Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANTERO LUÍS | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO NULIDADE | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/04/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário: | I. A notificação do arguido em processo contra-ordenacional para efeitos do artigo 50º do RGCO numa terceira pessoa, constitui uma nulidade; II. Tal nulidade não pode considerar-se sanada quando o arguido invoca a mesma perante a autoridade administrativa e não obtém da mesma qualquer pronúncia e posteriormente deduz impugnação judicial onde, para além de invocar, de novo, a referida nulidade se pronuncia sobre o mérito da contra-ordenação; III. O não cumprimento do artigo 50º do RGCO por parte da autoridade administrativa constitui uma nulidade insanável. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Nos presentes autos de recurso acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
I Relatório
Por decisão proferida pelo Comandante da Polícia Marítima do Comando Local do Porto, ao que este recurso interessa, foi aplicada ao arguido, F..., , a coima no valor de 500,00 €, pela prática de infracção de exercício de faina de pesca com arte não autorizada de arrasto de ganchorra rebocada. *** Não se conformando com esta decisão o referido arguido interpôs recurso para o Tribunal Marítimo de Lisboa, suscitando, além do mais, a nulidade do acto de notificação da sua constituição como arguido. Após ter sido dispensada a realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida a 31/07/2015 a sentença de fls. 289 a 309, a qual julgou procedente a referida nulidade e anulado todo o processado referente ao recorrente.
*** A Digna Magistrada do Ministério Público, não se conformando com a decisão interpôs recurso para este Tribunal da Relação, nos termos da motivação de fls. 313 a 333, concluindo da seguinte forma: (transcrição)
Assim decidindo, farão Vossas Excelências a costumada JUSTIÇA! (fim de transcrição).
*** O recurso foi admitido a fls. 334 e o arguido não respondeu ao mesmo. *** Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 343 a 347, alegando, em suma, que a não notificação pela autoridade administrativa do arguido nos termos do artigo 46º do RGCOC constitui uma mera irregularidade sanável pelo decurso do tempo nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal pronunciando-se pela procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº2 do Código de Processo Penal.
*** Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
1. O Decreto-Lei n.º 278/87, de 7 de Julho, na redacção resultante dos Decretos-Lei n.º 218/91, de 17 de Junho e 383/98 de 27/11, no seu artigo 16º, estabelece como regime subsidiário, em matéria de recursos, o disposto no Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO), aprovado pelo DL 433/82, de 27 de Outubro, que, por sua vez, no artigo 41º nº 1, quanto ao processamento, remete subsidiariamente para as normas processuais penais. Nos recursos da sentença proferida em sede de impugnação judicial, o Tribunal da Relação só conhece da matéria de direito (artigo 75º nº 1 do RGCO), salvo no caso de se verificarem os vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, que são de conhecimento oficioso[1], e hão-de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência.[2] Feita esta ressalva impõe-se, elencar a questão suscitada pelo recorrente Ministério Público, a saber:
A notificação do recorrido numa terceira pessoa enferma de nulidade, a qual depende de arguição e deve considerar-se sanada, por o recorrido ter deduzido impugnação judicial e, para além de invocar a referida nulidade, ter exercido em pleno o seu direito de defesa. Para uma correcta análise da questão e uma visão exacta do que está em causa, vejamos, em primeiro lugar, qual a factualidade que resulta do processo em relação à nulidade invocada pelo recorrido e julgada procedente pelo Tribunal a quo: 2. Sendo esta a factualidade processual dada por assente, vejamos se assiste razão ao recorrente.
