Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2157/2007-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
MÚTUO
CONTRATO
APREENSÃO DE VEÍCULO
COMPRA E VENDA
SUB-ROGAÇÃO
LIBERDADE CONTRATUAL
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
REGISTO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/27/2007
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- A presunção de que o titular do registo de reserva de propriedade de veículo é o proprietário pode ser ilidida e é o que acontece quando se prova que foi constituída a reserva de propriedade a favor do mutuante por acordo com o mutuário que nunca adquiriu a propriedade do veículo sendo certo que está sujeito a registo a reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis que manifestamente não incluem o contrato de mútuo (artigos 5.º ,alínea b) e 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro conjugados com o artigo 7º do Código do Registo Predial e artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).
II- O princípio da liberdade contratual que consta do artigo 405.º do Código Civil prescreve que as partes se devem conter nos limites da lei e isso não acontece, considerando que o artigo 409.º do Código Civil permite ao alienante reservar para si a propriedade da coisa nos contratos de alienação, desrespeitando-se directamente este comando legal, quando se estipula a reserva de propriedade a favor do mutuante no contrato de mútuo.
III- Admitir a reserva de propriedade fora dos termos prescritos na lei levaria a que a figura da reserva de propriedade viesse a desempenhar uma função de garantia para a qual não foi criada em substituição funcional da hipoteca que a lei expressamente admite tratando-se de veículos automóveis (artigo 4.º/1 do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).
IV- A proximidade entre os contratos de compra e venda e de mútuo quando vendedor e mutuante cooperam a fim de possibilitar ao adquirente do veículo obter financiamento facilitaria, se assim quisessem os intervenientes, o incremento de cooperação por via da sub-rogação do mutuante nos direitos do vendedor quer por intervenção do vendedor (artigo 589.º do Código Civil9, quer por intervenção do comprador (artigo 591.º do Código Civil).
V- O mutuante que vê, assim, ilidida a presunção registal não pode ser beneficiado com a utilização de um meio processual - o procedimento de apreensão de veículo a que se refere o artigo 15.º do Decreto-lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro - ao qual não pode aceder, à luz do direito substantivo, procedimento que respeita e depende da acção declarativa de resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade (artigos 15.,n.º1, 18.º,n.º3 e 19.º, n.º1 do referido DL 54/75).

