Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | HERMENGARDA DO VALLE-FRIAS | ||
Descritores: | CONTRAORDENAÇÃO DOLO REFORMATIO IN PEJUS CONTRADIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/09/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | I. O que temos é uma decisão judicial que, verificando um vício da decisão administrativa, decide manter a mesma por via do princípio da proibição da reformatio in pejus, previsto no artº 72º-A do citado RGCO. No entanto, a decisão recorrida confunde duas coisas distintas: uma, o facto de a decisão administrativa ser portadora, como concluiu, de um vício a que chamou de «incongruência» mas que fundamenta como contradição e que, a verificar-se, impunha que fosse declarado e suprido ou ordenada a supressão; outra, o alcance do princípio da proibição da reformatio in pejus, que, como decorre dos dispositivo que cita, tem reflexo ao nível da sanção aplicada e nada mais (artº 72º-A, nº 1 citado). II. Como diz Paulo Pinto de Albuquerque, sendo essa a distância a guardar quanto às contraordenações, pode concluir-se que ao dizer-se que a requerente agiu de livre vontade e deliberadamente desacompanhado de quaisquer outros elementos concretizadores, nada em rigor se adianta quanto à caracterização de uma conduta dolosa. E dizer-se que conhecia as proibições legais, fundamentalmente, nada de substancial acrescenta. Os factos que a decisão administrativa deu por assentes e a decisão recorrida manteve, replicando, sem que se concretize a conformação com a infracção e o resultado produzido, mais não são do que uma fórmula demasiado vaga, que não integra um qualquer facto, ainda respeitante à motivação interior do agente interior, susceptível de através dele se afirmar que estamos perante uma conduta dolosa, em qualquer uma das modalidades acima indicadas. O que se impunha para caracterizar o dolo era integrar os factos que o demonstrassem, de forma objectiva, como a circunstância de se saber que o consumidor tem o direito a exigir o livro de reclamações em qualquer momento, tendo o estabelecimento de o facultar de imediato, sem opor qualquer obstáculo a isso, o que a funcionária decidiu não fazer, querendo com isso e visando com isso que não se fizesse constar do mesmo uma reclamação, sabendo que assim violava aquela obrigatoriedade e visando conseguir isso mesmo. Assim, em rigor, com aquela factualidade assim descrita e com a fundamentação a explicar que a infracção é cometida a título negligente, nenhuma contradição existe. III. Há-de ter-se em atenção que quando uma norma jurídica prevê a necessidade de adoptar determinado comportamento que evita um resultado proibido, actua com negligência aquele que, devendo observar o cuidado devido, e estando em condições de o fazer, o omite. O que significa também [porque o agente sabia que devia e podia fazê-lo] que a verificação objectiva da conduta indevida [que integre a tipicidade da norma contraordenacional] permite concluir, por presunção natural, judicial ou de acordo com a experiência, que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos, negligentemente [e sem prejuízo do direito a demonstrar que agiu sem culpa]. Presunção essa que, por decorrente e ilidível, não viola nem constrange a presunção de inocência. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa. Relatório Pelo Juízo Local Criminal de Lisboa – J9 – foi proferida Sentença que decidiu do seguinte modo: (…) a) Julgar a impugnação judicial integralmente improcedente e, em consequência, decide-se manter, nos seus precisos termos, a decisão administrativa recorrida; (…) Inconformada, a Requerida interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: (…) a. Vem a Recorrente interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal a quo que confirma a decisão judicial proferida pela ASAE, que aplicou uma coima no valor de € 4.000,00, pela prática da contraordenação prevista no artigo 3.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Decreto-lei n.º 156/2005, de 15 de setembro. b. Sucede que a decisão proferida pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) padece uma nulidade insanável, em conformidade com o disposto nos no artigo 58.º do RGCO, no artigo 283.º, n.º 3 e 379.º, n.º 1, alínea b), ambos do CPP, ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do RGCO e 79.º do RJCE, e nos artigos 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.ºs 1, 5 e 10, e 268.º n.º 3 e 4 da CRP e 6.º da CEDH. Vejamos, c. A Sentença proferida reconhece que, por um lado, o elemento subjetivo dado como provado na decisão administrativa foi o dolo, contudo, essa mesma decisão condena a Recorrente a título de negligência. d. Adicionalmente, no objeto processual, não existe qualquer facto provado do qual se infira que a atuação da ora Recorrente foi negligente, verificando-se uma manifesta contradição entre o que consta dos factos provados e o que consta da decisão e respetiva fundamentação, motivo pelo qual deveria ser a Recorrente absolvida, conforme já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido em 10.01.2007, no âmbito do Processo n.º 06P2829. e. Esta contradição entre a matéria de facto provada e a decisão referente à culpa da ora Recorrente, que resulta numa condenação por factos diferentes daqueles que constam do objeto processual da acusação, comina com nulidade insanável também a Sentença recorrida. f. O Tribunal a quo, ao considerar que estava impedido de corrigir a decisão administrativa, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus, manteve a decisão nos seus exatos termos, sem atender ao vício de contradição insanável que a inquina. g. Não sendo a decisão administrativa passível de correção, nem passível de remessa à autoridade administrativa para correção, teria, necessariamente de se concluir pela absolvição da Recorrente, conforme já se pronunciaram o Tribunal da Relação de Coimbra, nos Acórdãos proferidos em 04.03.2009, no âmbito do Processo n.º 1184/08.5TBCBR. C1, e em 24.05.2023, no âmbito do Processo n.º 56/13.6GBCNT.C2, o Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão proferido em 23.04.2024, no âmbito do Processo n.º 1190/23.0T8OLH.E1 e o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão proferido em 11.05.2015, no âmbito do Processo n.º 3805/12.6IDPRT.G1. Acresce que, h. Resulta da matéria de facto provada que a conduta sancionada decorreu da atuação de uma trabalhadora da Recorrente, que se traduziu na recusa da entrega do livre de reclamação a uma utente/consumidora. i. Resulta igualmente provado e consta da própria fundamentação que após a comparência no local do gerente da Recorrente, e apesar da anterior recusa, foi imediatamente entregue o livro de reclamações. j. Inexistem quaisquer outros factos provados que permitam imputar a conduta da trabalhadora à ora Recorrente, uma vez que inexiste qualquer elemento que evidencie que a ora Recorrente ou o seu gerente não tenham diligenciado pelo cumprimento das obrigações legais que lhe são impostas. k. Ora, embora o RJCE não preveja especificamente a exclusão da responsabilidade da pessoa coletiva, deve o critério do artigo 11.º, n.º 6, do Código Penal, ser importado para a interpretação do regime previsto no artigo 7.º do RJCE, ex vi artigo 79.º do RJCE e do artigo 32.º do RGCO, uma vez que, tratando de uma interpretação em benefício do arguido, não está proibida pelo princípio da legalidade. l. Não podendo a vontade da pessoa coletiva ser confundida com a vontade do agente singular que atua contra as ordens da pessoa coletiva, não se poderá imputar à pessoa coletiva a prática de uma conduta assumida única e exclusivamente por um agente seu. m. Caso assim não se entendesse, estar-se-ia a admitir a responsabilização objetiva da pessoa coletiva, que à luz do artigo 8.º do RJCE está vedada, porquanto a responsabilidade contraordenacional pressupõe sempre a existência de “censura” (cfr. artigo 1.º, n.º 2, do RJCE). n. Com efeito, é comumente aceite pela doutrina e jurisprudência que a pessoa coletiva só pode ser responsabilizada pela atuação do seu trabalhador, quando este tenha agido no âmbito do exercício de funções, sob a sua subordinação e segundo as instruções recebidas – o que, manifestamente, não resulta dos factos provados e, como, aliás, se reconhece na própria Sentença proferida. o. Perante estes factos, deveria o Tribunal recorrido ter reconhecido a exclusão da responsabilidade contraordenacional da Recorrente e, em consequência, ter concluído pela sua absolvição, em conformidade com o disposto nos artigos 7.