Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2053/23.4PBOER.L1-5
Relator: RUI POÇAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator)
I - A impugnação do julgamento sobre a matéria de facto tem de obedecer aos requisitos previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, a que acresce a exigência de que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
II – Deparando-se o Tribunal recorrido perante versões contraditórias dos factos, sem que existam meios de prova que permitam dar sustento a uma ou outra das versões, ou credibilizar uma em detrimento da outra, não procede a impugnação da matéria de facto em que a recorrente se limita a reiterar as suas próprias declarações, pois estas não impõem decisão diversa, apenas permitem uma diferente interpretação da prova, com base na valorização da sua versão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Loures do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte foi proferida sentença, com o seguinte teor:
«Pelo exposto, na improcedência da acusação e do pedido de indemnização civil, decide-se:
a) Absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, nº 1, al. b), do Código Penal.
b) Absolver o referido arguido/demandado do pedido de indemnização civil contra ele formulado pela demandante».
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Inconformada, recorreu a assistente BB, formulando as seguintes conclusões:
«1 – Foram incorrectamente julgados os factos elencados como Pontos não provados de 1 a 10.
2 – São as declarações do Arguido, nas passagens de 00:00..4 a 00:00:52,9, 00:00:58.7 da sua prestação oral na sessão de 09,09,2024 de audiência de julgamento, da Assistente nas passagens de 00:31:44.3 a 00:39:19.6 da sua prestação oral na sessão de 09,09,2024 de audiência de julgamento, o depoimento da testemunha CC, nas passagens de 00:10:02,5 a 00:19:26,0, prestado na sessão de 03,10,2024 da audiência de julgamento, que concretamente impõem decisão diversa da recorrida.
3 – A materialidade alinhada nos pontos 1 a 10 dos factos não provados devem ser tidos por verificados e integrarem o acervo fáctico provado.
4 – Os factos provados integram a prática pelo arguido do crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al.) b) do Código Penal, em que é ofendida a Assistente.
5 – Na ponderação dos critérios definidores dos artigos 40.º, n.º 1 e 2, e 71.º, do Código Penal, deve o arguido ser ainda condenado, como autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 1(um) ano de prisão e bem assim nas sanções acessórias de proibição de contacto com a vítima e de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica.
6 – Verificados que se mostram os respectivos pressupostos, e em conformidade com o disposto no artigo 50.º, n.º 1 e 5, do Código Penal, tal pena deverá ser suspensa na sua execução, por igual período de tempo, sujeita a acompanhamento por regime de prova assente num plano de reinserção social executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social e ainda com a obrigação de frequentar o Programa para Agressores de Violência Doméstica a ser executado sob a supervisão da DGRSP, a que acrescerá a sanção acessória de proibição de contactos com a assistente pelo mesmo período.
7 - Nesta conformidade deve o pedido de indemnização ser considerado procedente nos termos peticionados.
8 – Deve, assim, a decisão recorrida ser alterada e substituída por outra nos indicados termos».
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Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
«1º. A recorrente não se conforma com a sentença proferida a quo e alega que a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova ao considerar como não provados determinados factos, entendendo que o arguido deveria ter sido condenado.
2º. Com o devido respeito, a recorrente assenta as suas alegações em juízos conclusivos relativamente aos motivos pelos quais entende que o arguido deveria ser condenado e, realiza uma interpretação da prova testemunhal que não se coaduna com o que efectivamente ocorreu na audiência de discussão e julgamento.
3º. Cada uma das três pessoas que assistiram aos factos e que prestaram declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, apresentou uma versão diferente sobre os mesmos. Foi por esse motivo que não foi possível comprovar a factualidade descrita na acusação.
4º. O relato da assistente permitiu constatar que a contenda foi motivada por um litígio comercial que o arguido e a primeira mantinham à data dos factos. Independentemente da relação amorosa que, segundo os declarantes, tinha terminado, o arguido e a assistente mantinham uma relação comercial e um litígio relacionado com a cedência do espaço onde a recorrida executava a sua actividade comercial e com a entrega de uma impressora.
5º. É inequívoco, porque ninguém o nega, que ocorreu uma contenda com ofensas corporais, contudo, não foi possível provar a dinâmica da contenda e quem é que agrediu quem. Não é claro quem é que iniciou a contenda, quem empurrou quem e não foi possível confirmar qual dos dois, se foi o arguido ou a assistente, o primeiro a actuar fisicamente sobre o outro. Também não resultou claro se a assistente se desequilibrou ou se foi projectada para o solo, atendendo que a sua versão dos factos não foi corroborada nem pelo arguido, nem pela testemunha CC.
6º. É certo que a versão apresentada pela testemunha CC se encontra mais próxima da versão da assistente, sua empregadora, contudo, o relato da testemunha foi ainda bastante diferente do relato da assistente no que concerne à descrição dos factos.
7º. Salvo melhor opinião, não é possível credibilizar qualquer uma das versões em detrimento das outras.
8º. Não foi possível apurar em que contexto foi remetida a mensagem cujo teor é “arrogante da treta, agora desenmerda-te”, “voltas a falar nesses modos em voz alta para terceiros e vais falar com o das caldas” sabendo-se apenas que, na ocasião em que foi remetida a mensagem, o arguido e a assistente já se encontravam desavindos.