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO

S.[…] SA instaurou contra,
EPIFÂNIO […], providência cautelar de Apreensão de Veículo Automóvel, pedindo a apreensão do veículo automóvel Fiat, Stilo 1.9 JTD Dynami, com a matrícula […] TN, com fundamento em que no dia 23/05/2005, celebrou com o requerido um contrato que teve por objecto o financiamento de € 21.000,00, quantia destinada à aquisição do referido veículo.
Como condição da celebração desse contrato e como garantia do seu bom cumprimento, foi exigido ao requerido a constituição de reserva de propriedade, a qual foi registada a favor da requerente.
Assim, mantém-se na esfera jurídica da ora requerente a propriedade da viatura, só se transmitindo com o cumprimento do referido contrato, encontrando-se suspensa tal transferência até então.
O requerido não pagou as prestações 2.ª a 6.ª, no valor unitário de € 481,34, pelo que a requerente lhe enviou uma carta, em 05/12/2005, concedendo-lhe um prazo suplementar de dez dias para pagamento.
Decorrido esse prazo, o requerido não pagou nem entregou o veículo.
Citado, o requerido deduziu oposição dizendo que o veículo em causa lhe foi furtado no dia 18/09/2006, do local onde o tinha estacionado, o que participou à P. S. P.
 O Tribunal a quo proferiu decisão indeferindo a providência cautelar requerida com fundamento, em síntese, em que a providência cautelar de apreensão de veículo a que se reporta o art.º 15.º do Dec. Lei n.º 54/75 de 12/02, é dependência de acção em que se peça a resolução do contrato de compra e venda, o que não é o caso dos autos em que está em causa um contrato de financiamento de uma aquisição sob a forma de um mútuo.
Inconformada com essa decisão, a requerente dela interpôs recurso, recebido como agravo, pedindo a revogação da decisão recorrida e o decretamento da providência, formulando as seguintes conclusões:  
1.ª O presente recurso vem interposto de decisão que indeferiu liminarmente a providência cautelar de apreensão de veículo automóvel, requerida nos termos do artigo 15° do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12 de Fevereiro;
2.ª O Meritíssimo Juiz a quo julgou a mesma manifestamente improcedente e nos termos do disposto no artigo 234°, n.º 4 alínea b) e 234°-A n.º 1, indeferiu liminarmente o Requerimento Inicial;
3.ª A Requerente alegou sucintamente os seguintes factos:
- No dia 23 de Maio de 2005 celebrou com o requerido o contrato de financiamento para aquisição de uma viatura de marca Fiat, Stilo 1.9 JTD Dynami, com a matrícula […] TN;
- Como garantia do referido contrato foi inscrita a favor do mutuante reserva de propriedade sobre a mencionada viatura;
- O requerido incumpriu as obrigações que assumiu em virtude do referido contrato, nomeadamente, não pagou as prestações convencionadas;
4.ª Entendeu o Meritíssimo Juiz a quo que não se encontravam reunidos os pressupostos para o decretamento da providência, nomeadamente não se verificava a existência de um contrato de compra e venda;
5.ª Ou seja, para o Meritíssimo Juiz a quo não basta que se verifique a existência de reserva de propriedade inscrita a favor da Requerente, nem que se verifique o incumprimento das obrigações que originaram a mesma, é necessário, também, que a referida reserva de propriedade seja garantia do cumprimento de um contrato de compra e venda resolvido, e não de qualquer outro;
6.ª Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da Lei;
7.ª A reserva de propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo, daqueles cuja finalidade e objecto é financiar um determinado bem, ou seja, quando existe uma interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda;
8.ª Nestas situações, tem-se verificado uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, isto é, o mutuante ao permitir que o comprador pague o preço ao vendedor, sub-roga-se no risco que este correria caso tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações, bem como, nas garantias de que este poderia dispor, no caso, a reserva de propriedade;
9.ª Este entendimento encontra pleno acolhimento no artigo 591.º do Código Civil, bem como, no princípio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405.º do Código Civil, uma vez que, não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor;
10.ª Ora, a própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no n.º 3 do seu artigo 6.º quando refere que "o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda:
(…)
      j) O acordo sobre a reserva de propriedade".
11.ª Entendimento este, que também tem sido sufragado em diversos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, entre os quais destacamos o acórdão de 27-06-2002, consultado na base de dados do Ministério da Justiça em www. dgsi. Pt, cujo n.º de documento é RL200206270053286, e o acórdão de 13-05-2003 consultado na mesma base de dados de que não se encontra disponível o n.º de documento e que teve como relator o Meritíssimo Juiz Desembargador Rosa Maria Coelho;

12.ª Por outro lado, importa esclarecer que, ao contrário do que foi defendido pelo Meritíssimo Juiz a quo, o direito que a Requerente tem de reaver a viatura não decorre das Cláusulas do contrato de mútuo, mas sim da propriedade que tem sobre ela, condicionada é certo, mas ao não se verificar a condição que implicaria a transmissão da mesma para o Requerido, então a propriedade permanece na sua esfera jurídica e é com base nesse direito de propriedade que lhe assiste o direito de reaver a viatura ao abrigo do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 54/75;
13.ª Posto isto, e encontrando-se inscrita a favor da Recorrente reserva de propriedade sobre a viatura que se requereu a apreensão, bem como, estando indiciariamente provado que o Requerido não cumpriu as obrigações que originaram a constituição da reserva de propriedade, sem prejuízo de se apresentarem outras provas, nomeadamente a prova testemunhal, julgamos que se encontram reunidos os pressupostos para o decretamento da requerida Providência cautelar de apreensão de veículos, nos termos do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 54/75;
14.ª Pelo que, a procedência do presente recurso é manifesta.
O requerido contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
O Tribunal a quo sustentou a sua decisão.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS:
0s factos a considerar são os acima descritos sendo certo que a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal da Relação se configura, essencialmente, como uma questão de direito.

B) O DIREITO APLICÁVEL

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).

Atentas as conclusões do agravo, supra descritas a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela agravante consiste, tão só, em saber se a reserva de propriedade pode ser constituída como garantia de um contrato de mútuo cuja finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem e, tendo-o sido, no caso de o mutuário não cumprir as obrigações que lhe advinham da celebração do contrato de mútuo, o mutuante pode utilizar a providência cautelar de apreensão do veículo, nos termos do art.º 15 do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.
 
Vejamos.

I. A figura civilista da reserva de propriedade.
O art.º 408.º, n.º 1 do C. Civil estabelece a regra nos termos da qual, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato (sem necessidade de entrega da coisa).