º do RJCE, conjugado com o artigo 11, n.º 6, do Código Penal, por remissão do artigo 79.º do RJCE e do artigo 32.º do RGCO. Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, requer-se, muito respeitosamente: a) A revogação da sentença recorrida, com a sua substituição por outra que determine a nulidade da decisão administrativa proferida pela ASAE e, em consequência, determine a absolvição da ora Recorrente; Caso assim não se entenda e sem prescindir, b) Deve ser reconhecida a existência de uma causa de exclusão da responsabilidade contraordenacional e, em consequência, ser a ora Recorrente absolvida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 7.º RJCE, conjugado com o artigo 11.º, n.º 6, do Código Penal, aplicável ex vi artigo 79.º do RJCE e artigo 32.º do RGCO. (…) O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo: (…) 1. A sentença proferida determinou que a alteração para a condenação por dolo eventual constituiria uma agravação do julgado não podendo condenar em medida superior à aplicada pela entidade administrativa. 2. A conduta seria, no mínimo, punível a título negligente, e não se provou ou considerou afastada a culpa da sociedade arguida mantendo-se a condenação, ainda que a título negligente. 3. O acto ilícito imputado à sociedade arguida foi praticado por uma sua funcionária, a qual era responsável pelo estabelecimento comercial na data e momento da prática dos factos o que, atendendo ao seu cargo, teria de ter conhecimento e consciência dos deveres que se lhe impunham e, concretamente, de fornecer o livro de reclamações quando é solicitado. 4. É imputável à sociedade arguida tal conduta porque realizada no âmbito das suas atribuições, por funcionário que lhe estava adstrito e que de si recebia instruções e ordens. 5. Deverá ser mantida a sentença ora recorrida nos seus precisos termos. 6. Não merece provimento o recurso apresentado. (…) *** O recurso foi admitido, com modo e efeito devidos. Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto apôs o seu Visto. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência. *** Objecto do recurso Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005]. Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do artº 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem preferencial: Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (artº 379º do citado diploma legal); Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [artº 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no artº 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal. Finalmente, as questões relativas à matéria de direito. Atenta a natureza específica deste procedimento [contraordenacional] e, conquanto se imponha a aplicação do regime do processo penal, aqueles limites serão atendidos com as necessárias adaptações, desde logo nos termos do disposto no artº 75º do RGCO1 que diz:
A requerida, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões: - nulidade da decisão por contradição entre a fundamentação e a decisão, sendo que nenhum fundamento destina à conclusão a que chegou; - exclusão da responsabilidade da pessoa colectiva por actuação de um seu trabalhador. *** Fundamentação O Tribunal recorrido fixou a matéria de facto do seguinte modo, atenta a decisão impugnada: (…) 1. Ao 20 dia do mês de Agosto de 2021, pelas 17h30m, o estabelecimento de restauração e bebidas, designado comercialmente por “...”, sito na ..., em Lisboa, era explorado pela sociedade recorrente; 2. No mesmo dia e hora, uma patrulha da Polícia de Segurança Pública, nas pessoas do AA, com matrícula n.º 156969, acompanhado pelo elemento policial BB, com matrícula n.º 157625, dirigiram-se ao estabelecimento acima identificado, por determinação do centro de comando e controlo por haver notícia de recusa do livro de reclamações; 3. No local foi contactada CC, identificada no auto de notícia em item testemunha, que se encontrava no interior do estabelecimento ..., cuja propriedade pertence à empresa ..., devidamente identificado em item infractor, que informou ter solicitado o livro de reclamações e que os responsáveis do estabelecimento o tinham recusado; 4. CC informou ainda que o motivo da reclamação era devido ao facto de ter efectuado uma reserva para o jantar e quando chegou para jantar a reserva não estava efetcuada; 5. Foi ainda indagada DD, identificada no auto de notícia em item testemunha, responsável no momento pelo estabelecimento comercial, tendo a mesma confirmado que não iria fornecer o livro de reclamações a CC, pelo que lhe foi solicitado de imediato a identificação para a devida elaboração do respectivo auto de contraordenação; 6. No local compareceu ainda EE, identificado em item testemunha, gerente do estabelecimento comercial, que apesar da recusa anterior, na presença da referida Polícia, forneceu o respectivo livro de reclamações, tendo CC efectuado a reclamação com os n.ºs 27167561 e 27167562; 7. A sociedade arguida em 31 de Dezembro de 2020 era uma pequena empresa já que empregava 17 trabalhadores e nunca foi condenada por infracção igual; 8. Após analisadas todas as peças processuais, constata-se que a sociedade arguida decidiu não entregar o livro de reclamações ao utente, após solicitação deste, e só com a interceção das autoridades policiais é que facultou o respetivo livro, sabendo que com essa conduta violava a lei, conformando-se com tal estado de coisas, agindo desta forma livre, voluntária e consciente. * Inexistem factos não provados. (…) O Tribunal recorrido fundamentou a decisão do seguinte modo: (…) Motivação da decisão de facto A prova da factualidade descrita nos pontos 1 a 7 alicerçou-se na análise dos documentos juntos aos autos, mormente no teor do auto de notícia de fls. 4 a 5, elemento esse idóneo à demonstração de tais factos, sendo ademais certo que a arguida não negou, antes assumiu (sem prejuízo da alegação de que os factos seriam imputáveis a um seu funcionário), a sua prática. Quanto ao ponto 8, os mesmos consideraram-se como provados atentos as regras da lógica e da experiência comum, no sentido em que, enquanto exploradora de um estabelecimento comercial, a arguida assume-se como sendo conhecedora das obrigações legais que lhe são impostas decorrentes da sua própria actividade, devendo diligenciar pelo cumprimento das mesmas. Nestes termos, ao explorar um estabelecimento comercial, dispondo de um livro de reclamações, mas não o disponibilizando quando requerido por utente/consumidor, a arguida assumiu as consequências que daí poderiam advir, sabendo que estava a violar disposição legal que se lhe impunha. * IV. DO DIREITO Determinada a matéria de facto relevante, importa subsumi-la juridicamente. Vem a arguida acusado pela prática de uma contraordenação prevista no artigo 3.º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do DL n.º 156/2005, de 15.09 e punida pelo artigo 9.º, n.º 3, conjugado com o disposto nos artigos 18.º, al. c), subalínea iii) e 19.º, n.ºs 1 e 2, ambos do DL n.º 9/2021, de 29.01. Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do DL n.º 156/2005, de 15.09, todo o “fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a facultar imediata e gratuitamente ao consumidor ou utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado, sem prejuízo de serem observadas as regras da ordem de atendimento previstas no estabelecimento comercial” sendo que, não sendo aquele imediatamente facultado ao consumidor ou utente “este pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para fiscalizar o sector em causa”. Por sua vez, o artigo 9.º, n.º 3 do mesmo diploma legal dispõe que a verificação do acima exposto constitui contraordenação económica muito grave, punível nos termos do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (doravante RJCE) [DL n.º 9/2021, de 29.01]. E ainda que, em caso de negligência, a mesma é punível nos termos do RJCE (n.º 4 da norma legal em apreço). Do artigo 19.º, n.ºs 1 e 2 resulta a classificação das pessoas colectivas para efeitos de classificação de tamanho da empresa, nomeadamente, a alínea b) do n.º 1 considera a categorização enquanto pequena empresa, quando aquela empregue entre 10 e 49 trabalhadores. Por sua vez, o n.º 2 determina o hiato temporal que se deverá atender para apurar da classificação da empresa (no n.º 1) para efeitos de número de trabalhadores. Por sua vez, do artigo 18.