9º. Perante as dúvidas suscitadas, não podia o arguido ser condenado.
10º. O Tribunal a quo apreciou de forma correcta e precisa o comportamento da recorrente, de acordo com a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
11º. Em suma, das alegações da recorrente apenas é possível apreender o seu inconformismo quanto à apreciação da matéria de facto, contudo sem razão.
12º. O Tribunal a quo apreciou de forma correcta e precisa as imprecisões que resultaram da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
13º. Simplesmente a recorrente não aceita a fundamentação do Tribunal para absolver o arguido.
14º. A recorrente insurge-se quanto ao facto de o Tribunal a quo em não ter privilegiado as declarações da assistente em detrimento das declarações prestadas pelo arguido.
15º. Conforme resulta do teor da sentença, para a formação da sua convicção, o Tribunal procedeu ao exame crítico e conexo da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nos termos dos artigos 97.º, n.º 5 e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
16º. O Tribunal ponderou os juízos retirados da experiência comum e aplicou critérios de razoabilidade, em consonância com os depoimentos prestados em audiência de julgamento e na prova documental.
17º. Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pela recorrente, afigura-se-nos que a sua discordância assenta na valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
18º. Verifica-se, pois, que a recorrente se prevalece do direito de discordar da apreciação efectuada pelo Tribunal a quo relativamente à apreciação da matéria facto, por discordar quanto ao sentido da convicção do Tribunal, de não ter acreditado na sua versão dos factos.
19º. Esta questão, já há muito que se encontra ultrapassada, quer na doutrina, quer na jurisprudência. Efectivamente, a mera discordância da posição assumida pelo Tribunal quanto à valoração da matéria de facto, por não se conformar com o valor atribuído pelo julgador relativamente a provas que vão em sentido divergente, não constitui fundamento legal de reexame da matéria de facto que, enquanto tal, é insindicável, já que, no nosso entender, não ocorre nenhum dos vícios a que alude o artigo 410.º, do Código de Processo Penal.
20º. Não se verifica em momento algum, uma falha grosseira ou erro na apreciação da prova, conforme alegado pela recorrente, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
21º. O erro notório na apreciação da prova consiste num erro evidente, facilmente detectado, e resultante do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum. O vício tem de resultar, como se referiu, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo que, conforme o exposto, em momento algum, a Sentença proferida a quo padece deste vício.
22º. Efectivamente, à luz do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, na apreciação da prova e partindo das regras da experiência, o Tribunal é livre de formar a sua convicção.
23º. O Tribunal fez uso, na ponderação da prova produzida em julgamento, das regras da experiência comum e na sua livre apreciação.
24º. Reforçando tudo o que foi dito, resulta do artigo 127.º, do Código de Processo Penal, que salvo os casos de prova vinculativa, o julgador aprecia a prova segundo a sua própria convicção, formada à luz das regras da experiência comum. E, só perante a constatação de que tal convicção se configurou em termos errados, é legalmente possível ao tribunal superior alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido.
25º. Ora, os factos dados como provados são conclusões lógicas da prova produzida em audiência e plausíveis face a essas provas.
26º. A convicção assim formada pelo tribunal a quo não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída na base da imediação e da oralidade.
27º. O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório.
28º. O Tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, e os raciocínios aí expendidos merecem concordância e assentam em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova.
29º. Motivo pelo qual, mostra-se, por conseguinte, justa e acertada a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, aderindo o Ministério Público à fundamentação respectiva».
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O arguido respondeu ao recurso da assistente, apresentando as seguintes conclusões:
«I – Defende a Recorrente, no recurso por si apresentado que, o Tribunal “a quo” fez um errado enquadramento factual do caso em concreto, bem como apreciou erradamente os factos sem fundamento nos elementos de prova produzidos e retirou conclusões jurídico-penais inadmissíveis face à factualidade que ela, Recorrente, considera correta, mas, não apresenta, aquela, em concreto e de forma especificada, qual a prova efetivamente produzida segundo a qual deveriam ser dados como factos provados e factos não provados diferentes dos constantes na douta sentença recorrida, bem como quais os factos discutidos nos autos que, em concreto, não foram enumerados e discutidos no mesmo, limitando-se a transcrever breves passagens das suas declarações, de forma seletiva, as que lhe interessam, proferidas em sede julgamento, bem como da testemunha CC, totalmente fora do contexto da totalidade da prova produzida, omitindo, propositadamente, a globalidade das declarações por si produzidas e da referida testemunha, as quais, ao serem analisadas na sua globalidade e contraditadas, é notório que são proferidas de forma consertada e que não são isentas, claras e até acabam por ser contraditórias, sendo impossível, de facto, espelharem a verdade dos factos ocorridos.
