Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
100/17.8T9ALQ-B.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, mas é recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.
II. O recurso da decisão instrutória com base em omissão de pronúncia não é admissível.
III. Também não é admissível recurso da decisão instrutória que pretende discutir a acusação – e a pronúncia – com a análise dos factos imputados, já que uma eventual nulidade por omissão de factos, por força da conjugação do disposto no nº 3 do art. 283º do Cód. Proc. Penal com o nº 2 do art.º 308º do mesmo diploma, tem que ser uma omissão total, ou uma omissão de factos essenciais para uma eventual condenação.
IV. Uma alteração substancial ou não substancial de factos supõe uma alteração do objeto do processo, por referência ao definido no despacho de acusação, não podendo ser confundida com a discussão prévia que aprecia a prova indiciária.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do Processo de Instrução com o nº 100/17.8T9ALQ que corre termos no Juiz 3 do Juízo de Instrução Criminal de Loures, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, foi proferida decisão instrutória que pronunciou a arguida AA pela prática de um crime de maus-tratos, p. e p. pelo art.º 152º-A, nº 1, alínea a) do Cód. Penal. De tal decisão veio a arguida AA arguir nulidades, as quais foram indeferidas.
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Sem se conformar, a arguida AA interpôs o presente recurso onde pede que o despacho recorrido seja declarado nulo por omissão de pronúncia; e que seja o despacho recorrido revogado (na parte em que se pronuncia) e substituído por despacho que declare o Despacho de Pronúncia nulo, por padecer das nulidades que foram arguidas pela ora recorrente, com a consequente não pronúncia.
Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:
A - O despacho recorrido é nulo por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP, dado que não se pronuncia sobre uma das nulidades invocadas pela Arguida ora Recorrente, a saber, a do incumprimento das menções do artigo 283º, nº 3, al. b) do CPP, por a Acusação, que a Pronúncia vem confirmar, conter diversas afirmações não factuais ou não concretizadas, e ser insuficientemente fundamentada, em factos concretos, a decisão de pronunciar a Arguida. Tal nulidade deverá ser suprida em Segunda Instância, nos termos do art.º 379º, nº 2 do CPP.
B - No caso em apreço, a Acusação (artigo 14.) tinha imputado à Arguida AA que em ... de ... de 2015 as “enfermeiras em exercício de funções no referido piso” – referindo-se ao Piso 0, indicado dois artigos antes – lhe comunicaram que BB apresentava queixas de dor no ânus e presença de sangue nas fezes, e, bem assim, que esta não comunicou aos familiares da referida Utente a prescrição de uma colonoscopia pelo Dr. CC nessa mesma data – cfr. artigos 15. a 19. da Acusação.
C - Perante a constatação de que, nessa altura (em 2015) a Utente BB se encontrava, não no Piso 0 (em que trabalhava a ora Arguida), mas sim no Piso 3, e perante a prova inequívoca que de tal foi feita em sede de instrução – aliás, já em sede de inquérito, segundo se refere na própria Decisão Instrutória (último parágrafo da página 7) – a decisão instrutória resolveu forçar os factos da Acusação, e alterá-los, tendo passado a considerar que a ora Arguida teria tomado conhecimento de tais circunstâncias em 2015, e era responsável por chamar o médico ao referido piso e comunicar as prescrições deste aos familiares da Sra. BB, já não por ser responsável pelo Piso em causa – essa era a versão da Acusação – mas sim, agora, “fruto da relação institucional assente na sua antiguidade”.
D - Na Acusação, a Arguida vinha acusada de ser a responsável do Piso 3 e de ter sido directamente informada como tal e omitido o dever, próprio dessa qualidade, de chamar o médico; já na Pronúncia o que foi imputado à Arguida foi, não o dever de chamar o médico por ser responsável pelo Piso 3 e por ter sido informada, mas sim um suposto dever que teria “fruto da relação institucional assente na sua antiguidade”.
E - Isto configura uma clara alteração aos factos descritos na Acusação, independentemente da afirmação final meramente tabelar incluída na Pronúncia de que se teriam mantido os factos da Acusação “nos seus precisos termos”, a qual é incompatível com os termos substanciais do próprio conteúdo da Pronúncia.