º, al. c), subalínea iii) resulta a moldura contraordenacional da coima prevista para pequenas empresas: 8.000,00€ a 30.000,00€. Conforme resulta do artigo 9.º do DL n.º 156/2005, de 15.09, a prática da contraordenação prevista nessa mesma norma poderá ser a título doloso ou a título negligente, sendo que a punição a título negligente (n.º 4) remete para o previsto no RJCE. Como tal, determina o n.º 2 do artigo 8.º do RJCE que, em caso de negligência, “os limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis são reduzidos para metade”. De harmonia com o artigo 15.º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 32.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (doravante RGCO), “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preencha um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”. A negligência supõe, assim, o poder/dever de o responsável, embora não pretendendo cometer a infracção, ter, no entanto, o poder ou a possibilidade de actuar de modo diferente por forma a impedir que ela se verificasse. * Transpondo as precedentes considerações para o caso vertente, dúvidas não se nos suscitam, face à actividade levada a cabo pela sociedade arguida, que a mesma se encontrava obrigada à disponibilização e entrega, quando requerido, do livro de reclamações aos seus consumidores e utentes. * Entende a recorrente, porém, que actuou em erro que, no caso, elimina a sua culpa. A este propósito, rege o artigo 9.º do RGCO que determina, no seu n.º 1 que “age sem culpa quem atua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável” e, por sua vez, que no caso do erro lhe ser censurável, a coima poderá ser especialmente atenuada, conforme previsto no n.º 2 da mesma norma legal. A este propósito, escreve Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 9.º, que “no direito das contraordenações strictu sensu, que incluem as condutas eticamente irrelevantes, o erro sobre a ilicitude tem um campo de aplicação muito reduzido, uma vez que o artigo 8.º já prevê o “erro sobre a proibição”, como causa de exclusão do dolo do tipo. (…) O erro sobre a ilicitude no direito das contraordenações strictu sensu fica, pois, restringido às seguintes situações típicas: (1) o erro sobre a existência e os limites de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa e (2) o erro sobre a validade da norma”. Atendendo a tal, estatui o artigo 8.º, n.º 1 do RGCO que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência” e o seu n.º 2 que “o erro sobre elementos do tipo, sobre a proibição, ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente, exclui o dolo”. Quanto a este normativo em concreto, escreve Paulo Pinto Albuquerque o seguinte: “o erro sobre a proibição é a especialidade do regime do erro no direito das contraordenações, pois supõe o tratamento logo ao nível do dolo do tipo de situações de erro que o direito penal trata, em regra, ao nível do dolo da culpa. Isto deve-se à natureza eticamente neutral do objecto do ilícito contraordenacional, sendo o conhecimento da proibição indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto. Ele inclui as seguintes situações típicas: (1) o erro sobre a ilicitude da ação; (2) o erro sobre a existência de um dever de garante; e (3) o erro sobre o significado dos elementos normativos do tipo”. Porém, a existência de qualquer erro sobre a ilicitude ou sobre elementos do tipo, para poder ser considerada, teria de resultar dos factos provados, o que não se verifica, pelo contrário. Aliás, diga-se, dos factos provados resultaram que quem negou a disponibilização do livro de reclamações era não só funcionária da arguida, como também e de maior importância, a responsável pelo estabelecimento à data e momento da prática dos factos o que, atendendo ao seu cargo, teria de ter consciência, ainda que eventual, que a sua recusa de entrega do livro violaria normas legais. Mais, após a chegada dos agentes de polícia de segurança pública, compareceu junto daqueles o gerente do estabelecimento que forneceu, de imediato, o respectivo livro de reclamações, o que é demonstrativo do conhecimento da norma legal em questão para nortear a conduta lícita. Mais, demonstra a ora arguida consciência das normas legais em apreço não só pelo próprio sector em que desenvolve a sua actividade, como também pelo facto de possuir um livro de reclamações junto do seu estabelecimento comercial e, como invoca na defesa e como supra se sublinhou, pela postura adoptada pelo gerente do estabelecimento comercial aquando da presença dos polícias de segurança pública. No que concerne à invocada exclusão da responsabilidade contraordenacional da arguida por terem sido praticadas condutas contrárias às suas ordens dizer que as pessoas colectivas, ainda que incapazes de actividade física que as concretize, são dotadas de consciência e vontade próprias, devido à sua estrutura organizativa. Como tal, são directa e autonomamente destinatárias das normas que visam proteger os bens jurídicos, sendo, pois, susceptíveis de culpa pela respetiva violação, se assim não se entendesse, não se poderia responsabilizar juridicamente as mesmas. Todavia, atendendo a própria natureza das pessoas colectivas, estão directamente dependentes de comportamentos, activos ou omissivos, levados a cabo por determinadas pessoas singulares. No caso vertente, a arguida alegou que, em abstracto, a política adoptada por si é a de disponibilizar o livro de reclamações sempre que este é solicitado, conforme a legislação vigente sendo que em momento algum são transmitidas instruções aos seus funcionários para não facultarem o livro de reclamações pelo que, a não ter sido disponibilizado, tal teria sido contra as indicações da arguida e por iniciativa dos trabalhadores. Todavia, subsiste, atendendo à factualidade tida como provada, que se negou a disponibilização do livro de reclamações à utente/consumidora da arguida por trabalhadora sua, no local de trabalho daquela, em horário de funcionamento da arguida, o que permite concluir que os factos foram praticados por trabalhadores, no exercício das suas funções. Ora, sendo de se aplicar o previsto no RJCE, por força do disposto no artigo 9.º, n.º 3 do DL n.º 156/2005, de 15.09, aplicar-se-á, a montante, o previsto no n.º 2 do artigo 7.º do RJCE o qual dispõe que “as pessoas colectivas, as associações sem personalidade jurídica e quaisquer outras entidades equiparadas, referidas no número anterior, são responsáveis pelas infracções cometidas em actos praticados, em seu nome ou por sua conta, pelos titulares dos seus órgãos sociais, pelos titulares dos cargos de direcção e chefia e pelos seus trabalhadores, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas, bem como pelas infracções cometidas por mandatários e representantes, em actos praticados em seu nome ou por sua conta”. Pelo exposto, não se poderá a arguida imiscuir da sua responsabilidade contraordenacional porquanto, atendendo aos factos provados, a conduta ilícita verificou-se com a conduta de uma sua trabalhadora. * Assim, não se verificando quaisquer factos excludentes da ilicitude ou da culpa, à luz do enquadramento jurídico ora efectuado, impõe-se a condenação da arguida pela prática da contraordenação que lhe é imputada. * Sem prejuízo, haverá que melhor concretizar o elemento subjectivo, vertido na factualidade apurada versus a condenação determinada à ora arguida. Age com dolo directo quem prevê e pretende intencionalmente a realização do facto. Existe dolo necessário quando o agente sabe que, como consequência de uma conduta que resolve empreender, realizará um facto que preenche um tipo legal de ilícito, não se abstendo, apesar disso, de empreender tal conduta. No dolo eventual cabem os casos em que o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta e, apesar disso, leva a cabo tal conduta, conformando-se com o respectivo resultado (cfr. artigo 14.º, n.ºs 1, 2 e 3, respetivamente, do Código Penal). As categorizações do dolo serão igualmente aplicáveis em sede de regime contraordenacional, conforme o disposto no artigo 32.º do RGCO. Exposto isto, se é certo que o elemento tido como provado resulta, no limite, na integração do conceito de dolo eventual, também será certo que não só na fundamentação de direito a autoridade administrativa desenvolve e concretiza o conceito de actuação a título de negligência, no dispositivo, per se, da decisão, condena pela prática a título de negligência porquanto condena nos termos do artigo 3.º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do DL n.