II – A verdade é que a douta Sentença impugnada mostra-se corretamente fundamentada, quer no aspeto de facto, quer no direito aplicado, de forma a poder apreender-se plenamente os motivos e o processo lógico-formal que o julgador usou para, de acordo com as regras da experiência comum, formar a sua convicção, sendo que, da prova produzida nos presentes autos, atendendo ao quadro factológico, não poderia resultar outra decisão que não fosse a absolvição do Arguido, tal como foi decidido, tendo o Tribunal “a quo”, e bem, sopesado todos os elementos de prova constantes dos autos, analisado criticamente e comparando-os entre si, de forma a formar a sua convicção de acordo com a conclusão lógica e racional ditada pelas regras da experiência comum e pela lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
III – Não tendo o Tribunal “a quo”, atendendo ao conjunto de provas disponíveis e acessíveis nos autos, margem para qualquer dúvida que o Arguido deveria ser absolvido, tal como decidiu, por ser evidente que o mesmo não praticou o crime de que vinha acusado e por todo o circunstancialismo da relação havida entre Recorrente e Recorrido que foi muito para além de uma relação amorosa, tendo tudo sido bem escamoteado, numa incessante procura pela descoberta da verdade material, o que felizmente se conseguiu atingir!
IV - Da análise das conclusões do recurso, as quais delimitam o objeto do mesmo, verifica-se que as questões suscitadas pela Recorrente, reconduzem-se, a impugnação da matéria de facto, erro de julgamento, e erro na apreciação da prova, por violação do artigo 410.º n.º 2 alínea c) do C. P. P., mesmo não o referindo claramente, pois não invoca o artigo 410.º n.º 1 do C. P. P., julga- se que é essa a sua pretensão, a impugnação da matéria de facto, em que somos a concluir que aquela não cumpre com o ónus da especificação a que obriga o indicado normativo, na medida em que se limita a referir que o Tribunal “a quo” não atentou na versão da Assistente, bem como da sua funcionária, a testemunha CC, e apenas atendeu à versão do Arguido.
V – Ora, se bem analisada e sindicada toda a prova produzida, tal como foi feito pelo Tribunal “a quo”, de forma irrepreensível, verificamos que as versões apresentadas pela Assistente e a sua funcionária, a testemunha CC, são contraditórias, sendo, inclusive, impossível os factos terem ocorrido da forma como as mesmas declararam em sede de julgamento, atendendo ao posicionamento ocupado pela Recorrente e pelo Recorrido, no dia .../.../2023, na loja sita em ..., e até ao espaço físico em que tais factos ocorreram, que inclusive se encontra documentado nos autos através de fotografias, as quais foram essenciais em sede de audiência de discussão e julgamento para se perceber como tudo tinha acontecido.
VI – Tal como, a Recorrente, não conclui, do confronto com a prova de que lança mão com os pontos da matéria de facto dados como provados, a decisão que o Tribunal deveria tomar relativamente a cada um deles, de forma individualizada, considerando-os, provados ou não provados, sendo a sua única intenção a de colocar em causa o processo de formação de convicção do julgador, insindicável pela via do recurso da matéria de direito, procurando, desta forma, impor a sua leitura da prova.
VII – Mas o que interessa sublinhar é que na decisão recorrida, o Tribunal “a quo” estribou a sua decisão na prova produzida em audiência de discussão de julgamento que apreciou segundo as regras da lógica e da experiência, de acordo o preceituado no artigo 127.º do C.P.P., corolário do princípio da livre apreciação da prova, sendo que aquela prova só impunha a absolvição o Arguido do crime de que vinha acusado, não merecendo, por tal motivo, qualquer censura, visto que a mesma cumpre, sem reparos, os requisitos legais a que deve obediência, resultando daquela o processo de formação da convicção do Tribunal “a quo” e o exame crítico das provas que a sustenta, com o recurso ao raciocínio lógico-dedutivo assente na credibilidade que lhe mereceu cada uma das provas que lhe competia analisar, fundamentada nas regras da experiência e em adequados juízos de normalidade, não se detectando qualquer violação de qualquer regra da experiência comum.
VIII – Quanto à questão do erro na apreciação da prova, por violação do artigo 410.º n.º 2 alínea c) do C.P.P., quer a doutrina, quer a jurisprudência consideram que o erro notório deve ser entendido como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do próprio texto da decisão, por si só, ou conjugadamente com as regras da experiência comum, sendo que, na douta Sentença em causa, não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova, pois, não se observa qualquer erro ou contradição entre a matéria de facto e a fundamentação da decisão, entendendo-se que a mesma espelha o acatamento dos ditames plasmados no artigo 127.º do C.P.P., não merecendo, nessa medida, qualquer reparo.
IX – Ainda assim, não se pode deixar de dizer que o recurso apresentado pela Recorrente mais não se trata do que uma defesa generalista acérrima da defesa da criminalização da violência doméstica, sendo que, tal defesa não pode ser feita a todo o custo, nem para todas as realidades, não se aplicando aos presentes autos, visto que, tal como bem apreciado e decidido pelo Tribunal “a quo”, nenhum dos comportamentos tidos pelo Recorrido perante a Recorrente, dados como provados, enquadram nesse tipo de crime em sindicância, nem, diga-se, em qualquer outro tipo de crime, pois, mal andaria o Tribunal, se somente pelo facto de o Recorrido ter dirigido à Recorrente as expressões “arrogante da treta, agora desenmerda-te” e enviado uma mensagem escrita referindo “Voltas a falar nesses moldes em voz alta para terceiros…e vais falar com…o das caldas”, dados como provados nos pontos 3. e 4. dos factos provados, viesse a ser condenado por um crime de violência doméstica, como se tal crime grave e repreensível que realmente é se esgotasse com esses tipos de expressões!».
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Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer.
