurador Geral Adjunto proferido parecer no qual pugna pela improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida, acompanhando a resposta do Mº Pº da 1ª instância. * 1.5. Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal não foi deduzida resposta ao parecer. * 1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência. * II. FUNDAMENTAÇÃO 2.1. O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art.º 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas nos art.ºs 379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, conforme acórdãos do STJ de 13.05.1998, in BMJ n.º 477, pág. 263; de 25.06.1998, in BMJ n.º 478, pág. 242; de 3.02.1999, in BMJ n.º 484, pág. 271; e de 12.09.2007, no proc. n.º 07P2583, in www.dgsi.pt; Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 3.ª edição, Rei dos Livros, pág. 48; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320 e seg.; e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995. Assim, as questões a apreciar são: a) Vícios do art.º 410º, n.º 2 als. a) e c) do Código de Processo Penal e impugnação da matéria de facto (erro de julgamento); b) Violação do princípio in dubio pro reo; c) Absolvição dos crimes de furto qualificado, na forma tentada, por desistência da tentativa e por tentativa impossível; d) Das medidas das penas parcelares; e) Da aplicação do disposto no artigo 82-A do Código Processo Penal. * 2.2. Importa apreciar tais questões e decidir 2.2.1. Para tanto, devem considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso os factos considerados provados/não provados na decisão recorrida: (transcrição) (…) A) FACTOS PROVADOS Discutida a causa e produzida a prova, resultaram assentes os seguintes factos: I — NUIPC n.º 232/20.5PFCSC 1- No dia 27/04/2020, cerca das 00h52m, o arguido dirigiu-se para as imediações do estabelecimento denominado "Café Avenida", sito na Avenida …, n.º …, em Matos Cheirinhos, São Domingos de Rana, propriedade da ofendida RP. 2- Aí chegado, o arguido abeirou-se da porta do estabelecimento e, por meio e modo não concretamente apurado, tentou proceder à abertura da mesma, arrombando a armadura que envolve a sua fechadura. 3- Por dificuldades em estroncar a fechadura do estabelecimento, o arguido não conseguiu aceder ao seu interior, não logrando assim os seus intentos. 4- No interior do estabelecimento, em duas registadoras, encontravam-se €80,00 de fundo de caixa, uma máquina dispensadora de tabaco com tabaco e dinheiro num montante não concretamente apurado, raspadinhas não activadas e bebidas, no valor de, pelo menos, €1.500,00, de que o arguido só não se apoderou por circunstâncias alheias à sua vontade. 5- Em consequência da sua conduta, o arguido provocou prejuízos de cerca de €200,00 por a ofendida manter encerrado o estabelecimento. 6- O arguido actuou com o intuito de se apoderar de objectos de valor que encontrassem no interior do referido estabelecimento comercial, não tendo logrado os seus intentos por motivos alheios à sua vontade. II — NUIPC n.º 247/20.3PFCSC 7- Ainda no mesmo dia, 27/04/2020, cerca das 02h56m, o arguido dirigiu-se para as imediações do posto de abastecimento de combustível da Galp, sito na Estrada Nacional n.º ..., em São Domingos de Rana, propriedade da ofendida MTPB Auto, Lda., de que é sócia gerente MB. 8- Aí chegado, o arguido abeirou-se de uma porta de alumínio que dá acesso às casas de banho, e após, por meio e modo não concretamente apurado, arrombou a mesma e acedeu ao seu interior. 9- Constatando, que a casa de banho não possuía ligação com o interior da loja da Galp, o arguido abandonou o local não logrando assim os seus intentos. 10- No interior do estabelecimento, em caixas registadoras, encontravam-se cerca de €300,00 em numerário de fundo de caixa, bem como bens, entre tabaco e produtos alimentares no valor de cerca de €9.000,00, distribuídos pelo espaço físico da loja, os quais o arguido só não se apoderou por circunstâncias alheias à sua vontade. 11- Em consequência da sua conduta, o arguido provocou danos na porta, causando um prejuízo de cerca de €100,00. 12- O arguido actuou com o intuito de se apoderar de objectos de valor que encontrasse no interior do referido estabelecimento comercial, não tendo logrado os seus intentos por motivos alheios à sua vontade. III — NUIPC n.º 230/20.9PFCSC 13- Sempre com o mesmo intuito, no mesmo dia, 27/04/2020, cerca das 03h10 m, o arguido dirigiu-se para as imediações do restaurante Burger King, em São Domingos de Rara, propriedade da ofendida Burger King, de que é representante legal S_. 14- Aí chegado, o arguido abeirou-se de uma janela das traseiras uso do drive in, e após, por meio e modo não concretamente apurado, partiu o vidro da mesma e acedeu ao seu interior. 15- No interior, o arguido arrombou as caixas registadoras visando apoderar-se do dinheiro que as mesmas pudessem conter. 16- Uma vez que se encontravam vazias, o arguido percorreu depois várias divisões do estabelecimento, acedendo ao escritório, de onde se apoderou, após arrombamento de um cofre de pequenas dimensões, da quantia de cerca de €440,00 que levou consigo e fez sua, ao abandonar o referido local. 17- Desse montante foram recuperados €321,77 que o arguido ainda detinha na sua posse quando detido pelas autoridades policiais nas imediações daquele local. 18- Em consequência da sua conduta, para além da não recuperação do montante de €118,23, arguido provocou um prejuízo de €446,86 para reparação da porta do drive in e mais €223,86, para substituição de quatro gavetas das caixas registadoras. IV — NUIPC n.º 229/20.5PDCSC 19- No dia 24/05/2020, cerca das 00h00m, o arguido encontrava-se na gare da estação de comboios da Parede, lado mar, sentido Lisboa-Cascais, sita na Praça 5 de Outubro, na Parede. 20- Nas mesmas circunstâncias de tempo e local, encontravam-se igualmente os ofendidos R___ e JD_. 21- Apercebendo-se da sua presença, o arguido abordou então os dois jovens estabelecendo diálogo e pedindo-lhes moedas em dinheiro. 22- Tendo sido ignorado pelos mesmos, o arguido alterou o tom de voz, tornando-se agressivo e ameaçador, exigindo que lhe dessem dinheiro. 23- Com receio pela integridade física de ambos, o ofendido JD_ entregou ao arguido uma nota de €5,00, em simultâneo pedindo que o mesmo se fosse embora e não lhes fizesse mal. 24- Persistindo na mesma vontade criminosa, o arguido, ao mesmo tempo que colocou a mão no interior do seu casaco, fazendo o gesto de ter uma faca no seu interior, exigiu aos ofendidos que lhe dessem mais dinheiro, bem como o telemóvel. 25- Receando pela sua integridade física ou a sua vida, desconhecendo se o arguido tinha efectivamente uma faca, o ofendido R___ entregou mais uma nota de €5,00 e o telemóvel de marca Huawei de sua propriedade. 26- Bens até à data não recuperados, de que o arguido se apoderou, levando-os consigo e fazendo-os seus ao abandonar o local. 27- O arguido agiu com o propósito concretizado de se apropriar de bens e dinheiro supra mencionados, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que, ao actuar da forma descrita, agia sem autorização e contra a vontade dos seus legítimos donos. 28- O arguido agiu como descrito com o propósito concretizado de, através de violência e intimidação, colocar os ofendidos na impossibilidade de resistir forçando estes a desapossar-se de bens e dinheiro que lhes pertenciam. 