º 156/2005, de 15.09. Ora, daqui resulta uma manifesta e clara incongruência da decisão final (cfr., aliás, já se teria indicado em despacho proferido a 31.10.2024). Todavia, ainda que o artigo 64.º, n.º 3 in fine, do DL n.º 433/82, de 27.10 (doravante RGCO) permita a alteração da condenação pelo Tribunal, também no direito contraordenacional vigora o princípio da proibição da reformatio in pejus, previsto no artigo 72.º-A do RGCO. Ora, atendendo à factualidade tida como provada quanto ao elemento subjectivo da actuação da arguida, bem como à interposição de recurso por si, encontra-se este Tribunal, nos termos do artigo 72.º-A, n.º 1 do RGCO, impedido de proceder à correcção da decisão administrativa que importaria nos presentes autos pois que uma alteração da actuação a título negligente para actuação a título de dolo eventual será sempre mais severa. Assim, impedido que se encontra de proceder à correcção e mantendo a decisão administrativa nos seus termos, isto é, na actuação a título negligente da arguida, importa apurar da medida da coima aplicada, conforme pugnado pela arguida. Prevê o artigo 18.º, al. c), subalínea iii) a moldura contraordenacional da coima em causa, tendo como seu limite mínimo o valor de 8.000,00€ e limite máximo o valor de 30.000,00€. Volvidos a decisão final e a concreta coima aplicada à ora arguida tem-se que a mesma foi condenada em 4.000,00€. Ora, nos termos do artigo 8.º, n.º 2 do RJCE, quando condenada a título negligente, impõe-se a redução a metade dos limites mínimos e máximos previstos, o que, in casu, se verifica, sendo que a coima aplicada à ora arguida representa a redução a metade do limite mínimo aplicável, nada havendo que alterar neste circunspecto. (…) Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do arguido recorrente. • A contradição da decisão recorrida que manteve a condenação administrativa a título negligente quando dos factos resulta conduta dolosa, manutenção essa que determina a existência de contradição na decisão recorrida que, por via disso, é nula: O que a requerida/recorrente vem dizer é que a decisão aqui recorrida, mantendo a condenação administrativa nesses termos, e concluindo esta pela prova de comportamento doloso muito embora condene por negligência, enferma de contradição, o que a torna nula. Vejamos por partes. I. Os poderes de cognição desde Tribunal são os que decorrem do citado artº 75º do RGCO. Sendo certo que, no recurso, a recorrente vem cumprir esses limites, colocando as questões que suscita no âmbito da apreciação de direito feita pela decisão de primeira instância, aqui recorrida. Por outro lado, atenta-se à jurisprudência uniformizada, desde logo constante do Ac. do Supremo Tribunal de Justiça para Fixação de Jurisprudência nº 3/2019, de 02 de Julho, no qual se fixou que [e]m processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa. II. A decisão administrativa consignou nos factos provados: (…) Foi ainda Indagada DD, identificada no auto de notícia em item testemunha, responsável no momento do estabelecimento, tendo a mesma confirmado que não iria fornecer o livro de reclamações a CC, pelo que lhe foi solicitado de imediato a identificação para a devida elaboração do respetivo Auto de Contraordenação. De referir que no local compareceu ainda EE, identificado em item Testemunha, gerente do estabelecimento, que apesar da recusa anterior, na presença da referida Polícia, forneceu o respetivo livro de reclamações, tendo CC efetuado a reclamação com o n° 27167561 e 27167562. (…) E consignou, muito embora fora do capítulo que identifica como «Matéria de facto e de direito» e na fundamentação da matéria de facto e de direito, o seguinte2: (…) Após analisadas todas as peças processuais, constata-se que a sociedade arguida decidiu não entregar o Livro de Reclamações ao utente, após solicitação deste, e só com a intervenção das autoridades policiais é que facultou o respetivo livro, sabendo que com essa conduta violava a lei, conformando-se com tal estado de coisas, agindo desta forma livre, voluntária e conscientemente. (…) E que: (…) A sociedade arguida vem também invocar a nulidade da acusação por não ter havido imputação subjetiva dos factos à sociedade arguida o que violaria os seus direitos. Não havendo ainda uma decisão da autoridade administrativa, uma vez que ainda se está na fase instrutória administrativa, não tem que haver, nesta fase, a comunicação do elemento subjetivo do tipo, mas sim os elementos objetivos do ilícito eventualmente cometido como é o caso das circunstâncias de tempo, o local, descrição dos factos, identificação do infrator, normas violadas e moldura punitiva contraordenacional, o que foi realmente feito. Com estes elementos a sociedade arguida possuía os elementos necessários para se defender, tendo optado por levantar essencialmente questões de forma. (…) Não cabe ainda ao explorador do estabelecimento ajuizar sobre se a reclamação tem ou não fundamento. Tal juízo cabe à entidade que vai analisar a reclamação, que neste caso é a ASAE. A entrega do Livro de Reclamações tem de ser imediata e não estar condicionada a nenhuma circunstância, nomeadamente à apreciação por parte do detentor do Livro de Reclamações sobre a validade da reclamação, cfr. art° 3o, n° 1 b) e n° 3 do D.L. n° 156/2005 de 15 de setembro, na versão em vigor à data dos factos. (…) Já no capítulo da determinação da sanção, deixou dito que3: (…) Da culpa do agente De acordo com o artigo 1.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 9/2021, de 29 de janeiro (RJCE) "Constitui contraordenação económica todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares, relativas ao acesso ou ao exercício, por qualquer pessoa singular ou coletiva, de atividades económicas nos setores alimentar e não alimentar e para o qual se comine uma coima. Este artigo consagra, assim, o princípio da legalidade, nullum crimen e nulla poena sine lege, ou seja, para que a conduta humana assuma dignidade de uma infração é indispensável que coincida formalmente com a descrição feita numa norma que preveja, direta ou indiretamente, a aplicação de uma coima. Este princípio tem como corolário o princípio da tipicidade, isto é, a uma ação deve corresponder um “delito-tipo” objetivamente descritos na lei sancionatória. Deste modo, a contraordenação apresenta como elementos estruturantes uma conduta (ação ou omissão do agente, preenchendo os elementos constitutivos, objetivos e subjetivos), a tipicidade do facto (correspondência ao tipo legal), a ilicitude do facto (desconformidade com as normas jurídicas, consubstanciando um juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar valores essenciais da comunidade) e a culpabilidade (relação subjetiva entre o facto típico e o seu autor, exprimindo um verdadeiro juízo de reprovabilidade sobre a vontade do agente no momento em que atua, podendo revestir as formas de dolo ou negligência, como resulta do estatuído no artigo 8.° RJCE. A culpa do agente é aferida pelos factos e pelas circunstâncias de tempo, de modo e lugar acima descritas e que antecederam e envolveram a prática das infrações, bem como pelas suas consequências nos termos em que resultaram provados, atenta a natureza jurídica dos deveres que a lei pretende impor ao agente. Sobre a culpa, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário ao Código Penal, 2008, Universidade Católica, Lisboa, pág. 234: "(...) a culpa não é um mero juízo analítico, é um factum ético, de maior ou menor gravidade, consubstanciada numa atitude pessoal de contrariedade ou indiferença em relação ao bem jurídico protegido pela norma ou numa atitude pessoal de descuido ou leviandade. (...)”