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Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a questão a decidir consiste em verificar se deve ser alterada a matéria de facto constante dos pontos 1 a 10 dos factos não provados e, por via disso, o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, assim como no pagamento do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente.
DA SENTENÇA RECORRIDA
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada:
«1. O arguido e a BB mantiveram relacionamento amoroso de namoro que se iniciou no mês de ... de 2022, e que findou, em data não apurada, do mês ... de 2023.
2. Nesse contexto, coabitaram, como se casados um com o outro fossem, durante cerca de sete meses, entre ... de 2022 até ...de 2023.
3. Em data não concretamente apurada, mas entre o término do aludido relacionamento e ... de ... de 2023, o arguido dirigiu à BB as seguintes expressões: “arrogante da treta, agora desenmerda-te”.
4. No dia ... de ... de 2023, por volta das 10 horas e 58 minutos, o arguido enviou por telefone uma mensagem escrita à BB do seguinte teor: “Voltas a falar nesses modos em voz alta para terceiros … e vais falar com … o das caldas”.
5. No dia ... de ... de 2023, pelas 10H, na sequência de acordo entre ambos nesse sentido, o arguido compareceu no estabelecimento comercial explorado pela BB, sito na ..., com vista a recolher alguns bens de sua pertença que ali estavam guardados.
6. Nesse contexto, alegando que a BB mantinha em seu poder bens que não lhe queria entregar, o arguido envidou passar além do balcão de atendimento ao público do sobredito estabelecimento, ao que a BB tentou mover oposição.
Com referência ao pedido de indemnização resultou ainda provado:
7. A demandante BB foi assistida no ..., em ..., na Urgência Geral no dia .../.../2023, tendo obtido alta clínica às 20:50 horas, tendo evidenciado hematoma na face interna do braço direito, hematoma em D2 da mão direita, falange distal, sem deformação ou crepitação, com dor em D5-D6.
8. Pelo referido episódio de urgência a dita demandante despendeu a quantia de 40 Euros.
Com referência à contestação resultou ainda provado:
9. O arguido e a dita BB mantiveram ainda uma relação profissional e de negócios.
10. A dita BB sempre se intitulou como …, o que somente mais tarde o arguido veio a descobrir que não o era por pedido de informação à …, conforme comunicação de fls. 94, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
11. Durante a relação que mantiveram o arguido frequentou, por diversas vezes a casa da BB e esta também frequentou a casa do arguido.
Quanto às condições sociais e económicas do arguido provou-se que:
12. Na data dos imputados factos AA residia com a sua atual companheira (DD) com quem mantém vivência marital há cerca de 1 ano e 6 meses, tendo o relacionamento afetivo entre ambos, se iniciado há cerca de 2 anos.
13. As dinâmicas entre o casal que mantém a coabitação e união de fato, são-nos apresentadas, à semelhança do período dos alegados fatos, como sendo sustentadas em laços de afetividade significativa e funcionalmente gratificantes, isentas de conflitualidade, residindo o casal, desde da assunção do relacionamento, em habitação arrendada (cujo contrato se encontra em nome da companheira), uma vivenda com R/c e 1º piso, de tipologia T3, situada num meio sociocomunitário tranquilo, em ....
14. Em termos económicos, o arguido e a companheira apresentavam à data dos imputados factos, uma situação estável e compatível com as despesas fixas do agregado, nomeadamente o valor relativo ao pagamento da renda de casa, no valor de 100 euros mensais, acrescidos de 200/250 euros mensais correspondentes aos encargos com consumos correntes (fornecimento de energia elétrica, gás, água e telecomunicações) e do valor despendido com a alimentação, na ordem dos 300/400 euros mensais.
15. A subsistência do agregado era no período indicado, garantida pelos proventos salariais resultantes da atividade da companheira, como enfermeira, auferindo esta um vencimento líquido estimado em 1300 euros.
16. O arguido mantém as funções, ainda que sem caráter formal e de forma não vinculativa, de …, denominada “...”, atividade que exerce em nome do filho mais novo (sócio da empresa conjuntamente com mais membros, e emigrado em ..., na ...), dispondo para esse efeito, de uma procuração emitida pelo descendente (situação da qual não fez prova documental).
17. No âmbito do desempenho laboral, à semelhança do período em que alegadamente se despoletaram os eventos que resultaram na sua constituição como arguido no presente processo, AA não aufere de qualquer vencimento formal, sendo as suas despesas profissionais asseguradas pela empresa.
18. Com efeito, o atual enquadramento profissional e mantido desde há cerca de 2 anos, resulta de um problema de saúde respiratória, contraído durante o período da crise pandémica COVID 19, quadro de saúde que impede o desempenho laboral em horário integral.
19. Deste modo, o enquadramento laboral encontra-se documentada em declaração emitida pela gerência da supra empresa, emitida em ........2024 (cuja cópia consta do seu dossier individual de utente, na posse da DGRSP), atestando o caráter não vinculativo e não remunerado assumido pelo arguido junto da entidade, sendo somente AA ressarcido das despesas de representação assumidos no desempenho das funções, mediante apresentação da faturação correspondente.
20. O arguido mantinha um relacionamento profissional com a alegada vítima, com quem tinha assumido, nos termos supra descritos, um relacionamento afetivo.