29- O arguido actuou, em todas as descritas circunstâncias, livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 31- A demandante IK, Restauração, S.A. foi ressarcida pela seguradora Fidelidade, Companhia de Seguros, S.A. do montante de €435,47 a título de indemnização pelos danos e prejuízos causados. 32- A demandante viu deduzidas em sede fiscal as quantias de €83,56 e €41,86 correspondentes ao IVA das facturas a cujo pagamento procedeu referentes ao custo da reparação da porta das traseiras e da janela de atendimento e ao custo da reparação das gavetas das quatro caixas registadoras. * Factos atinentes às condições pessoais do arguido: 33- Segundo informações recolhidas pela DGRSP, o arguido "AG___ é oriundo de urna família de modesta condição socioeconómica, cujos padrões de educação se terão pautado por regras e valores considerados socialmente normativos, favoráveis a um adequado processo de socialização. Pouco investido no percurso escolar e com reduzida supervisão parental, o arguido concluiu um curso profissional aos 19 anos de idade que lhe deu equivalência ao 9° ano de escolaridade. De seguida começou a trabalhar no setor da restauração com o intuito de contribuir para a economia doméstica. Em abril de 2020, em pleno confinamento devido ao Covid-19, o arguido veio a perder o emprego, deslocando-se, em junho do mesmo ano, para a zona de Lamego para fazer apanha da fruta. Em agosto de 2021 abandonou o trabalho e regressou a casa para ajudar a progenitora a cuidar do seu pai que padece de problemas de saúde do foro oncológico. Atualmente faz apenas alguns trabalhos pontuais no ramo da restauração, mantendo a procura de uma ocupação laboral estável. A situação económica do agregado é de contenção, sendo suportada pela reforma do progenitor no valor de €1.200 e de algum dinheiro que a progenitora aufere enquanto empregada doméstica numa casa particular. O agregado tem como despesa fixa mensal o valor de €500, referente à renda de casa. No plano amoroso, aos 16 anos o arguido foi viver com a namorada, vindo a separar-se cerca de seis meses mais tarde por divergências entre o casal, regressando a casa dos pais. Aos 18 anos saiu de casa para nova aventura amorosa, tendo vivido uma união de facto que terminou ao fim de 7 anos, retornando o arguido ao agregado de origem, situação que se mantém na atualidade. No plano social AG___ convive com os seus familiares e com alguns amigos e vizinhos, pessoas socialmente integradas, segundo afirma, passando, porém, a maior parte do tempo em casa junto dos progenitores. Em contexto de grupo de pares o arguido iniciou o consumo de haxixe e de cocaína, sensivelmente aos 16 anos de idade, prática que alegadamente terá cessado no verão de 2021, durante a sua permanência na cidade de Lamego (...)". 34- O arguido, actualmente, encontra-se a trabalhar como empregado de mas num restaurante, auferindo €700,00 mensais. Antecedentes criminais do arguido: 35- Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido. Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa. *** B) FACTOS NÃO PROVADOS Não se provaram, de entre os factos descritos na acusação, no pedido de indemnização civil e na contestação do arguido, os factos acima não descritos e os factos contrários àqueles que resultaram provados, sendo certo que o Tribunal se debruçou especificadamente sobre cada um dos factos não provados. Assim, não se provou que; a) ascendeu a €90,00 o fundo de caixa existente nas duas caixas registadoras existentes no interior do estabelecimento comercial descrito em I dos factos provados; b) na situação escrita em IV dos factos provados, cada um dos ofendidos JD_ e R___, entregou ao arguido uma nota de €10,00; c) na situação escrita em IV dos factos provados, o arguido proferiu a expressão: "levam uma chinada se não me derem o dinheiro e o telemóvel". (…) * 2.2.2. No que concerne à motivação da decisão de facto o acórdão recorrido, no segmento que ora nos importa, expende o seguinte: (transcrição) (…) O arguido prestou declarações, confessando os factos que lhe são imputados, declarando ter ficado sem trabalho devido à pandemia e necessitar de dinheiro para ajudar a mãe nas despesas do agregado familiar, em virtude de o pai, doente oncológico, não poder trabalhar. Mais declarou encontrar-se arrependido dos seus actos e pediu desculpas ao Tribunal. Para além das declarações confessórias do arguido foram igualmente relevantes para a convicção do Tribunal, relativamente aos factos descritos e I e II dos factos provados, os depoimentos das testemunhas RP e MB, proprietárias dos estabelecimentos comerciais denominados "Café Avenida" e posto de abastecimento de combustível da Galp, respectivamente e que, de forma objectiva e circunstanciada, descreveram os factos de que foram vítimas, concretizando o modo como foi tentado o acesso ao Café e ao posto de abastecimento de combustível, os bens existentes no interior dos mesmos assim como os seus valores e os danos que foram causados, nos precisos termos que foram tidos como provados. Para prova desta factualidade foi igualmente relevante o teor de: - auto de noticia de fls. 149 a 150; - auto de visionamento de fls. 72 a 74; - reportagem fotográfica de fls. 76 a 77 e 173 a 174 (quanto ao Proc. n.º 232/20.5PFCSC); - auto de denúncia de fls. 189 verso; - auto de visionamento de fls. 56 a 60 (do Proc. n.º 247/20.3PFCSC). Relativamente aos actos descritos em III dos factos provados, foram relevantes para a convicção do Tribunal os depoimentos conjugados das testemunhas SG e SJ, pessoas que trabalhavam, à data (testemunha SG) e que ainda trabalham (testemunha S J), no Burguer King que, de forma segura e consistente, descreveram os factos que presenciaram e de que têm conhecimento directo, designadamente, o modo como foi efectuado o acesso ao interior do estabelecimento, os danos causados e os valores que foram subtraídos, assim como os que foram parcialmente recuperados. A testemunha igualmente confirmou o valor dos danos patrimoniais causados à demandante, deduzido do valor da indemnização recebida pela Seguradora, tal como documentado nos autos a fls. 402 a 411, confirmando o teor de tais documentos. Foi igualmente relevante para prova desta factualidade, também ela concernente ao pedido de indemnização civil deduzido pela demandante, o teor dos documentos juntos a fls. 454 a 459 dos autos. Igualmente foi relevante o teor de: - auto de noticia de fls. 113 a 116; - auto de apreensão de fls. 117 a 118; - reportagem fotográfica de fls. 128 a 129 e 136 a 141; - auto de visionamento de fls. 19 a 21; - facturas de fls. 47 a 48 dos autos. O Tribunal formou ainda a sua convicção, para além das declarações confessórias do arguido, e no que concerne à factualidade descrita em IV dos factos provados, no depoimento da testemunha R___ , que relatou os factos de que o próprio e JD_ que o acompanhava, foram vítimas, de forma segura e consistente, confirmando o modo como foram abordados, o receio por cada um sentido assim como os bens que a cada um foram subtraídos e o respectivo valor, nos precisos termos tidos como provados. Foram também relevantes para a convicção do Tribunal, o teor de: - auto de denúncia e aditamento de fls. 94 a 96 e 97; - auto de visionamento de fls. 98 a 101 dos autos. Fazendo urna análise crítica de toda esta prova produzida o Tribunal não teve dúvidas