F - Não se sabe, aliás, sequer que “relação institucional” seria essa, nem qual o papel da suposta “antiguidade” da Arguida em tal relação: o que apenas agrava a nulidade do Despacho de Pronúncia, porque com esta alteração acrescentou um novo motivo de nulidade, que foi o da falta de concretização para este novo (suposto) fundamento factual de imputação.
G - Pelo que deverá ser revogado o despacho recorrido, e deverá ser declarado nulo o Despacho de Pronúncia, nos termos do artigo 309º, nº 1 do CPP, que dispõe que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação, ou, caso assim se entenda, e antes se considere que ocorreu apenas uma alteração não substancial (o que não se concede) por violação do disposto no artigo 303º, nº 1 do CPP.
H - O Despacho de Pronúncia é também nulo por não conter, sequer por remissão para a acusação, os factos que se considere suficientemente indiciados, isto é, nas palavras da alínea b) do nº 3 do art.º 283º do CPP, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve, e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”
I - Tal nulidade resulta da conjugação do disposto no artigo 308º, nº 3, com o disposto no 283º, nº 3, ambos do CPP – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 779.
J - Estando os sintomas da Sra. D. BB explicados pelo diagnóstico médico já realizado de hemorroidal, teria que ser relatado na Pronúncia/Acusação um qualquer motivo, nomeadamente uma alteração ou desenvolvimento anormal de qualquer tipo, para que um novo recurso a um médico pudesse considerar-se um dever de tal forma grave que o seu incumprimento pudesse considerar-se crime: porém, nada nos autos indica que os sintomas observados no dia 9 de Setembro de 2016 eram incompatíveis com uma crise hemorroidal, que a Sra. D. BB apresentava com frequência: simplesmente, a questão não é referida na Acusação, nem, por conseguinte, na Pronúncia.
K - O artigo 37º da Acusação não tem carácter factual: apenas se refere aí que “as referidas indicações médicas não foram cumpridas na íntegra e o estado de BB agravou-se”, pelo que nada de concreto se extrai desta afirmação, em termos factuais, ficando sem se saber, quais as indicações médicas que não foram cumpridas; em que se traduziu a actuação concreta de incumprimento; quem é que não cumpriu; em que é que consistiu, e como se revelou, o suposto “agravamento”.
L - Uma afirmação destas é admissível numa Acusação, nem, muito menos, poderia ter passado pelo crivo de um Tribunal de Instrução Criminal.
M - O artigo 38º da Acusação padece do mesmo mal: não se esclarece quais seriam as doses de morfina prescritas, nem a periodicidade para a sua administração, pelo que nunca poderia saber-se se tais doses ou tais periodicidades foram desrespeitadas: e matéria puramente conclusiva, não admissível numa Acusação.
N - Quanto ao afirmado no artigo 39º, e tendo em conta que a Sra. D. BB era incontinente fecal, seria necessário justificar, pelo menos, há quanto tempo assim se encontrava, para se poder extrair de tal afirmação algum tipo de imputação aos funcionários do lar, e mais ainda à AA. Tal não é feito na Acusação, e, logo, na Pronúncia.
O - Quanto à existência de uma roupa suja, seria necessário relatar-se em que medida e por que motivo isso seria imputável a um erro ou falta dos funcionários do Lar, mais ainda à AA, dado que poderia estar em causa uma sujidade ocasionada numa refeição, impossível de evitar completamente, cuja limpeza ou mudança estaria já a ser tratada, não havendo aí qualquer erro ou ilicitude.
P - Quanto à escabiose, ou sarna, nem sequer se refere na Acusação porquê ou em que medida é que tal ocorrência seria imputável a uma conduta ilícita da AA, o que constitui total falta de fundamentação de facto também a este respeito.
Q - Quanto ao referido nos artigos 42º a 45º da Acusação para que a Pronúncia remete, é relatado que a D. BB desenvolveu uma unha encravada, e uma inflamação do pé, sendo referido que no dia seguinte a apresentar tais sintomas foi ao ..., onde foi observada e medicada, e onde voltou 9 dias depois, ficando internada e aí acabando por falecer: nenhuma das referidas ocorrências é imputada à AA
, pelo que não há qualquer relevância em tal descrição na Acusação, que, no entanto, a Pronúncia manteve, não obstante as invocações da Arguida a este respeito.