Como refere o recorrente Ministério Público nas suas alegações, “(…) o artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82 que não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre” devendo esta possibilidade revestir a, “(…) forma de notificação, como decorre das disposições conjugadas dos artigos 41.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, e do artigo 112.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal” a qual “(…) terá de ser feita, em alternativa, por contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado, ou por via postal registada – artigo 113.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal”, sendo que a, “(…) notificação por contacto pessoal com o notificando a lei não admite que a mesma seja feita em pessoa diversa daquele, embora com o mesmo residente (artigo 113.º, n.º 1, alínea a), do CPP)”. Acrescenta a Digna Magistrada que a, “(…) violação ou inobservância das disposições da lei de processo penal determina a nulidade do acto respectivo quando esta for a sanção processual expressamente cominada na lei. Caso contrário, a sanção será a de mera irregularidade (artigo 118.º do Código de Processo Penal) ” e o “(…) artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, subsidiariamente aplicável ao processo de contra-ordenação, que constitui nulidade dependente de arguição a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, bem como a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade” e conclui que, “A não notificação do arguido F... na sua própria pessoa, para efeitos do disposto no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, como acto que, no circunstancialismo exposto, deveria reportar-se como sendo legalmente obrigatório, constitui, assim, omissão qualificada por lei como nulidade dependente de arguição”. Com o devido respeito concordamos com as premissas mas não concordamos com a conclusão. O recorrente invoca em abono da sua tese, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, publicado no Diário da República, I Série A, de 25 de Janeiro de 2003, no qual se fixou jurisprudência nos seguintes termos: «Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado / notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão / acusação administrativa». A jurisprudência em questão não se reporta às situações de inexistência de notificação para a defesa, mas apenas às situações em que tal notificação existe mas o seu cumprimento foi ineficiente ou incompleto, o que não é o caso dos autos. A questão em discussão nos autos diz respeito à fase administrativa do processo de contra-ordenação, na qual foi omissa a notificação ao arguido da sua própria constituição como tal e a possibilidade legal de defesa. Dito de outra maneira, constitui nulidade sanável pela intervenção posterior do arguido na fase de impugnação judicial, a sua não notificação na fase administrativa do processo para deduzir a sua defesa? A resposta só pode ser negativa. O que está em causa é a total ausência do direito de defesa na fase preliminar do processo tal como impõe o artigo 50º do RGCO e os artigos 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 267º, nº 5, em matéria administrativa. É verdade que o processo contra-ordenacional não é, nos seus exactos termos, um processo criminal tal como tem vindo a entender o Tribunal Constitucional em variados arestos,[3] mas nunca na perspectiva de omissão total da possibilidade do exercício do direito de defesa, núcleo essencial do direito criminal e contra-ordenacional.[4] Como se pode constatar da factualidade assente, a decisão da autoridade administrativa é de 18 de Dezembro de 2014 e a notificação ao arguido é efectuada apenas em 6 de Janeiro de 2015. Contudo, apesar de ainda não ter sido notificado da decisão, provavelmente por ter tido conhecimento da mesma pelos co-arguidos, o recorrido veio a 30 de Dezembro de 2014 invocar a arguida nulidade, impugnar por cautela a materialidade invocando a prescrição e indicar uma testemunha. Sobre este requerimento não recaiu qualquer despacho da autoridade administrativa e, perante tal silêncio, o arguido veio, a 3 de Fevereiro de 2015, juntamente com os demais, recorrer judicialmente da decisão, onde já não indicou qualquer testemunha limitando-se, uma vez mais, a invocar a nulidade e a impugnar a coima nos exactos termos dos demais. Ora, esta realidade que resulta do processo não a mesma que em termos de conclusões resulta do Assento 1/2003. Como se pode ver da transcrição efectuada pela Digna Magistrada recorrente, o que o Supremo Tribunal de Justiça considera no texto do acórdão, que não na fundamentação, é a seguinte: “A omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida "acusação", o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo "acusado", no acto da impugnação (artigos 120.º, n.ºs 1, 2, alínea d, e 3, alínea c, e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações). Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa (artigos 121º [120], n.ºs 2, alínea d, e 3, alínea c, e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações). Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada (art.s 121.º, n.