acerca da ocorrência de tais factos nem, tão pouco, acerca da participação do arguido nos correspondentes factos. Desde logo, o arguido confessou a prática dos factos e as testemunhas inquiridas lograram concretizar, quer o modo como foi efectuado (na situação descrita em III) ou como foi tentado (nas situações descritas em I e II) o acesso aos estabelecimentos comerciais e os bens e valores neles existentes e aqueles que foram subtraídos (na situação descrita em III), assim como os danos que foram causados e o custo daqueles que foram reparados e suportados por cada um dos ofendidos, logrando ainda a testemunha R___ concretizar o modo como foi abordado pelo arguido no momento em que se encontrava acompanhado por JD_, assim como os bens a cada um subtraídos. O que antecede é, assim, quanto a nós, bastante para fundar a convicção do tribunal relativamente aos correspondentes factos, porquanto, a conjugação de toda a prova produzida, directa e indirecta, e a sua análise crítica, afastou qualquer dúvida razoável que eventualmente pudesse existir, acerca da veracidade de tal factualidade. A prova dos factos atinentes ao dolo do arguido fez-se a partir da análise do conjunto da prova produzida e em confronto com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, em face da actuação desenvolvida pelo arguido e das circunstâncias em que agiu. Com efeito, sendo o dolo um elemento e índole subjectiva, que pertence ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento ter-se-á de apreender do contexto da acção desenvolvida, cabendo ao julgador — socorrendo-se, nomeadamente, das regras da experiência comum da vida, daquilo que constitui o princípio da normalidade — retirar desse contexto a intenção por ele revelada e a si subjacente. Foi esta a operação que o tribunal realizou. Os factos respeitantes às condições de vida do arguido provaram-se a partir das declarações do próprio arguido, bem como no teor do relatório social do arguido, junto aos autos, corroborado pelo próprio em julgamento, assim como ainda no depoimento da testemunha, mãe do arguido. Finalmente, a inexistência de antecedentes criminais do arguido mostra-se certificada no certificado de registo criminal junto aos autos. Sobre os factos não provados não foi produzida prova convincente. Desde logo, no que concerne à factualidade vertida em a) dos factos não provados, a testemunha RP não logrou confirmar o valor de €90,00 do fundo de caixa das duas caixas registadoras existentes no interior do estabelecimento comercial descrito em I dos factos provados, antes referindo as quantias de €40,00 em cada uma das caixas. Já no que respeita à factualidade descrita em b) e c) dos factos não provados, a testemunha RP não a confirmou razão pela qual não ficou convencido acerca da veracidade de tal factualidade. (…) * 2.3. Vícios do art.º 410º, n.º 2 als. a) e c) do Código de Processo Penal e impugnação da matéria de facto (erro de julgamento) As Relações conhecem de facto e de direito (art.º 428°, nº 1 do CPP), em concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto. O arguido/recorrente labora em manifesto erro ao confundir os vícios do art.º 410º do Código de Processo Penal com a impugnação da matéria de facto. Efetivamente o arguido/recorrente começou por impugnar a decisão do tribunal que considerou provados os factos narrados sob os n.ºs 3 a 6 e 9 a 12 por, em seu entender, terem sido incorrectamente julgados, não tendo cumprido, de uma forma minimamente aceitável, as exigências contidas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Não obstante denote manifesta confusão entre a impugnação da decisão de facto e a mera invocação dos vícios enunciados no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, concretamente os elencados sob as alíneas a) e c) do Código de Processo Penal, veio indicar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas omite as provas que, em seu entender, impõem decisão diversa. É certo que na motivação o arguido/recorrente faz a referência à mera transcrição de um segmento das declarações do arguido, e outros dois segmentos referentes aos depoimentos das testemunhas MB e RP, mas nas conclusões inexiste qualquer referência a esses segmentos, não podendo o arguido/recorrente olvidar que são as conclusões que determinam as questões a conhecer por este tribunal ad quem. Tais referências não obedecem aos requisitos elencados no art.º 412º do C.P.P., pelo que não podem ser tidas como impugnação válida da matéria de facto. Ainda que assim se não entendesse, sempre diríamos: O arguido/recorrente o que verdadeiramente invoca é a existência de erro na avaliação das declarações do arguido[1], que no seu entender são corroborados pelos depoimentos de duas testemunhas, esquecendo toda a restante prova produzida em audiência. A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo Juiz. Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art.º 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos, e que são os referidos no art.º 410º, números 2 e 3 do CPP, não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal a quo em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto.[2] A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto.[3] Ora, com o devido respeito, do que se extrai das conclusões do recurso, é o arguido/recorrente limitar-se a pôr em causa a convicção do tribunal. Assim, constata-se que o arguido/recorrente se limitou a contrapor a sua convicção à do tribunal recorrido.[4] Em suma, o recorrente socorre-se da prova oralmente produzida em audiência para demonstrar que o tribunal recorrido a valorou erradamente, visando, assim, a reapreciação da mesma pelo tribunal de recurso, com vista a serem dados como não provados os factos acima enunciados e que pretende impugnar. Na verdade, o que o arguido/recorrente questiona é o modo como o Tribunal a quo procedeu à valoração da prova produzida, ou seja, o uso que fez do princípio da livre apreciação da prova. Não obstante, diremos que, tendo em conta, a análise das transcrições dos depoimentos/declarações apresentadas com a interposição do recurso pelo recorrente, nada nelas impõe que se dê procedência ao seu entendimento no que concerne à interpretação e valoração das provas produzidas. Quanto aos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, concretamente os atinentes às alíneas a) e c) invocadas, sendo que todas elas [(a), b) e c)] são de conhecimento oficioso, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum. Assim, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida. In casu, como se disse logo no início da fundamentação, o arguido/recorrente confunde o recurso sobre a decisão de facto com a mera invocação dos vícios utilizando os argumentos que poderiam fundamentar a alteração da decisão de facto para afirmar a existência daqueles vícios. Disso é exemplo significativo o sentido que ele atribui à alínea a) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal. Na verdade, ao contrário do que afirma, a «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada» refere-se à possibilidade de se basear na matéria de facto assente uma decisão jurídica, ou seja, relaciona a matéria de facto com a de direito e não a prova produzida e valorada em audiência com a decisão de facto. «Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada» não significa, de forma