. No primeiro caso trata-se de uma atitude dolosa e no segundo caso de uma atitude negligente. Também para Cavaleiro Ferreira em "Lições de Direito Penal, Parte Geral, IA Lei Penal e a Teoria do Crime no Código Penal de 1982" Editorial Verbo, 1992, pág. 261: 11 A culpabilidade assenta em uma corrupção do processo de formação da vontade, que contraria o dever moral ou jurídico do homem." Ora, a infração por falta entrega do livro de reclamações, é uma infração em que está prevista a punição a título de negligência, cfr. art° 9o, n° 2 Decreto-Lei n° 156/2005, de 15 de setembro, na sua redação atual. Efetivamente e salvo melhor opinião, a conduta da arguida integra precisamente o conceito de negligência que é vista como a falta de cuidado devido e de que era capaz, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei. "A realização do tipo, por via da negligência, decorre de uma '‘desatenção, contrária ao dever, acerca do cuidado exigido no âmbito da relação”. Doutro lado, segundo o critério hoje dominante, a negligência não é ou não é apenas uma forma de culpa (cf Nota 4 ao artigo 13°). Como tipo especial de conduta punível, ela é mais (ou antes) uma forma de conduta e uma forma de culpa (...) Reporta-se, de resto, ao desvalor da conduta e ao desvalor do resultado, no terreno da evitabilidade da realização do tipo - A causação negligente de um resultadoJJ não é o mesmo que "causação + negligência”, porquanto tal igualdade conduziria ao versari in re ilícita, preso a responsabilidade pelo acaso, de todo estranha ao Direito Penal [Wessels, cit. Direito penal-Parte Geral (Aspetos Fundamentais)], 146)", in “Código Penal Anotado e Comentado”, Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Quid Júris, 2008, nota 4 ao artigo 13° e 7 ao artigo 15°, pág. 92 e 99, respetivamente. Com efeito, o art.° 15° do Código Penal (aplicável por força do art° 32° do RGCO) refere que: "Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a. Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou b. Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.” No primeiro caso, trata-se da negligência consciente e no segundo caso da negligência inconsciente. Citando Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa em “Contraordenação - Anotações ao Regime Geral", Vislis editores, 3a edição, pág. 138: ”(...) Negligência consciente quando o agente previu o resultado da conduta mas confiou em que ele não teria lugar ou se mostrou negligente à sua produção (ai a) do art.° 15° do Código Penal); negligência inconsciente quando o agente não previu (como podia e devia) a produção daquele resultado (ai b) do art.° 15 do Código Penal). (...) Existe previsibilidade quando o agente nas circunstâncias em que se encontrava, podia, segundo a experiência geral, ter representado como possíveis as consequências do seu ato, considerando-se este previsível sempre que não escape à perspicácia comum, isto é, quando a sua previsão podia ser exigida ao homem normal, ao homem médio. (...) o que está aqui verdadeiramente em causa é um critério subjetivo e concreto ou individuafizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Ou seja, não obstante a singeleza das obrigações impostas, de fácil adimplemento, a arguida não procedeu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, atuando assim a título negligente. Acresce que, em virtude da sua atividade comercial, a sociedade arguida está obrigada a conhecer os preceitos legais aplicáveis que já se encontravam em vigor há tempo suficiente para que a mesma os interiorizasse. (…) Deste acervo, concluiu o Tribunal de primeira instância estar em presença de uma incongruência da decisão administrativa, mas que a mesma, porque não podia ser agravada do ponto de vista das consequências para o infractor, optou por manter a mesma, muito embora retemperando a coima de acordo com a natureza da infracção que se mantinha, e mantendo ainda a coima porque ajustada às imposições legais aplicáveis. Pelo que, em rigor, o que temos é uma decisão judicial que, verificando um vício da decisão administrativa, decide manter a mesma por via do princípio da proibição da reformatio in pejus, previsto no artº 72º-A do citado RGCO. Parece-nos, no entanto, que a decisão aqui recorrida confunde duas coisas distintas: uma, o facto de a decisão administrativa ser portadora, como concluiu, de um vício a que chamou de «incongruência» mas que fundamenta como contradição e que, a verificar-se, impunha que fosse declarado e suprido ou ordenada a supressão; outra, o alcance do princípio da proibição da reformatio in pejus, que, como decorre dos dispositivo que cita, tem reflexo ao nível da sanção aplicada e nada mais (artº 72º-A, nº 1 citado). Uma coisa e outra, porém, não se equivalem e nem se excluem, quando seja possível resolver a primeira. Ora, se o Tribunal de primeira instância diz que, depois de descrever os factos correspondentes ao elemento subjectivo dolo (ainda que, no limite, dolo eventual), a decisão condena por acto negligente e que isso constitui uma incongruência, e sendo certo que não se vê motivo que justifique não «chamar as coisas pelos nomes» e tendo «as coisas» no direito um específico significado que leva a uma concreta consequência, assentemos em que não existe a figura da «incongruência» quando reportada a vícios decisórios. Mais do que isso, tal «incongruência», porque inexistente, também não podia produzir uma consequência concreta, como a reavaliação da sanção aplicada, pois o que não existe não tem reflexo. Como tal, o Tribunal de primeira instância, a considerar existir vício decisório, como considerou, só podia classificar o mesmo como contradição, tirando daí as consequências que a lei impõe, independentemente de considerar justa ou injusta a pretensão do recorrente. Ao optar por não classificar o vício da decisão administrativa, o Tribunal de primeira instância privou-se, também, de discernir amplamente sobre essa questão que tem um interesse que vai muito além do simplesmente processual. Concluindo-se que a decisão administrativa é passível, como todas as decisões, de sindicância quanto aos vícios que contenha, a forma como a requerente prefigurou a questão, ali como aqui, é a da existência de contradição na fundamentação da decisão [já que não pode ser da fundamentação com a decisão porque, como ficou transcrito, é na motivação que a questão se colocará]. III. Vejamos, no entanto, se estamos perante uma contradição que, por não ter sido sanada, afecta também a decisão aqui recorrida. Ao dar como assente, no que se manteve agora, que: (…) Após analisadas todas as peças processuais, constata-se que a sociedade arguida decidiu não entregar o Livro de Reclamações ao utente, após solicitação deste, e só com a intervenção das autoridades policiais é que facultou o respetivo livro, sabendo que com essa conduta violava a lei, conformando-se com tal estado de coisas, agindo desta forma livre, voluntária e conscientemente. (…) O que a decisão administrativa fez foi enquadrar o elemento subjectivo da infracção de acordo com a expressão genérica do «actuou livre, deliberada e conscientemente, conhecendo a punibilidade da sua conduta», fórmula esta que se generalizou de tal forma que nos faz esquecer o quão de estéril encerra. Dispõe o artº 8º, nº 1, do RGCO que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. Como diz Paulo Pinto de Albuquerque4, o RGCO não consagra as definições do dolo e da negligência. Segundo alguma doutrina, valem no direito das contraordenações as definições legais de dolo e negligência do CP (Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, 2002:112:135 a 138, anotações 3ª e 4ª ao artigo 8º, e António Joaquim Fernandes, 2002:38 e 39). Contudo, os critérios que se usam habitualmente para definir a fronteira entre o dolo criminoso e a negligência criminosa têm uma ressonância ética, como é o caso do critério da “conformação” adoptado pelo CP e não podem, por isso, ser aplicados a condutas axiologicamente neutras, desde logo o atuar conscientemente contra a proibição merece uma pena mais gravosa (…). Portanto, o dolo contraordenacional reside no conhecimento intelectual dos elementos do tipo e no desrespeito pelas proibições ou obrigações legais tuteladas pelas normas contraordenacionais (…). Já Eduardo Correia dizia que as contra-ordenações deveriam ser objecto não de penas propriamente ditas, mas de outro tipo de medidas que exprimam apenas uma censura de natureza social e se traduzam num mal com o sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica5. Ainda que com as necessárias cautelas, simplificando, podemos dizer que da conjugação dos arts. 14º do Cód. Penal com o 32º do RGCO resulta que o dolo pode ser definido grosso modo como o conhecimento e vontade de praticar o facto e pode, aqui como ali, revestir qualquer das modalidades típicas: directo [quando o agente representa o facto que preenche o tipo contraordenacional e actua com intenção de o realizar], necessário [se o agente representa a realização de um facto que preenche o tipo contraordenacional como consequência necessária da sua conduta] e eventual [quando o agente representa a realização de um facto que preenche o tipo contraordenacional como consequência possível da sua conduta mas