Esta regra, que é aplicável ao contrato de compra e venda (cfr. art.ºs 874.º e 879.º do C. Civil), conhece, desde logo, a excepção estabelecida pelo art.º 409.º do C. Civil o qual, sob a epígrafe reserva de propriedade, permite ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações da outra parte.

Esta reserva de propriedade tem o seu campo de eleição no âmbito do contrato de compra e venda em que a obrigação de pagamento do preço é fraccionada em prestações (1).

No âmbito deste contrato de compra e venda com fraccionamento do preço em prestações, a reserva de propriedade configura-se, conceptualmente, como uma condição suspensiva que abrange apenas a transmissão da propriedade da coisa (2), a qual só ocorre depois de cumprida integralmente a obrigação de pagamento do preço.

A reserva de propriedade configura-se, neste caso, mais do que uma garantia do bom cumprimento da obrigação de pagamento do preço, numa autêntica retenção do direito de propriedade, favor negotii, destinada a assegurar o vendedor contra os efeitos da aplicação da regra geral estabelecida pelo art.º 408.º, n.º 1 do C. Civil, qual seja, ficar despido do seu direito de propriedade sem receber a contrapartida do preço.

Esta definição da figura da reserva de propriedade impede a sua aplicação ao contrato de mútuo, a favor do mutuante, pela própria natureza do contrato (empréstimo de dinheiro ou de outra coisa fungível - art.º 1142.º do C. Civil), uma vez que não está em causa a alienação de uma coisa.

No caso sub judice, como resulta dos factos articulados pela própria agravante, a apelidada reserva de propriedade foi estabelecida entre mutuante e mutuário para garantia de cumprimento dos deveres deste no âmbito desse contrato.

Como o mutuário não cumpriu as obrigações que deram origem à reserva de propriedade, incumprindo o contrato de mútuo, a agravante arroga-se o direito de propriedade sobre o veículo, que lhe adviria dessa acordada reserva de propriedade, e o consequente direito à sua restituição com a apreensão do veículo nos termos do art.º 15 do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro

A reserva de propriedade em causa supõe a realização, a par do contrato de mutuo, de um contrato de compra e venda entre o mutuário e um terceiro.

Se este contrato de compra e venda é celebrado nos termos da regra geral do art.º 408.º, n.º 1 do C. Civil (sem a aposição da reserva de propriedade a favor do vendedor), a propriedade da coisa transfere-se para o comprador por mero efeito do contrato.

Sendo este proprietário pleno, ab initio, como compreender então a reserva de propriedade a favor do mutuante que, em relação ao contrato de compra e venda é terceiro?

A reserva de propriedade, neste caso, só pode configura-se como uma garantia de cumprimento relativamente à obrigação de restituição da quantia mutuada que impende sobre o mutuário.

E não poderá dizer-se que esta garantia se traduz, afinal, na retenção do direito de propriedade a que acima nos referimos uma vez que não lhe assiste a natureza de condição suspensiva relativamente à transmissão da propriedade da coisa. 

Aliás, a transmissão da propriedade da coisa é pressuposto do estabelecimento dessa garantia, ou seja, o comprador só pode limitar a sua propriedade plena, dando ao mutuante a garantia da reserva de propriedade, depois de adquirir e porque adquiriu a propriedade plena sobre a coisa.

A admitirmos que a reserva de propriedade pode ser constituída nestas circunstâncias, temos de admitir que nos encontramos muito longe do escopo inicial da figura da reserva de propriedade, levando esta a desempenhar uma função para a qual não foi criada (3).

Não obstante, outra pode ser a abordagem da questão.

II. O princípio da liberdade contratual.

A reserva de propriedade em causa nos autos resultou do exercício da liberdade contratual das partes contratantes.

Como dispõe o art.º 405.º do C. Civil, dentro dos limites da lei, as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos, incluir as cláusulas que lhes aprouver e reunir regras de dois ou mais negócios.

Perante uma tal amplitude do princípio da liberdade contratual, a questão que nos vem ocupando revelar-se-ia uma discussão inútil.

Mas não é assim.

No exercício da sua liberdade contratual as partes devem conter-se nos limites da lei.

E não foi isso que aconteceu no caso sub judice em que a agravante, para beneficiar da eficácia do registo em relação a terceiros, nunca tendo sido proprietária, levou a acordada reserva de propriedade ao registo em termos que nestes autos são nebulosos (4), uma vez que neles consta a certidão do registo automóvel declarando a existência da reserva de propriedade mas não os documentos com base nos quais esta foi registada.