alguma, insuficiência da prova produzida e valorada em audiência para a decisão de considerar provados determinados factos. Também, no que concerne ao erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do referido n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, respeita aos vícios da decisão, sendo verificáveis pelo mero exame do próprio texto da decisão, ou por esse exame conjugado com as regras da experiência comum. Quer-se com isto dizer que elementos estranhos à decisão não podem ser invocados ou chamados a fundamentar esses vícios que, repete-se, têm de resultar do próprio texto, e apenas deste. Da leitura do acórdão recorrido resulta que o seu texto e sentido da decisão são claros, com observância das regras da lógica e clareza de raciocínio. Clareza essa que resulta desde logo da simplicidade factual e jurídica do caso, não se vislumbrando qualquer obscuridade ou contradição. Trata-se de um texto integralmente lógico, bem estruturado e fundamentado. O erro notório na apreciação da prova consiste num erro (ignorância ou falsa representação da realidade) evidente, facilmente detectado, e resultante do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum. É manifesta a ausência de tal erro. É necessário que se diga: os vícios previstos no n.º 2 do art.º 410º não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal a quo tomou sobre os factos. É uma questão que se coloca no âmbito da livre apreciação da prova. Em suma, a decisão impugnada mostra-se correctamente fundamentada quer no aspecto de facto quer no direito aplicado, de forma a poder apreender-se plenamente os motivos e o processo lógico-formal que o julgador usou para, de acordo com as regras da experiência comum, formar a sua livre convicção - cfr. art.º 127º do Código de Processo Penal. Não se vislumbra, pois, que a decisão impugnada acolha conclusões incompatíveis ou contraditórias com a prova produzida e constante dos autos. Em suma, o acórdão recorrido não enferma dos vícios de erro notório da apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem do vício da alínea b) do n.º 2 do art.º 410º do Código de Processo Penal, que embora não tenha sido invocado cabe no conhecimento oficioso deste tribunal ad quem. Assim, improcede, nesta parte, o recurso do arguido. * 2.4. Violação do princípio in dubio pro reo O arguido/recorrente, embora não concretize, limita-se a invocar que a prova produzida em julgamento não conclui pela prova da existência da prática dos crimes em que veio a ser condenado, colocando o arguido na condição de ser absolvido pela verificação de condições para a aplicação do princípio do in dubio pro reo. Ora analisado o acórdão recorrido não vislumbramos onde o arguido se fundamenta para concluir nos termos citados. Quanto à dúvida, perante a qual o tribunal a quo terá decidido contra o arguido não a detectamos. O princípio in dubio pro reo é uma decorrência do princípio da presunção de inocência (art.º 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), que procura dar resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao julgador que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido. Produzida a prova, se no espírito do juiz subsiste um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do referido princípio. Na fase de recurso, a detecção da violação do princípio in dubio pro reo passa pela sua notoriedade, face aos termos da decisão. Tem que resultar clara e inequivocamente do texto da decisão que o Juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado. Em todo o caso, a dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que este não logrou ultrapassar. Lido o acórdão recorrido, particularmente, a sua motivação de facto, dela não resulta que o tribunal recorrido tenha permanecido na dúvida quanto a qualquer dos factos que considerou na decisão, sendo certo que na motivação de facto foi exposto de forma clara e facilmente apreensível todo o processo lógico que conduziu à certeza alcançada sobre os factos integradores do objecto do processo, plasmados na decisão de facto proferida. Assim, não tendo o Tribunal a quo ficado com dúvidas, como não ficou, em relação aos factos provados, não faz qualquer sentido lançar mão do princípio in dúbio pro reo. O que o recorrente pretende, verdadeiramente, é que a convicção do Tribunal recorrido seja substituída por uma outra diferente, seja a sua própria, seja a deste Tribunal de recurso, que leve a que não sejam dados como provados factos que resultaram provados dos autos pelas razões constantes da sentença em crise. Conclui-se, pois, não se mostrar violado o princípio in dubio pro reo nem, por via dele, violada a presunção de inocência constitucionalmente consagrada. Improcede, assim, também nesta parte, o recurso interposto. * 2.5. Da invocada absolvição dos crimes de furto qualificado, na forma tentada, por desistência da tentativa e por tentativa impossível Sobre estas questões suscitadas pelo arguido já o acórdão recorrido se pronunciou nos seguintes termos: (transcrição) (…) Com referência à situação I: - Ao procurar introduzir-se no interior do estabelecimento comercial "Café Avenida", forçando a fechadura da porta entrada, com o propósito de retirar e fazer seus bens que ali encontrasse e onde existiam, designadamente, cerca de €80,00 de fundo de caixa, bebidas, jogos de raspadinhas não activadas no valor de, pelo menos, €1.500,00, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do seu legítimo dono, actuando, deste modo, de forma dolosa, na modalidade de dolo directo - artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal -, apenas não logrando concretizar os seus intentos apropriativos por não ter conseguido estroncar a fechadura do estabelecimento e por essa via abrir a referida porta, logo, por circunstâncias alheias à sua vontade, incorreu o arguido na prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1, 204º, n.º 1, al. f) e n.º 2, al. e), por referência ao artigo 202º, al. d), 22º e 23º, todos do Código Penal. Na perspectiva da Defesa do arguido, existiu uma desistência por parte deste, do crime de furto qualificado inicialmente delineado, circunstância que impede a condenação do mesmo. Somos, porém, do entendimento que não lhe assiste razão. Senão, vejamos. Dispõe o artigo 24.º do Código Penal que «1. A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime»; e que «2. Quando a consumação ou a verificação do resultado forem impedidas por facto independente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se esforçar seriamente por evitar uma ou outra». Face a este normativo, a tentativa de cometimento de um crime, subsumível à previsão dos artigos 22.º e 23.º do Código Penal, pode, não obstante, deixar de ser punível. Basta que o agente desista de prosseguir na execução do delito e que essa desistência seja relevante. Assim, a desistência é relevante quando o agente: - abandone voluntária e espontaneamente a execução do crime isto é, omita a prática de mais actos de execução (desistência voluntária) — cfr. artigo 24.º, n.º 1, 1ª parte; - impeça, voluntária e espontaneamente, a consumação isto é, por actividade própria e voluntária, ainda que com o concurso de outras pessoas, evita que o resultado do crime se produza (arrependimento activo eficaz) — cfr. artigo 24.º, n.º 1, 2.