actua conformando-se com aquela realização]. Seguindo o mesmo sentido, podemos dizer que, ali como aqui (artº 15º do Cód. Penal e 32º do mesmo RGCO), a negligência consiste grosso modo num actuar do agente sem que proceda com o cuidado a que, segundo as circunstâncias concretas, está obrigado e de que é capaz, ou seja, fundamentalmente uma omissão de um dever de cuidado. Ora, ainda que ressalvadas as devidas distâncias, a propósito da descrição factual necessária à caracterização do dolo, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 20.11.2014 veio a dizer que, (…) tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo direto, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual). Ainda que retomando o que dizia Paulo Pinto de Albuquerque, sendo essa a distância a guardar quanto às contraordenações, pode concluir-se que ao dizer-se que a requerente agiu de livre vontade e deliberadamente desacompanhado de quaisquer outros elementos concretizadores, nada em rigor se adianta quanto à caracterização de uma conduta dolosa. E dizer-se que conhecia as proibições legais, fundamentalmente, nada de substancial acrescenta. Estes factos que a decisão administrativa deu por assentes e a decisão recorrida manteve, replicando, sem que se concretize a conformação com a infracção e o resultado produzido, mais não é do que uma fórmula demasiado vaga, que não integra um qualquer facto, ainda respeitante à motivação interior do agente interior, susceptível de através dele se afirmar que estamos perante uma conduta dolosa, em qualquer uma das modalidades acima indicadas. O que se impunha para caracterizar o dolo era integrar os factos que o demonstrassem, de forma objectiva, como a circunstância de se saber que o consumidor tem o direito a exigir o livro em qualquer momento, tendo o estabelecimento de o facultar de imediato, sem opor qualquer obstáculo a isso, o que a funcionária decidiu não fazer, querendo com isso e visando com isso que não se fizesse constar do mesmo uma reclamação, sabendo que assim violava aquela obrigatoriedade e visando conseguir isso mesmo. A ser assim, o que, com certeza, podemos concluir dos factos provados que constam da decisão administrativa e que a decisão aqui recorrida manteve, é que a requerente, e ao não exibir e facultar o livro de reclamações, actuou em violação do dever de cuidado que lhe competia, pois que podia e devia ter actuado de outro modo, agindo assim de forma negligente. Ou seja, a factualidade dada como provada, no sentido que acaba de se expor, não diverge do juízo feito adiante sobre a actuação negligente, quando se diz6: (….) Deste modo, a contraordenação apresenta como elementos estruturantes uma conduta (ação ou omissão do agente, preenchendo os elementos constitutivos, objetivos e subjetivos), a tipicidade do facto (correspondência ao tipo legal), a ilicitude do facto (desconformidade com as normas jurídicas, consubstanciando um juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar valores essenciais da comunidade) e a culpabilidade (relação subjetiva entre o facto típico e o seu autor, exprimindo um verdadeiro juízo de reprovabilidade sobre a vontade do agente no momento em que atua, podendo revestir as formas de dolo ou negligência, como resulta do estatuído no artigo 8.° RJCE. A culpa do agente é aferida pelos factos e pelas circunstâncias de tempo, de modo e lugar acima descritas e que antecederam e envolveram a prática das infrações, bem como pelas suas consequências nos termos em que resultaram provados, atenta a natureza jurídica dos deveres que a lei pretende impor ao agente. Sobre a culpa, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário ao Código Penal, 2008, Universidade Católica, Lisboa, pág. 234: "(...) a culpa não é um mero juízo analítico, é um factum ético, de maior ou menor gravidade, consubstanciada numa atitude pessoal de contrariedade ou indiferença em relação ao bem jurídico protegido pela norma ou numa atitude pessoal de descuido ou leviandade. (...)”. No primeiro caso trata-se de uma atitude dolosa e no segundo caso de uma atitude negligente. Também para Cavaleiro Ferreira em "Lições de Direito Penal, Parte Geral, IA Lei Penal e a Teoria do Crime no Código Penal de 1982" Editorial Verbo, 1992, pág. 261: 11 A culpabilidade assenta em uma corrupção do processo de formação da vontade, que contraria o dever moral ou jurídico do homem." Ora, a infração por falta entrega do livro de reclamações, é uma infração em que está prevista a punição a título de negligência, cfr. art° 9o, n° 2 Decreto-Lei n° 156/2005, de 15 de setembro, na sua redação atual. Efetivamente e salvo melhor opinião, a conduta da arguida integra precisamente o conceito de negligência que é vista como a falta de cuidado devido e de que era capaz, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei. (…) Há-de perceber-se que quando uma norma jurídica prevê a necessidade de adoptar determinado comportamento que evita um resultado proibido, actua com negligência aquele que, devendo observar o cuidado devido, estando em condições de o fazer, o omite. O que significa também [porque o agente sabia que devia e podia fazê-lo] que a verificação objectiva da conduta indevida [que integre a tipicidade da norma contraordenacional] permite concluir, por presunção natural, judicial ou de acordo com a experiência, que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos, negligentemente [e sem prejuízo do direito a demonstrar que agiu sem culpa]. Presunção essa que, por decorrente e ilidível, não viola nem constrange a presunção de inocência7. Ora, impõe o artº 58º, nº1, al. b) do RGCO, que a decisão administrativa condenatória deva conter, entre o mais, a descrição dos factos imputados. Vista a factualidade mantida pela primeira instância, vimos que a mesma contém, na primeira parte da fundamentação da matéria de facto e de direito, como lhe chama, os elementos objectivos que integram a infracção. Aí se faz, ainda, contar a referida formulação genérica quanto à subjectividade que, por carência de conteúdo integrador significante, vai completar-se com o que se diz logo adiante, ainda no mesmo capítulo, sobre a negligência e a violação de dever de cuidado. Assim, a decisão que, nos termos do mesmo dispositivo, deve conter a imputação dos factos, sejam os que sustentam a conduta típica objetiva sejam os que se reportam à culpa do infrator, também é de considerar cumprindo tais exigências, sendo perfeitamente claro o seu conteúdo e imputações, porquanto só dessa forma se asseguram as garantias mínimas de defesa constitucionalmente consagradas no artº 32º, nº10 da Constituição da República Portuguesa. Como se costuma assentar na jurisprudência, sem prejuízo se ser imposta uma fundamentação com as referidas características [desde logo atento o artº 62º daquele RGCO], é facto que o grau e amplitude dessa fundamentação não tem de corresponder necessariamente ao reclamado para a decisão penal. Assim, a natureza do processo contraordenacional admite uma menor exigência quanto à decisão e fundamentação, desde logo no sentido de que pode ser mais concisa e mais diluída em termos de forma. E isto, prende-se desde logo com a natureza administrativa do procedimento inicial, com a necessidade de maior celeridade do mesmo, bem como à sua não incidência na liberdade das pessoas e à mitigada ressonância ético-social da contra-ordenação comparativamente ao crime, de que falámos antes. Do confronto destes elementos, resulta que o facto provado em que se afirma que a funcionaria, sabendo que com essa conduta violava a lei, conformou-se com tal estado de coisas, agindo desta forma livre, voluntária e conscientemente, não é incompatível com o juízo meramente culposo a título de negligência que se segue. Assim, e como se depreende do que antecede, a decisão administrativa não continha nenhum vício que impusesse a intervenção do Tribunal de recurso, a primeira instância. Quer porque dos vícios decisórios, que obedecem ao princípio da tipicidade também, não faz parte a referida «incongruência». Quer porque o vício existente de acordo com a mesma tipicidade, a contradição na fundamentação da decisão, em rigor, também se não verifica. As formas usadas nas decisões de Autoridades administrativas não têm de corresponder ao figurino exigido para o direito penal, como se compreende. Têm apenas de objectivar comportamentos e explicar a que título se imputam, com isso garantindo a plena realização dos direitos de defesa e a eficácia pretendida do processo contraordenacional. Assim, mostrando-se a decisão administrativa sem vícios perceptíveis pela leitura dos respectivos fundamentos, não decidiu bem o Tribuna de primeira instância quando veio dizer: (…) Exposto isto, se é certo que o elemento tido como provado resulta, no limite, na integração do conceito de dolo eventual, também será certo que não só na fundamentação de direito a autoridade administrativa desenvolve e concretiza o conceito de actuação a título de negligência, no dispositivo, per se, da decisão, condena pela prática a título de negligência porquanto condena nos termos do artigo 3.