21. AA carateriza a relação afetiva extinta em ... de 2023, com a alegada vítima, como conturbada, tendo-se as dinâmicas degradado progressivamente, culminando no termo do relacionamento, segundo o arguido, por sua iniciativa e de forma cordata.
22. Pese embora a dissolução da relação, AA manteve a relação profissional com a vítima nos autos, salientando-se que foi em contexto profissional que o ex-casal se conheceu.
23. Pese embora o termo do relacionamento afetivo, o arguido e a alegada vítima mantiveram uma relação estritamente comercial, sendo a última, parceira da empresa empregadora do arguido, no ….
24. Membro de fratria de 4 elementos, AA regista um processo de desenvolvimento decorrido, em ..., no seio do agregado de origem, inserido num ambiente familiar estruturado e afetivamente harmonioso, caraterizado por um modelo educacional normativo e orientado para a transmissão de regras e valores morais.
25. A condição socioeconómica do agregado é apresentada como estável e isenta de restrições a relevar, tendo a subsistência familiar sido assegurada com base nos proventos resultantes da atividade laboral do progenitor (… junto de uma família oriunda do mesmo meio sociocomunitário, proprietária de …, nomeadamente na exploração …) e a mãe, …junto do referido agregado.
26. No domínio escolar, o arguido refere a prevalência de uma trajetória estável e empenhada, tendo após conclusão no nível secundário, em idade regulamentar para o efeito, frequentado em contexto laboral e durante o exercício de atividade como estagiário numa ..., em ..., curso médio com duração de 5 anos, que o habilitou como técnico superior de ..., contava AA 23 anos de idade.
27. Em termos profissionais, regista experiência prolongada no sector ... e de ..., tendo iniciado funções durante o período escolar, ainda como estagiário, numa farmácia.
28. A trajetória indicia a prevalência de um espírito empreendedor, tendo assumido atividade de … no sector ... e de …, durante um período considerável, gerindo em sociedade com terceiros, redes de … tanto em território nacional, como estrangeiro (nomeadamente em ..., durante a vigência do segundo casamento).
29. De salientar que a par da atividade no sector ..., AA trabalhou ainda na área de …, em empresas estrangeiras, ligadas a diferentes sectores (como …, entre outras), tendo no âmbito dessas funções, estado emigrado em períodos alternados, em ..., ... e ....
30. Por condicionalismos emergidos na sequência de problemas de saúde respiratória, contraídos durante o período COVID 19, acabaria desistir da sua quota societária como … do ... (denominada ...) iniciada 2012 e manteve até final de 2022, tendo, pelo quadro clínico supramencionado, transferido a quota na sociedade para o filho mais novo, ainda que mantenha de forma não remunerada, as funções anteriores.
31. Em termos afetivos/relações de conjugalidade, AA assumiu relação conjugal em 1992, tendo da constância do casamento, nascido a filha mais velha (atualmente com 30 anos).
32. O casamento acabaria por ser dissolvido por mútuo acordo, em 1997.
33. O arguido viria a refazer vida conjugal com cidadã de origem …, em 2000, durante o período em que residiu em ....
34. Da segunda relação conjugal dissolvida em 2006, nasceria o filho mais novo (com 20 anos, emigrado em ...).
35. No domínio das questões de saúde, excetuando os problemas de índole respiratória, condição onde é clinicamente acompanhado, não é verbalizada a existência de outro quadro clínico a significar, ou de hábitos de consumo a estupefacientes e/ou álcool de forma abusiva.
36. A presente situação jurídico-penal aparenta ser vivenciada por AA, com alguma expectativa face ao desfecho do processo.
37. Ao abordar a instauração do processo e a sua constituição como arguido nos autos, aparenta ao nível verbal dotar-se de capacidade para distinguir comportamentos consonantes com as regras de uma sociedade de direito, de comportamentos desviantes e desfavoráveis às convenções sociais, apresentando-se consciente da gravidade da sua situação jurídico-penal.
38. AA aparenta reunir condições compatíveis com a execução de uma medida em meio livre, denotando dotar-se de competências ao nível da sua capacidade responsiva.
39. A presente situação jurídica penal aparenta não ter assumido impacto negativo ao nível do suporte familiar e enquadramento laboral que detém atualmente.
Quantos aos antecedentes criminais provou-se que:
40. O arguido não tem antecedentes criminais.
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Factos não provados
Da prova produzida em audiência não resultaram provados quaisquer outros factos para além ou em contradição com os supra descritos, e, designadamente, que: Com referência à acusação pública
1. A relação de namoro entre o arguido e BB durou cerca de um ano, e que tal relação findou em ... de 2023;
2. A relação de coabitação entre o arguido e BB ocorreu durante cerca de 8 meses;
3. Para além das situações retratadas nos pontos 3 e 4 dos factos provados, ao longo de todo o período compreendido entre o término do aludido relacionamento e ... de ... de 2023, em várias outras ocasiões, de número e datas não apuradas, tanto de forma presencial como por contacto telefónico, o arguido dirigiu à vítima expressões como “arrogante da treta, agora desenmerda-te”, “voltas a falar nesses modos em voz alta para terceiros e vais falar com o das caldas”.