ª parte; - impeça a verificação do resultado não compreendido no tipo no caso de se tratar de crimes formais que se consumam independentemente da produção de resultado material, e o agente tenha mesmo assim evitado, por intervenção própria e voluntária, ainda que com o concurso de estranhos, que se produza o resultado que se segue à acção típica (desistência voluntária em crimes consumados formais) - cfr. artigo 24.º, n.º 1, 3ª parte. - faça um esforço sério para evitar a consumação do crime ou o seu resultado - demonstrado através de actos concretos (não basta a mera intenção) mas, que, todavia, não foi determinante para o evitar (arrependimento activo, mas ineficaz) - cfr. artigo 24.º, n.º 2. Como referem Simas Santos e Leal-Henriques (in "Noções Elementares de Direito Penal", 2.ª Ed., Cap. 3) "a desistência para ser relevante tem que ser espontânea, o que não acontece, v. g., quando o agente foi obrigado a desistir. Mas o que dizer daqueles casos em que o agente que, concretamente, pode ainda continuar com a execução, já compreendeu que dela não extrairá as vantagens que pretendia e por isso desiste? A nosso ver, a solução mais correcta será a de excluir o privilégio da desistência e a sua voluntariedade quando as desvantagens ou os perigos ligados à continuação da execução se revelam segundo a perspectiva do agente desproporcionalmente grandes à luz das vantagens esperadas, de tal modo que seria desrazoável suportá-los (no mesmo sentido Figueiredo Dias, Sumários de Direito Penal, 36). A desistência, então, é perfeitamente inócua sob o ponto de vista criminal." Nesse sentido se pronunciou já o Supremo Tribunal de Justiça, nos acórdãos infra citados, consultáveis na internet em www.dgsi.pt: Ac STJ de 26/3/1998, Proc. n.º 1511/97: «(1) - A desistência só é relevante quando a voluntariedade da mesma pressupõe a possibilidade de eleição entre duas condutas. Essa possibilidade falta não só quando uma delas é impossível, como no caso de abandono da empresa criminosa pela resistência da vítima e ainda quando a conduta diversa apresenta desvantagens ou riscos tais que não podem esperar-se de uma pessoa razoável. (2) - Assim, a desistência é relevante, quando o arguido, ainda que não se saibam os verdadeiros motivos subjectivos, retrocede no seu plano criminoso, podendo livremente optar por prosseguir na sua execução em vez de retroceder.» E no Ac. STJ de 28/10/1998 (Proc. n.º 852/98) onde se afirmou que na desistência da tentativa, não basta que o arguido deixe materialmente de prosseguir na execução do crime, por razões de estratégia dada a dificuldade ou impossibilidade de prosseguir ou até de receio de intervenção de terceiros. Tem de haver uma decisão voluntária, uma atitude interior, espontânea, de revogar a decisão anteriormente formada de cometer o crime, por motivos próprios, assumidos, de reconsideração e não por meras razões de estratégia. O conceito de desistência (da tentativa) - cfr. artigo 24, do Código Penal -, seja necessário ou não um arrependimento efectivo, terá sempre de passar pela exteriorização (e comprovação) de uma atitude voluntária de sustação do desenvolvimento do iter criminis, inequivocamente divisada. Os limites da voluntariedade aferem-se precisamente pela própria essência do conceito: estarem ainda no poder volitivo do agente a não produção definitiva do evento e o não preenchimento total da tipicidade constitutiva do ilícito (cfr. Ac. STJ de 29/10/1998, Proc. n.º 670/98). Na tentativa, a única desistência que penalmente releva, é a voluntária, isto é, aquela em que o agente podendo consumar o crime não quer alcançar essa consumação, já não assim, aquela em que o agente apenas depois de constatar que a situação ilícita por si desencadeada e de que é autor, se não pode produzir, desiste em razão de factos que lhe são estranhos, ocorridos depois do início da execução. (cfr. Ac. STJ de 17/6/1999, Proc. n.º 467/99). Ora, revertendo ao caso dos autos, e perante a factualidade tida como provada, o arguido não desistiu de prosseguir a execução do crime de forma espontânea mas, tão só, porque viu dificultada a sua intenção de penetrar no estabelecimento, por não ter conseguido estroncar a fechadura do mesmo - e tanto assim é que, pouco tempo depois, e ainda na madrugada do mesmo dia, ainda se dirigiu a mais dois estabelecimentos comerciais com a mesma intenção de subtrair bens ou valores que não lhe pertenciam, tal como descrito nas situações descritas em II e III dos factos provados -, pelo que a desistência após a constatação/verificação de que a situação ilícita se não pôde produzir em virtude de factos estranhos ao arguido, surgidos depois do início dos actos de execução, terá de considerar-se a desistência manifestamente irrelevante à luz do artigo 24.º, n.º 1, do Código Penal. Impõe-se, pois, condenar o arguido. Com referência à situação II: - Ao procurar introduzir-se no interior do estabelecimento comercial – posto de abastecimento de combustível da Galp, abeirando-se de uma porta de alumínio que dá acesso às casas de banho, e após, por meio e modo não concretamente apurados, arrombando a mesma, acedendo ao seu interior mas, constatando, que a casa de banho não possuía ligação com o interior da loja da Galp, abandonou o local não logrando assim concretizar os seus intentos apropriativos, actuando com o propósito de retirar e fazer seus bens que ali encontrasse e onde existiam, designadamente, €300,00 em numerário de fundo de caixa, bem corno bens, entre tabaco e produtos alimentares no valor de cerca de €9.000,00, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do seu legítimo dono, actuando, deste modo, de forma dolosa, na modalidade de dolo directo - artigo 14º, n.º 1, do Código Penal -, apenas não logrando concretizar os seus intentos apropriativos por circunstâncias alheias à sua vontade, incorreu o arguido na prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1, 204º, n.º 1, al. f) e n.º 2, al. e), por referência ao artigo 202º, al. e), 22º e 23º, todos do Código Penal Na perspectiva da Defesa do arguido, não poderá o arguido ser punido por tais factos em virtude de ter existido, por parte do mesmo, uma tentativa impossível. Mais uma vez concluímos não assistir razão ao arguido. Vejamos. Dispõe o artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal que "a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime. Segundo o Prof. Figueiredo Dias (in "Direito Penal, Parte Geral", Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2007, a pp. 715 e 716) "o ponto de partida será assim o de que, no caso concreto, a tentativa apesar de na realidade das coisas estar impossibilitada de produzir o resultado típico, é suficiente para abalar a confiança comunitária na vigência e na validade da norma de comportamento (...) que por esta via se alcançará uma justificação da exigência legal, para a impunibilidade da tentativa, de que a inaptidão do meio ou a carência do objecto, se revelem como manifestas". Concluindo o mesmo autor que "sobre a perigosidade decidirá um juízo ex ante, um juízo de prognose póstuma, isto é (...) um juízo levado a cabo por um observador colocado no momento da execução e sabedor de todas as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis do agente (...) podendo por isso aproveitar-se aqui uma formulação (...) segundo a qual a vontade delituosa do agente não conduziria à punibilidade quando a inaptidão do meio ou a carência do objecto fossem visíveis ou manifestas para a generalidade das pessoas de são entendimento. Assim, pois, a tentativa impossível será punível se, razoavelmente, segundo as circunstâncias do caso e de acordo com um juízo ex ante, ela era ainda aparentemente possível ou (como prefere exprimir-se o art.