º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do DL n.º 156/2005, de 15.09. Ora, daqui resulta uma manifesta e clara incongruência da decisão final (cfr., aliás, já se teria indicado em despacho proferido a 31.10.2024). (…) IV. Muito embora assim seja, o Tribunal de primeira instância, no entanto, optou por não alterar a decisão administrativa, invocando o princípio da proibição da reformatio in pejus. No que, objectivamente, fundamentou, bem, mas, como vimos, sem necessidade de o fazer porque nenhum vício encerrava a decisão que importasse alteração a esse nível. Pelo que quando, apesar de com uma fundamentação que aqui se rejeitou, mantém a decisão administrativa quanto à fundamentação de facto e de direito, o Tribunal recorrido acabou por assegurar o devido desfecho do processo, precisamente porque decidiu manter intocada, nessa parte, a decisão da Autoridade administrativa. Quanto a isso, como tal, ainda que com fundamento diverso, nada há a apontar ao decidido. Assim, Verificando, no entanto, que havia a necessidade de compatibilizar a fixação da coima com o comportamento negligente imputado – e aqui sim, podendo ter fundamentado e reconhecido uma eventual contradição, não o tendo também feito -, o Tribunal a quo deixou decidido que: (…) Prevê o artigo 18.º, al. c), subalínea iii) a moldura contraordenacional da coima em causa, tendo como seu limite mínimo o valor de 8.000,00€ e limite máximo o valor de 30.000,00€. Volvidos a decisão final e a concreta coima aplicada à ora arguida tem-se que a mesma foi condenada em 4.000,00€. Ora, nos termos do artigo 8.º, n.º 2 do RJCE, quando condenada a título negligente, impõe-se a redução a metade dos limites mínimos e máximos previstos, o que, in casu, se verifica, sendo que a coima aplicada à ora arguida representa a redução a metade do limite mínimo aplicável, nada havendo que alterar neste circunspecto. (…) No que decidiu também correctamente, com recurso à aplicação do artº 18º do RJCE [que procedeu à alteração do diploma regulador], e que invoca para a adequação da coima. Pelo que, no âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal, impõe-se concluir pela improcedência, nesta parte, do recurso. • Quanto à alegada exclusão de responsabilidade da pessoa colectiva pela actuação do seu funcionário: Vem a recorrente dizer que, estando no âmbito de actuação de um seu funcionário, que se recusou a entregar o livro de reclamações ao cliente, e embora o RJCE não preveja especificamente a exclusão da responsabilidade da pessoa coletiva, deve o critério do artº 11º, nº 6 do Cód. Penal ser importado para a interpretação do regime previsto no artº 7º do RJCE, ex vi artº 79º do RJCE e do artº 32º do RGCO, uma vez que, tratando de uma interpretação em benefício do arguido, não está proibida pelo princípio da legalidade, já que não pode a vontade da pessoa coletiva ser confundida com a vontade do agente singular que actua contra as ordens da pessoa coletiva, não se podendo imputar à pessoa coletiva a prática de uma conduta assumida única e exclusivamente por um agente seu. A primeira questão a ter aqui em consideração é que a requerida, ao prescindir da audiência, abriu mão também da prova de quaisquer factos relativos à culpa singular da funcionaria ou da pessoa colectiva. Razão pela qual o segmento em que alega que a sua funcionária actuou contra as ordens que recebeu da recorrente é manifestamente votado ao insucesso, porque não o demonstrou e nem está demostrado, não podendo retirar-se essa conclusão, ainda que por presunção, de qualquer elemento constante do processo. Nem sequer da participação, quando se diz que o livro foi entregue quando compareceu o gerente pois que, como se sabe, tal ocorreu já na presença do OPC, o que não permite concluir se a funcionária tinha, ou não, ordens da empregadora para dificultar o acesso/recusar a apresentação do livro de reclamações. Nesse segmento, como tal, é inviável a pretensão da recorrente. Mas importa saber se, apesar disso, existe algum argumento legal que exclua a responsabilidade da empresa neste caso. Recorda-se o princípio geral de direito assumido pelo artº 551º nº1 do Código do Trabalho estabelece que o empregador é o responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respetivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos. É certo que não são estas as contraordenações aqui em causa. Mas o princípio é demonstrativo de que o legislador aceita como princípio o de que, estando às ordens e serviço do empregador, a desempenhar as funções para que foi contratado, o comportamento do empregado, perante terceiros, é da responsabilidade do empregador. Aliás, aceitando a paridade de argumentos com a situação frequente do direito civil, quando em causa esteja o comissário e o comitente (artº 500º, nº 2 do Cód. Civil). Mas vamos adiante. Recorda-se que no preambulo do diploma 156/2005 se diz que: (…) O presente diploma dispõe que o dever de remeter a queixa recai sobre o prestador de serviços ou o fornecedor do bem. No entanto, com o objectivo de assegurar que a reclamação chega, de facto, à entidade competente, o diploma permite que o consumidor envie ele próprio também a reclamação. Para tanto, é reforçado o direito à informação do consumidor, quer através da identificação no letreiro da entidade competente quer na própria folha de reclamação que contém explicitamente informação sobre aquela faculdade. São, assim, reforçadas as garantias de eficácia do livro de reclamações, enquanto instrumento de prevenção de conflitos, contribuindo para a melhoria da qualidade do serviço prestado e dos bens vendidos. (…) Assumindo-se directamente que o visado pela responsabilidade acometida é a entidade prestadora do serviço, neste caso a requerente, que é, nos termos do diploma, aquela que tem a obrigação primeira de assegurar o destino inclusivamente da reclamação. E diz a decisão recorrida: (…) No caso vertente, a arguida alegou que, em abstracto, a política adoptada por si é a de disponibilizar o livro de reclamações sempre que este é solicitado, conforme a legislação vigente sendo que em momento algum são transmitidas instruções aos seus funcionários para não facultarem o livro de reclamações pelo que, a não ter sido disponibilizado, tal teria sido contra as indicações da arguida e por iniciativa dos trabalhadores. Todavia, subsiste, atendendo à factualidade tida como provada, que se negou a disponibilização do livro de reclamações à utente/consumidora da arguida por trabalhadora sua, no local de trabalho daquela, em horário de funcionamento da arguida, o que permite concluir que os factos foram praticados por trabalhadores, no exercício das suas funções. Ora, sendo de se aplicar o previsto no RJCE, por força do disposto no artigo 9.º, n.º 3 do DL n.º 156/2005, de 15.09, aplicar-se-á, a montante, o previsto no n.º 2 do artigo 7.º do RJCE o qual dispõe que “as pessoas colectivas, as associações sem personalidade jurídica e quaisquer outras entidades equiparadas, referidas no número anterior, são responsáveis pelas infracções cometidas em actos praticados, em seu nome ou por sua conta, pelos titulares dos seus órgãos sociais, pelos titulares dos cargos de direcção e chefia e pelos seus trabalhadores, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas, bem como pelas infracções cometidas por mandatários e representantes, em actos praticados em seu nome ou por sua conta”. Pelo exposto, não se poderá a arguida imiscuir da sua responsabilidade contraordenacional porquanto, atendendo aos factos provados, a conduta ilícita verificou-se com a conduta de uma sua trabalhadora. (…) E com inteira razão. Decidiu a Relação do Porto8 que [o] facto de a entrega do livro de reclamações ter sido negada por um mero trabalhador da empresa proprietária do estabelecimento não afasta a responsabilidade desta, salvo quando a mesma demonstre que esse trabalhador agiu contra a sua vontade. Outro entendimento levaria inevitavelmente à irresponsabilidade de todas as pessoas coletivas neste tipo de infrações, anulando os objetivos da lei. Da conjugação dos ns. 1 e 3 do artº 3º do DL nº 156/2005 citado, resulta que utente e consumidor, para efeitos desse diploma, é todo aquele que pretende que lhe seja prestado um serviço ou fornecido um determinado bem, ou o utilizador do bem ou dos serviços. Melhor do que nós, disse o Acórdão de 2018-09-24 (Processo nº 722/18.0T8BRG.G1), de 24 de Setembro9: (…) Dispõe o artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, que “As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.”