Trata-se, por isso, de um mero acto registral sem suporte no direito substantivo uma vez que a agravante nunca foi proprietária do veículo para poder reservar essa propriedade até lhe ser restituída a quantia mutuada.

A realidade assim criada não é merecedora de protecção legal, não podendo a requerente ser beneficiada, com a utilização de um meio processual mais favorável a que de outro modo não poderia aceder (o procedimento de apreensão de veículo a que se reporta o art.º 15 do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).  

Esta conduta configura-se como inábil na aplicação à realidade negocial dos instrumentos legais ao dispor, entre eles, as virtualidades do princípio da liberdade contratual.

III. A sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor.

 A realidade negocial em causa configura-se como um contrato de mútuo, entre agravante e agravado destinado a proporcionar a este a quantia necessária à aquisição a um terceiro de um veículo automóvel.

Atenta a proximidade de tais contratos, que lhes advém do interesse conjunto dos contraentes (5), nada obstava a que, entre estes, fosse acordado o estabelecimento da reserva de propriedade a favor do mutuante ou, utilizando o instituto legal da sub-rogação, para que a agravante pudesse beneficiar da figura da reserva de propriedade, bastava-lhes sub-rogá-la nos direitos do vendedor, entre os quais se incluía a faculdade de reserva de propriedade, quer por intervenção do vendedor (art.º 589.º do C. Civil), quer por intervenção do comprador (art.º 591.º, do C. Civil).

Tratando-se de contratos distintos (de mutuo e de compra e venda), entre contraentes distintos estão, todavia numa relação de proximidade e dependência que facilita o recurso à sub-rogação voluntária prevista em tais preceitos.

Não tendo recorrido a tal sub-rogação voluntária, não beneficiando da sub-rogação legal prevista no art.º 592.º do C. Civil e não tendo acordado a reserva de propriedade com o alienante, não pode, agora, a agravante invocar essa figura jurídica para garantia de cumprimento das obrigações do mutuário.

No caso sub judice não se verificou qualquer sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor.

Podemos, pois, concluir que, não obstante a reserva de propriedade poder ser constituída a favor do mutuante, nas condições descritas, não foi isso que aconteceu no caso sub judice.

Neste, a reserva de propriedade foi constituída a favor do mutuante, por acordo entre este e o mutuário, sendo que o primeiro nunca foi proprietário.

IV. O meio processual eleito e o registo da reserva de propriedade.

 A reserva de propriedade encontra-se registada a favor da agravante e é com base nela que esta invoca o direito de reaver o veículo.

A agravante requereu este procedimento cautelar de apreensão de veículo e respectivos documentos, ao abrigo do disposto no art.º 15.º do Dec. Lei, n.º 54/75 de 12 de Fevereiro, pedindo a apreensão do veículo.

Este meio processual, como se deduz do próprio texto do art.º 15.º, n.º 1 e dos art.ºs 18.º, n.º 3 e 19.º, n.º 1, al. a) do Dec. Lei, n.º 54/75 citado, respeita à acção declarativa de resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade.

Não vislumbramos, pois, como pode a agravante pretender lançar mão do mesmo processo para uma realidade jurídica diferente, qual seja, a do não cumprimento, por parte do mutuário, das obrigações que lhe advieram da celebração do respectivo contrato, em que o único ponto de ligação com a matriz do Dec. Lei n.º 54/75 é o facto prosaico de respeitarem ambas a veículos automóveis.

Trata-se de um equívoco (na eleição do meio processual adequado à realização do direito substantivo) que só é possível no seguimento do equívoco quanto ao registo da reserva de propriedade a favor da requerente e que, por isso mesmo, não é merecedor de qualquer tutela jurisdicional.

Não fora este equívoco registo, não teria a requerente a veleidade de se socorrer do procedimento cautelar de apreensão de veículo.

Não vislumbramos critério interpretativo que conduza à aplicação do procedimento cautelar de apreensão de veículo à situação indiciada nos autos (contrato de mútuo não cumprido) tanto mais que, por um lado, se trata de utilização de um instrumento processual e não de interpretação de lei substantiva e, por outro, não existe qualquer lacuna na lei processual a tal respeito (6).

Como dispõe o art.º 2.º, n.º 2 do C. P. Civil: “A todo o direito... corresponde a acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo... bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”.