º 23º-3) não era manifestamente impossível". Sobre a mesma questão Faria Costa (in "Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal", CEJ, 1983, p. 165) refere que "o verdadeiro cerne da punibilidade da tentativa impossível reside (...) na avaliação da perigosidade referida ao bem jurídico, sendo certo que nesta hipótese, em boas contas, o bem jurídico não existe, o que há é uma aparência de bem jurídico e neste sentido pareceria que a tentativa impossível, quando não fosse manifesta a inexistência do objecto, também não deveria ser punível, pois que falta o bem jurídico. Todavia tem se fazer apelo, neste ponto, a uma ideia de normalidade - segundo as aparências - que se baseia num juízo ex ante de prognose póstuma. É que, entende-se, dado o circunstancialismo em que o agente actuou o desvalor da acção merece ser punido não obstante não existir bem jurídico. E merece-o porque denotou perigosidade em relação a um bem jurídico ainda que esta assuma a forma de mera aparência. Mas mesmo que assim se não entenda é correcto dizer-se que o direito penal ao visar primacialmente a protecção de bens jurídicos precipitados no tipo legal não pode esquecer, do mesmo passo, que a norma incriminadora - na sua dimensão de determinação - também proíbe as condutas que levam à violação ou perigo de violação daqueles bens jurídicos". Na lição de Germano Marques da Silva (In "Direito Penal Português, Teoria do Crime", Universidade Católica Editora, p. 327): "Trata-se (...) de um ilícito sui generis, um ilícito básico, um crime de perigo abstrato-concreto, pois apenas se exige que os atos de execução sejam em si mesmo capazes de ofender o bem jurídico e só não o ofendendo por circunstâncias anómalas. Só se forem manifestas, patentes, estas circunstâncias anómalas já no momento da execução, não para o autor mas para o homem comum colocado na mesma situação do autor, ou seja, se for manifesto que os atos de execução perpetrados não podem, atentas as circunstâncias do caso, ofender o bem jurídico tutelado pelo crime consumado e por isso consumá-lo é que a tentativa não é punível". Na mesma perspectiva sobre o conceito de manifesta inidoneidade da acção, decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/03/20093, p. n.º 07P1769, disponível em www.dgsi.pt.: "Este conceito de "manifesto" é, então, sinónimo de claro, ostensivo, público ou evidente, não para o agente, mas para a generalidade das pessoas, posto que o primeiro tem que estar convencido da idoneidade do meio, sem o que não é possível imputar-lhe a intenção de cometer o crime; sendo assim, este juízo sobre a aptidão ou inaptidão do meio é um juízo objectivo". O critério da manifesta (ina)adequação da acção ao resultado típico não é, pois, um juízo de representação, subjectivo, do arguido - que tem que estar convencido da idoneidade do meio, sob pena de não ser possível imputar-lhe a intenção de cometer o crime. Mas antes um juízo objectivo, do ponto de vista do cidadão comum suposto pela ordem jurídica, de causalidade adequada da acção para, naquelas circunstâncias, alcançar ou colocar em perigo o resultado previsto no tipo de crime. Sendo certo que no referido juízo não está em causa, apenas, a conexão entre acção e resultado, mas também uma valoração jurídica daquela conexão. Apenas se excluindo os processos causais atípicos que só produzem o resultado típico em virtude de um encadeamento extraordinário e improvável de circunstâncias. Ora, revertendo ao caso dos autos, resulta que o arguido dirigiu-se para as imediações do posto de abastecimento de combustível da Galp, abeirou-se de uma porta de alumínio que dá acesso às casas de banho, e após, por meio e modo não concretamente apurado, arrombou a mesma, acedeu ao seu interior e constatando, que a casa de banho não possuía ligação com o interior da loja da Galp, o arguido abandonou o local não logrando assim os seus intentos. O arguido agiu com a intenção de subtrair e fazer seus bens e valores existentes no interior do estabelecimento comercial, apenas não logrando concretizar os seus intentos por inexistir uma ligação do interior das casas de banho para o interior do estabelecimento. Com efeito, não era previsível, nem para o arguido, nem para qualquer cidadão comum que inexistia tal acesso não sendo de afastar, muito menos manifestamente, em termos da citada impossibilidade, a existência de bens no interior do estabelecimento, almejados pelo arguido, bens esses que ali existiam. Assim, apelando ao referido juízo ex ante, de prognose póstuma, do ponto de vista de um observador normal, colocado naquelas circunstâncias, não só a actuação do arguido não se apresentou manifestamente inadequada para pôr em perigo o resultado típico, como se afigura evidente que, almejando o arguido apropriar-se de qualquer bem com valor económico que pudesse encontrar no interior do posto de abastecimento da Galp, e que ali realmente se encontravam, pôs efectivamente em perigo o bem jurídico tutelado pelo tipo de crime, apenas não o tendo conseguido por factor imponderável. Em face do exposto e em conformidade com o preceituado no artigo 23.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal, é punível a tentativa do furto qualificado, impondo-se, por isso, condenar o arguido. (…) Apreciemos: No que concerne ao conceito de desistência relevante, do ponto de vista da juridicidade do seu conteúdo, a mesma só ocorre quando o agente não dá prosseguimento à execução do crime por sua própria vontade. Por outros palavras, o agente inicia a prática de actos que só não culmina no resultado típico porque desiste da acção.[5] Assim, a desistência só releva neste quadro quando a mesma seja voluntária, no sentido de o agente não sofrer qualquer coacção que se sinta impulsionado a interromper o seu iter criminis. Não há desistência relevante no caso de o agente, após a prática de actos de execução, percebendo os riscos que correrá para obter o êxito a que propôs atingir, conclui que não tem outra alternativa senão obstar no seu prosseguimento[6]. É neste quadro que se diferencia a acção típica de tentativa e de desistência.[7] Posto isto, e no que concerne ao Nuipc n.º 232/20.5PFCSC, a questão não pode ser configurada numa perspectiva de desistência, mas sim, de tentativa, pelo que se adere à posição do Tribunal a quo. E quanto ao Nuipc n.º 247/20.3PFCSC? Preceitua o artigo 23.º, número 3 do Código Penal, sob a epígrafe “Punibilidade da tentativa”: (…) 3 - A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime. Resulta deste normativo que a tentativa não é punível: a) por inaptidão do meio empregado: o objecto material do crime é inepto para alcançar um resultado criminoso.[8] b) por inexistência do objecto essencial à consumação do crime: o bem jurídico inexiste, ou, se existente, torna impossível a consumação.