4. Na ocasião mencionada no ponto 5 e 6 dos factos provados, empregando força muscular, o arguido agarrou a vítima BB pelos braços e empurrou-a, momento em que uma das empregadas ao serviço da vítima, de identidade não apurada, se interpôs.
5. Nesse contexto, a vítima BB desequilibrou-se, embatendo na ombreira de uma porta.
6. Como consequência de tal conduta do arguido, a vítima BB demandou assistência hospitalar, sofrendo dores, e bem assim hematoma na face interna do braço direito e hematoma da mão direita.
7. Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito logrado e reiterado de humilhar e maltratar a vítima BB, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua ex-companheira.
8. Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Com referência ao pedido de indemnização:
9. O arguido, na ocasião mencionada no ponto 5 e 6 dos factos provados galgou (no sentido de passar por cima) o balcão;
10. A partir da data dos factos da agressão em causa a demandante BB passou a recear voltar a encontrar o arguido à porta da sua casa ou na sua loja e voltar a ser humilhada e agredida, pelo que o seu quotidiano foi afetado.
Com referência à contestação:
11. Ente o arguido e a BB nunca existiu uma relação amorosa de namoro ou coabitação, como se casados um com o outro fossem.
12. Um dos equipamentos cuja recolha tinha sido combinada entre o arguido e a BB era uma impressora/fotocopiadora, de marca ..., propriedade do arguido, a qual acabou por não ser recolhida pelo arguido nesse dia, porque a BB não cumpriu com a entrega que estava programada.
13. A dita BB colocou tal equipamento, num armazém em ..., tendo inclusive o equipamento em causa sido entregue propositadamente danificado e inutilizado.
14. O arguido nunca passou para além do balcão de atendimento do dito estabelecimento, contra a vontade da BB.
15. A BB bem sabe que para além de ter devolvido ao arguido um equipamento danificado ainda lhe deve, na presente data, decorrente do negócio de exploração do estabelecimento acima referido que fizeram, o montante de cerca de 13.000 € (treze mil euros)».
FUNDAMENTAÇÃO
Como acima se referiu, a questão a decidir consiste em verificar se deve ser alterada a matéria de facto e, por via disso, o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, assim como no pagamento do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente.
Como é sabido, a impugnação da matéria de facto pode ocorrer por duas vias: a invocação dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP (revista ampliada) e a impugnação ampla a que alude o art. 412.º, n.º 3 e 4 do CCP.
No primeiro caso, estão em causa vícios patentes no texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum.
Já quando o recurso tenha por objeto a impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação do Tribunal de recurso versará a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, pois o recurso não corresponde a um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição de todas as gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída, mas sim um mero remédio corretivo para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida.
É necessário que o recorrente identifique os pontos de facto que considera mal julgados e relativamente a cada um deve ofereça uma proposta de correção para que o tribunal “ad quem” a possa avaliar, procedendo à correção da decisão se as provas indicadas pelo recorrente, relativamente a cada um desses factos impugnados, impuserem decisão diversa da proferida.
Deste modo, a impugnação do julgamento sobre a matéria de facto tem de obedecer aos requisitos prescritos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, que impõe «o ónus de proceder a uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art.º 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na ata, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação, devendo todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas» (Ac. RC de 06/07/2016, Proc. n.º 340/08.0PAPBL.C1, www.dgsi.pt).
Acresce ainda a exigência de que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida, pois a procedência da impugnação, com a consequente modificação da decisão sobre a matéria de facto, não se satisfaz com a circunstância de as provas produzidas possibilitarem uma decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo. Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal.
Tendo presentes estas noções, importa apreciar o caso dos autos.
Desde já, há que referir que a assistente não suscitou qualquer vício previsto no art.º 410.º, n.º 2 do CPP nas conclusões do recurso. Apenas na página 3 do recurso, a recorrente refere que “a decisão padece de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, quer quanto à matéria de facto (erro notório na apreciação da prova), quer quanto à matéria de direito”, e que “a fundamentação da sentença recorrida mostra-se insuficiente, em termos tais que, não permitem à destinatária da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da mesma”.
Os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2 do CPP devem ser apreendidos no texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que não é possível retirar desta alegação, que é puramente conclusiva. A recorrente não enuncia, por referência aos fundamentos de facto e de direito da sentença qualquer trecho onde se possa verificar a contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, erro notório na apreciação da prova ou a insuficiência para a decisão da fundamentação.
Porque tais vícios são de conhecimento oficioso, importa referir que os mesmos não resultam de forma patente da leitura da decisão recorrida, que está corretamente fundamentada, sem vícios de lógica que a comprometam.
Assim, importa entrar na apreciação da impugnação ampla da matéria de facto.
A este propósito, a assistente refere que foram incorretamente julgados os factos elencados como Pontos não provados de 1 a 10, não apresentando uma proposta individualizada de decisão quanto a cada um deles (nomeadamente em conjugação com a matéria de facto provada), concluindo que os mesmos deveriam passar a integrar a matéria de facto provada.
Começa a assistente por invocar que deveriam ter sido considerados provados os pontos 1 e 2 dos factos não provados, com a seguinte redação:
«1. A relação de namoro entre o arguido e BB durou cerca de um ano, e que tal relação findou em ... de 2023;
2. A relação de coabitação entre o arguido e BB ocorreu durante cerca de 8 meses;».
Sobre a relação de namoro e coabitação, consta dos factos provados o seguinte:
«1. O arguido e a BB mantiveram relacionamento amoroso de namoro que se iniciou no mês de ... de 2022, e que findou, em data não apurada, do mês ... de 2023.