Dispõe a agravante dos meios processuais adequados a fazer valer o seu direito (procedimento cautelar e acção declarativa) mas entre eles não se compreende o procedimento cautelar do art.º 15.º citado.

A favor da tese da agravante poder-se-ia ainda objectar que, a partir do momento em que registou a reserva de propriedade goza da presunção registral estabelecida pelo art.º 7.º do C. R. Predial e, portanto, tudo se passa como se na realidade tivesse sido ela o vendedor (e não apenas o mutuante do capital), mas não é assim.

Esta presunção, a existir, encontra-se ilidida nos autos, sabendo-se que a agravante não tem e nunca teve qualquer propriedade sobre o veículo e nem sequer, pretende que seja declarada (ou confirmada) a resolução judicial do contrato de compra e venda do veículo a que, aliás, é estranha.

O que a agravante pretende é ressarcir-se pelo incumprimento do mutuário, utilizando para o efeito o procedimento mais expedito da apreensão do veículo automóvel, servindo-se da reserva de propriedade como garantia imprópria do seu crédito, pois esta não lhe confere qualquer direito de propriedade nem a possibilidade de, com base nela, reaver o que nunca teve, a propriedade do veículo.

E esta pretensão (processual) como se decidiu, entre outros, no Ac. do S. T. J. de 12/05/2005 (7), não é admissível.

Improcedem, pois, as conclusões da agravante.  


3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal da Relação em negar provimento ao agravo, mantendo a decisão recorrida.

Custas pela agravante.


Lisboa, 27 de Março de 2007

(Orlando Nascimento)
(Ana Resende: vencida com declaração de voto infra)
(Dina Monteiro)

Declaração de voto

Considerando que a decisão recorrida se coaduna com a posição tradicionalmente defendida pela jurisprudência, entendo que tal posição, no âmbito de uma interpretação restritiva do nº1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro, omite o âmbito de aplicação do artigo 409.º do Código Civil e não se adequa com as realidades da prática comercial, maxime no que concerne à venda dos veículos, antes se impondo a realização de uma interpretação actualista, e até correctiva, das referidas normas para dar adequada resposta jurídica a situações contratuais como a em causa nos autos

Assim, entendendo como admissível a constituição de reserva de propriedade tendo por finalidade garantir um direito de crédito de terceiro, faz-se, deste modo, a interpretação extensiva do disposto no artigo 18º,nº1 do mencionado DL 54/75, fazendo incluir no âmbito da expressão “ contrato de alienação” o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda que esteve na origem da reserva de propriedade, na consideração de uma relação tripartida, em que os contratos de compra e venda e de financiamento se mostram como que interdependentes.

O entendimento contrário acarreta a própria inutilidade da estipulação da cláusula de reserva de propriedade, nos casos em que a aquisição do veículo é feita com recurso ao financiamento de terceiro, pois tendo a vendedora recebido a totalidade do preço da entidade financiadora, mostrando-se, desse modo, efectivado, o cumprimento integral do contrato de alienação, inexiste fundamento para a resolução  do contrato de alienação e, em conformidade, fazer reverter a favor os alienante a cláusula de reserva de propriedade,,só fazendo esta sentido se entendida como estabelecida para garantir o cumprimento do contrato de financiamento.

Verificando-se na situação sob  análise o registo da reserva de propriedade a favor os mutuante, ora recorrente, daria provimento ao agravo



____________________________________
1.-Cfr. Os art.ºs 781.º e 934.º do C. Civil.

2.-Cfr. Pires Lima e A. Varela, C. Civil anotado, vol. I, 3.ª ed, pág. 357 e A. Varela, anotações na R.L. J. anos 3788 e 3789.

3.-E em substituição funcional de outros institutos jurídicos, como sejam a hipoteca, cfr. art.º 5., n.º 1, al. c) do Dec. Lei n.º 54/75.

4.-Nos casos conhecidos em que esta nebulosidade se dissipou ficou a saber-se que, para lograr obter o registo desta reserva de propriedade, a mutuante se declarou nos documentos apresentados para o registo que era “vendedora” quando na realidade o não era.

5.-O qual é, grosso modo, para o comprador a aquisição do veículo, para o vendedor o recebimento do preço respectivo e para o mutuante a restituição, com remuneração, do seu capital.

6.-Não fazendo, também, sentido falar-se em interpretação actualista da lei ou em interpretação extensiva.

7.-In www. dgsi. pt. Processo 05B538, contendo uma exaustiva resenha da jurisprudência na matéria.