[9] De acordo com este normativo, não há, pois, punição na tentativa impossível, no sentido de que o bem jurídico protegido pela norma acaba por não sofrer qualquer risco. Melhor dizendo, inexiste perigo real para aquele bem jurídico. Sobre esta problemática a doutrina tem elencado três posições: objectiva, subjectiva e da impressão (ou aparência): A teoria subjectiva (elemento psicológico) radica no elemento volitivo do agente. Ou seja, consiste na vontade e consciência de praticar um resultado ilícito, tanto no ponto de vista dos actos preparatórios, como dos actos de execução. No âmbito desta teoria o agente criminoso deve ser punido ainda que no quadro de uma tentativa impossível (obviamente, neste caso, só com a existência de actos de execução preenchidos). E porquê? Porque o elemento volitivo é o mesmo no quadro da tentativa possível e da tentativa impossível. Em suma, o agente é punido com a pena cominada pela tentativa, independentemente de o meio ser ineficaz ou o objecto ser impróprio no quadro de uma tentativa impossível.[10] Para a teoria objectiva, só contam os actos de execução que possam colocar o bem jurídico protegido em perigo.[11] Ou seja, para esta teoria a punição do agente está conexa ao perigo a que o bem jurídico é exposto.[12] Por último, e quanto à teoria da impressão: Esta teoria resulta da combinação das teorias objectiva e subjectiva, tendo como base de punição da tentativa a exteriorização da vontade contrária a uma norma de conduta. Mas não chega para punir uma determinada conduta num quadro da tentativa impossível. Na verdade, a punibilidade da exteriorização dessa vontade dirigida à prática do ilícito, só pode ser sustentada quando a confiança da comunidade na vigência da ordem jurídica possa ser afectada. É o que vulgarmente se evidencia na comunidade jurídica com o brocardo: pune-se a tentativa para consagrar que o mau exemplo dado pelo cidadão não ficará sem punição. Esta teoria tem como elemento principal a confiança e a segurança na ordem jurídica e coloca num patamar secundário o bem jurídico que seria directamente afectado pelo comportamento do agente. É no âmbito desta teoria de impressão que se pune situações em que o agente faz uso de um revólver/pistola de brinquedo em determinados crimes.[13] In casu, e como o acórdão recorrido expende, e bem, apelando ao juízo ex ante, de prognose póstuma, do ponto de vista de um observador normal, colocado nas circunstâncias em que se encontrava o arguido, não só a acção não se apresentou manifestamente inadequada para pôr em perigo o resultado típico, como se afigura evidente que, alcançando o arguido a projectada apropriação de bens (com os valores apurados no acórdão), pôs efectivamente em perigo o bem jurídico tutelado pelo tipo de crime. Só não o tendo conseguido por factor imponderável – a casa de banho do posto de abastecimento de combustível da Galp, sito na Estrada Nacional n.º 294-4, em São Domingos de Rana, propriedade da ofendida MTPB Auto, Lda., de que é sócia gerente MB, não possuía ligação com o interior da loja da Galp. Impõe-se, também nesta parte, a improcedência do recurso. * 2.6. Das medidas das penas parcelares Sobre esta temática, no que concerne aos crimes relativos aos Nuipc n.ºs 230/20.9PFCSC e 229/20.5PDCSC, argumenta o arguido/recorrente que se justifica a sua condenação em penas parcelares fixadas nos seus limites mínimos, atenta a factualidade provada, a culpa do arguido e as circunstâncias qua abonam a seu favor, designadamente não possuir antecedentes criminais, encontrar-se socialmente inserido, ter confessado os factos e ter demonstrado arrependimento sincero. Apreciemos: A matéria de facto encontra-se definitivamente fixada, considerando a improcedência do recurso nesse segmento conforme supra apreciado. É, pois, sobre tal matéria de facto fixada no acórdão recorrido que este Tribunal ad quem se deve fundamentar para apreciar e decidir a questão suscitada. O arguido/recorrente, nas suas conclusões, refere a sua discordância com as medidas das penas parcelares considerando-as excessivas. É pacífico que em matéria de medida da pena o recurso a apreciar pelo Tribunal da Relação mantém, também, o arquétipo de remédio jurídico. Neste quadro, o Tribunal da Relação somente altera o quantum da pena fixada pela 1ª Instância se, e apenas, detectar incorrecções ou distorções no respectivo processo aplicativo, ou na interpretação e emprego das normas legais e constitucionais que regem em matéria de pena. Ou seja, não pode proceder como se o fizesse ex novo; como se inexistisse uma decisão de 1ª instância. A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”[14]. In casu resta, pois, olhar a decisão à luz do entendimento referido. Assim, a fundamentação das penas no acórdão recorrido, no que concerne à fixação das penas parcelares dos Nuipc n.ºs 230/20.9PFCSC e 229/20.5PDCSC, tem o seguinte teor: (transcrição) (…) Ao crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º, n.º 2, al. e), do C.P. corresponde pena abstracta de prisão de 2 a 8 anos de prisão. (…) Ao crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, n.º 1, todos do Código Penal corresponde pena abstracta de prisão de 1 a 8 anos. Importa, assim, determinar a medida concreta das penas a aplicar ao arguido, penas essas que são limitadas pela sua culpa revelada nos factos (cfr. artigo 40º do C.P.), e terão de se mostrar adequadas a assegurar as exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artigos 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1, ambos do Código Penal, havendo que ponderar na determinação daquela medida, todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente as enunciadas no citado artigo 71º, n.º 2, do Código Penal. Assim, há a ponderar: O grau da ilicitude dos factos, que se afigura muito elevado, considerando, designadamente, a reiteração da conduta criminosa, e as consequências resultantes das suas condutas, que atingiram uma gravidade também elevada, sobretudo no tocante às situações descritas em III e IV, tendo em conta o valor dos bens subtraídos e os danos causados nas circunstâncias escritas em I e III para conseguir concretizar a apropriação. O dolo do arguido, que reveste, em todas as circunstâncias, a modalidade de dolo directo, cuja intensidade se revela acentuada, dada a persistência da resolução criminosa. As condições pessoais do arguido, referidas supra. A favor do arguido depõe a circunstância de, ao que tudo indica, encontrar-se a fazer um esforço para se manter abstinente do consumo de substâncias estupefacientes e para se manter laboralmente activo. Igualmente a favor do arguido depõe o facto de não ter antecedentes criminais e de ter confessado os factos, verbalizando arrependimento e denotando, com esta postura, ter interiorizado o desvalor das suas condutas. Há, ainda, que ponderar, as exigências de prevenção, sendo elevadas as de prevenção geral, face à proliferação deste tipo de crimes que se vem registando, gerando sentimentos de insegurança e intranquilidade na comunidade; e sendo também elevadas as de prevenção especial, relativamente ao arguido, tendo em consideração a circunstância do arguido não ter ainda uma situação laboral estável, mantendo um quadro económico-familiar de carência e ainda a sua situação face ao consumo de produtos estupefacientes cuja abstinência ainda é muito recente, o que potencia o risco de praticar factos semelhantes. Ponderando todos estes elementos, julgamos adequadas aplicar ao arguido as penas de: » 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão para o crime de furto qualificado a que se refere a situação III dos factos provados. (…) Ao crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, n.