º 1, alínea c, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações).” Toda a argumentação do Supremo Tribunal de Justiça é desenvolvida no pressuposto que não existiu qualquer intervenção do arguido na fase administrativa, o que não é o caso dos autos. O Supremo Tribunal de Justiça na fundamentação considera que se perante tal omissão, o arguido impugnar a decisão judicialmente pronunciando-se sobre o objecto do procedimento e, sendo caso disso requerendo diligências, a nulidade considerar-se-á sanada, mas se se limitar a arguir a invalidade o tribunal invalidará a instrução. Mas, nada diz o Supremo Tribunal de Justiça, sobre as situações em que o arguido suscita a nulidade perante a própria autoridade administrativa e ao mesmo tempo invoca um outro conjunto de questões sobre a materialidade incluindo a produção de prova. Nada obstava no caso dos autos que a autoridade administrativa tomasse em conta o requerimento apresentado pelo arguido e suprisse a nulidade invocada na própria fase administrativa do processo (artigo 62º do RGCO). Com o devido respeito nenhuma das situações invocadas pela Digna Magistrada recorrente ao nível das decisões dos Tribunais de Relação, configura uma situação como a dos autos. Pretender a aplicação ipsis verbis do Assento do Supremo Tribunal de Justiça como faz o recorrente Ministério Público, é omitir a actividade processual desenvolvida pelo arguido ainda na fase administrativa do processo em que suscitou a nulidade e sobre tal requerimento não obteve resposta. A defender-se esta tese, estaríamos a permitir que a omissão da autoridade administrativa se repercutisse negativamente nos direitos de defesa do arguido. No fundo, o que se permitiria era que a autoridade administrativa é omissa em relação ao seu dever de notificação, volta a ser omissa em relação ao seu dever de pronúncia e, apesar disso, consideramos sanada toda essa actuação em prejuízo do direito de defesa do arguido. Neste contexto não se pode considerar que o arguido se prevaleceu plenamente no âmbito da impugnação judicial de exercer o seu direito de defesa, já que essa impugnação judicial está contaminada com a omissão anteriormente verificada. Não se pode pois considerar sanada a nulidade nos termos do artigo 121º, nº 1 al. c) do Código de Processo Penal, tal como preconiza o recorrente Ministério Público. Mas a nulidade não pode estar sanada pelo que fica dito, mas também porque a mesma é insanável. Vejamos. Esta questão da natureza da omissão da notificação para o exercício do direito de defesa, não tem sido pacífica na doutrina, nem na jurisprudência, admitindo vários autores estarmos em presença de uma nulidade insanável. Os Juízes Conselheiros Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa consideram que a omissão do artigo 50º do RGCO por parte da entidade administrativa e a consequente “Não concessão ao arguido da possibilidade de ser ouvido sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre parece dever considerar-se uma nulidade insanável, enquadrável na alínea c) do nº1 do artº. 119. Com efeito, embora nesta norma se preveja como nulidade insanável a ausência do arguido ou seu defensor quando a lei exigir a respectiva comparência, o objectivo evidente desta obrigatoriedade de comparência é a concessão ao arguido da possibilidade de exercer os seus direitos de defesa que a lei e a CRP impõem que lhe seja concedida e, por isso, esta norma deve ser interpretada extensivamente como visando todas as situações em que não foi concedida ao arguido, antes de lhe ser aplicada uma sanção, possibilidade de exercer direitos de defesa que obrigatoriamente lhe deve ser proporcionada”.[5]Neste sentido ainda que anteriores ao Assento 1/2003 vejam-se Acs. Relação de Évora de 24/03/92 e da Relação do Porto de 07/05/97 e já posterior ao Assento acórdão da Relação de Lisboa de 05/02/2004.[6] Em sentido contrário, isto é, defendendo a tese do Assento e da não interpretação extensiva da alínea c) do artigo 119º do Código de Processo Penal, veja-se o Juiz Paulo Pinto de Albuquerque e a jurisprudência por si elencada.[7] Parece-nos que a tese da nulidade insanável é aquela que melhor se adequa à matriz do nosso direito processual penal e contra-ordenacional e às teses sufragadas pela jurisprudência constitucional referidas anteriormente. Aliás, o próprio legislador, em matéria tributária, consagrou o regime da nulidade insanável ao estatuir no artigo 63º, nº 1 al. c) do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) ao considerar nulidade insuprível a “(…) falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa”. A consagração legislativa da nulidade insanável em matéria tributária e inexistindo qualquer justificação plausível para tratar diferentemente as demais situações contra-ordenacionais, não vemos como se possa argumentar, como faz Pinto de Albuquerque, que a consagração da excepção, confirma a regra. A regra é a possibilidade do direito de defesa tal como resulta do texto constitucional em matéria criminal extensiva à matéria contra-ordenacional. Esta sim é a regra e a matriz de qualquer processo justo e equitativo. Um processo justo e equitativo em matéria contra-ordenacional não se compadece com supressão de direitos aos arguidos, em virtude de actuações menos diligentes das autoridades administrativas. Em resumo e pelas razões referidas, consideramos que o não cumprimento do artigo 50º do RGCO por parte da entidade administrativa conduz a uma nulidade insanável. A nulidade do acto implica que o mesmo é inválido, tal como todos aqueles que estejam na dependência funcional ou seja com todos aqueles que exista nexo funcional,[8] o que nos reconduz à própria notificação omissa e à decisão da autoridade administrativa (artigo 122º do Código de Processo Penal).
Assim, sem mais considerandos, por desnecessários, nenhuma censura nos merece a sentença recorrida à qual se adere e confirma, improcedendo o presente recurso.
III Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Sem custas por não serem devidas.
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por doze páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)
Lisboa, 21 de Janeiro de 2016 Antero Luís João Abrunhosa _______________________________________________________
[3] Veja-se acórdão N.º 537/2011 de 15/11/2011, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110537.html |