2. Nesse contexto, coabitaram, como se casados um com o outro fossem, durante cerca de sete meses, entre ... de 2022 até ...de 2023».
Conforme resulta da fundamentação da decisão de facto, o Tribunal recorrido formou a sua convicção quanto a estes pontos nas declarações do arguido e da assistente, dando por provada a relação de namoro e coabitação desta com o arguido, como se casados fossem.
A única diferença dos pontos 1 e 2 dos factos provados para os pontos 1 e 2 dos factos não provados respeita ao concreto período temporal de duração da relação, não sendo apresentada no recurso prova que imponha ou sequer sugira decisão diversa, pelo que o recurso improcede nesta parte.
Quanto ao ponto 3) dos factos não provados, o mesmo tem a seguinte redação:
«3. Para além das situações retratadas nos pontos 3 e 4 dos factos provados, ao longo de todo o período compreendido entre o término do aludido relacionamento e ... de ... de 2023, em várias outras ocasiões, de número e datas não apuradas, tanto de forma presencial como por contacto telefónico, o arguido dirigiu à vítima expressões como “arrogante da treta, agora desenmerda-te”, “voltas a falar nesses modos em voz alta para terceiros e vais falar com o das caldas”».
Nos pontos 3 e 4 dos factos provados consta o seguinte:
«3. Em data não concretamente apurada, mas entre o término do aludido relacionamento e ... de ... de 2023, o arguido dirigiu à BB as seguintes expressões: “arrogante da treta, agora desenmerda-te”.
4. No dia ... de ... de 2023, por volta das 10 horas e 58 minutos, o arguido enviou por telefone uma mensagem escrita à BB do seguinte teor: “Voltas a falar nesses modos em voz alta para terceiros … e vais falar com … o das caldas”».
Também aqui, o Tribunal recorrido deu por provadas as ditas expressões, com base nas declarações do arguido e numa mensagem de SMS copiada a fls. 161 dos autos. Quanto ao uso das mesmas “em várias outras ocasiões, de número e datas não apuradas, tanto de forma presencial como por contacto telefónico”, há que notar que o Tribunal se viu confrontado entre duas versões contraditórias, a do arguido, que negou os factos, e a da assistente. Não existindo outros meios de prova que permitam dar sustento a uma ou outra das versões, ou credibilizar uma em detrimento da outra, o Tribunal recorrido deu este facto como não provado, por considerar que não existia prova segura da sua verificação.
Quanto a esta matéria, há que referir que a recorrente não apresenta qualquer elemento de prova que imponha decisão diversa, limitando-se a reiterar as suas próprias declarações, o que é manifestamente insuficiente para formular um juízo divergente do efetuado pelo Tribunal recorrido, na medida em que não permite ultrapassar a contradição entre as versões do arguido e da assistente, sem que no caso em apreço seja objetivamente possível atribuir maior peso a uma ou outra.
Assim, a impugnação também improcede quanto a este facto.
Relativamente aos pontos 4 e 5 dos factos não provados, têm os mesmos a seguinte redação:
«4. Na ocasião mencionada no ponto 5 e 6 dos factos provados, empregando força muscular, o arguido agarrou a vítima BB pelos braços e empurrou-a, momento em que uma das empregadas ao serviço da vítima, de identidade não apurada, se interpôs.
5. Nesse contexto, a vítima BB desequilibrou-se, embatendo na ombreira de uma porta».
O Tribunal recorrido considerou estes factos como não provados, porquanto «o arguido negou tais factos, e designadamente, afirmou que não agarrou a alegada ofendida pelos braços nem a empurrou, e embora a alegada ofendida e assistente tenha corroborado em audiência alguns desses factos dados como não provados, bem como a testemunha CC, o certo é que nenhuma das versões logrou plenamente convencer, sendo que tais depoimentos se revelaram contraditórios quanto a aspectos essenciais.
Com efeito, a alegada ofendida e assistente referiu que o arguido lhe deu um único empurrão, com as duas mãos dele no peito dela, e que em decorrência ela embateu com as suas costas na ombreira da porta, e ficou com as costas negras e magoadas, e com a mão negra e inchada, afirmando também que o arguido nessa ocasião dizia: “Eu quero a minha máquina, eu quero a minha máquina” (sic), e disse-lhe ainda: “filha da puta, caralho, foda-se” (sic), e que a testemunha CC que era sua funcionária se encontrava presente e presenciou tudo.
Por sua vez, a testemunha CC disse, além do mais, e na parte que aqui releva, que presenciou o episódio em causa, e que o arguido quando entrou na loja referiu à assistente “eu vou entrar só para lhe dizer uma coisa” (sic), e que não proferiu qualquer outra expressão durante todo o tempo que lá esteve, sendo que instada para esclarecer se ele falou em alguma máquina ou impressora referiu que não. Esta testemunha, contrariamente ao declarado pela alegada ofendida e assistente, referiu ainda que o arguido deu dois empurrões à assistente, empurrando-a com as mãos dele nos ombros da assistente, e que a mesma caiu ao chão quando ocorreu o segundo empurrão, mas depois acabou por dizer que afinal a mesma não caiu ao chão, apenas embateu na umbreira da porta, tendo fletido os joelhos. Mais referiu que após o primeiro empurrão e antes do segundo, o arguido e a assistente se agarraram mutuamente e que o arguido também se desequilibrou, versão essa que não foi corroborada nem pelo arguido, nem pela alegada ofendida.