R - Pelo que, mais uma vez se comprova a ausência de factualidade concreta e de motivos concretos de imputação de quaisquer danos ou erros à Arguida AA.
S - Não há também nenhum facto concreto que consubstancie o dolo exigido para se poder falar em crime de maus-tratos: é a própria Decisão Instrutória que confirma a necessidade do dolo, isto é, de o agente pretender provocar o resultado danoso na vítima (cfr. pág. 11 da Decisão Instrutória) coisa jamais verificada ou sequer afirmada no caso em apreço, seja na Acusação seja, em consequência, na Pronúncia.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, ainda que sem apresentar conclusões.
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A Mma. Juiz a quo sustentou, nos seus precisos termos, o despacho recorrido.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer de acompanhamento da posição defendida pelo Ministério Público junto da 1ª instância.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
Por decisão instrutória de 07.02.2024, CC e AA foram pronunciados “(…) pela prática, cada um, como autores materiais, na forma consumada (cf. artigo 26.º do Cód. Penal), de 1 (um) crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Cód. Penal, remetendo-se para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação com a ref.ª citius 157423622, nos termos do art.º 307º, n.º 1 e 3 do C.P.P.” (cf. despacho com a ref.ª 159779016).
Por requerimento de 16.02.2024, AA veio arguir a nulidade do despacho de pronúncia, ao abrigo do disposto nos artigos 303º, n.º 1 e 309º, n.º 1 do CPP.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da nulidade arguida.
O arguido CC aderiu à alegação da co-arguida.
Apreciando:
Perscrutado o requerimento apresentado nele não se descrevem quaisquer factos novos, que, no entender do requerente, teriam sido considerados pelo Tribunal como indiciados, susceptíveis de preencher os conceitos de alteração substancial ou não substancial dos factos.
Vejamos:
Constitui alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (cf. art.º 1º, alínea f) do CPP.
Já a alteração não substancial dos factos “constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transformam o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para determinar a moldura penal (cf. acórdão TRC, de 10.11.2021, in https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3 fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/445e6e24c3ed02888025878e0041d22d?OpenDocument).
Todavia, em qualquer dos casos, supõe-se uma alteração do objeto do processo, por referência ao definido no despacho de acusação.
Ora, como acima transcrito, o tribunal pronunciou os arguidos nos precisos termos de facto e de direito por que foram acusados, nada acrescentando ou subtraindo ao objecto do processo, ou à qualificação jurídica imputada pelo Ministério Público.
O requerente confunde objecto dos autos com fundamentos da decisão, no segmento da apreciação da prova indiciária, discordando dos últimos, e, erradamente, transportando esta discordância para o plano do objecto processual, sem qualquer sentido.
Termos em que, pelos fundamentos expostos, se indefere a nulidade arguida.
Notifique.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, o recorrente alega nulidade do despacho de pronúncia:
- por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379º, nº 1, alínea c) do Cód. Proc. Penal;
- por não conter, sequer por remissão para a acusação, factos conforme o disposto na alínea b) do nº 3 do art.º 283º do Cód. Proc. Penal – arguição em conjugação com o art.º 308º, nº 3, do mesmo Código;
- por alteração aos factos descritos na acusação, nos termos do art.º 309º do Cód. Proc. Penal.
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Compulsados os autos, verifica-se que o Ministério Público deduziu acusação imputando a CC e a AA, a prática, como autores materiais e na forma consumada, de um crime de maus-tratos, p. e p. pelo art.º 152º-A, nº 1, alínea a), do Cód. Penal.
Ambos os arguidos requereram que se procedesse a instrução e, finda a mesma, foi proferido despacho em que se decidiu pronunciar os arguidos “pela prática, cada um, como autores materiais, na forma consumada (cf. artigo 26.º do Cód. Penal), de 1 (um) crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Cód. Penal, remetendo-se para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação com a ref.ª citius 157423622, nos termos do art.º 307º, n.º 1 e 3 do C.P.P.”
Preceitua o nº 1 do art.º 310º do Cód. Proc. Penal que “a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento”.
Contudo, o nº 3 do mesmo artigo refere que “é recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior” – sendo que o artigo anterior a que se refere o nº 3 deste art.º 310º dispõe que:
“1 - A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.