. Como vem referido no acórdão do TRP de 24/01/2007, in www.dgsi.pt (no qual vêm citados FF - A Responsabilidade Penal Das Pessoas Colectivas, Direito Penal Económico, ciclo de Estudos, Coimbra, 1985, p. 156 -, GG - As Pessoas Colectivas em face do Direito Criminal e do chamado Direito de Mera Ordenação Social, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 223 - e HH - Manual de Direito Administrativo, p. 154), “A responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas ou equiparadas não tem carácter objectivo, já que pressupõe a prática do facto típico pelos seus «órgãos» no exercício das suas funções, ou seja, «uma mens rea» e esta só tem sentido quando referida a pessoas singulares. Daí que a expressão “órgãos” deva ser identificada com as pessoas físicas que, enquanto tais, actuam em nome do ente colectivo». No preenchimento do conceito, a generalidade da doutrina aponta para pessoas que estatutariamente ou de facto praticam actos imputáveis à pessoa colectiva ou, por outras palavras, que integrem a vontade da pessoa colectiva. Ou seja, as pessoas físicas que integram «os centros institucionalizados de poderes funcionais a exercer pelo indivíduo ou colégio de indivíduos que nele estiverem providos com o objectivo de exprimir a vontade juridicamente imputável a essa pessoa colectiva».”. Nas palavras de II (Teoria Geral da Relação Jurídica, I Volume, Coimbra 1970, págs. 143 e segs.), igualmente citado no aludido acórdão, “A vontade do órgão é referida ou imputada por lei à pessoa colectiva, constituindo, para o Direito, a própria vontade desta pessoa. Correspondentemente, os actos do órgão valem como actos da própria pessoa colectiva, que assim agirá mediante os seus órgãos jurídicos, do mesmo modo que a pessoa singular actua e procede através dos seus órgãos físicos. Se os indivíduos encarregados de gestionar os interesses da pessoa colectiva são órgãos dela, os factos ilícitos que pratiquem no âmbito das suas funções serão actos da mesma pessoa; a culpa com que tenham procedido será igualmente culpa dessa pessoa; e sobre esta recairá a competente responsabilidade civil e criminal, que será, para o Direito, responsabilidade pelos próprios actos e pela própria culpa, que não por actos e por culpa de outrem. Mas, verdadeiros órgãos serão as pessoas físicas que têm a seu cargo decidir e actuar pelas pessoas colectivas. (...) dos órgãos há que distinguir os simples agentes ou auxiliares, que só executam por incumbência ou ainda sob a direcção dos órgãos deliberativos e principalmente dos representativos, determinadas operações materiais que interessam à pessoa colectiva. São simples agentes ou auxiliares os operários, os empregados (que podem ser técnicos de alta qualificação) e outros profissionais a cujos serviços a pessoa colectiva ocasionalmente recorra, como mandatários, os advogados constituídos para quaisquer litígios em que a sociedade seja pleiteada, etc.”. A jurisprudência e a doutrina têm, no entanto, entendido que o preceito do nº2 do artigo 7º do Regime Geral das Contra-Ordenações deve ser interpretado extensivamente de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa colectiva ou equiparada, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas. Na verdade, decidiu-se no Ac. RC de 9/11/2011, in www.dgsi.pt que “As pessoas colectivas ou equiparadas são responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções, nestes se integrando os trabalhadores ao seu serviço, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas.” O caso tratado nesse aresto tinha a ver precisamente com a não disponibilização do livro de reclamações ao utente por parte de um trabalhador de uma sociedade, tendo-se considerado que o rosto da empresa eram os trabalhadores, sendo estes que praticam ou omitem os actos susceptíveis de censura contra-ordenacional. Concretamente, escreveu-se o seguinte: “Se fizermos uma interpretação restritiva da norma como pretende a recorrente estamos a levar à irresponsabilidade das sociedades pois, sempre que os actos ou omissões forem praticados pelos seus trabalhadores, independentemente de serem ou não praticados de acordo com as instruções da entidade patronal, no exercício de funções e no interesse da mesma, não haveria responsabilidade da sociedade. Assim, bem andou o tribunal ao responsabilizar a recorrente, sendo certo que dos factos apurados resulta que tais actos foram praticados em seu nome e no seu interesse, não se demonstrando que os trabalhadores actuaram contra as ordens e instruções da sociedade recorrida.” Neste sentido, pode ver-se ainda o Parecer nº 11/2013 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, publicado no Diário da República, II Série de 16/09/2013, onde se conclui, além do mais, que “O preceito do nº2 do artigo 7º do Regime Geral das Contra-ordenações deve ser interpretado extensivamente, como, aliás, tem sido feito pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional, de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa colectiva ou equiparada, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas. A responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas assenta numa imputação directa e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num “defeito estrutural da organização empresarial” (defective corporate organization) ou “culpa autónoma por défice de organização”, quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa colectiva, mas que não precisa de ser identificada nem individualizada.” A responsabilidade da pessoa colectiva apenas é excluída se o funcionário agir contra as suas ordens ou instruções expressas, pois a responsabilidade contra-ordenacional nunca é uma responsabilidade objectiva, isto é, não prescinde da existência de culpa, seja ela na modalidade de dolo, seja na modalidade de negligência. (…)10 Não há nada que exclua a responsabilidade da recorrente neste caso, não se tendo demonstrado que a sua funcionária actuou contra as ordens recebidas por parte da entidade empregadora. Nessa circunstância, improcede também nessa parte o recurso. Resumindo, improcedem todos os fundamentos do recurso, impondo-se manter a decisão recorrida, ainda que com a fundamentação antecedente e quanto ao que dela decorre, desde logo no que respeita à inexistência de incongruência da decisão administrativa. Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso. Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s, acrescida dos demais encargos legais. Lisboa, 09 de Abril de 2025 Hermengarda do Valle-Frias Ana Paula Grandvaux Rui Miguel Teixeira Texto processado e revisto. Redacção sem adesão ao AO _______________________________________________________ 1. DL nº 433/82, de 27 de Outubro. 2. Destaque nosso. 3. Os destaques são nossos. 4. Comentário do Regime Geral das Contraordenações (…), 2ª ed. actualizada, UCP ed. 2022, p. 71 e 72. 5. Eduardo Correia - Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XLIX, 1973, p. 266 e 267. 6. Destaques ainda nossos. 7. E que no processo contraordenacional tem um âmbito muito específico, como resulta evidente, desde logo, da possibilidade consagrada de prescindir de julgamento, aceitando a decisão sem audiência, circunstância em que, ainda com perfeita afirmação do referido princípio, o próprio agente prescinde de fazer prova [ou contraprova] em julgamento, desde logo quanto a elementos subjectivos [aqui alargando o conceito para abranger o dolo e negligência] da infracção – artº 64º, nº 1 e 2 do RGCO. 8. Acórdão proferido no processo nº 3185/20.6T9AVR.P1, de 15 de dezembro de 2021 - https://www.lexpoint.pt/conteudos/1004/110104/noticias/recusa-de-entrega-do-livro-de-reclamacoes. 9. https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/722-2018-190946175. 10. Destaques nossos. |