Ora, tais versões foram contraditórias e nenhuma delas logrou plenamente convencer, e não se diga que as lesões que a alegada ofendida e assistente apresentava e que se encontram documentadas na documentação clínica de fls. 19 e 82, permitem concluir por qualquer agressão por banda do arguido para com a alegada ofendida, e, designadamente, que o mesmo a empurrou, e que foi em decorrência de tal empurrão que a mesma sofreu tais lesões.
Em suma, exaurido o acervo probatório produzido em audiência e tendo-se recorrido a juízos de experiência comum, permanece uma dúvida, insanável, razoável e objectivável - entendida esta como um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva, sobre se o arguido agarrou ou não a alegada ofendida pelos braços e a empurrou, tendo esta se desequilibrado e embatido na ombreira da porta, conforme consta da acusação pública, sendo certo que as versões que a esse respeito foram trazidas a juízo longe de convencerem plenamente o Tribunal não deixam de apresentar cada qual factores de convencimento que desembocam numa situação de dúvida insanável, razoável e objectivável sobre estes mesmos factos, e, por assim ser, a conclusão a retirar não pode deixar de ser a de julgar não provados tais factos imputados ao arguido.
Com efeito, a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de não se ter logrado a prova completa da circunstância que lhe é desfavorável, levando a dar como não provado o(s) facto(s) sobre que recai a dúvida».
Ouvidos os excertos das declarações do arguido, da assistente e do depoimento da testemunha CC indicados pela recorrente (o que se complementou com a audição integral dos registos destes intervenientes, que foram os únicos a presenciar os factos), constata-se a divergência das versões apresentadas por cada um deles, nomeadamente quanto à dinâmica dos acontecimentos, não se vendo que existam quaisquer elementos extrínsecos que permitam atribuir maior credibilidade a uma das versões em detrimento da outra.
Deste modo, importa concluir que as provas indicadas pela recorrente não impõem decisão diversa, apenas permitem uma diferente interpretação, com base na credibilização da versão da assistente. Tal versão não se impõe à decisão do Tribunal recorrido, a qual traduz uma leitura coerente, lógica e assente em regras de experiência comum, que conduziram a uma situação de dúvida razoável, decidida em favor do arguido, pelo que a impugnação improcede quanto a estes pontos.
Quanto ao ponto 6 dos factos não provados («6. Como consequência de tal conduta do arguido, a vítima BB demandou assistência hospitalar, sofrendo dores, e bem assim hematoma na face interna do braço direito e hematoma da mão direita»), a improcedência da impugnação dos dois pontos anteriores importa o mesmo resultado para este facto, apenas se podendo considerar o que consta do ponto 7 dos factos provados («7. A demandante BB foi assistida no ..., em ..., na Urgência Geral no dia .../.../2023, tendo obtido alta clínica às 20:50 horas, tendo evidenciado hematoma na face interna do braço direito, hematoma em D2 da mão direita, falange distal, sem deformação ou crepitação, com dor em D5-D6»).
Quanto aos pontos 7 e 8 dos factos não provados, os mesmos traduzem os elementos subjetivos da imputação, pelo que a sua prova se encontra prejudicada pela resposta dada aos factos antecedentes, devendo ainda anotar-se que decorre das declarações do arguido e da assistente que o episódio ocorrido no dia .../.../2023 tem conexão com uma relação comercial existente entre a assistente e o arguido, quanto à cedência do espaço onde a recorrida executava a sua atividade comercial, onde se encontraria uma impressora do arguido.
Quanto aos pontos 9 e 10 dos factos não provados («9. O arguido, na ocasião mencionada no ponto 5 e 6 dos factos provados galgou [no sentido de passar por cima] o balcão; 10. A partir da data dos factos da agressão em causa a demandante BB passou a recear voltar a encontrar o arguido à porta da sua casa ou na sua loja e voltar a ser humilhada e agredida, pelo que o seu quotidiano foi afetado»), não resulta do recurso a indicação de qualquer prova que imponha decisão diversa.
A assistente discorre ainda sobre as condições sociais e económicas do arguido, questionando o relatório social, embora sem indicar quaisquer meios de prova, pelo que a impugnação neste ponto não tem qualquer substância.
Assim, e em suma, a impugnação da matéria de facto improcede na totalidade.
Deste modo, não existe fundamento para alterar a qualificação jurídica feita pelo Tribunal recorrido no sentido do não preenchimento do crime de violência doméstica previsto no art. 152.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, pois a conduta do arguido é penalmente irrelevante.
De igual modo, fica prejudicada a apreciação do pedido de indemnização civil.
O recurso improcede na íntegra.
DECISÃO
Nestes termos, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar o recurso totalmente improcedente.
Custas pela Recorrente, fixando-se em 3 UC a respetiva taxa de justiça.

Lisboa, 20/05/2025
Rui Poças
Paulo Barreto
Rui Coelho