2 - A nulidade é arguida no prazo de oito dias contados da data da notificação da decisão”.
Do teor do recurso em análise resulta evidente que a recorrente confunde recurso do despacho que indeferiu a nulidade da decisão instrutória, com recurso da decisão instrutória que a pronunciou pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.
A recorrente começa por alegar a nulidade do despacho de pronúncia por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º, nº 1, alínea c) do Cód. Proc. Penal, dado que não se pronuncia sobre uma das nulidades invocadas por ela: a do incumprimento das menções do art.º 283º, nº 3, al. b) do Cód. Proc. Penal por a acusação, que a pronúncia confirma, conter diversas afirmações não factuais ou não concretizadas, e ser insuficientemente fundamentada, em factos concretos.
Ora esta pretensão não pode proceder:
1º, a norma invocada pela recorrente (art.º 379º, nº 1, alínea c) do Cód. Proc. Penal) rege apenas para as sentenças;
2º, analisar se a acusação contém algumas afirmações não estritamente factuais ou se não concretiza alguns factos do modo como pretendia a recorrente não é o objectivo de uma instrução; e
3º, o recurso da decisão instrutória com base em omissão de pronúncia não é admissível – quando muito poderia admitir-se que, a ter havido omissão de pronúncia (o que não se concede), isso configuraria uma irregularidade, e essa não foi arguida no prazo previsto no art.º 123º do Cód. Proc. Penal.
Mais alega a recorrente a nulidade do despacho de pronúncia nos termos do disposto no nº 3 do art.º 283º do Cód. Proc. Penal, aplicável por força do nº 2 do art.º 308º do mesmo diploma. Afirma a recorrente que o despacho de pronúncia é nulo por não conter, sequer por remissão para a acusação, os factos que considera suficientemente indiciados de acordo com a alínea b) do nº 3 do art.º 283º do Cód. Proc. Penal. E diz que tal acontece porque a acusação, para que remete o despacho de pronúncia, narra factos que não são verdade e não concretiza nem justifica alguns factos que lhe imputa.
Com esta alegação a recorrente pretende, tão só, discutir o teor da acusação e da pronúncia que para aquela remete.
E, como já referimos, não é admissível recurso da decisão instrutória com este fundamento.
É certo que se pode entender que a omissão da indicação dos factos (tal como das normas jurídicas) mesmo que só por remissão, pode implicar a nulidade da decisão de pronúncia, por força da conjugação do disposto no nº 3 do art.º 283º do Cód. Proc. Penal com o nº 2 do art.º 308º do mesmo diploma, devendo a nulidade ser arguida perante o Juiz de Instrução e cabendo recurso do despacho que a indefira (neste sentido cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Cód. Proc. Penal, , 2007, p. 770; e Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Cód. Proc. Penal, tomo III, p. 1289), mas esta referida omissão tem que ser uma omissão total, ou uma omissão de factos essenciais para uma eventual condenação.
O que não é o caso e resulta desde logo da circunstância de a recorrente pretender apenas discutir factos que diz não serem verdade ou que não estão concretizados ou justificados.
Pelo que também esta pretensão da recorrente não pode proceder.
A recorrente alega ainda a nulidade do despacho de pronúncia por alteração aos factos descritos na acusação. Diz que, perante a constatação de que, em 2015, a utente BB se encontrava, não no Piso 0, onde trabalhava a recorrente, mas no Piso 3, a decisão instrutória alterou os factos da acusação, imputando a responsabilidade dos factos à recorrente “fruto da relação institucional assente na sua antiguidade” e já não por ser responsável pelo Piso 3, como era a versão da acusação.
Como já supra dissemos, o nº 1 do art.º 310º do Cód. Proc. Penal dispõe que “a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento”, mas ressalvando o nº 3 do mesmo artigo que “é recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior”.
Ora o artigo anterior a que se refere o nº 3 deste art.º 310º dispõe, no nº 1, que “a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”, impondo o nº 2 que “a nulidade é arguida no prazo de oito dias contados da data da notificação da decisão”.
A nulidade foi tempestivamente arguida e indeferida pelo despacho recorrido.