º 1, todos do Código Penal corresponde pena abstracta de prisão de 1 a 8 anos. (…) Não podemos deixar de consignar o total acerto do processo aplicativo das penas parcelares, desenvolvido no acórdão recorrido. Na verdade, este traduz uma correcta compreensão do quadro constitucional e legal punitivo e uma exacta concretização, na aplicação e graduação da pena fixada. Procedeu-se à correcta selecção dos elementos factuais elegíveis, identificação das normas legais aplicáveis, ponderação dos critérios legalmente atendíveis, justificando-se por tudo, de facto e de direito, as penas fixadas. Nas molduras abstractas acima transcritas, as exigências de prevenção geral e especial nunca consentiriam a fixação de penas parcelares abaixo do ponto fixado no acórdão recorrido. Dito isto, decide-se manter o acórdão recorrido, no que concerne às penas parcelares fixadas, que pela sua correcção nenhuma censura nos merece. O recurso, também neste segmento, não merece provimento. * 2.7. Da aplicação do disposto no artigo 82-A do Código Processo Penal Argumenta o arguido que na fixação do arbitramento oficioso a que o artigo 82-A do Código Processo Penal dá guarida não foi cumprido o princípio do contraditório, na vertente dos alegados prejuízos e nexo de imputação desses prejuízos à conduta. Compulsados os autos, e confirmado pelo próprio arguido/recorrente no recurso interposto, o arguido foi previamente notificado pelo tribunal a quo para, no prazo de 20 dias exercer o contraditório “relativamente ao arbitramento de montante indemnizatório pelo Tribunal pelos prejuízos decorrentes dos factos descritos na acusação e caso se venham a provar – artigo 16º, n.ºs, 1 e 2, da Lei nº. 130/2015, de 4 de Setembro e artigo 82º-A, n.ºs 1 e 2 do C.P.P.”.[15] Na sequência de tal notificação o arguido veio pronunciar-se no sentido de ser “prematura a sua notificação nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 82.º - A do CPP, para exercer o princípio do contraditório, relativamente a matéria que não se encontra, fixada, designadamente, danos e prejuízos alegadamente causados, nexo causal, culpabilidade do arguido, correndo-se para além do mais, o sério risco de se violarem direitos fundamentais, como sejam o principio da proibição da auto-incriminação.”. O tribunal a quo decidiu nos seguintes termos: (transcrição) (…) Tomei conhecimento da posição do arguido, na contestação apresentada, relativamente ao exercício do direito ao contraditório referente ao arbitramento de indemnização que lhe foi concedido. Considerando que, em caso de condenação por factos em que sejam vítimas de crimes integrados no conceito de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta (cfr. artigo 67º - A, do Código de Processo Penal), não tendo as vítimas deduzido pedido de indemnização civil e não se tendo oposto ao seu arbitramento, o tribunal tem sempre de fixar uma indemnização, tratando-se de uma fixação oficiosa, sujeita a critérios de equidade e conformada pelos factos constantes da acusação, em relação aos quais incide a produção de prova na audiência de discussão e julgamento, nada mais há a ordenar nesta parte. Notifique. (…) Nos termos previstos no nº 3 do art.º 67º - A do CPP “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.” O artigo 1.º Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro preceitua: 1 - A presente lei aprova o regime aplicável ao adiantamento pelo Estado das indemnizações devidas às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica. 2 - Para efeitos de aplicação da presente lei considera-se: a) Crimes violentos, os crimes que se enquadram nas definições legais de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta previstas nas alíneas j) e l) do artigo 1.º do Código de Processo Penal; (…) Estando em causa crime de roubo, previsto no artigo 210º, n.º 1, do Código Penal, punido com pena de prisão de um a oito anos de prisão, é certo que integra a noção de criminalidade violenta, definida no art.º 1.º, alínea j), do C.P.P. Diremos, desde já, sem desdouro para o esforço argumentativo do arguido/recorrente por entendimento que corrobore a sua posição, não lhe assiste qualquer razão. É pacífico que o arbitramento oficioso de indemnização, no caso de condenação por crimes que envolvem vítimas especialmente vulneráveis, é sempre de atribuir, salvo se a vítima se tiver oposto (ou ela própria tiver deduzido pedido de indemnização civil). In casu, o arguido, face à notificação que lhe foi feita, sabia que caso viesse a ser condenado pelos factos que lhe eram imputados na acusação (dos quais tinha pleno conhecimento), necessariamente teria de ser condenado numa indemnização arbitrada oficiosamente ás vítimas. Não foi o arguido confrontado com nenhuma decisão surpresa. Foi assim cumprido o estatuído no n.º 2 do art.º 82º-A do C.P.P. Nestes termos, o recurso interposto pelo arguido não merece provimento, devendo improceder na totalidade, mantendo-se na íntegra o acórdão recorrido. * III. DECISÃO Em face do exposto, os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, acordam em não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido/recorrente AG___ , mantendo-se na íntegra a decisão recorrida. Custas a cargo da recorrente, fixando em 5 Ucs a taxa de justiça. Notifique. Tribunal da Relação de Lisboa, 9 de novembro de 2022 Alfredo Costa Rosa Vasconcelos Francisco Henriques (Texto elaborado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP). O relator escreve de acordo com a anterior grafia _______________________________________________________ [1] Argumentação que não se compreende, uma vez que a sentença evidencia que o arguido confessou os factos que lhe estão imputados. [2] Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”. Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art.º 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art.º 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”. [3] Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”. [4] Neste mesmo sentido confronte-se o acórdão da RG de 28/06/2004, relatado por Heitor Gonçalves, in www.gde.mj.pt, processo 575/04-1: “… Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas por em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37). …”. [5] A título de exemplo, veja-se o caso do agente que se introduz numa residência e desiste da dos bens que pretendia fazer seus; agente com o carregador da arma totalmente minuciado, para atingir a vitima, e depois de efectuar um disparo sem consequências, desiste de prosseguir a sua acção ilícita. [6] É o caso dos autos. [7] Cfr. art.º 24º do Código Penal. [8] Agente tenta envenenar a vitima com liquido inócuo em vez de arsénico; agente que tenta disparar a arma sem munições. [9] A mulher que pensa estar grávida e pratica actos abortivos. [10] PALMA, MF. Da Tentativa Possível, 2006; 12 (4): 28-35. [11] É o caso previsto no artigo 23º, número 2 do Código Penal. [12] SANCHES, JMS, El nuevo Código penal: cinco questões fundamentais, 1997: 43. [13] DIAS, JF. Direito Penal, Parte Geral, 2007; 2 (8):713-718. [14] Cfr. Figueiredo Dias, DPP “As Consequências Jurídica do Crime” 1993, §254, p. 197. [15] Cfr. despacho proferido no âmbito dos artigos 310º e 311º do Código Processo Penal. |