A decisão instrutória em análise pronunciou a recorrente pela prática, em autoria material e na forma consumada do mesmo crime que lhe era imputado na acusação [maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Cód. Penal] “remetendo-se para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação com a ref.ª citius 157423622, nos termos do art.º 307º, n.º 1 e 3 do C.P.P.”
Não houve nenhuma alteração de qualquer facto – não havendo alteração substancial, ou não substancial, de factos.
A alegação da recorrente prende-se com a análise aos indícios efectuada pela Mma. JIC, no sentido de que, embora a utente em causa, numa fase inicial, não estivesse no piso de que a arguida era responsável, esta tomou conhecimento da prescrição médica por tal lhe ter sido comunicado e depois a utente foi transferida para o piso por que a arguida era responsável. Porém, essa análise não teve qualquer consequência nos factos imputados na acusação.
É precisamente isto que resulta do despacho de pronúncia:
“Assim, depoimentos recolhidos em inquérito, incluindo as declarações prestadas pela, então, arguida DD, bem como o depoimento de EE (à data dos factos directora do Lar) esclarecem, por um lado, que em 2015 a utente se encontrava no piso 3 e a arguida era responsável pelo piso 0, mas, não invalidam o facto desta (a arguida), fruto da relação institucional assente na sua antiguidade, ter recebido das enfermeiras em exercício de funções no referido piso (em 2015), a informação de que a utente estava queixosa, o que a levou a solicitar a sua observação ao coarguido, bem como, de que tomou conhecimento da recomendação de realização de colonoscopia (até porque ficou registado no diário da utente) e não ter comunicado com os familiares daquela alertando para a necessidade da sua realização. Não só não o fez na sequência da primeira observação, como não o fez posteriormente, aquando da mudança da vítima para o piso 0.
Por outro lado, EE declarou expressamente em inquérito que a sinalização dos utentes ao médico era efectuada pela Enfermeira do piso, no caso, AA (cf. fls. 188 e 189).
Por outro lado, reforçando os depoimentos das testemunhas prestadas em inquérito, os depoimentos prestados nesta fase instrutória confirmam que, quem comunicava aos familiares dos utentes a necessidade de exames médicos era a arguida (cf. depoimentos de FF, GG, HH – esta testemunha referindo ser esta tarefa, também da responsabilidade da directora).
Por fim, quanto ao depoimento prestado por EE e à tentativa da defesa, de lançar um dado novo (alegada recusa por parte dos familiares da vítima de realização da colonoscopia), por um lado, mal se compreende que, prestando declarações na fase de inquérito, esta testemunha não tenha feito uma única alusão expressa ou tácita, à dita comunicação com II (filha da vítima) dando conta da necessidade de realização do exame, ou à recusa desta quanto à realização do exame, o que, dada a relevância do facto em causa no contexto dos factos investigados, desacredita por completo o depoimento.
Por outro, ainda que assim não fosse, a situação arrastou-se durante mais de um ano, encontrando-se a vítima sob a responsabilidade da arguida que, sabendo desta recomendação do coarguido e conhecendo os sintomas físicos da vítima, não diligenciou pela realização do exame, estando ciente de que a utente necessitava de cuidados médicos especializados, caso contrário não teria sido prescrito o exame específico.
Em suma, os indícios confirmados pela prova documental e pelos depoimentos discriminados no despacho de acusação não sofreram abalo nesta fase instrutória, na qual, nenhuma prova, que os contrarie ou enfraqueça, foi produzida.”
Como bem define o despacho recorrido, numa alteração substancial ou não substancial de factos “supõe-se uma alteração do objeto do processo, por referência ao definido no despacho de acusação.
Ora, como acima transcrito, o tribunal pronunciou os arguidos nos precisos termos de facto e de direito por que foram acusados, nada acrescentando ou subtraindo ao objecto do processo, ou à qualificação jurídica imputada pelo Ministério Público.
O requerente confunde objecto dos autos com fundamentos da decisão, no segmento da apreciação da prova indiciária, discordando dos últimos, e, erradamente, transportando esta discordância para o plano do objecto processual, sem qualquer sentido.
Termos em que também neste segmento soçobra o recurso.
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Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o recurso e confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco (5) UCs.
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Lisboa, 4.06.2024
Alda Tomé Casimiro
Maria José Machado
Ester Pacheco dos Santos